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Estudos pós-coloniais, identidade e educação: diálogos entre Brasil e Moçambique
Postcolonial studies, identity and education: dialogues between Brazil and Mozambique
Sociologias, vol. 20, núm. 47, pp. 258-274, 2018
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS

DOSSIÊ


Recepção: 19 Agosto 2016

Aprovação: 24 Maio 2017

DOI: https://doi.org/10.1590/15174522-020004708

Resumo: Esta entrevista foi realizada via Skype® no dia 23 de junho de 2016, às 10h00 (horário de Brasília), nas dependências do Programa de Pós-graduação em Sociologia Política (PPGSP) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O contato inicial com Severino Elias Ngoenha foi realizado durante o IV Simpósio Internacional de Ciências Sociais realizado na Universidade Federal de Goiás (UFG), no ano de 2015, no qual o autor entrevistado foi um dos conferencistas. O objetivo desta entrevista é o de conciliar os aportes teóricos-conceituais obtidos junto à disciplina “Saberes e Ciência: a geopolítica do conhecimento” ministrada pela professora Elizabeth Farias do (PPGSP - UFSC), com temas relacionados ao pós-colonialismo, identidade e educação, áreas de interesse que fazem parte da agenda de pesquisa do referido entrevistado.

Palavras-chave: Severino Elias Ngoenha, Interculturalidade, Moçambique, Filosofia africana, Colonialidade do saber..

Abstract: This interview was held via Skype® on June 23, 2016, in the premises of the Graduate Program of Political Sociology (PPGSP), Federal University of Santa Catarina (UFSC). Our first contact with Severino Elias Ngoenha was during the IV International Symposium of Social Sciences held at the Federal University of Goiás (UFG), in 2015, when he was one of the lecturers. The interview sought to combine the theoretical-conceptual contributions provided by the course "Knowledge and Science: the geopolitics of knowledge" and topics related to postcolonialism, identity and education, areas of interest that are part of the interviewee's research agenda.

Keywords: Severino Elias Ngoenha, Interculturality, Mozambique, African Philosophy, Coloniality of knowledge..

Severino Elias Ngoenha nasceu em Maputo, no ano de 1962. Possui graduação em Teologia e Doutorado em Filosofia pela Universidade Gregoriana de Roma. Em 2010, integrou-se ao Departamento de Filosofia da Universidade Pedagógica de Moçambique. É professor associado do Departamento de Antropologia e Sociologia da Universidade de Lausanne, Suíça. Suas pesquisas situam-se na área de Antropologia, Pensamento Africano, Filosofia da Educação e Interculturalidade. É autor de diversos livros, entre eles: Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1992); Duas interpretações filosóficas da história do século XVII: Vico e Voltaire (1992); O retorno do bom selvagem: uma perspectiva filosófica-africana do problema ecológico (1994); Mukhatchanadas (1995); entre outros.

Cigales e Mezadri: Poderia relatar-nos sua trajetória como estudante, professor e pesquisador? E, depois, também, em que momento de sua trajetória de vida houve o interesse em pesquisar o pensamento filosófico e a antropologia africanos?

Severino Elias Ngoenha: Então... eu saí de Moçambique para a Itália no início da década de 1980 e estive essencialmente estudando filosofia e depois teologia, mas me interessava muito mais a filosofia do que a teologia. Então, voltei para os estudos filosóficos e acabei realizando doutoramento em filosofia, sobre a filosofia da história. É importante dizer duas coisas: eu queria ter feito uma tese de mestrado e doutorado sobre a filosofia africana, mas nessa altura isso não estava muito na moda e era malvisto. Os professores não aceitaram que fizesse uma tese dessa índole naquela universidade Gregoriana, com o prestígio que tinha nos estudos sobre Vico etc. Então, tive que rebater num tema que eles consideravam um clássico, que fosse filosoficamente aceitável. É assim que acabei trabalhando sobre Vico e Voltaire. Mas, trabalhando sobre isso, eu interessei-me, e ocupo-me, sobre a filosofia da história, que não é a mesma coisa que a história da filosofia. Enquanto a história narra a cronologia dos fatos no interior de uma disciplina, que pode ser a Filosofia ou a Sociologia etc., a filosofia da história é uma reflexão filosófica sobre a história: como se escreve a história? Quais são os paradigmas essenciais que nos levam a escolher certos sistemas em detrimento de outros? Quais são as bases axiológicas que estão na origem e no olhar daquilo que nós decidimos estudar como história? Quais são os determinantes do percurso histórico etc.? E me parecia que estudar a filosofia da história me permitiria questionar a fundo a própria história da filosofia, como foi feita. E, como você mencionou claramente, tornou-se muito centrada no Ocidente e fez com que, durante séculos, mais de vinte e cinco séculos de nossa história, a filosofia tivesse erradicado do seu caminho tudo aquilo que não era ocidental, inclusive destacando para fora do caminho das influências a relação histórica que existiu entre, por exemplo, a Grécia e o Antigo Egito, a Mesopotâmia, ou então, tudo aquilo que no Mediterrâneo foi uma espécie de conluio entre o que vinha do sul e o que vinha do norte do mundo - para criar um “alienismo” científico, vamos chamar assim, que fazia com que o Ocidente fosse o único a pensar, o único a ter ideia e que os outros não existiam.

Logo a seguir que eu propus a tese, passei dois anos na França e foi lá que eu escrevi minha tese de doutoramento. É na Suíça que acabei sendo professor, fiquei professor associado por muitos anos, e ensinava intercultura e a interculturalidade. Mas, entretanto, o governo moçambicano tinha me pedido, através do Ministério da Educação, de reintroduzir a filosofia em Moçambique. Neste país, a filosofia tinha uma conotação ideológica, porque Moçambique, de 1975 até os anos 1990, era marxista. E quando o marxismo acabou, precisavam de outra filosofia, que desse conta, digamos assim, de aspectos mais epistemológicos para resolver problemas da capacidade de pensar com rigor ético, porque o país tinha passado por uma desestruturação enorme em termos de guerra e precisávamos encontrar bases de valores a partir do que pensar a realidade nacional, e também continental e mundial. E depois, de base política, porque passávamos por um sistema, depois do colonialismo e do marxismo, que era multipartidarista. E tratava-se de interrogar: afinal de contas o que é uma sociedade? O que é uma sociedade política? O que é uma democracia? O que é a participação? O que é um cidadão? Qual o papel daqueles que dirigem e que são dirigidos, com um governo e com um parlamento representativo etc.

Então, quando comecei a fazer os programas para a formação dos professores - hoje a filosofia cobre todo o território nacional, e é um orgulho pensar que todos os professores que nós temos em Moçambique foram, há vinte e cinco ou trinta anos, formados por nossa universidade -, eu introduzi no programa uma novidade absoluta. Quando eu estava a fazer os programas, fui aproximado por portugueses e por franceses que diziam que eles poderiam me ajudar trazendo a experiência deles para o que eu estava discutindo. Muito disso que me foi oferecido por um português - que era um livro que se utilizava em Portugal, e na capa estava escrito “nós somos educandos” -, eu disse, logo no início: “Isso não serve para nós, porque nós não somos educandos”. E praticamente fiz um programa que exigiu de mim uma espécie de estudo sociológico, primeiro para ver quais eram os problemas essenciais a que a filosofia tinha que participar a dar respostas. E é por isso que direcionei para epistemologia, para política e para a ética. Mas introduzi programas, cadeiras de filosofia africana e cadeiras de filosofia latino-americana. Era a primeira vez que, em Moçambique, ouvia-se falar da filosofia africana, que até aquele momento ninguém conhecia. Em relação à América Latina, tínhamos autores como Raul Prebish e Enrique Dussel. Quer dizer, abríamos a ideia de que a filosofia tinha que ter um horizonte mais largo. Não consegui muito introduzir as filosofias orientais, e é uma coisa que me falta, pois há pensadores de escolas importantes na Índia e, sobretudo, na Coreia do Sul, que não consegui introduzir, mas é um déficit que nós temos.

No entanto, tivemos essa possibilidade de começar a ter um olhar descentrado, quer dizer, sem negar a posição do Ocidente, mas não fazer do Ocidente o único lugar a partir do qual o pensamento é possível.

C&M: Você estava relatando que participou desse processo de pensar um programa de ensino para a Filosofia que não fosse somente centrada no conhecimento ocidental. Cabe lembrar que a filosofia como disciplina escolar havia sido retirada do currículo desse grau de ensino após a independência do país, em 1975, por ser considerada um conhecimento do Ocidente colonizador. Bem, a questão é: como constituir um programa para o ensino da filosofia levando em conta a “colonialidade do saber”? E aproveitamos para fazer a próxima questão, que é saber como hoje, na estrutura acadêmica e científica de Moçambique, ou seja, no interior dos cursos em que você trabalha, qual o lugar das epistemologias do Sul, pós-coloniais, decoloniais, do pensamento africano?

SN: Há duas maneiras de fazer a deconstrução e há uma terceira maneira de fazer a síntese. A primeira maneira é que, primeiro, os estudantes ficaram surpreendidos com a existência de toda uma escola de filosofia africana que historiograficamente tende a se localizar nos anos 1940 e, mais tarde, pelos debates que acresceram a esse início, sobretudo no Congo Belga, na Universidade de Monbach. E também há escolas muito importantes no Senegal, na Nigéria, enfim, de uma produção filosófica africana que foi crescendo e tomando uma dimensão importante. Então, os estudantes pouco a pouco começaram a se interessar muito mais pela filosofia africana que pela filosofia com conotação tipicamente ocidental - esta é a primeira coisa.

A segunda questão é que, na nossa escola, começamos um processo deconstrutivo que consiste em dizer, seguindo pensadores como Heródoto, que o próprio Ocidente não se autoproduziu. Historiograficamente, ele herdou de civilizações que lhe antecederam aquilo que vai se constituir o essencial da sua filosofia. Este mito que o Ocidente construiu, sobretudo no século XIX, que consiste em dizer que tudo começou na Grécia e o Direito, em Roma. Significava, no século XIX, praticamente [...] toda a dimensão da relação de transmissão do conhecimento; quer dizer da ordem do registro, quer a dimensão cristã, quer a dimensão jurídica de Roma, quer a dimensão do lócus filosófico da Grécia, que constitui, afinal de contas, o mito central do pensamento ocidental. Este trabalho baseia-se, sobretudo, em pesquisas muito interessantes feitas na década de 1950, por Cheikh Anta Diop1, um físico que começou a se interessar pelas influências do Egito sobre a Grécia. Ele mostrava, lendo Tucídides, Heródoto e Charles Bonnet2, essa influência, e como isso praticamente só desaparecerá no século XIX, quando, com o colonialismo, nasce uma espécie de racionalização epistemológica que o Ocidente divulga a partir de então.

A gente sabe que, do Renascimento italiano até Voltaire, no século XVIII, no Iluminismo, não havia dúvida para ninguém da influência do Egito sobre a Grécia, do fato de Aristóteles ou Platão terem passado pelo Egito e terem copiado muito das próprias teorias, que o ocidentalismo tinha se inspirado até nos hábitos, nos nomes, nas religiões, no monoteísmo etc. Mas o que acontece é que, no século XIX, isso será tirado para fora. Ora, nós fazemos uma deconstrução crítica desta espécie de racialização, que é própria do século XIX. Deixe juntar essa teoria com a de um americano chamado Martin Bernal, em Atenas Negra, um livro que provocou um grande escândalo, visto que ele tentou descobrir ou desconstruir o eurocentrismo.

Nos Estados Unidos, existem grandes estudos ligados àquilo que se chama “Afrocentrismo”, mas fazemos o esforço, e essa é a síntese, de não sair de uma asneira para cair em outra. Não se trata de tirar o eurocentrismo para meter o afrocentrismo. Trata-se de ser apologetas de um pensamento intercultural, quer dizer, que mostre que as civilizações e as culturas no tempo e no espaço produziram saberes e que não é só o Ocidente, e que estes saberes precisam ser valorizados por aquilo que elas atribuem. E, para fazer isso, nós discutimos os conceitos ligados à questão da pós-modernidade, que significa a deconstrução de metafísicas totalitaristas, e nos baseamos, para fazer isso, mesmo a partir dos autores ocidentais - basta pensar Lyotard, por exemplo -, mas que reabilitam as Epistemologias do Sul que vão ser sucedidas por Boaventura de Souza Santos, por exemplo.

Neste momento, nós temos estudos que estão sendo feitos e temos um departamento ligado ao que chamamos de saberes locais. Quer dizer que buscamos dar conta em discussão e em debate com colegas sul-africanos. E, como existem saberes e epistemologias locais, é preciso redescobri-las, revalorizá-las e metê-las, não como o centro do ensino, mas partindo delas para um diálogo que pode ser um diálogo intercultural.

C&M: A África, assim como a América Latina, está marcada pela diversidade de tradições, línguas e religiões. No entanto, com o processo de colonização e, mais tarde, com a constituição dos Estados-nação, houve a busca pela criação de uma identidade nacional. Você, que é um estudioso da identidade moçambicana, poderia contemplar-nos com uma análise da construção/constituição da possível identidade? E quais os principais desafios teóricos e metodológicos para se formular um estudo sobre questões relativas à identidade moçambicana?

SN: Um sociólogo suíço, Jean Ziegler, conhecido pelas suas posições até políticas, definiu a diferença: diz que, na Europa, foram as nações que fizeram os Estados, enquanto que em África ou na América Latina, os Estados é que têm que fazer as nações. A nação vem da palavra natureza - natura. Quer dizer que é algo do natural. São pessoas que comungam uma mesma língua, um certo número de valores, um certo número de elementos que a história acabou, através de metamorfoses heterogêneas, criando, entre eles, uma certa homogeneidade. É o que nós chamamos de uma nação. O Estado é o modelo artificial, é um artefato que serve para criar uma organização para que as pessoas possam viver juntas e em harmonia, com leis, sem dependerem nem de monarquias nem de Estados pontificais. É assim que nascem os Estados e toda a sua organização na época moderna. Ora, quando se fala da questão da identidade, temos que nos perguntar se a situamos em nível de Nação ou em nível de Estado.

O que acontece em países como em Moçambique é que, antes de nascer a Nação, quer dizer, alguma coisa de natural que faça com que as pessoas do norte e do sul sejam iguais, [vem o Estado]. A delimitação de Berlim, de 18853, ao configurar os espaços coloniais, criou um espaço estatal, que foi aquilo que herdamos e do qual fizemos aquilo que chamamos o Estado moçambicano hoje. A mesma coisa no Brasil, a mesma coisa na Argentina. Quando eu chego no Brasil, [vejo] a heterogeneidade entre o sul, cheio de pessoas com origem na Alemanha ou de países frios, e o norte. Quando eu chego na Bahia, encontro uma população negra muito mais forte e muito mais consciente em termos de mérito. Quer dizer que são pessoas com referenciais culturais básicos, diferentes, como o candomblé etc. Coisas que não tem, por exemplo, o sudeste ou Santa Catarina.

Agora, o que é que acontece? Acontece que isso demonstra que, primeiro, está o Estado brasileiro, que é uma herança colonial. O que o Brasil tentou fazer? O que tenta fazer Moçambique? A pergunta é: como, a partir deste Estado, que é um artefato, que é uma coisa artificial, podemos criar um povo brasileiro ou um povo moçambicano. A história de Moçambique fez com que o perigo de identidades diferentes fosse não a diferença, mas o uso político dessas diferenças para criar problemas que podemos chamar de tribalismos e de conflitos.

Então, todos os 10 anos de libertação nacional, como a luta armada em Moçambique, consistiram não só em lutar contra os portugueses, mas em tentar criar uma identidade comum através de uma união de pessoas, de transferência de pessoas de uma zona para outra através de organizações culturais, sobretudo através de valores simbólicos partilhados por todos. Um desses valores, que foi imposto como um dos elementos suscetíveis de criar a unidade nacional, como no Brasil, foi a língua. Nós optamos, em 1975, em meio à independência, por falar o português. Nós temos muitas línguas nacionais. Diferente do Brasil, em que não são tão comuns os dialetos. Aqui nós estamos cheios de línguas. Poderíamos ter definido uma língua moçambicana, mas optamos pelo português, não porque gostávamos do português ou dos portugueses - não procuramos seguir os portugueses. Mas porque este elemento simbólico pode servir de constituinte de uma certa unidade, sobretudo numa Moçambique que se encontra numa região onde é o único [país] a falar uma língua latina.

Então, eu posso dizer que há esse processo de homogeneização, que não é a mesma coisa que assimilação. Significa dizer que nem todos devam ser iguais. Por exemplo, uma equipe de futebol. Se tivéssemos onze bons guarda-redes4, não marcaríamos nenhum gol. Se tivéssemos 11 atacantes, não teríamos defesa. A ideia é: como fazer com que a diferença seja percebida como um elemento positivo, que melhora a qualidade da nossa equipe? Porque somos muitos e cada um dá o melhor no seu próprio lugar. Como fazer com que um bom defesa direito5, um bom guarda-redes, cada um dê o seu melhor, numa colaboração entre todos para criarmos uma equipe forte e bastante competitiva? E esse é o esforço que estamos a fazer. Se eu tivesse que dar uma resposta, [sobre] se conseguimos isto, eu diria: já, e ainda não. Existe uma identidade moçambicana que já começou a se delinear nesse espaço geopolítico artificial que é o Estado moçambicano, mas este é um processo que tem que continuar, pois a identidade moçambicana não é uma coisa que se fez ou que se faz. Mas temos que continuar a alimentá-la com muito esforço, com muito trabalho e com muita abnegação.

C&M: Na América Latina, Enrique Dussel foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da chamada Filosofia da Libertação. Em muitas das teses deste pensador, percebe-se a busca de uma originalidade, quando não de uma autenticidade para o pensamento latino-americano, no que se refere a um saber filosófico. Na mesma perspectiva, nas trilhas da Escola Moçambicana de Filosofia Africana, você introduz o chamado Paradigma Libertário, que tem a ver com o processo de libertação e emancipação do homem e da mulher negros. Poderia explicar melhor em que consiste este paradigma libertário, e se também poderia ser colocado como uma categoria analítica para se pensar povos e populações em outros contextos?

SN: Eu defendo que a emergência de uma filosofia africana, de um pensar africano, é intrinsicamente ligada à busca de uma liberdade que nos foi negada e essa negação coincide com o esforço ocidental de se libertar. Quer dizer que a Modernidade começa no século XV. De um lado, faz-se em volta da libertação em relação à natureza; esta é toda a base da tecnociência desde Descartes e do Discurso da Metafísica6. É um esforço de libertar-se da imposição lógica e da transcendência. É todo esforço que se encontra através da proclamação mais alta desde Pico della Mirandola7 até Dostoiévsky. É um esforço de libertar-se destes poderes fortes. É toda ideia de criação de Estado e depois da Democracia, que começa em Hobbes, atravessa Locke, Rousseau etc. Mas, ao mesmo tempo em que o Ocidente tentava libertar-se, quer da natureza, quer dos poderes fortes e de Deus, a transcendência, nesse caso, ela praticamente se colocou como um 'corregedor' de outros povos. Na América Latina, toda a dizimação dos índios e das suas culturas; e quando começam a desaparecer e são substituídos pela importação de negros como escravos. Os mesmos defensores, os mesmos filósofos que defendiam a ideia de liberdade - por exemplo, Crocius, que pregava a liberdade da Holanda contra Felipe II, ou Locke, que defendia o Liberalismo, eram, ao mesmo tempo, proprietários de escravos. Em relação ao continente africano, o Ocidente começou a praticar a liberdade para ele, mas negando-a para outras civilizações e culturas.

O pensamento africano, em minha opinião, não começa nos anos 1940, mas situo-o no continente americano, sobretudo no Harlem, entre os anos 1920 e 1940. É um processo de luta pela emancipação, pela afirmação da dignidade humana. Por isso, o conotativo principal, o paradigma essencial é essa busca da liberdade. E ela divide-se em muitas fases. De 1500 a 1875, quando nos EUA acaba a escravatura oficialmente, eu chamo isso de “a luta dos negros pela liberdade contra a escravatura”. Isso quer dizer que todo negro escravizado, oprimido, que estava nessa circunstância, buscava, essencialmente, libertar-se para chegar a ser conhecido e reconhecido como pessoa e poder integrar-se.

Depois de 1875, as minorias negras ou maiorias que se encontram no continente americano vão ter de lutar por aquilo que eu chamo de “integração social”. Do reconhecimento, a liberdade transforma-se num esforço de ser sujeito de direitos e de deveres como todos os outros cidadãos. Isso explica todas as lutas de Martin Luther King, de Malcolm X que tivemos até a década de 1960. E até explica que, no Brasil, o ex-presidente Lula tenha feito aquela Lei8, que introduziu a história africana nos estudos brasileiros. Mas, também, de discriminação positiva que, é preciso recordar, foi teorizada por W. E. B. Du Bois, um sociólogo afro-americano, já em 1903, no famoso livro As Almas da Gente Negra.

Quando o problema passa a ser o problema africano? Aqui em África nós lutamos, a partir da década de 1960 ou da segunda Guerra Mundial, por uma autodeterminação política. Quer dizer que a busca libertária se tornou uma luta por uma independência política. E, logo depois da Independência, estamos confrontados com o problema da liberdade como desenvolvimento econômico, político e social. Digo bem, econômico, político e social.

Para nós, isso é uma luta libertária, porque aquilo que faz com que nossas sociedades sejam pobres, que elas sejam chamadas de terceiro mundo e periféricas, que sejam consideradas como origem da fome ou das guerras, está sujeito a um domínio a partir do econômico, quer pela potência econômica superior que o Ocidente tem, quer pelas armas que utiliza militarmente quando lhe convém, e também pelas instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), que impõem as regras do jogo, que não permitem que as nossas sociedades possam, no fundo, entrar no grande mercado e ser socialmente competitivas para darem de comer e de beber aos próprios filhos, aos próprios homens, às próprias crianças e às suas mulheres. Este, para mim, parece aquilo que é o fulcro principal do que é a filosofia africana.

Ora, essa Filosofia africana, esse paradigma, está muito ligado àquilo que aconteceu no século XIX na América Latina, depois dos processos de independência. Também vocês tiveram que posicionar-se frente aos mesmos colonizadores. Tiveram que lutar, uns contra a escravatura, outros pela integração social, e é um processo que continua; e, hoje, trata-se de lutar para posicionar-se no mundo em que nós estamos; e a luta, numa época que chamamos neoliberal, põe-se mais na dimensão econômica, muitas vezes esquecendo a dimensão social, que, penso, é o que está acontecendo neste momento em muitos países da América Latina, eminentemente no Brasil, onde a discrepância entre ricos e pobres é uma evidência quando a gente passa pelas estradas.

C&M: Moçambique e Brasil apresentam muitas similaridades que não se restringem ao colonizador comum e à língua portuguesa. Destacamos, aqui, a cultura ágrafa, na sua origem, sem letramento, logo, as tradições, os ensinamentos e as histórias foram passadas, oralmente, de geração em geração. Além disso, após seu processo de luta pela independência tardia (1975), sobrevieram guerras civis, precarização da mão de obra, êxodo populacional, fome, miséria, confrontos com a África do Sul. Como tudo isso repercutiu no processo de organização da sistematização de um pensamento ‘sobre si mesmo’ do povo moçambicano através da literatura, filosofia e da formação de instituições educacionais?

SN: Moçambique é um Estado de facto jovem em relação a outros países do continente africano. Como você mencionou muito bem, a nossa independência foi em 1975, quando o essencial do continente africano conheceu sua independência partir da década de 1960. E nós tivemos a felicidade ou infelicidade de sermos colonizados por Portugal, dependendo do ponto de vista que se queira analisar. O fato é que Portugal não tem a mesma cultura filosófica que tem a Alemanha, que tem a Inglaterra, que tem a França. Em consequência, não tem uma grande tradição filosófica e, tendo aberto as escolas em Moçambique, vinte ou trinta anos depois que elas abriram na África nas colônias francesas ou inglesas, nós temos um atraso relativamente importante em relação à África. Por outro lado, temos a infelicidade de ter a África do Sul ao lado, que praticava uma educação sistemática, ensinando aos negros línguas localizadas; não no intuito de valorizar essas línguas e as diferenças culturais, mas no intuito de fechá-los a uma espécie de tribalismo que os impedia de ter uma visão global, privando-os do país deles e evidentemente do mundo no qual estamos inseridos.

Tudo isso confabulou para que a nossa filosofia e literatura fossem tardias em relação aos outros países africanos e, como consequência, fosse mais fraca quantitativamente e também qualitativamente. Mas, nos últimos 20 anos, e aqui, o Brasil jogou um papel importante, o número de formados nas mais várias áreas sociais foi aumentando. Não é só da filosofia. Temos muita gente da ciência política, sociologia, ciências da comunicação. E muitos deles tiveram oportunidades, nos muitos acordos que foram feitos, de formar-se nas diferentes universidades brasileiras. E isso abriu um pouco Moçambique, fazendo com que camadas de pessoas escolarizadas ou de intelectuais aumentassem significativamente. Nesse sentido, o Brasil jogou um papel importante na formação dessa gama de pessoas que ajuda um pouco a pensar Moçambique e pensar os nossos países. Houve parcerias econômicas importantes, entra aí questão da Vale, que podem ser discutidas, porque, muitas vezes, submetendo às trocas econômicas, não há ajuda real entre povos, mas entre interesses econômicos; acabaram [as parcerias] se pautando mais por isso, o interesse mais de uns que de outros, sobretudo dos dirigentes de ambas as nações, em detrimento de uma cooperação mais humanizada.

Infelizmente, no nível cultural, o que mais possuímos do Brasil são as telenovelas. E quer dizer que é a parte mais, digamos assim, não folclórica, mas comercial, da cultura e não propriamente dos aspectos da cultura profunda. Seria importante, de fato, que as trocas aumentassem, se multiplicassem. Houve muitos acordos feitos com as universidades que estão no Brasil para acolher os países de língua portuguesa. Mas, com o novo governo que aí está e com os cortes que parece querer fazer nas áreas culturais, sobretudo nas áreas de trocas com os países africanos, que economicamente nos parecem importantes, penso que, se essa situação do Brasil continuar como está em termos de “governação”, não vamos em direção a um período de mais cooperação; mas, ao contrário, vamos a um período talvez de um retrocesso; o que é uma pena. A realpolitik e as relações de força fazem com que essas coisas acabem por ser interligadas.

C&M: No Brasil, Paulo Freire destacou-se como pensador da educação ao evidenciar a necessidade de levar em consideração o ambiente cultural dos(as) estudantes no processo de ensino e aprendizagem, ou seja, a educação necessita estar relacionada com a realidade social, política e cultural das populações que estão se escolarizando. Nesse sentido, a educação é um ato político em que as desigualdades sociais são evidenciadas. Gostaríamos de saber: qual a repercussão, hoje, do pensamento de Paulo Freire na África “lusófona” e, em particular, em Moçambique?

SN: Na África lusófona não posso dizer muito, mas em Moçambique ele é uma referência. Uma referência importante que, em nome da educação e da filosofia da educação, não podemos omitir nem passar por cima dele. Prova disso é que o número de estudantes que fez tese de licenciatura, de mestrado, de doutoramento sobre Paulo Freire é um número enorme. Então, temos muitos estudantes fazendo a graduação e a pós-graduação sobre a figura e o pensamento de Paulo Freire. Eu mesmo tive uma estudante que orientei no mestrado e o trabalho dela era em volta do pensamento educativo, a dimensão política e cultural da educação.

Não quer dizer que haja uma relação de causa e efeito, mas o Ministério da Educação de Moçambique decidiu, há alguns anos atrás, que 20% do conteúdo educativo que se dá nas escolas tinha que refletir a realidade cultural do lugar. Quer dizer que o Ministério fez um programa que é comum para todo o país no ensino da matemática, da física etc., mas a dimensão cultural tem que ocupar 1/5 de todo o programa do ano letivo. Isso vai desde as línguas que se falam, de realidades sociopolíticas e socioculturais do lugar, para que a educação reflita de fato isso que Paulo Freire defenderia, a dimensão cultural como ponto de partida para uma educação mais englobante e que responda às necessidades e exigências dos educandos.

Notas

1 Cheikh Anta Diop (1923-1986) foi um polímata senegalês formado em Física, Filosofia, Química, Linguística, Economia, Sociologia, História, Egiptologia, Antropologia, versado em diversas disciplinas como o racionalismo, a dialética, técnicas científicas modernas, arqueologia pré-histórica. Estudou as origens da raça humana e a cultura africana pré-colonial. Foi o primeiro egiptólogo africano (informação disponível em < https://www.geledes.org.br/cheikh-anta-diop-derrubou-o-racismo-cientifico-ao-provar-que-o-egito-antigo-era-uma-civilizacao-negra/> (Nota dos revisores)
2 Charles Bonnet (1720-1793) um naturalista e filósofo suíço. Foi o primeiro pensador a utilizar o termo ‘evolução’ no contexto biológico (Cf.< https://www.britannica.com/biography/Charles-Bonnet>). (Nota dos revisores).
3 A Conferência de Berlim ocorreu entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 com 14 países participantes, todos eles do continente Europeu, com exceção dos Estados Unidos. Tratou sobre a “partilha da África” entre outros interesses. Sobre esse aspecto, ficaram definidas regras uniformes nas relações internacionais relativas às ocupações que viriam a ocorrer no futuro no continente africano. A questão de Moçambique, especificamente, torna-se relevante após 1880, quando passa a servir de mercado para os produtos portugueses. Mas a conferencia impõe a Portugal a partilha de seus territórios com outras potências. Por conta disso, Portugal investe na modernização de seus territórios, inclusive no Norte de Moçambique. Novas fronteiras são definidas no território como forma de barrar o avanço de outras nações. A partilha da África foi um dos principais eventos de relações internacionais do final do século XIX, o que veio alterar o desenho geográfico do continente, afetando a configuração de populações, povos tribais, grupos sociais e famílias. Disponível em: https://idi.mne.pt/pt/relacoesdiplomaticas/2-uncategorised/703-conferencia-de-berlim.html. Acesso em 24 ago 2017.
4 O termo equivale a “goleiro” em português do Brasil (Nota dos revisores).
5 No vocabulário futebolístico brasileiro equivale a “lateral direito” (Nota dos revisores).
6 Leibniz, 1686 (Nota dos revisores)
7 Giovanni Pico dela Mirandola (1463-1494), filósofo neoplatônico e humanista do Renascimento italiano. Estudioso da Cabala, destacou-se por seus escritos sobre a dignidade humana. (Nota dos revisores)
8 Trata-se da Lei 10.639 de 2003, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
Revisão técnica de Enio Passiani (UFRGS)

Autor notes

Marcelo Cigales é doutorando em Sociologia Política pela UFSC e editor e colaborador das revistas Café com Sociologia, Cadernos da ABECS, Clovis de Moura de Humanidades, e Em Debate. ✉ marcelocigales@hotmail.com
Fernando Mezadri é doutorando em Sociologia Política pela UFSC e desenvolve pesquisas na área de sociologia da religião e em temáticas sobre secularização, secularismo e ateísmo. ✉ mezadrif@gmail.com


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