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Resumo: Considerando sua experiência entre os indígenas dos sertões de Goiás e a proposta de criação de uma associação de proteção aos povos indígenas que Leolinda de Figueiredo Daltro (c. 1859-1935) divulgou intensamente e em vários espaços sociais após seu retorno ao Rio de Janeiro, podem-se fazer algumas proposições. Afínal, o que ela sabia ou havia lido sobre o modo de vida dos indígenas antes de sua experiência entre eles? O que ela sabia da política indigenista adotada pela República? Ou da região do Brasil central e para a qual ela se dirigiu? Estas são as questões que abordaremos ao longo do texto. Para melhor explorarmos este retorno à capital federal, acreditamos que seja importante também verifícar como Leolinda se envolveu com a “causa indígena”? Ou como uma proposta laica de educação indígena conseguiu movimentar intensamente a opinião pública? Sendo assim, pode-se presumir que o episódio singular vivido por Leolinda – e registrado em seu livro Da catechese dos indios no Brasil – nos aponta para diversos indícios sobre sua missão – nas cidades e nos sertões – e a pluralidade da rede da sociedade regional e nacional em que se envolveu e foi envolvida.
Palavras-chave: Revista de História da Educação Latino-americacana, Leolinda Daltro, Oaci-zauré, mediadora, causa indígena.
Resumen: Teniendo en cuenta su experiencia entre los indios de las tierras de los sectores de Goiás y la propuesta de creación de una asociación de protección de los pueblos indígenas la cual Leolinda de Figueiredo Daltro (1859 - 1935) divulgó intensamente y en diversos espacios sociales, después de su regreso al Río de Enero, se pueden hacer algunas proposiciones. Al fínal, lo que ella sabía o había leído sobre el modo de vida indígena antes de su experiencia entre ellos. ¿Lo que ella sabía de la política indígena adoptada por la República? O lo que conocía sobre la región central de Brasil y por la cual se dirigió. Estos son los temas que discutiremos a lo largo del texto. Para mejor profundizar ese regreso a la capital federal, creemos que también es importante comprobar cómo Leolinda se involucró con la “causa indígena”. O de qué manera una propuesta secular de educación indígena logró mover la opinión pública. Por lo tanto, se puede suponer que el episodio singular experimentado por Leolinda - y registrado en su libro Da catechese dos indios no Brasil - nos señala varias pistas sobre su misión - en las ciudades y en los sectores - y la pluralidad de red de la sociedad regional y nacional en el que estaba involucrada y comprometida.
Palabras clave: Revista de Historia de la Educación Latinoamericana, Leolinda Daltro, Oaci-zauré, mediador, causa indígena.
Abstract: Leolinda de Figueiredo Daltro’s report of her experience among the Indians in the hinterlands of Goiás (Central-Western Brazil) and the proposal to create an association for protecting the indigenous people, which she disseminated widely in diverse social spaces after her return to Rio de Janeiro,raises some interesting issues. What did she know or had read about the indigenous way of life before her experience with them? What did she know about the policies adopted by the Republic in relation to the indigenous population? Or what did she know about the area in Central Brazil which she traversed? These are the questions that will be addressed throughout the text in order to explore more deeply the reactions on her return to the Federal Capital. We believe it is also important to understand how Leolinda got involved in the “indigenous cause” and how a proposal for indigenous secular education managed to evoke such a strong public response. This single episode experienced by Leolinda – as recorded in her book Da catechese dos indios no Brasil - offers several clues about her mission – in the city and in the hinterlands – and the numerous facets of the regional and national society networks that got her involved and committed.
Keywords: History of the Latin American education Journal, Leolinda Daltro, Oacizauré, mediator, indigenous cause.
Leolinda Daltro – a Oaci-zauré – relato de sua experiência de proposta laica de educação para os povos indígenas no Brasil central
Uma noite, contemplando o céu pontilhado de estrelas, uma destas mais o impressionou por seu brilho límpido e sereno. – Que pena não poder eu encerrar-te em uma cabaça para te mirar a meu contento! Sonhou o “si-psá” com sua estrela. No meio da noite acordou e qual não foi o seu espanto, sentindo a seu lado uma jovem de olhos cintilantes. Julgou uma tentação e afastou-a de si, dizendolhe que se fosse dali sem demora. – Mas eu sou a estrela brilhante, que desejaste possuir encerrada em tua cabaça! (A Estrela ÔÁ-CI)
A epígrafe ilustra uma das lendas narrada por capitão Sepé, líder do grupo de indígenas Xerente, que chegou ao Rio de Janeiro em 1896. De acordo com a lenda, Leolinda3 recebeu dos Xerente4 o nome de Oaci-zauré. Trataremos deste assunto no desenvolvimento deste artigo.
Foi uma oportunidade inusitada que proporcionou à professora Leolinda Daltro o contato com um grupo indígena Xerente, em visita ao Rio de Janeiro. Sensibilizada com a situação do grupo e identificada com a ‘missão’ de educá-los, decidiu acompanhá-los no retorno aos sertões do norte de Goiás, hoje estado do Tocantins. Sua obra Da catechese dos indios no Brasil (1920) parece comprovar seu pioneirismo, ao propor um projeto laico de educação indígena, a ser implantado na região do Brasil central, no final do século XIX.
Na tentativa de angariar fundos para seu projeto de catequese, sabe-se que Leolinda, ao decidir acompanhar o grupo até o aldeamento de Piabanha, em Goiás, permaneceu em São Paulo, onde se encontrava seu filho Alfredo, praticante de 1ª classe na administração dos Correios. Leolinda buscou e recebeu apoio da imprensa paulistana e de setores da sociedade, dentre os quais se sobressaíram intelectuais, artistas, educadores, profissionais liberais e também voluntários anônimos que se dispuseram a contribuir. Os vários contatos que conseguiu estabelecer possibilitaram que sua missão se concretizasse ao mesmo tempo em que permitiram que ela estabelecesse uma rede social bastante heterogênea.5
Um de seus contatos foi com o professor José Feliciano, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo – IHGSP, que se constituiu um dos colaboradores desta intrincada rede. Empenhado em obter uma subscrição em favor dos Xerente, escreveu mais de uma dezena de cartas, publicadas em O Estado de São Paulo, nas quais prestava seu apoio à “instalação de uma professora, que entre os cherentes iria ensinar os rudimentos da vida civilizada”.6 Aliás, Feliciano e Leolinda tiveram um amigo em comum, Horace Lane, que percebendo seu entusiasmo, certamente também o incentivou, oferecendo apoio para divulgar suas anotações sobre os aborígenes7 e orientando-o a proceder da seguinte maneira: “Faça uma memória para o próximo congresso de americanistas e verá como, ao lerem de sua memória, todos se voltarão para escuta-la atentamente.”8
Antes de sabermos se o pedido de Horace Lane foi acolhido por Feliciano, apresentaremos ao leitor nossas reflexões sobre a relação de amizade e confiança que se estabeleceu entre Horace Lane e Leolinda. Se, para Elaine Rocha (2002)9, eles não tiveram “nenhum relacionamento”, as leituras que fizemos nos indicam que o então Diretor do Mackenzie foi o principal mentor e patrocinador de seu propósito de catequizar os índios no vale entre os rios Araguaia e Tocantins (1897-1900). Nas cartas que Lane enviou à Leolinda, ele refere conhecer as atividades desenvolvidas por missionárias em sua pátria, os EUA, que haviam convivido longamente com diversas etnias.10 A afirmação de Rocha parece reproduzir e perpetuar, no limiar do século XXI, o preconceito que Leolinda tanto havia denunciado uma década após seu retorno à capital na cidade do Rio de Janeiro (1910). Ela acreditava que não havia conseguido o apoio do poder público para sua nomeação como Missionária dos Índios de Goiás, “por causa do seu sexo”. Pode-se dizer que Leolinda havia tentado “fazer algo que ninguém [daquela maneira] nunca havia feito”.11
O pedido feito por Horace a Feliciano viria a ser atendido somente uma dúzia de anos depois, ao publicar suas notas etnográficas e linguísticas sobre os Xerente nos Annaes do XVIII Congresso de Americanistas, que ocorreu em Londres, em maio de 1912. Parece-nos que um dos motivos que levou Feliciano a expor, após tanto tempo, a pesquisa que havia realizado com os chefes Xerente, foi a criação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI (1910). Algumas de suas anotações, que comentaremos a seguir, nos indicam esta probabilidade.
Professor e erudito, Feliciano diz que a memória que apresentou em Londres não tratou de alguns pontos que viriam a ser expostos, posteriormente, no artigo escrito para a Revista do IHGSP, justificando: “[...] não desejo com ideias novas perturbar o que se está fazendo e nem perder mais um tempo cansado, em assunto que o oficialismo tem monopolizado sem atender às tradições, aos estudos anteriores”.12 Suas palavras nos remetem aos obstáculos encontrados por Leolinda ao buscar o apoio do poder de Estado para executar o seu programa de catequese e civilização dos autóctones. Os pontos sobre os quais silenciou durante o Congresso referiam-se ao projeto educacional pensado por Feliciano, que indicava, tal como Leolinda, que somente adotando uma vida pastoril e agrícola os aborígenes “serão utilmente civilizados”.13
Outro ponto em comum entre as posições assumidas por Leolinda e Feliciano, além do tipo de educação que defendiam para os índios, é certo ressentimento em suas palavras, como se constata na referência a “um doentio patriotismo, que na pátria tanto mal me fez”.14 Lembremos que Leolinda justifica sua missão pelo sentimento patriótico, que a teria levado a deixar o magistério e a aparente cômoda situação que este ofício lhe proporcionava e a abandonar sua casa e seus filhos, com a firme decisão de ensinar o outro,15 ‘os selvicolas’. Como resultado deste ato de abnegação, Leolinda viria a realizar um encontro com o outro Brasil, um país conhecido, até os anos finais dos oitocentos, somente através das memórias de viajantes, cientistas e letrados nacionais e estrangeiros.
Vale destacar que caberia à obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, que teve sua primeira edição em 1902, revelar o outro Brasil, o da tradição, que insistia em ficar fora do alcance das luzes da modernidade. Entendemos aqui a tradição como aquela representada pelas populações do outro Brasil, a dos sertanejos, dos negros pós-abolição e das populações indígenas, que os governos republicanos tentaram excluir de seus planos e práticas políticas efetivas. Os indígenas, especialmente, pois “se mesmo no Império o interesse por eles foi muitas vezes mais retórico do que pragmático, se os nativos figuraram antes no romanceiro romântico e na pintura histórica do que em políticas de ampla aplicação, com a República o apagamento seria ainda mais evidente”.16
1. Leolinda: Oaci-Zauré (estrela d’alva) dos Xerente: Relato sobre a catequese dos índios
Mas retomemos a descrição do ato de abnegação de Leolinda para refletir um pouco mais sobre os seus sentimentos ao ter que “abandonar” os filhos. Sabe-se que parentes, amigos e até figuras públicas tentaram em vão dissuadila, o que, possivelmente, a levou a organizar a vida e a pensar no futuro de seus filhos menores, Oscar, Leobino e Aurea. Talvez esta tenha sido a maneira que encontrou para amenizar seus sentimentos ou, então, representasse, como proposto por Natalie Davis (1997),17 uma forma de heroísmo sedimentada em sua ‘fé de officio’. Quando partiu, decidida a encontrar e civilizar ‘os selvicolas’, Leolinda tinha trinta e oito anos.
Os “filhos das brenhas”: esta era, com certeza, a imagem da alteridade que a maioria dos intelectuais brasileiros desejava cientificamente comprovar. Uma imagem da inferioridade de “nações fetichistas”, que, exatamente, por esta condição, a qual incluía a rudeza de hábitos e bárbaros costumes, as levaria, gradativamente, à situação de aniquilamento. Somente às sociedades modernas e, portanto, civilizadas estava reservada a conquista da ordem e do progresso e, finalmente, da sua própria evolução na escalada humana. Este era o paradigma construído pelos adeptos das teorias comteanas e do evolucionismo.
Em trabalho de fôlego, produzido em 2009, Kaori Kodama nos apresenta ‘o lugar’ do índio na produção etnográfica do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, através da análise dos artigos dos sócios do Instituto, publicados na Revista do IHGB, e dos Relatórios de presidentes de província apresentados às Assembleias Legislativas Provinciais e a ministros do Império, no período de 1840 a 1860. A análise é realizada tendo como pano de fundo a política indigenista imperial de “catequese e civilização”, especialmente a partir da formulação e promulgação do Regulamento das Missões (1845). Kaori constata a existência de sintonia entre os relatos dos diversos presidentes de província e o discurso traçado por parte dos letrados do Instituto Histórico: “a decadência dos povos indígenas e seu extermínio inevitável”.18 Esta cumplicidade expressa na linguagem dos presidentes e no discurso etnográfico sobre os povos indígenas aponta para a inviabilidade do programa de governo proposto para “civilizálos”. Em outras palavras, tanto nas teses científicas enunciadas pelos membros do IHGB, quanto nas falas dos presidentes, os índios estavam fadados ao desaparecimento.
Retomando a questão d‘o lugar’ do índio que, de acordo com Kaori, é pauta de discussão desde o início da fundação do Instituto, em 1838, levando à criação da seção etnográfica, o mais notável talvez seja perceber como tal lugar foi, gradualmente, constituindo o ‘não lugar’ do índio, na medida em que a alteridade que representava a sua presença na construção da nacionalidade acabaria por ceder espaço à “marcha da civilização que a história se propunha a contar”.19 Em nosso entendimento, a imagem de pátria e de cidadão idealizada no período de 1840 a 1860 terá continuidade nos discursos dos sócios do Instituto na Primeira Repúbica no período de 1889 a 1930. Retomaremos tal entendimento quando tratarmos da passagem de Leolinda pelo IHGB, em 1902.
Mas que coisas Leolinda aprendeu com aqueles a quem fora ensinar? Em uma viagem de quase quatro anos, realizada com o propósito de catequizar as diversas ‘tribus’, ela efetivamente se deparou com o desconhecido. Seu contato com os índios permitiu que ela os percebesse como indivíduos que não estavam agregados à lógica do mundo ocidental cristão. Isto se tornou ainda mais evidente quando constatou neles a capacidade de mudar as estratégias defensivas e ofensivas à medida que os não índios avançavam para dentro de seus territórios naturais. Ou, então, na habilidade de reorganização social face às experiências de sucessivos aldeamentos.
Parece-nos que Leolinda, ao se deparar com inúmeras situações de incertezas e riscos nos sertões, tomou de empréstimo as táticas de sobrevivência usadas pelos ‘selvicolas’. É o que sugere a decisão que tomou de dividir o grupo que a acompanhava e seguir por caminhos pouco usuais para quem pretendesse cruzar o vale entre os rios Araguaia e Tocantins, aventurando-se por passagens na mata ignoradas pela maioria dos sertanejos, mas, muito provavelmente, conhecidas por alguns índios que a acompanhavam. Acreditamos que tenha sido esta decisão que permitiu que ela sobrevivesse e retornasse para os seus filhos, agora não mais para a Barra da Gávea, onde lecionava e residia antes de sua viagem aos sertões, mas para a Rua da Pedreira, n. 3, no subúrbio de Cascadura.
Se, nas últimas décadas do século XIX, a política imperial apresentava às outras nações, especialmente às europeias, a imagem de um índio idealizado, a exemplo do que ocorreu durante a Exposição Universal de Paris, em 1889, por ocasião do Centenário da Revolução Francesa,20 na primeira década do século XX, ao retornar de viagem, Leolinda procurou mostrar aos seus compatriotas – através de sua presença, falas e escritos – que os indígenas eram de carne e osso, compunham diferentes nações tuteladas pelo Estado e faziam parte da nação brasileira.
Lembremos que fazia um ano que a princesa Isabel havia assinado a lei que libertaria a população negra do trabalho em regime de escravidão (Lei Áurea, 1888). Assim, enquanto os imigrantes europeus no Centro-Sul contribuíam para a constituição de uma nova força de trabalho, outro tipo de migração, proveniente do Nordeste, viria juntar-se ao contingente que alimentaria o acelerado processo de industrialização e de reurbanização das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Leolinda, como se sabe, partiu da Bahia em direção ao Rio de Janeiro nos anos finais desta década, durante o período de maior explosão demográfica na capital federal. “Tudo se faz crer que a população domiciliada em cortiços representasse em 1890 o dobro da recenseada em 1888, se não mais, isto é, mais de 100.000 habitantes”.21
É plausível supor que Leolinda, antes mesmo de acompanhar as matérias veiculadas pelos jornais e participar das festas cívicas no Rio de Janeiro, tenha tomado contato com a literatura indianista de Gonçalves Dias e de José de Alencar quando cursava Magistério na Bahia. Uma obra bem menos divulgada e do mesmo período foi escrita pelo mineiro Bernardo Guimarães, e intitulase O ermitão do Muquém. Nela, o autor retrata um “herói” que foi viver nesta região,22 entre os sertanejos e os índios de Goiás. Uma curiosa aproximação com o propósito e com a viagem feita pela catequista leiga Leolinda, que nos leva a cogitar que ela possa ter tomado contato também com a obra de Guimarães.
Estas especulações nos remetem à formação e à educação que Leolinda recebeu. De acordo com Elaine Rocha, que se valeu dos Estatutos do Colégio Sagrado Coração de Jesus, por não ter localizado o registro escolar de Leolinda, seu caráter forte e independente tem relação direta com a educação que recebeu das irmãs ursulinas, ordem que dirigia o colégio.23 Com o objetivo de cotejar ou complementar as informações encontradas em Rocha, recorremos ao artigo de Chaves (2009),24 que analisa as instituições de educação e amparo de meninas na Bahia, a partir de meados do século XIX, com base em fontes colhidas no acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia.
O Colégio Sagrado Coração de Jesus, segundo o autor, foi a primeira instituição fundada para atender as chamadas “órfãs” em 1827, tendo funcionado também como externato. Entretanto, após trinta anos de funcionamento em Salvador, o colégio mudou de local e passou a ser regido pelas Irmãs de Caridade. Durante o período da infância de Leolinda, mais dois colégios foram fundados na capital baiana.
Tanto o Colégio Nossa Senhora de Salette (1859), quanto o Colégio da Providência – que foi criado pela Confraria das Senhoras de Caridade (1862) – baseavam-se em códigos muito semelhantes no que diz respeito à administração interna e ao disciplinamento das meninas. Nos Estatutos de ambos, observa-se também que o principal objetivo das instituições era um processo educacional de disciplinamento, que habilitasse as meninas e/ou moças a viverem autonomamente no futuro. Estas informações levantadas por Chaves parecem mostrar que a maioria das instituições educacionais neste período, como no caso dos três colégios que referimos, e que acolhiam meninas órfãs ou não, priorizavam uma mesma formação, não havendo razão para supor que Leolinda tivesse se destacado das demais meninas com as quais conviveu, por ter sido educada por irmãs ursulinas.
O Estado, segundo o mesmo autor, se limitava a repassar parcas subvenções às instituições de amparo a meninas na Bahia, que mais do que cuidar das crianças, deveriam se ocupar do cumprimento dos códigos morais vigentes na sociedade do período. No caso específico das meninas, as preocupações voltavam-se para a mulher adulta que deveria cumprir seu papel de mãe e esposa dedicada, ou seja, garantir que faria parte efetiva do rol das “cidadãs úteis”.
É certo que Leolinda adotará uma série de propostas inovadoras ao exercer o Magistério e que, posteriormente, isto também se manifestará na sua atuação pelos direitos dos índios e das mulheres. Ou seja, o sentido de “cidadã/cidadão útil” será por ela ressignificado, traduzindo-se na defesa do direito ao sufragio a ser concedido ao índio, o que o tornaria cidadão da República, e na segunda década do regime republicano, a defesa que fará do sufrágio feminino.
Na condição de professora, Leolinda defendeu uma educação inovadora, que superasse aquela que era destinada às mulheres das classes média e pobre, que consistia em aprender a ler, escrever, contar e executar bem as “prendas domésticas”. Uma educação que permitisse à mulher o exercício de um ofício,25 para que, na falta do pai ou do marido, pudesse ter condições de amparar a si e/ ou seus filhos na luta pela sobrevivência.
2. A associação de proteção e auxílio aos silvícolas do Brasil: Uma sagrada missão
Pretendendo dar continuidade ao desvelamento da trama, apresentamos o longo período em que a protagonista circulou pela imprensa, instituições e congressos acompanhada de “seus índios”, e com uma dupla meta. A primeira era a de criar uma Associação de proteção e auxílio aos silvícolas, e a segunda era a de obter seu jubilamento (aposentadoria) para com eles retornar ao norte de Goiás.
Nas palavras de Leolinda: “[...] meus indios!.., como dizem por ahi, os que querem chacotear daquelles que lhes são superiores, porque alimentam um ideal [...]” Esta expressão está posta na ‘Memoria’ de Leolinda publicada nos Annaes do Iº Congresso Brasileiro de Geografia do Rio de Janeiro e na sua obra Da catechese. Os autores de trabalhos já produzidos sobre Leolinda que consultamos acreditam que o termo “seus índios” se referia à forma como Leolinda os considerava e/ou chamava. Entretanto, analisando com mais acuidade o texto da ‘Memoria’, constatamos outros dois sentidos possíveis para o termo empregado. O primeiro: era assim que se referiam os articulistas dos jornais da época (1902-1910), pois é sabido que os índios a acompanhavam em todo lugar, já que ela pretendia que a presença do ‘selvicola’ fosse notada na capital federal. O segundo: os índios se referiam à Leolinda como ‘Mamãe grande’, termo utilizado para nomear as pessoas não índias que consideravam importantes. Sabe-se que se referiam ao chefe de Estado, o presidente do Brasil, como ‘Papae grande’. No caso de Leolinda, percebe-se também uma ligação afetiva e de confiança. Esta expressão, portanto, não decorria exclusivamente do fato de estarem abrigados em sua casa, mas porque havia se proposto a atendêlos em suas reivindicações e a acompanhá-los nos contatos com grupos sociais ou autoridades políticas, que se fizessem necessários para tal.
Destacaremos as diferentes narrativas que fizeram os jornais fluminenses, a própria Leolinda e o IHGB, sobre a vinda dos índios em 1902 (dois anos após o retorno de Leolinda dos sertões), com o objetivo de reconduzi-la aos sertões, para que pudesse dar continuidade à catequese entre eles e seus filhos. Farei, em relação a estes textos, uma conexão com a ‘Memoria’ escrita por Leolinda com o firme propósito de executar seu projeto, e que deveria ser apresentada à comissão de Etnografia no Congresso Brasileiro de Geografia na cidade do Rio de Janeiro (1909).
Também nos deteremos nos sujeitos – os índios – para logo após acompanharmos a circulação inicial de Leolinda pela imprensa (1900-1901),26 na tentativa de divulgar e publicizar seu projeto de retornar e criar a Colônia Joaquim Murtinho27, um centro agrícola com treze léguas de extensão, às margens do Araguaia, sob o nome de ‘Geraes’. Lugar com matas virgens e terras ricas em minerais, no qual pretende reunir em combinação com os chefes indígenas, e o prestígio de dois valentes sertanejos [possivelmente seus defensores José Dias e Leão Leda], as diversas etnias com que esteve em contato, com o intuito de oportunizar sua instrução, sua civilização. Leolinda entende a civilização do índio como o direito ao trabalho em diversas atividades, para, assim, tornálos cidadãos ‘prestaveis’ ou ‘uteis’. Eis a República para os indígenas como desideratum de Leolinda.
Parece-nos que Leolinda conhecia o lugar a que se referiu e, possivelmente, durante o convívio com as gentes dos sertões e com o apoio de lideranças que bem conheciam as riquezas naturais do lugar viu diante de si a possibilidade de concretizar seu desejo de retornar e incorporar os índios nos mais diversos ramos do trabalho, a saber, o da agricultura e o da indústria. Entretanto, um articulista do jornal A Tribuna emite sua opinião: “O que torna inutil qualquer campanha neste sentido é que alegarão logo contra ella – de que isso é da atribuição dos governos dos Estados que estão de posse das terras devolutas, e a quem por conseguinte cabe promover o aproveitamento dellas”.28
Leolinda, certamente, contou com o saber e a experiência de seus aliados para traçar o Mapa explicativo do seu projeto de fundação da colônia indígena, e serviu-se desse conhecimento para ir até a redação dos jornais,29 tornando público seu projeto de catequese e civilização dos índios. Contudo, como ela mesma diz, para realizar seu intento somente precisaria contar com “Alguma protecção do governo, a sympathia e apoio do povo, e principalmente a mocidade brasileira sempre disposta a acções nobres e grandes, [...]”30. Talvez tenha tido em mente, ao se referir à mocidade, a atitude dos alunos da Escola Militar da praia Vermelha no Rio de Janeiro, que, por ocasião da estada do grupo de indígenas que acompanhava o capitão Sepé (1896), o recolheu da repartição central da polícia e o abrigou na Escola. Ainda, pode-se supor, que o exercício no Magistério por longa data, colocou-a em contato cotidiano com um público na faixa etária infanto-juvenil. Nessa trama, que algumas vezes pode ser percebida como uma tragicomédia, e que o leitor terá a oportunidade de acompanhar no “seu fazer-se” ao longo do texto, a protagonista não contará com a adesão dos que habitavam os subúrbios fluminenses e tampouco com a assistência do governo que se dizia republicano. Consideramos importante, antes de darmos início à reconstituição de sua turnê citadina, retomar a lenda Xerente da ÔÁ-CI, a partir dos seus desdobramentos para a etnia.
Mas tu és capaz ãe ficar dentro de minha cabaça de cocos ("cúi-cá")? - Sim, affirmou a "ôá-ci". O jovem tomou de sua "cúi-cá" metteu dentro a estrella ("oá-ci-ma-tô-e-rem-nin”); esta virou os olhos para cima, e era uma lindeza contemplal-os em todo seu brilho. O moço [si-psá]31 não socegou mais. Durante o dia sahiu para o matto: não largava de pensar na estrella que tanto desejára num momento de irreflexão e cuja posse agora o deixava tão embaraçado. [...] No dia seguinte a estrella convidou o spi-sá para ir caçar. Chegando perto de uma bacabeira a estrella pediu ao moço que subisse na palmeira para colher um cacho de bacabas. Quando o spi-sá já estava lá em cima, cortando o cacho, a ôá-ci gritou-lhe: - Segura-te bem ahi! E deu com uma vara na bacabeira, ao mesmo tempo que nella trepava. Logo a arvore foi crescendo, crescendo e afinando-se cada vez mais... Adelgaçou-se, e subiu tanto que tocou no céu. Lá, com as folhas a estrella amarrou a bacabeira a um paredão e ambos, firmando-se no topo da arvore, saltaram para dentro do céu. (Capitão Sepé)32
Mas a lenda não acaba aqui. Mais adiante, retomaremos o seu desfecho. O que queremos, neste momento, é chamar a atenção do leitor para a construção da alteridade na cultura do povo Xerente33, (os Akwe ou Akwen),34 através do registro etnográfico de alguns dos sócios do IHGB, como Basílio de Magalhães, e do professor de Matemática e Astronomia Feliciano de Oliveira, do IHGSP.
Um dos motivos que nos levou a selecionar estes registros se deve, como já referimos, ao contato de Leolinda com algumas das subscrições de José Feliciano em jornais paulistanos, como mencionado por ela em sua obra. Por sua vez, Magalhães refere-se à Leolinda e a sua obra, apresentando-a como fonte que oferecia subsídios para os Cherentes, o que sugere seu reconhecimento do vivido pela intrepida missionaria,35 D. Deolinda Daltro, de levar nossa civilização ao gentio – gês centraes. Ele faz menção ao seu longo contato com os cherentes e ao programa de conquista leiga, apesar de não considerar sua obra Da catechese como um registro etnográfico, mas, sim, como um repositório de documentos “concernentes áquella sua patriotica tentativa, á qual se oppuzeram obstaculos insuperaveis”.36 (grifo nosso)
O segundo motivo é porque foi no IHGB que Leolinda começou a constituir sua rede de relações sociais, desta vez, com o objetivo de reivindicar proteção e amparo para os silvícolas. O terceiro motivo é que ela compartilha da perspectiva que ambos têm em relação a uma política indigenista que se assentava sobre a necessidade e a continuidade da obra de civilização e que previa que somente através do trabalho e da instrução ela poderia ser efetivamente concretizada.37
Por fim, o mais importante dos motivos refere-se ao fato de que apesar de terem descrito os Xerente como “selvicolas”, “fetichistas” ou como “o gentio”, estes membros do IHGB registraram seus costumes e crenças e, também, sua língua, o que aponta para o desejo de conhecê-los e de dominar a língua em que o outro se comunicava.
Acreditamos que a oportunidade de convivência com a cultura do outro proporcionou aos etnógrafos José Feliciano e Urbino Vianna olhares mais despidos de preconceitos étnicos, distanciando-os das expectativas do “desaparecimento” dos povos ameríndios defendida por alguns de seus pares. Este é o caso de Urbino Vianna, que nos anos de 192038 conviveu com os Xerente.39 Na opinião de Magalhães, as monografias etnográficas de ambos, ora se completam, ora confirmam sua relevância, na medida em que “constituirá relevante serviço, prestado por esse[s] dedicado[s] brasileiro[s] á ethnographia patria.” (grifo nosso)
O indigena, quando é feliz e traz para o aldeamento muitas e varias peças, [...] como tambem se pesca um peixe de vulto, faz uma festa, e é um dia de paschoa para todos, pela communhão que reina entre os da mesma maloca. Em maio começa a colheita e, concluída, fazem a festa, a que chamamos da "fartura". Na occasião de suas festas, reina a maior cordialidade [...] dansa; come; bebe; folga e ri. [...] vivendo o Akuen em é certo que se ligam e conjuntamente lutam contra inimigos de outras raças ou famílias. [...] Na vida selvagem, ao contrario do que se suppõe, os contactos sexuaes são regulados em beneficio do vigor da prole; o homem respeita a mulher em certas épocas, como a dos catamênios e parto. Por isso, talvez, é que têm mais de uma mulher.40
As anotações destacadas acima são de Urbino Vianna e acreditamos que possam dar ao leitor uma boa síntese da cultura dos Xerente no período em que ele conviveu com esta etnia. Em seus estudos etnográficos, ele também realizou um levantamento da população de doze aldeias Xerente, incluindo homens, mulheres, crianças e velhos, que não atingiu mil e quatrocentas pessoas. Este quadro demográfico, se comparado com o registrado por frei Rafael de Taggia,41 que referia mais de duas mil pessoas, demonstra uma diminuição significativa da população Xerente. Todavia, para a análise destes dados precisamos levar em consideração dois relevantes fatores: primeiro, quando da verificação (em 1851), encontravam-se reunidos no aldeamento Theresa Christina os Xerente e os Xavante. Já o segundo fator, apontado pelos etnógrafos em questão, diz respeito à frequência com que os índios mudavam de lugar e de aldeamento, por livre vontade ou compulsoriamente, tendo em vistas as necessidades de expansão dos criadores de gado ou dos colonos, que desejavam terras produtivas e livres de “problema de índio”: “O Xerente manifesta tendência para deixar a vida selvagem, e, se o não fez ainda, foi por inepcia dos actuaes catechistas e falta de proteção decidida e patriotica, quando não restos de desconfiança no civilizado, que tem por máo habito só se approximar do índio para prejudical-o”.42 (grifo nosso)
Leolinda e o trabalho que desenvolveu entre os Akuen também são mencionados na “Memoria” de Vianna:
[...] permittimo-nos falar da professora bahiana, d. Leolin[d]a Daltro de Figueiredo, domiciliada no Rio de Janeiro, que, em 1899 [2a viagem], se transportou a esses sertões da Piabanha, alli abrindo escola de instrucção primaria, levando depois, no seu retorno á capital, alguns indios a que ministrou ensino de leitura, [...] Um destes foi, posteriormente, o professor Djalma (Uakmonp'té), fallecido em 1921, que, na aldeia Sacrêprá,43 manteve escola, ensinando a irmãos seus da selva.44
Na análise feita por Kaori Kodama, tanto as monografias dos etnógrafos do IHGB, quanto os Relatórios de presidentes de Província (1840-1860) apontavam para a tese da “decadência” e da extinção preconizada pelo botânico Carl Friedrich von Martius, em carta lida na 44ª sessão do Instituto, em 1840. Ainda de acordo com a tese de von Martius, o Brasil seria o lugar onde existiriam as evidências de um passado remoto, especialmente nas matas entre o Xingu, o Tocantins e o Araguaia:
Ahi resisdem os descendentes dos antigos Tupys (os Apiacás, Gés, Mandarucús, etc) que ainda fallão a língua ????: elles devem ser considerados como depositários da Mythologia, tradição histórica, e restos de alguma civilisação dos tempos passados. Nesses logares talvez se possão encontrar ainda alguns vestígios, que derramem alguma luz sobre as causas da presente ruína destes povos. Mas infelizmente ainda ninguém lá foi estudal-os.45
Passado quase um século, a tese de von Martius não havia se confirmado. O antropólogo Ivo Schroeder (2010) anota em sua pesquisa que após, entre os anos de 1930 e 1960, o povo Xerente passa por crises de penúria e tem sua população reduzida em aproximadamente 400 pessoas, concentradas entre as margens do Sono e do Tocantins, após um longo processo de lutas com os criadores de gado, que agora ocupavam boa parte de seu território natural. Tal realidade social somente mudará a partir da retomada gradual de seus antigos territórios. Mas o processo de delimitação e demarcação de suas terras, a partir da década de 1970, somente se efetivará após quase duas décadas e mais violentos conflitos entre os invasores e os Xerente. Finalmente, nos anos de 1990, eles obtiveram, em duas áreas descontínuas, a demarcação e homologação de seu atual território.46
Sabe-se que esta etnia já havia se dirigido à capital em meados do século XIX, para fazer semelhante reivindicação ao Imperador Pedro II e também solicitar um professor que continuasse a catequese aos seus filhos. Se os índios Xerente, no final do século XIX, cruzavam terras e rios por aproximadamente 600 léguas de suas aldeias em Piabanha, no norte de Goiás, até a estação mais próxima da Estrada de Ferro Central do Brasil, na cidade de Araguari-MG, com o objetivo de retornar com sementes, ferramentas e até animais, provavelmente, viviam já a experiência de trabalho agrícola e, em menor medida, a experiência pastoril.
Por que retomamos este assunto? Para demonstrar que Leolinda, ao propor a fundação de uma colônia agrícola adaptada aos moldes indígenas, somente estava sendo porta-voz da reivindicação daquelas populações. A vivência por quase quatro anos com diversos povos Jê do Brasil central haviam minimamente lhe concedido este entendimento.
Ladislao Vásquez, no ensaio Pensamientos indígenas en nuestra América (2006), nos indica outra análise a respeito de alguns indigenistas (ou indianistas) que tiveram uma atuação independente das políticas oficiais de Estado nos séculos XIX e XX. Com esta perspectiva analítica, Vásquez elege Leolinda Daltro e Dora Mayer, respectivamente no Brasil e no Peru, como duas mulheres representativas de um protagonismo independente, ressaltando sua importância para a compreensão das políticas adotadas em relação ao indígena que não se encontram atreladas a um indigenismo oficial.
É sabido que existia, entre os intelectuais republicanos – positivistas ou não –, a ideia de fazer valer uma legislação que pudesse amparar uma política de “proteção” e “civilização indígena”. Pode-se, ainda, conectar o projeto de Leolinda – de fundar uma colônia agrícola – à proposta de Couto de Magalhães, formulada ainda à época do Brasil império, e que previa a fundação de um colégio agrícola.47 No entanto, para entender a proposta de Leolinda, é preciso considerar também a experiência prévia de aldeamento e a capacidade de organização e de agência dos próprios Xerente, que durante as incursões à capital, as quais podiam durar de quatro a seis meses, tinham a oportunidade de contatar com os não índios e com as suas formas de mobilização.
Dois dias após as comemorações dos 80 anos da Independência do Brasil (1822) na Capital, eis que surgem visitantes inesperados na Estação de Ferro Central do Brasil. Talvez para “celebrar” tardiamente a festejada efeméride. Referidos como ‘Tribu de indios’, ‘Bugres’, ‘Indios do Tocantins’ ou ‘Os Apynagés’, os índios recém-chegados de Goiás serão notícia nos principais jornais fluminenses. As matérias, organizadas em sequência temática, foram inseridas por Leolinda em seu livro e ocupam trinta páginas. Sendo assim, entendemos que as experiências e as formas de registro da memória de Leolinda estão conectadas à sua condição e ao seu lugar na família e na sociedade.48 Ao reunir e selecionar as matérias jornalísticas, Leolinda nos faz pensar sobre a importância que ela concedeu à inesperada chegada do grupo indígena, e sobre a qual tomou conhecimento através dos jornais. Logo após sua chegada, o grupo foi encaminhado pelo agente da estação à Repartição Central, onde foram alojados “por falta de outro lugar”. Chamamos a atenção do leitor para o fato de que a “hospedagem da rua do Lavradio”, termo empregado pelos articulistas, já havia abrigado, seis anos antes (em 1896), o grupo de indígenas que acompanhava o capitão Sepé.
3. Leolinda como mediadora: Sua atuação pela causa indígena
O leitor, certamente, aguarda o ato final da lenda da ÔÁ-CI. O que aconteceu ao jovem si-psá? Ao chegar ao céu com a estrela o que encontrou? O que ele e seus pais haviam ouvido das missões religiosas sobre os encantos do céu se confirmou? Talvez... Vamos ver!
[...] A estrella voltou logo; de novo ordenou-lhe que dalli não sahísse e, sobretudo, que não fosse ver a festa cujo barulho tinha percebido. E a ôá-ci, deixando-lhe comida foi-se embora outra vez. O si-psá não pode mais reprimir sua curiosidade e sahiu a ver que festa era aquella. Foi e viu... um horror! Era uma dansa macabra de nova espécie. Uma multidão circumgirava esquelética, disforme, com os ossos de fóra, os intestinos suspensos, e os olhos seccos nas orbitas cavadas. Tudo tresandava a carne putrefacta, infeccionando os ares... [...] Encontrou-se com a estrella que o reprehendeu severamente, e o metteu ??? banho, em que o lustrou inteiramente, [...] Mas o si-psá não queria mais ficar ali. [...] A estrella advinhou seu intento e correu para prevenir. O si-psá, porém, andou mais rapidamente e quando a estrella chegou ao paredão, já elle desatára a bacabeira, pulando-lhe no tôpo. [...] A estrella, olhou-o tristemente e lhe disse: - Debalde foges: por cá tu hás de vir sem demora. (Capitão Sepé).49
Não pretendemos aqui debater sobre o status totêmico dos Xerente. Entretanto, o professor Feliciano anota em sua memória etnográfica as festas realizadas por esta etnia. Cita a da pedra (Ksirê), a do burity e a dos mortos ou das almas. “Na festa dos mortos ha um longo mastro, por onde as almas dos feiticeiros (sé-coá) se vão communicar no céu com seus parentes, que estão no Sol (Bedâ), na Lua (Oâ), nos idolos astros.”50
Finalmente, por que Leolinda é chamada de Oaci-zauré?51 Mencionamos acima no texto que zauré significa para os Xerente uma pessoa importante. Urbino Vianna (1927) em suas ligeiras notas sobre a Gramática Akuen também identifica as nomenclaturas de grande ou forte, como no caso de zauré picon, que ele traduz por mulher forte. No livro Da catechese é uma coluna do jornal A Politica52 intitulada “A Missionaria dos Indios” que apresentará Leolinda, como a Oacy-Zauré (Estrella d’ Alva) dos indios Cherentes e, se propõe contar sua história:
Ouça-a o publico, ouça-o o Governo da Republica, porque só agora se lhe poderá dar o grande valor que ella tem e que a sociedade civilisada ha de reconhecer, porque civilisação é a que ella levou para as florestas incultas de Goyaz e não essa que no Rio de Janeiro se apregoa só se tendo em mira os lucros materiaes que pode dar.53
Importante notar que a matéria foi publicada no mesmo dia do decreto de criação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em 20 de junho de 1910. Leolinda, certamente percebeu que, diante do oficialismo da proteção fraternal54 de Estado proposto para catequese e civilização dos índios, se fazia inadiável a sua intenção inicial, havia dez anos, quando retornou ao Rio de Janeiro, de publicar os documentos da viagem, de seu encontro com o outro e da outra realidade dos grupos indígenas em Goiás.
O periódico A Politica, na sequência da referida matéria, abre novo espaço em suas colunas para fazer referência à Oacy-Zauré, “D. Leolinda de Figueiredo Daltro”. Desta vez, fazendo justa homenagem pela passagem de aniversário da professora:
Conhecem-n'a? Não! Não a conhecem; [...] Ouviram pronunciar o seu nome quando a reclamação dos nossos selvicolas chegavam de viva voz, a esta capital, [...] temos occasião de inserir nestas columnas, não os nossos próprios conceitos, mas os julgamentos, as palavras de conforto e animação que lhe dirigiram essas pessoas [dos sertões de Goiás], Palavras essas que constituem o valioso Album de Viagem [...] Como seria longa a publicação de todos os documentos desse brilhante livro, limitamo-nos a dar, apenas, os primeiros como justa homenagem a essa patriótica senhora que a 14 de julho fluente galgou mais um anno de existência verdadeiramente util e preciosa.55
Como toda lenda faz parte da cultura de uma sociedade e dos grupos sociais que a compõem e, por isso, é constantemente passível de ressignificados, a lenda da Ôá-ci não poderia ser diferente. Como veremos a seguir, a lenda é apropriada por Leolinda em dois momentos distintos. Desta vez, não mais em confronto com as práticas de Estado, mas em protesto à opinião do então Diretor do Museu Paulista, o naturalista Hermann von Ihering que, como meio de civilização, sugere o extermínio de etnias indígenas no Centro-Sul, que segundo ele, estavam obstruindo a expansão da fronteira agrícola na região.56
Por essa razão, Leolinda faz o pedido de inclusão de seu protesto em ata da sessão ordinária da ‘Associação de Protecção e Auxilio aos Selvicolas do Brasil’. Aproveita, também, para confirmar que havia enviado sua manifestação à imprensa para ser publicada. O protesto, em forma de discurso, foi apresentado aos consócios sob o título “Os Indigenas do Brasil”:
Féras humanas os chamam! E o são na verdade, mas só quando os que se dizem civilizados lhes roubam os cereaes que plantam, os animaes que criam, ou os enxotam aferro e afogo das terras que regam com o suor do rosto e lhes tomam as mulheres e filhas que são toda a sua felicidade. [...] Instrucção em vez de balas de carabinas assassinas, é o que os sabios devem aconselhar se dê aos índios. E com a instrucção, ministre-se-lhes a moral pelo exemplo. Isso é o que elles querem. Só disso é o que elles precisam. O resultado pratico será certo. Haja vista os indios, meus discípulos [...] Cidadãos eleitores, todos elles são artistas, sem nenhum vicio, verdadeiros homens de bem, inexcedíveis em sentimentos generosos e delicados, no brio e na dignidade pessoal. Esta feito meu protesto!57
Leolinda pediu, também, que fosse inserido na ata o seguinte protesto:
Os indios brasileiros abaixo assignados, já incorporados a civilisação, e representantes nesta Capital das tribus Gauranys, Guajajára, Cherentes e Caraós, protestam contra [...] A’ sciencia do Dr. von Ihering oppomos a moral de todo mundo civüisado em pleno antagonismo com a sua opinião; que so representa uma extravagante aberração do espirito humano. E tanto basta para este necessario protesto. Marcelino Jepia-jú, pela tribu Guarany; 'Vital Uaquidy, pela tribu Guajajara; Kuroki Porpipó, pela tribu Caraó; Djalma Uacumupté e Oyama Pracé, pela tribu Cherente.58 (Grifo nosso)
Não é nosso propósito aqui analisar as declarações de von Ihering tão debatidas na literatura que trata sobre a questão.59 Consideramos importante referir que Leolinda ao se identificar, nessa ocasião, como Oassy-Zauré dos indigenas brasileiros, estava chamando para si o direito de cobrar da atuação do Estado republicano – que ainda mantinha indefinida sua política indigenista – medidas mais afirmativas e eficientes, que implicavam em:
1. delimitar as áreas indígenas;
2. oferecer proteção aos indígenas;
3. promover, especialmente, a educação laica;
4. oportunizar o emprego da força de trabalho dos indígenas.
Tais desafios, a serem abraçados pelo governo republicano, poderiam, segundo Leolinda, promover gradualmente os hábitos civilizados entre os índios brasileiros, e, talvez, num futuro próximo, garantir a transformação social destes povos.60 Leolinda, portanto, tinha como principal objetivo a incorporação dos índios brasileiros à civilização. Este é o mote norteador de seu programa, aquele que ela defenderá no 1º Congresso Brasileiro de Geografia (1909), como veremos mais adiante no texto.
O que Leolinda pensava ao se referir sobre os povos indígenas como “verdadeiros donos da pátria” ou à educação “para a civilização dos Selvicolas brasileiros”? Talvez uma das possíveis respostas a esta pergunta possa ser encontrada nesta afirmação: “[...] eduquei quinze indios; a todos ensinei a lêr e escrever e tornei cidadãos da Republica, investindo-os nos seus direitos civis e politicos, conforme provam os votos a descoberto.”61 [grifo no original] No entanto, as fontes que consultamos não fornecem dados precisos sobre o tempo que os índios permaneceram hospedados em sua casa no Rio de Janeiro. No prólogo de Da catechese, Leolinda registra o atendimento de seu objetivo principal: “torneios cidadãos uteis”, e enumera as profissões em que eles se formaram. Dentre eles, estavam dois ferreiros, dois carpinteiros, um pintor e um mecânico. Este último, empregado como ajustador de máquinas na Estrada de Ferro Central do Brasil acabou vitimado pela gripe espanhola, quando se preparava para prestar exame na Escola Politécnica, em 1918. Ao final, ela acrescenta que um deles foi contratado como professor no Paraná, muito provavelmente, da etnia Guarani. Sobre as mulheres Xerente, Guarani e Krahô, Leolinda iniciou-as na educação doméstica, ensinando-as a atuarem em profissões ‘uteis’, como a de costureira. Já a Krahô, segundo ela, teria se revelado ‘uma perfeita florista’.62
Sabe-se que no prédio de número 387 da rua general Câmara aconteceu a sessão ordinária que deu início aos trabalhos da Associação de Proteção e Auxílio aos Silvícolas do Brasil em 1º de setembro de 1908. Leolinda pediu a palavra e declarou que há muito desejava fundar nesta capital uma associação com o objetivo de auxiliar e defender os índios “tratando seriamente da catechese leiga dos selvicolas, aos quaes falta apenas a luz da instrucção para que possam entrar francamente na communhão social brasileira.”63 Encontramos na ata de reunião uma razão bem pertinente que possivelmente reascendeu em Leolinda “[...] sentimentos e preoccupações constantes pela causa dos indigenas.”64
Ainda, de acordo com o registro da referida ata, Leolinda justifica a urgência das ações da associação: “[...] agora que essa protecção se torna necessária porquanto se encontra nesta capital o indio Guarany Marcelino Jepia-jú que vem reclamar contra a destruição completa dos índios Choclés,65 julga de inteira conveniência a fundação e installação desta associação tão mal succedida na sua primitiva fórma”.66 Em Da catechese encontramos Leolinda se posicionando em relação ao conflito citado acima, decorrente da decisão tomada por von Ihering, havia dois anos, de exterminar os Kaingang. Notemos o conteúdo do telegrama que ela enviou ao presidente [governador] do Estado de São Paulo: “Rogo V. Ex. reservar-me gratuitamente, funcção catechistas junto [aos] indigenas [dos] sertões paulistas, [...]”67
Continuando sua exposição, Leolinda confirma que a iniciativa de criar um instituto e/ou associação para proteger os índios já existia há algum tempo, e que tudo começou havia seis anos68 na sede do IHGB, com o apoio do sócio comendador Raffard e do general Francisco Raphael de Mello Rego (ambos já falecidos). Entretanto, segundo Leolinda, a criação do ‘Instituto de Protecção aos Indigenas Brasileiros’ teve duração efêmera e sua criação foi infrutífera ficando sua organização postergada para outro momento. As frustradas expectativas deram-se porque indivíduos presentes às reuniões do instituto procuraram desviar os objetivos inicialmente propostos, a exemplo da catequese leiga, “[...] exploradores, que queriam a todo transe converter a nascente instituição em um centro clerical, pernicioso e deturpador dos seus verdadeiros fins”.69
Antes de apresentar a caminhada de Leolinda, agora pelas ruas da capital, em busca de seus propósitos – instrução e proteção para os autóctones – circulando por instituições, órgãos oficiais, congressos e a imprensa como anunciado, consideramos importante retomar aqui a participação efetiva de seus filhos, genro e nora na Associação de Proteção e Auxílio aos Silvícolas do Brasil. Eles a acompanharam nessa nova jornada, agora já adultos, já que não havia sido possível acompanhá-la pelas aldeias do norte de Goiás – como queriam, outrora, Oscar e Leobino – participando ativamente das reuniões da organização e das demandas da associação. Leobino é designado, por aclamação da assembléia, para assumir o cargo de secretário e, na maioria das atas da associação, encontram-se registradas as presenças de seus outros filhos Alfredo e Alcina e de seus respectivos conjugues Antonietta de Figueiredo e Oscar de Siqueira Amazonas. O nome de sua filha mais nova, Aurea, também é registrado nas atas de reunião.
Apesar das expectativas frustradas que resultaram na desarticulação do Instituto de Proteção aos Indígenas Brasileiros, criado com o apoio de alguns sócios do IHGB (1902), Leolinda continuou a sua luta obstinada de criar uma associação no Brasil, e, com este propósito, circulou acompanhada de seus alunos, por diversos lugares, que passamos a enumerar a seguir: o Congresso Pan-Americano, o Congresso de Instrução e a União Cívica Brasileira. Todos no ano de 1906. Acreditamos que estas tentativas, como mencionamos, deveramse à situação de violência e confronto que envolvia os grupos indígenas, as autoridades locais, os cafeicultores, e a presença de Companhias de estrada de ferro nos sertões paulistas.
Apresentaremos aqui um resumo das duas sessões [ordinária e extraordinária] que mudaram a rotina dos consócios do IHGB. Assim, tudo começou, como mencionado, nas colunas dos principais jornais da capital que noticiavam sobre o contentamento dos índios recém-chegados à capital ao reencontrarem Leolinda.
A própria Leolinda escreveu ‘Ao publico’, missiva em que apresentava, sumariamente, seu Projeto de catequese. O motivo para divulgar suas intenções publicamente, além dos objetivos de retornar e dar continuidade à catequese está associado à confusão que fazem os jornais da época em relação à classificação do grupo indígena denominado apenas por “Apynagés” ou “Pynagés”. A carta, a partir de sua publicação no Jornal do Brasil (sessão da tarde), chamou a atenção de um dos consócios do IHGB, Henrique Raffard. Certamente, como leitor e intelectual, ele deve ter acompanhado as manchetes sobre os “estranhos” visitantes que circulavam na cidade do Rio de Janeiro.
A seguir, exibimos passagem da fala apresentada em reunião extraordinária do IHGB70 pelo então secretário do Instituto, o comendador Raffard. Ele inicia sua fala, dizendo que se encontrava em discussão a proposta, que havia sido adiada por falta de número legal na última sessão [ordinária, em 26/09/1902], relativa à criação “sob os auspicios deste Instituto, de uma associação protectora dos indios brazis”.71 Diferentemente da versão da falta de quórum, apresentada por Raffard – motivo pelo qual a pauta sobre a proteção dos índios na reunião ordinária não foi discutida – Leolinda argumenta no ‘Resumo Histórico’ da obra Da catechese,72 fundamentada no pronunciamento de um dos sócios que defendeu intensamente a catequese religiosa, que o verdadeiro motivo para o adiamento dessa pauta era outro. Este, em grande medida, era o mesmo que a havia impedido de participar da reunião, restando a ela apenas assisti-la de uma sala contígua. Enfim, como se pode constatar, existem divergências entre os relatos e as lembranças dos envolvidos no episódio, o que parece ser inevitável, considerando-se a heterogeneidade dos grupos envolvidos. Entretanto, como já afirmamos não temos a pretensão de identificar o verdadeiro/falso na codificação do extenso corpus documental que constitui a obra Da catechese.
Enfim, as cobranças de Leolinda e a expedição de “[...] alguns descendentes dos primitivos senhores do solo brazileiro despertou a ideia de creação de um Centro destinado a interessar-se pela sorte destes individuos afastados da civilização e com direito entretanto de toda a nossa consideração”. Este parecer consta no relatório anual do Sr. Raffard73 e, também, aparece no discurso de abertura do Presidente do IHGB, conselheiro Olegario Herculano D’Aquino e Castro, por ocasião da sessão magna de seus consócios, “[...] o estudo e a adopção de medidas adequadas ao melhoramento do serviço de catechese e civilização dos Indigenas brazileiros, bem merecedores de protecção e amparo [...]”.74 Neste mesmo ano, o Instituto completava o seu 64º aniversário. Afinal, foi aprovada e nomeada uma comissão para instalar o Instituto de Protecção aos Indigenas Brazileiros no dia 21 de outubro, por coincidência, aniversário da fundação do IHGB.
Na primeira sessão ordinária deste Instituto – o de Proteção aos Indígenas Brasileiros –, Leolinda apresentou-se acompanhada de seu filho Alfredo Napoleão de Figueiredo e agradeceu a gentileza de sua admissão como sócia benemérita. Talvez esta tenha sido a única maneira encontrada pelos sócios para que Leolinda acompanhasse efetivamente os trabalhos do instituto. Em seguida, ela fez um breve relato de suas viagens e afirmou que, pelo que viu e observou, era “urgente a fundação de um núcleo de indigenas na margem do Araguaya”.75 Proposta que, diante do entusiasmo dos consócios obteve de imediato o apoio dos presentes. Um dos sócios sugeriu o nome de Couto de Magalhães, em substituição ao de Joaquim Murtinho para a futura colônia indígena, o que confirma a presença e a exposição de seu projeto de catequese aos consócios presentes. O Jornal do Commercio publica também o conteúdo da ata desta sessão.
A próxima sessão ocorrerá por ocasião do primeiro aniversário do Instituto de Proteção aos Indígenas Brasileiros, em 21 de outubro de 1903. Desta sessão, Leolinda não participará. O que sabemos sobre esta sessão encontra-se na missiva que o maranhense [João] Parsondas de Carvalho escreveu à Leolinda. Ele, primeiro, a parabeniza pelo sucesso alcançado, pelo entusiasmo com que se pronunciaram Raffard e Mello Rego a seu favor e pela petição que estava sendo redigida no Congresso. O conteúdo dessa petição, infelizmente, não aparece na missiva. Entretanto, muito provavelmente, a petição se referisse à criação da colônia indígena às margens do Araguaia, proposta por Leolinda e aclamada pelos sócios do instituto. Ao final da missiva, Parsondas faz referência à situação constrangedora a que Leolinda havia sido exposta na Intendência Municipal. Também não encontramos maiores informações sobre o ocorrido na missiva, entretanto, pode-se ter uma dimensão nas palavras de Parsondas: “Commendador Raffard se associou a mim para irmos ao deputado Barbosa Lima e outros, afim de acabar a perseguição que a senhora está sofrendo”.76
Sabe-se que a sessão do Instituto de Proteção aos Indígenas Brasileiros de 28 de março de 1903 ocorreu no salão das sessões do IHGB, conforme as duas primeiras linhas da ata deste encontro. Segundo as palavras do Sr. Raffard, que constam da ata da 15ª sessão ordinária, deveria ser criada uma associação que cumprisse, efetivamente, a proteção dos índios e o IHGB seria o lugar apropriado para a realização das reuniões de seus associados.77
As informações que destacamos acima constam no livro Da catechese e elas nos levam a contestar as afirmações de Rocha (2002) e Grigório (2012), para quem Leolinda teria apresentado duas versões, a saber, uma em que teria podido assistir às sessões do IHGB de uma sala contigua, devido à “condição de seu sexo”, e, outra, em que teria estado presente em tais sessões. Em relação a esta visão difundida por Rocha e por Grigório, é importante esclarecer “que não existem duas versões” sobre a presença de Leolinda, pois, a sessão de que Leolinda participou, acompanhada de seu filho Alfredo – e durante a qual foi aclamada consócia benemérita – foi a do Instituto de Proteção aos Indígenas Brasileiros,78 realizada nas dependências do IHGB.
A reação de alguns sócios do IHGB à proposta de Leolinda, que ainda entendiam a catequese como missão dos religiosos, talvez esteja atrelada à missiva de Parsondas sobre seu constrangimento na Intendência Municipal e os motivos de sua perseguição. Em sua ‘Explicação necessaria’, ela conta sentir-se hostilizada por ‘civilisados’ no seu retorno ao Rio de Janeiro e que isto se devia ao fato de estarem sugestionados por segmentos do clérigo, que defendiam a catequese dos índios por ordens religiosas. Afinal, por essa mesma razão, como já referimos, membros do clero a haviam hostilizado pelo intermédio de indivíduos ‘incultos e fanaticos do interior de Goyaz’.79
Nos acervos a que tivemos acesso encontramos também uma missiva de Leolinda ao Barão do Rio Branco,80 pedindo algum auxílio para garantir o sepultamento de outro índio que havia falecido. Ainda, no prólogo de Da catechese, Leolinda refere a morte e sepultamento de quatro índios que haviam contraído varíola, segundo ela, ainda durante o período em que estiveram acomodados na repartição central da polícia. Como já referido, eles haviam sido anunciados pela imprensa como Apynagés quando chegaram à capital em 1902.
Nesta carta, Leolinda explica a José Maria da Silva Paranhos Júnior81 como já havia, com sacrifícios, providenciado o sepultamento de outros no cemitério de Jacarepaguá82. Desta vez, porém, seria necessário algum apoio, porque já não contava mais com recursos para tal. Leolinda informa que, na madrugada, havia procurado o secretário do IHGB, comendador Raffard, que havia auxiliado com algum dinheiro e sugerido que ela o procurasse, razão pela qual havia tomado a liberdade de lhe escrever.
Ao examinarmos a caligrafia de Leolinda nesta carta, pode-se constatar o estado de aflição em que ela se encontrava, diante da perda de mais um ‘companheiro das tabas’ e, principalmente, da difícil situação financeira em que se encontrava, pois os abrigara em sua casa, contando somente com seu salário. Acredito que a razão mais importante, embora Leolinda não a refira na missiva, tenha sido a preocupação em realizar um sepultamento minimamente digno e talvez o mais próximo possível dos que deve ter participado com os Akwen: “Quando morre um índio [...] e, antes do enterramento, fazem um alarido medonho, chorando o morto, pranteando-o não só os parentes como os conhecidos. Nisso demonstram o amor que têm entre si, e não há tempo possível para esquecer os parentes e amigos fallecidos.”83
CONCLUSÕES
O pedido de jubilação [aposentadoria] do exercício do magistério que Leolinda encaminhou para poder retornar à Goiás e continuar seu trabalho de catequese tomou proporções imensuráveis na imprensa, quando da ‘tribu’ chegou mais um grupo Xerente: Simnãkru, Wakesane e Wakõdi, mulher deste último, em fins de 1908.84 O grupo viera em missão para cumprir o pedido do falecido chefe indígena capitão Sepé, que recomendara que fosse [após sua morte] um grupo de Xerente à capital buscar Leolinda, tal a necessidade, nos aldeamentos, de sua presença “para a felicidade de toda sua tribu.”85
Foram divulgadas, através dos órgãos de comunicação,86 por praticamente um ano, as inúmeras tentativas feitas por Leolinda para o deferimento de seu pedido de Jubilação do cargo de professora do magistério público municipal e de nomeação para o cargo de “Missionaria Civilisadora dos Indios de Goyaz”, sem qualquer remuneração ou ônus para o Estado. A contínua circulação pelas redações dos jornais e o contato frente a frente com os articulistas, acompanhada dos índios que educava em sua própria casa, demonstram, minimamente, o recurso a duas estratégias. A primeira, de convencimento da opinião pública, visando à adesão a sua causa, e a segunda, a de persuadir o governo e os poderes institucionalizados a elaborarem uma legislação que garantisse o cumprimento de uma política indígena. Leolinda pretendia, de fato, convencer o público leitor da importância de sua missão de educadora ou, em suas palavras, da relevância de seu regresso, tendo em vista o projeto de “incorporar” os índios no seio da sociedade civilizada. No governo do Presidente Afonso Penna (1906-1909), Leolinda retomaria seu pedido de nomeação para o cargo de Missionária. O jornal Folha do Dia, tratando do assunto, publica matéria, em tom hilário, sob o título “Os indios”:
A pergunta que salta logo dos lábios ê a seguinte: por que razão o governo, que tanto faz pelos immigrantes arrebanhados indistinctamente, foge de despender uma parcella insignificante para attender a uma porção de naturaes do paiz? [...] Que diabo poderiam fazer os pobres indios pelo Sr. Affonso Penna ou pelo Sr. Miguel Calman? Mandavam-lhe quando muito algumas flechas e pennas quando houvessem sahido do estado selvagem. Ahi está porque o governo não se incomodará que os indios cherentes continuem a andar da Policia para o ministerio da Justiça e dahi para o da [Indústria] Viação [e Obras Públicas], [...]87
Leolinda talvez acreditasse na possibilidade de um dia retornar a Goiás, para poder dar continuidade à catequese e, certamente, solicitou aos índios das etnias Xerente e Krahô que se encontravam hospedados em sua casa, algum documento88 que a autorizava a responder por eles em todos os trâmites necessários para a concretização da viagem e de sua permanência nos aldeamentos. O fato é que ela não desistiu diante das matérias jornalísticas difamatórias e persistiu em sua luta pela causa indígena. Sua próxima parada seria o gabinete de Rodolfo de Miranda, acompanhada de uma comissão da Associação de Proteção e Auxílio aos Silvícolas do Brasil. Sobre a recepção que teve no Ministério da Agricultura, que será, posteriormente, vinculado o SPI, Manuela Carneiro da Cunha escreveu:
É curioso, aliás, seguir-se o diálogo de surdos que, sob a aparência de harmonia de propósitos, se tratava entre RodolfoMiranda,ministro da Agricultura em 1910, quando da Fundação do Serviço de Proteção ao índio (SPI, que dependia desse Ministério), e Rondan, seu primeiro diretor. Enquanto Rondon proclamava que sua ação é destinada a a “redimir os índios do abandono e integrá-los na posse de seus direitos, respeitando sua organização social fetíchica [...] e aguardando sua evolução”, Rodolfo Miranda fala explicitamente em "catequese indígena comfeição republicana".89
Em sua participação no Congresso Brasileiro de Geografia (1909), Leolinda irá pedir “desesperadamente” o apoio para seu programa de catequese. O resultado destas investidas será a reativação da Associação de Proteção aos Silvícolas do Brasil, que, como mencionado acima, havia sido inaugurada em 1908, para depois tornar-se inoperante, devido à falta de apoio das instituições de poder. Isso também fica comprovado nas atas da Associação e também no ‘Resumo Histórico’ que já foi referido.
Leolinda chegou a preparar a ‘Memoria’90 que deveria ser apresentada à 8ª Comissão de Antropologia/Etnografia, por ocasião do 1º Congresso Brasileiro de Geografia. Entretanto, por alguns desencontros, sobre os quais não trataremos,91 seu programa de catequese se resumiu a uma ‘Moção’ apresentada de última hora. O texto da ‘Memória’ será, no entanto, publicado nos Anais do Congresso. O programa é composto por dez artigos, e nele encontramos a proposta de delimitação de territórios indígenas, de incorporação dos ‘selvicolas’ à sociedade civilizada, o que ressarciria os prejuízos causados “aos donos espoliados deste Paiz que chamamos hoje nossa Patria”, de uma educação racional, laica, científica, industrial e emancipadora “para a civilisação dos Selvicolas brasileiros; [...] sem tolher-lhes a liberdade e os instinctos nativos mas, organisando nucleos e escolas agricolas e industriaes onde possam cultivar seus dótes e aptidões e desenvolver suas melhores tendencias.”92
Ilustração 1 – Primeira comissão de índios de Goiás ao Rio de Janeiro (1902).
Fonte: Daltro (1920)
Ilustração 2 – Segunda comissão – enviada pelo capitão Sepé (1903).
Fonte: Daltro (1920)
Ilustração 3 – Os índios da professora Daltro pedindo ao presidente Afonso Penna a jubilação de sua mãe adotiva para com ela seguirem para as aldeias - facsimile de uma caricatura do Jornal do Brasil (1909).
Fonte: Daltro (1920)
Ilustração 4 – Grupo de sócios e convidados que assistiram a (re)instalação da “Associação de Proteção e Auxílio aos Silvícolas” na Sociedade de Geografia (1909).
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Notas