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Uma escola, múltiplos olhares: avaliação e recuperação no cotidiano escolar

A school, multiple perspectives: assessment and remedial education in school daily life

Una escuela, perspectivas múltiples: evaluación y recuperación en el cotidiano escolar

Flora Lima Farias de Souza
Faculdade de Pimenta Bueno, Brazil
Marli Lúcia Tonatto Zibetti
Universidade Federal de Rondônia, Brazil

Uma escola, múltiplos olhares: avaliação e recuperação no cotidiano escolar

Práxis Educativa, vol. 11, núm. 2, pp. 394-409, 2016

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 19 Outubro 2014

Aprovação: 16 Novembro 2015

Resumo: Este texto discute as relações produzidas no interior de uma escola pública em Porto Velho, Rondônia, em torno dos processos de avaliação e recuperação da aprendizagem nos anos finais do Ensino Fundamental, a partir de investigação realizada sob o referencial da psicologia escolar. O estudo, de natureza qualitativa, fez uso de análise documental, entrevistas e observações. Os resultados evidenciam, por um lado, a luta histórica de uma comunidade periférica pelo acesso à educação e, por outro, as dificuldades de diferentes ordens que se interpõem entre a conquista da escola e a qualidade do ensino oferecido. Dentre as dificuldades, destacam-se a pseudoautonomia nos processos de planejamento e o desenvolvimento da prática pedagógica, a precariedade da escola, as condições de trabalho dos docentes e as relações conflituosas entre estudantes e professores.

Palavras-chave: Ensino Fundamental, Cotidiano Escolar, Políticas Públicas.

Abstract: The text discusses the relationships produced within a public school in Porto Velho, Rondônia, Brazil, surrounding the assessment and remedial classes processes of learning in the final years of elementary school, from an investigation through the school psychology referential. The study, of a qualitative nature, used document analysis, interviews and observations. The results show, on the one hand, the historical struggle of a peripheral community for access to education and, on the other, the difficulties of different orders that are interposed between the school achievement and the quality of education offered. The pseudo-autonomy in the planning and development processes of pedagogical practice, the precariousness of the school, the teachers' working conditions and the conflicting relationships between students and teachers are among the problems highlighted.

Keywords: Elementary education, Everyday school-life, Public policies.

Resumen: El texto discute las relaciones producidas en el interior de una escuela pública en Porto Velho - RO, respecto a los procesos de evaluación y recuperación del aprendizaje en los últimos años de la Educación Primaria, a partir de la investigación llevada a cabo en el marco de la psicología escolar. El estudio fue de tipo cualitativo, realizó análisis de documentos, entrevistas y observaciones. Los resultados muestran, por un lado, la lucha histórica para el acceso de la comunidad periférica a la educación y, en segundo lugar, las dificultades de diferentes órdenes que se interponen entre el rendimiento escolar y la calidad de la educación ofrecida. Entre las dificultades más destacados están la falsa autonomía en los procesos de planeamiento y desarrollo de la práctica pedagógica, la precariedad de la escuela, las condiciones de trabajo de los docentes y las relaciones conflictivas entre alumnos y profesores.

Palabras clave: Educación Primaria, Cotidiano Escolar, Políticas Públicas.

Introdução

Este texto é decorrência de pesquisa que fez uso de uma abordagem de investigação em Psicologia escolar que se propõe pensar o funcionamento da escola a partir dos processos diários de produção das relações que a constituem, incluindo, nessa análise, as formas como as políticas públicas são apropriadas e transformadas em ações. Essas propostas de investigação e análise ganharam força no campo de estudos e pesquisas em Psicologia e em Educação, à medida que foram sendo ampliadas as oportunidades de acesso à escola, porém sem que se conseguisse garantir aprendizagens mínimas aos estudantes.

Assim, no campo da Psicologia escolar, ganharam ênfase "[...] opções teórico-metodológicas que propõem uma aproximação com a escola na direção de analisar o miúdo desta instituição educacional, ou seja, a vida diária escolar, as formas, as maneiras, estratégias, processos que constituem o dia-a-dia da escola e suas relações" (SOUZA, 2011, p. 232).

Os instrumentos utilizados para aproximação com a escola, dentro dessa perspectiva, têm priorizado a observação participante e o diálogo com os envolvidos, estabelecendo vínculos de confiança que permitem a compreensão dos processos a partir da perspectiva dos envolvidos. Essas análises consideram que a materialização da escola é decorrente de condições histórico-culturais que resultam da complexa rede em que estão imbricadas as condições sociais, individuais, estatais e locais. Fizemos uso dessa abordagem na investigação de concepções e práticas de recuperação de aprendizagem em uma escola pública de Porto Velho - RO, da qual decorre o presente texto.

Ele principia com uma breve discussão sobre as formas que têm assumido as políticas públicas educacionais, cujo propósito explícito é o de enfrentar os problemas crônicos de rendimento escolar nas escolas brasileiras. Na segunda parte, são descritos o campo da pesquisa e os procedimentos para produção e análise dos dados. Por fim, são apresentados e discutidos alguns resultados da pesquisa cujo recorte, para este texto, enfatiza as relações construídas entre docentes e discentes quando atravessadas pelos resultados da avaliação escolar, os quais são utilizados para decidir aqueles que serão promovidos, os que serão submetidos a estudos de recuperação e os reprovados.

Políticas de enfrentamento ao fracasso escolar

Os péssimos resultados obtidos pelos sistemas escolares levaram estudiosos e pesquisadores a se concentrarem na compreensão dos processos de exclusão, buscando alternativas para a garantia de permanência e sucesso no sistema de ensino. Nessa direção, Ferraro e Machado (2002, p. 215) discutiram o conceito de exclusão escolar subdividindo-o em "exclusão da escola" e "exclusão na escola". Os autores passaram a denominar excluídos da escola "[...] todos aqueles que, devendo freqüentar a escola, não o fazem, independentemente de já a haverem ou não freqüentado no passado" (FERRARO; MACHADO, 2002, p. 215). E, no que se refere aos excluídos na escola, os autores esclareceram que "[...] compreende todos aqueles que, mesmo estando na escola, por ingresso tardio ou por força de sucessivas reprovações e repetências acusam forte defasagem (de dois ou mais anos) nos estudos" (FERRARO; MACHADO, 2002, p. 215).

A partir das evidências de pesquisas e dados de rendimento escolar de que o problema da educação brasileira não era a falta de vagas, mas o alto índice de reprovações, políticas educacionais foram implantadas visando a eliminação da repetência, a recuperação da aprendizagem e a correção do fluxo escolar. O sistema de ciclos foi uma dessas medidas que limitou a reprovação aos períodos de finalização dos anos iniciais e dos anos finais do Ensino Fundamental. Embora projetos com intenções semelhantes já existissem desde a década de 1960, o termo ciclo foi implantado na década de 1980, enfatizando o período de alfabetização. "Desde então, os ciclos passaram a receber diferentes qualificativos: básico, de alfabetização, de aprendizagem, de progressão continuada, de formação, conforme as especificidades de cada proposta" (BARRETTO; SOUSA, 2005, p. 664).

As alterações na organização dos processos de progressão, ao extinguirem a reprovação nos primeiros anos, diminuíram e, em alguns locais, eliminaram a repetência das crianças dos anos iniciais, porém o número de alunos retidos nas etapas finais do processo dobrou. E a medida que havia sido defendida como importante para a inclusão daqueles que estavam sendo excluídos, por ampliar o tempo para a apropriação dos conhecimentos aos estudantes que não conseguiam alfabetizar-se no período de um ano letivo, configurou-se como instrumento sutil de segregação, uma vez que a manutenção das crianças na escola foi priorizada em detrimento da garantia de aprendizagens.

A implantação dos ciclos, por sua vez, foi o embrião para outras medidas cujo intento era atenuar os altos índices de repetência, tais como as classes de aceleração e a progressão continuada. Esta última, de acordo com Viégas (2002, p. 21), é uma "[...] proposta semelhante à do Ciclo Básico, sendo que agora o ciclo teria uma duração de 8 anos, equivalente ao tempo ideal para concluir o Ensino Fundamental".

As Classes de Aceleração, criadas em 1996, "[...] com o propósito de promover o avanço escolar de alunos com defasagem série/idade, por meio da reorganização de suas trajetórias escolares" (VIÉGAS, 2002, p. 20, grifo da autora) estenderam-se por todo o país e forneceram os fundamentos teóricos para a instituição nas escolas paulistas do programa de Recuperação de Ciclo (CALDAS, 2010).

Conforme adverte Patto (2010a), a forma como tem sido feita a inclusão de meninos e de meninas pobres nas escolas públicas, sem investimentos suficientes nas condições materiais e humanas para garantir a aprendizagem, trouxe resultados drásticos para a educação brasileira:

Como resultado disso tudo, chegamos ao século XXI com mais de 90% das crianças brasileiras em idade escolar incluídas no ensino fundamental. Mas desses 90%, a maioria freqüenta escolas cuja precariedade educacional não lhes permite nem mesmo o manejo da leitura, da escrita e das quatro operações aritméticas [...]. Se hoje temos cerca de 14,6 milhões de brasileiros acima de 15 anos de idade que não sabem ler e escrever, tudo indica que este número está em franca expansão. (PATTO, 2010a, p. 187, grifo nosso).

O contingente de estudantes que não consegue aprender os conteúdos mínimos estabelecidos no currículo para determinadas etapas da escolarização tem se mantido intocado, independentemente das medidas de reorganização dos sistemas em ciclos adotando a progressão continuada para garantir os avanços entre um ano e outro. O que tem mudado é a forma de exclusão: se antes aqueles que não aprendiam eram reprovados, ano após ano, até serem "forçados" a deixar a escola, atualmente eles vão progredindo na escolarização e, ao final de cada etapa, se não tiverem alcançado um rendimento mínimo, haverá novas oportunidades para que eles possam seguir adiante, até obter a certificação de conclusão do Ensino Fundamental. Isso nos remete à necessidade de reflexões mais profundas sobre os processos de ensinar e aprender nas escolas e sobre as condições objetivas de realização do trabalho educativo.

Pesquisas (QUAGLIATO, 2003; ASSIS, 2006; PEREIRA, 2005; OMURO, 2006; ELIOTT, 2009; CALDAS, 2010) evidenciam que as práticas de recuperação de aprendizagem adotadas nas escolas se caracterizam por diferentes formas de organização, mantendo, entretanto, características comuns: são realizadas em espaços e tempos diferentes do contexto regular da sala de aula, com grupos específicos, muitas vezes atendidos por profissionais que não são responsáveis pelas disciplinas regulares do currículo. Segundo os autores, muitas práticas desenvolvidas como recuperação ou reforço são caracterizadas pelo improviso e não têm contribuído para atender às necessidades de aprendizagem.

A organização de classes de recuperação de ciclo, de intensificação de ciclo, e a criação de projetos especiais voltados ao atendimento apenas de crianças consideradas em atraso escolar têm se caracterizado como espaços de segregação de estudantes "com dificuldades". Apesar de serem realizadas sob a justificativa de possibilitar o atendimento às necessidades específicas de aprendizagem, as atividades oferecidas nesses espaços têm repetido propostas desenvolvidas durante as aulas regulares - práticas que se mostraram insuficientes ou inadequadas para os sujeitos a que se destinam (ZIBETTI; PANSINI; SOUZA, 2012).

Os estudos apontam, ainda, problemas nos espaços físicos das unidades escolares para o atendimento adequado dos grupos organizados para recuperação e, também, destacam a carência na formação dos profissionais responsáveis por atender a essas crianças e a esses adolescentes. Conforme afirma Libâneo:

As políticas de universalização do acesso acabam em prejuízo da qualidade do ensino, pois, enquanto se apregoam índices de acesso à escola, agravam-se as desigualdades sociais do acesso ao saber, inclusive dentro da escola, devido ao impacto dos fatores intraescolares na aprendizagem. Ocorre uma inversão das funções da escola: o direito ao conhecimento e à aprendizagem é substituído pelas aprendizagens mínimas para a sobrevivência. (LIBÂNEO, 2012, p. 23, grifo do autor).

Patto (2010b) aponta aspectos fundamentais a serem considerados quando se discute a necessidade de melhorar a qualidade do ensino público:

Educação de qualidade tem como requisito a valorização do educador. Valorizá-lo - tenho insistido deliberadamente nessa lição que nos legou Florestan Fernandes - é pôr em andamento três coisas: a boa formação, a remuneração justa e a democratização do planejamento de tudo o que diz respeito ao seu fazer docente. (PATTO, 2010b, p. 43).

Entretanto, o que temos visto se repetir no âmbito educacional são projetos e reformas sustentadas em discursos de melhoria da escola que atropelam em sua elaboração as múltiplas realidades presentes no cotidiano escolar ignorando que do "outro lado",

[...] não estão lousa vazia na qual se pode escrever qualquer prescrição com a certeza de vê-la realizada. Nas escolas, a vontade estatal bate de frente com outras vontades. A intenção das reformas e projetos geralmente é uma; sua realidade é bem outra, pois elas caem em "terreno institucional" que, apesar das especificidades de cada uma das escolas, é comum a quase todas. (PATTO, 2010b, p. 19, grifo da autora).

Ao desconsiderar a importância dos profissionais da educação, ao negar-lhes formação e remuneração adequada bem como o direito de opinar e propor melhorias para a educação, os governos têm acumulado experiências de imposição de mudanças educacionais que ora são assumidas de maneira acrítica, ora são objeto de rejeição como resistência legítima daqueles que constroem a escola real que garante suas portas abertas para as comunidades pobres, apesar das impossibilidades de funcionamento. Ainda, são modificadas para garantir um mínimo de eficácia nas condições reais de funcionamento, muito diferentes daquelas previstas nos textos dos projetos e/ou legislações.

A construção de iniciativas que sejam mais promissoras aos processos de aprendizagem passa pela compreensão das condições de funcionamento das escolas, sua cultura e relações construídas pelo coletivo escolar. Nesse quesito, a pesquisa qualitativa pode trazer boas contribuições, conforme apontam os caminhos e os dados apresentados nas próximas seções deste texto.

A pesquisa

Considerando-se os objetivos deste estudo, nossa escolha recaiu sobre a modalidade de estudo de caso, de abordagem qualitativa, por permitir-nos observar os vários aspectos envolvidos na problemática estudada a fim de "[...] levar em conta todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas" (ANDRÉ, 2000, p. 17).

A pesquisa foi desenvolvida em uma escola pública estadual de Porto Velho - RO, por meio da utilização de entrevistas semiestruturadas, individuais e coletivas (com profissionais e estudantes da escola); análise documental (pareceres, leis, Projeto Político Pedagógico, Regimento interno e avaliações) e observações de três etapas de recuperação da aprendizagem cujos registros inicialmente anotados em caderno de campo foram convertidos em registros ampliados, logo após cada etapa de observação.

Localizada em um bairro pobre e distante do centro, a instituição atende filhos de "[...] funcionários públicos, pessoal de serviços gerais e operários livres ou autônomos (pedreiros, carpinteiros, costureiras e empregadas domésticas" (Projeto Político Pedagógico da Escola de 2011).

O bairro não dispõe de atrações culturais tampouco de centros de lazer. As ruas são asfaltadas e o comércio popular de roupas é significativo. Não são ofertados serviços de esgoto, e há apenas um posto de saúde no bairro. De acordo com informações do Projeto Político Pedagógico da escola, a comunidade ressente-se de não contar com um Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) para o atendimento de famílias pobres e beneficiárias do programa Bolsa Família.

A Escola Maria da Silva1 recebeu seu nome em homenagem a uma moradora nascida em Porto Velho, com segundo grau incompleto, que, em sua juventude, dividia o tempo entre ministrar aulas de reforço e o ofício de manicure. Em 1984, ela passou a morar no bairro onde está localizada a escola e, incomodada com a falta de instituições públicas educacionais no bairro, iniciou a luta pela construção da escola, mobilizando a população. De acordo com o histórico registrado no Projeto Político Pedagógico (PPP), Maria da Silva faleceu aos 42 anos de idade, mas antes a pioneira presenciou a inauguração da escola pela qual lutou.

Em 2011, a escola Maria da Silva atendia 725 alunos do 1º ao 7º ano (períodos matutino e vespertino) e Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período noturno. Até o ano de 2008, a instituição oferecia somente a primeira etapa do Ensino Fundamental regular e o Ensino Fundamental completo na modalidade EJA. Ao concluírem as séries iniciais, os estudantes eram transferidos para as escolas dos bairros vizinhos. Com o aumento da demanda nessas instituições, não foi mais possível atender aos egressos da Escola Maria da Silva, o que levou os familiares a exercerem pressão sobre a instituição para oferecer os anos subsequentes de escolarização. Assim, em 2009, foi implantado o sexto ano e, em 2010, o 7º ano, que passou a funcionar improvisadamente na extinta sala de recursos. Eram três turmas de 6º ano e uma de 7º ano atendidas em 2011. Conforme indicam os dados de rendimento escolar, as séries com menores índices de aprovação em 2011 foram os segundos e os sextos anos, com 75,5 e 74,4, respectivamente.

A escola planejava, a partir de 2012, eliminar gradativamente o atendimento às turmas de 1º ao 5º ano e ampliar a oferta para o 7º e 8º ano, considerando que a responsabilidade pela oferta dos anos iniciais, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/1996), é prioridade da rede municipal (BRASIL, 1996). Contudo, sem a ampliação de vagas na escola municipal próxima, não foi possível implantar o 8º ano e nem deixar de atender os anos iniciais, conforme planejado. Assim, em 2012, os estudantes que haviam concluído o 7º ano, foram remanejados para cursar o 8º ano em outras escolas.

O trabalho de campo teve início após aprovação do projeto no Comitê de Ética da Universidade Federal de Rondônia e a participação só foi permitida aos estudantes que trouxeram a permissão dos responsáveis, mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Foram ouvidos seis profissionais que atuam na escola, sendo a Coordenadora Pedagógica e seis professores/as. Também foram ouvidos seis alunos das três turmas de 6º ano (dois de cada turma) e dois da turma de 7º ano. Trata-se de um grupo composto por quatro meninas e quatro meninos, cuja defasagem série/idade é significativa quando temos um aluno com 15 anos no 6º e um com 16 anos no 7º ano.

No tratamento dos dados coletados, inspiramo-nos nas reflexões teórico-metodológicas de Rockwell e Ezpeleta (2007), na intenção de abrir mão de uma leitura que toma a realidade para apontar o que falta, a partir de um modelo idealizado de instituição, isolada do contexto sociopolítico e econômico mais amplo.

Com o intuito de compreender o processo de constituição das práticas em desenvolvimento na escola, buscamos, como recomenda Bourdieu (2008, p. 265), "[...] instaurar uma relação de escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não intervenção da entrevista não dirigida quanto do dirigismo do questionário".

Além das entrevistas, as opiniões dos participantes foram apreendidas por meio de observações realizadas durante o acompanhamento das três etapas de recuperação ocorridas em 2011 bem como nas demais visitas realizadas à escola. Conforme Rockwell e Ezpeleta (2007, p. 46): "Buscamos as apropriações reais e potenciais que acontecem de baixo para cima, a partir dos sujeitos individuais que vivenciam diariamente a instituição".

Neste texto, daremos ênfase às relações construídas pelos envolvidos no cotidiano escolar em torno das questões da avaliação e da recuperação sem perdemos de vista momentos que expressam uma compreensão mais ampla sobre as formas de opressão a que estão submetidos. Caracterizados como "potências", esses momentos de subversão nos permitem reafirmar uma concepção de escola como espaço contraditório: ao mesmo tempo que os profissionais, imersos na cotidianidade, atuam na manutenção de práticas excludentes e reprodutoras de relações sociais de opressão, eles questionam esse sistema e as próprias ações, pois, conforme Patto (2010a, p. 100), "[...] se a consciência do oprimido (a maioria da população brasileira) não é totalmente lúcida, ela também não é totalmente alienada".

Olhares sobre a escola e suas relações

Assim que nos reunimos com os alunos do sexto ano para a realização das entrevistas, ao verem o gravador ligado, as primeiras falas dos estudantes foram:

Melissa: Já está gravando?

Pesquisadora: Já!

Melissa: Então grava aí: eu ODEIO a professora de Ciências.

Clara: E eu odeio o professor de Matemática, ele me reprovou, eu o odeio...

(Entrevista coletiva alunos do 6º ano/2011 - Maiúsculas indicam ênfase na fala da aluna).

Em um cotidiano atravessado por trocas recíprocas de ofensas, professores e alunos explicitam em suas entrevistas uma difícil relação: por um lado, estudantes narram atitudes autoritárias de seus educadores, assim como narram defender-se das agressões verbais sofridas, agredindo-os também.

Uma vez o 6º A gritou uma vez com a professora de Ciências, porque ela gritou com eles. (Ana 6º ano).

Nós gritamos com ela, começou a falar um monte de m*, aí eu levantei e mandei ela tomar no meio do c* dela. (Melissa, 6º ano).

O professor de Matemática botou a gente para fora e mandou a gente se lascar. A gente falava: "Professor, deixa a gente entrar?", ele respondia: "Eu quero que vocês se lasquem". (João, 6º ano).

Do outro lado, docentes revelam suas fragilidades em trabalhar com o público adolescente e as particularidades inerentes à fase:

A turma que menos participa na minha aula é o sétimo ano, é a série em que eu tenho mais dificuldade para trabalhar com eles, pelo fato de eles já se sentirem um pouco maiores. (Entrevista - professora de Ciências).

[...] a escola serve como apoio ou sistema de lazer e não de aprendizagem! Toda sala tem dois ou três alunos que são assim, principalmente as meninas que estão no afloramento do sexo. Aí elas desvirtuam o pensamento do estudo; no sexto B, olhe ali, tem quatro meninas lá, viu? Não querem nada com nada! Só namorar! Vêm com camisa curta, passam batom, usam maquiagem completa no rosto, vêm querendo ser sensual com os meninos, e isso tudo faz com que elas não aprendam, porque as cabecinhas delas vão estar voltadas para o sexo; deve existir alguma maneira para você trabalhar, mas eu não sei como trabalhar ainda essa questão, principalmente das meninas, até porque para um professor homem... (Entrevista - professor de Matemática, grifos nossos).

Professores que francamente admitem suas dificuldades para lidar com esse grupo de estudantes indicam uma abertura para o diálogo que, uma vez potencializado, contribuiria para que a escola encontrasse novas maneiras de inseri-los no processo de aprendizagem. Para isso, seria necessário considerar que eles estão em um momento de seu processo de desenvolvimento em que não aceitam mais terem suas capacidades desrespeitadas, pois, conforme esclarece Facci (2004), com base nas contribuições da Psicologia Histórico-Cultural, na adolescência, as capacidades cognitivas dos jovens se ampliam de forma significativa.

O conteúdo do pensamento do jovem converte-se em convicção interna, em orientações dos seus interesses, em normas de conduta, em sentido ético, em seus desejos e seus propósitos. Por meio da comunicação pessoal com seus iguais, o adolescente forma os pontos de vista gerais sobre o mundo, sobre as relações entre as pessoas, sobre o próprio futuro e estrutura-se o sentido pessoal da vida. (FACCI, 2004, p. 71).

Outras pesquisas envolvendo as relações entre professores e alunos nessa etapa da escolarização apontam as dificuldades que as escolas enfrentam nesse processo. Na realidade investigada por Omuro (2006), a relação aluno-professor é formada por ações e reações: a indisciplina dos alunos irrita o professor, que reage expulsando-os da sala, o que, por sua vez, gera mais revolta entre os estudantes, que revidam. "[...] os relatos de desentendimentos entre professores e alunos são freqüentes. Na classe, os incidentes sempre se repetem: os alunos conversam durante a aula, os professores chamam a atenção dos mesmos, os alunos retrucam e são mandados para fora da sala" (OMURO, 2006, p. 153).

De acordo com Lima (2005) e Omuro (2006), a relação professor-aluno transcende a questão interpessoal e influencia no interesse do aluno em relação à matéria ministrada pelo docente de sua simpatia. "Para aprender é necessário que 'vá com a cara' do professor, ou seja, se o professor for 'legal', o aluno presta atenção, caso contrário, os alunos conversam na sala de aula." (LIMA, 2005, p. 60, grifos do autor).

A afirmação do autor vem ao encontro das situações registradas em nosso estudo, nas quais os estudantes demonstram desafeto ao professor cuja disciplina afirmam ter mais dificuldades. "Todo mundo acha Matemática mais difícil" (Vinícius, 7º ano).

Vislumbramos, também, no discurso dos discentes, a sensação de abandono em relação ao seu próprio processo de aprendizagem:

[...] o professor de Matemática não se preocupou com a gente, quem tirou nota baixa ele virou e falou bem assim: "A gente se vê no próximo ano, veja se estudam". (Clara, 6º ano).

Ana: Ele passa o conteúdo, não explica e no outro dia... (Ana, 6º ano).

Melissa: É porque, assim, ele não explica e fica cobrando da gente, sai da sala vai conversar com a professora de Ciências. (Melissa, 6º ano).

Queixam-se de que a escola não está preocupada com sua aprendizagem e acusam os docentes de gostar de reprová-los.

Pesquisadora: Sua escola se preocupa com a aprendizagem de vocês?

Clara: Ah, tia! Mais ou menos...

João: Um pouco só...

Murilo: Eu acho que não, a escola sim, mas não os professores.

Pesquisadora: Mas quando a gente está falando de escola, a gente está falando de professores, de alunos de todo mundo!

Eloísa: Então, não! A diretora até que sim, mas a coordenadora pedagógica e o professor de Matemática? Não mesmo!

Clara: Parece que ele [o professor de Matemática] gosta de reprovar, porque ele não vai dar recuperação e ainda nem liga. (Entrevista coletiva, 6º ano).

De outro lado, professores relatando a dificuldade de ensinar alunos desinteressados em aprender.

[...] tem aluno que vem aqui, porque a escola serve merenda, não porque ele veio para aprender. (Professor de Matemática).

[...] porque o que eu observo é que, assim, que de sexto ao nono ano ainda não caiu a ficha ainda, eles não enxergam a necessidade de estudar. (Professora de Geografia 6º A e 6º B).

Quando o problema não é o descompromisso dos alunos desinteressados, a questão é de ordem externa; no caso, a família caracterizada como negligente em relação à escola.

[...] porque chega na hora eles perdem a sequência, mas isso não são todos, tem aqueles alunos que são muito inteligentes, são participativos, eles gostam, mas tem uns, que eu não sei, não sei se já vem da família, que não cobra, às vezes parece que a família esquece compromisso que ela tem com o filho. (Professora de Ciências).

No entanto, entre as sugestões feitas pelos adolescentes, há pedidos de mais aprendizagem, de cobrança e de "educação":

Tem que ensinar as pessoas, porque senão nem dá para passar sem saber. (Murilo, 6º ano).

Eu acho que tinha que ter outra prova, mais provas! Porque se a gente está na escola é para fazer prova, é para aprender. (Ana, 6º ano).

Tomara que no sétimo a gente tenha mais educação. (Eloísa, 6º ano).

Os adolescentes afirmaram receber punição de seus responsáveis quando apresentam notas baixas. Revelaram esconder de seus pais a recuperação, a fim de livrar-se dos castigos, desfazendo a imagem que a escola construiu de sujeitos despreocupados em relação a sua trajetória escolar, cujos familiares são negligentes.

Me senti mal e preocupado, pensei: "Minha mãe vai me matar." (João, 6º ano).

Eu fiquei chateada, porque é sempre ruim reprovar, ainda mais minha mãe que me dá sempre tudo do bom e do melhor, eu vou e perco? (Melissa, 6º ano).

Eu fico arrepiada até o último fio de cabelo, preocupada! (Clara, 6º ano).

Comigo foi assim, eu falei "Mãe to de recuperação", foi tranquilo ela virou e falou "Ana, estuda! Porque se você não passar, eu lhe dou uma surra." (Ana, 6º ano).

Eu não gosto de ficar para recuperação, mas como eu não tinha estudado para a prova, então eu sabia que ia tirar nota baixa. (Murilo, 6º ano).

Fiquei magoado, eu queria passar. (Vinícius, 7º ano).

Na tentativa de encontrar uma causa, a responsabilização pelo fracasso escolar tem assumido o caráter de acusações que transitam em um círculo vicioso: a equipe gestora acusa o professor que acusa os alunos que responsabilizam os docentes, que devolvem para a família.

Assim são com os alunos também, se acontece com alguns problemas dos pais, alcoolismo, tem questões de assédio, tem questões de violência...Isso influencia diretamente, o aluno fica bloqueado, fica pensando: "Para que eu vou aprender? Com tanto problema que eu tenho em casa? Para que eu tenho que aprender Matemática, se meu pai não acompanha?". Ele não aprende, ele não tem objetivo, não tem motivação. (Entrevista com Professor de Matemática).

Falta mais compromisso dos professores, se apegarem para recuperar mais os alunos, porque os professores reclamam dos alunos, mas eu, particularmente, acredito que falta mais empenho por parte dos professores. (Entrevista com Coordenadora Pedagógica).

Porque esse professor ele só fala assim: faz, faz, faz! Mas não me ajuda, não explica! (Murilo, 6º ano).

O professor de Matemática fala para nós se virar, fala bem assim: "Se vira". (Melissa, 6º ano).

De acordo com as reflexões de Pablo Gentili (2004), a culpabilização das vítimas pelo fracasso escolar tem suas raízes ideológicas no discurso neoliberal, propugnador de ideais meritocráticas, que sustentam a visão do sucesso como decorrente do esforço pessoal.

O problema é mais complexo: os indivíduos são também culpados pela crise. E é culpada na medida em que as pessoas aceitaram como natural e inevitável o status quo estabelecido por aquele sistema improdutivo de intervenção estatal. Os pobres são culpados pela pobreza; os desempregados pelo desemprego; os corruptos pela corrupção; os faceados pelas violências urbanas; os sem-terra pela violência no campo; os pais pelo rendimento escolar de seus filhos; os professores pela péssima qualidade dos serviços educacionais. O neoliberalismo privatiza tudo, inclusive também o êxito e o fracasso social. (GENTILI, 2004, p. 6).

Os desencontros apontados nos diferentes discursos indicam a sensação de "não pertencimento" que caracteriza o cotidiano dessa instituição. Estes sujeitos que dividem o espaço da escola e o tempo do ano letivo não pertencem aos mesmos grupos. Como construir uma sensação de pertencimento em grupos que vivem em confronto? Com professores divididos entre anos iniciais e anos finais? Entre Ensino Fundamental Regular e Educação de Jovens e Adultos? Entre a lotação em duas escolas diferentes? Como se sentir parte de uma instituição à qual compete apenas planejar ações por meio de seus projetos pedagógicos sem que lhes sejam dados os meios para efetivar esse planejamento? E por que motivos esses estudantes encontrariam sentido em um lugar no qual não se sentem bem-vindos?

O que se constata é que os diferentes segmentos se sentem desrespeitados e deslocados no ambiente escolar. Não percebem a escola como direito, não se reconhecem dentro do espaço coletivo como fruto de lutas travadas pelos primeiros moradores do bairro: a escola que os alunos estudam não é deles, a escola na qual os professores trabalham não lhes pertence. É como se fizessem uso de um espaço que lhes foi emprestado.

Gonçalves Filho (1998) afirma que os humilhados socialmente, em decorrência da posição social que ocupam, tendem a compreender seus direitos, por exemplo, à saúde e à educação, como favores. Por isso, a dificuldade em reconhecer-se cidadão em espaços públicos.

Um esforço nem sempre eficaz para o humilhado - o proletário não é humilhado porque sente ou imagina sê-lo: o sentimento e a imaginação estão fincados numa situação real de rebaixamento. [...]. Na condição proletária, a submissão é que se torna espontânea. Diríamos melhor: torna-se automática. Na cidade em que a coisa pública tende à coisa oligárquica, também as palavras seguem o mesmo curso: os nomes coletivos são amortecidos. O humilhado tem sempre alguma razão, talvez a razão mais profunda, para considerar que o expulsamos de casa, voluntária ou involuntariamente. (GONÇALVES FILHO, 1998 p. 25, grifo nosso).

Embora tenha começado a ofertar o segundo segmento do Ensino Fundamental em 2009, a escola Maria da Silva não conseguiu realizar a adequação de sua proposta pedagógica e nem de seu espaço físico à ampliação do atendimento aos anos finais. Convivem no espaço escolar os desejos e as frustrações; as potências e os cerceamentos. É consenso entre os docentes e por parte da coordenadora pedagógica a necessidade de realizar atividades de reforço no contraturno, que, por sua vez, não são realizadas por falta de espaço físico para abrigar os estudantes, visto que as salas de aulas são ocupadas no período matutino por crianças dos anos iniciais. Além disso, não há tempo para esse atendimento na carga horária dos professores.

A recuperação bimestral, como está no projeto da SEDUC, poderia escolher [em ter exame final ou não] como a escola atendia da primeira à quarta série, e eu trabalhava com o segundo ano. Realmente era melhor essa recuperação bimestral e sem o exame final, porque, se um aluno da primeira série, se ele não leu durante um ano todo, não é uma prova do exame final que vai fazer com que ele aprenda. Mas esse acompanhamento, que a gente dava, por exemplo, são 40 horas semanais a carga horária do professor, então 20 horas era em sala, as outras 20 se dividiam entre reforço e planejamento, então é diferente, porque você traz o aluno, somente aqueles que tem dificuldades, recupera o conteúdo com ele, e também faz a recuperação bimestral. Agora, no sexto ano, não tem como, não tem esse horário de trazer o aluno de manhã se ele estuda à tarde, fazer um reforço, não tem para o sexto ano esse projeto. (Entrevista - professora de Língua Portuguesa).

O maior tempo de trabalho dessa professora na escola lhe permite falar com propriedade da trajetória construída pela instituição. Essa história possibilitou à docente maior reflexão a respeito da realidade que a cerca, permitindo-lhe levantar questionamentos mais incisivos e críticas às condições de escolarização dos adolescentes atendidos pela escola.

[...] esses dias a gente estava conversando que já chegou a hora de parar de ficar tratando, que a escola é de primeira à quarta série, que são crianças dóceis, meigas, que são bebês que tem aqui. Se você olhar a decoração da escola é toda voltada para os pequenos, tudo coloridinho, enfeitadinho, não é uma escola que contenha frases, incentivos voltados aos adolescentes, que é a maioria que a gente tem agora. (Entrevista - professora de Língua Portuguesa).

Como pensar que se trata de um espaço projetado para adolescentes uma sala que contém cartazes com letras do alfabeto coloridas? Como tornar as aulas atrativas em um local visivelmente impróprio ao atendimento desses sujeitos?

Patto (2010b) aponta a escola como um espaço omisso às diferenças, sobretudo para as crianças pobres, retidas nessa instituição idealizada por e para burgueses, que insiste em infantilizar o tratamento aos rapazes e moças inseridos em um mundo adulto desde crianças.

[...] muitos acabam adolescentes em classes de crianças, com todas as consequências adversas impostas por uma pedagogia que se dirige a um grupo supostamente homogêneo e que produz, por isso, desajustados, ou seja, todos os que, por consequência de inevitáveis diferenças individuais, resistem a práticas escolares costumeiras - de um lado, obediência cega a instruções que não fazem sentido e se fundam numa concepção de criança que invariavelmente a subestima; de outro, uma pedagogia autoritária calcada em práticas infantilizantes que, por exemplo, ensinam operações aritméticas valendo-se de desenhos de frutas com rostinhos sorridentes e laços de fitas nos cabinhos. (PATTO, 2010b, p. 24).

Outra evidência de que esses estudantes se encontram em um processo de desenvolvimento cognitivo que lhes permite reivindicar outras formas de tratamento é o questionamento que fazem, durante as entrevistas, à imposição de normas por parte de alguns professores que não se aplicam a todos os usuários da escola. Eles citam, por exemplo, a situação relativa ao uso de celulares em sala de aula. Segundo os estudantes, não é permitido a eles utilizarem esse tipo de aparelho; entretanto, afirmam que seus professores o utilizam durante as aulas. "É, toda vez que a professora está na nossa sala o celular toca e ela fica mexendo." (João, 6º ano).

No meio desse emaranhado de acontecimentos e de sentimentos, um ponto de encontro nos olhares de todos os sujeitos que convivem no espaço escolar: a estrutura física da escola. Os participantes foram unânimes em apontar os limites do espaço físico da instituição para a aprendizagem: salas sem refrigeração, superlotadas e falta de espaço físico para acomodar a demanda que só aumenta.

Aqui é muito quente e a sala de aula é lotada, a mesa do professor está rodeada de alunos, não dá nem um metro de distância entre um e outro [...] lá fora é mais fresco que aqui dentro. (Entrevista - professor de Matemática).

[...] porque a sala já é superlotada, tem 43 alunos, não dá nem para a gente andar nela. (Entrevista - professora de Língua Portuguesa, grifo nosso).

Nós estamos sem espaço físico, estamos sem sala para dar reforço, não tem nenhuma sala desocupada, as séries iniciais sofrem com a falta de espaço, que tem o reforço depois do horário de aula, não dá para vir de manhã porque não tem sala. (Entrevista - Coordenadora Pedagógica).

Nossa sala é muito quente, a gente fica fazendo atividade e fica pingando o suor na folha. (João, 6º ano, grifo nosso).

Somada a isso, há a precariedade de materiais considerados básicos, como, por exemplo, o livro didático:

Eles [os alunos] têm livros que estão fora do acordo ortográfico, é ainda dos primeiros livros que chegaram aqui na escola para o sexto ano, em 2009. Como são três turmas e os livros que têm não dá para uma turma, então pegaram os livros de outra escola, e esse livro velho que os alunos daqui usam. Fica tudo no improviso, e eu acabo usando os livros mais para trabalhar a leitura, o ensino de texto. (Entrevista - professora de Língua Portuguesa).

Porque os nossos livros são tudo podre. (Murilo, 6º ano).

Os livros que a gente tem, é tudo do ano passado, o de português tem vezes que a gente usa o do quinto ano. (Ana, 6º ano).

Tem vezes que a gente senta de três pessoas para poder fazer atividade, copia tudo errado do livro porque não dá para o livro ficar na sua frente. (João, 6º ano).

De acordo com Gonçalves Filho (1998, p. 12), a vida em buracos faz parte do cotidiano da população pobre, que convive e lida com a falta desde muito cedo. Na escola Maria da Silva, as restrições ultrapassam as barreiras físicas estendendo-se, também, à qualidade do ensino que recebem. De acordo com os professores, os alunos de 6º e 7º ano apresentam dificuldades muito elementares na escrita e na leitura, para sua faixa etária.

O problema deles é que eles não sabem interpretar, eles têm dificuldade para interpretar, para ler, dificuldade para escrever, eu estou escrevendo no quadro, eu escrevo certo, quando você vai olhar o caderno deles está com erros de português. (Entrevista - professora de Ciências).

Porque eu observo, que eles têm muita dificuldade em interpretação, eles não sabem ler! Eles não sabem interpretar, quando você vai corrigir, você tem que dar uma olhadinha e adivinhar o que ele quis dizer, ai daí você chama: "Meu filho, o que foi que você escreveu aqui, hein?" Aí você vê que a resposta está correta, mas se você for corrigir os erros de escrita. [...]. (Entrevista - professora de Geografia 6º A e 6º B).

[...] a gente pega esses alunos no sexto ano e eles não sabem ler, não sabem escrever, não sabem produzir um texto, e é levado assim: a "banho-Maria" e são alunos que sempre foram da nossa escola, são nossos. (Entrevista - professora de Língua Portuguesa).

Os trechos das entrevistas apresentados ao longo desta seção evidenciam que os profissionais da escola percebem as lacunas no processo de escolarização. São capazes de apontar as necessidades dos alunos, as responsabilidades da instituição com os estudantes "que sempre foram da nossa escola". Conforme Patto (2000, p. 149):

Diante desse quadro tão encontradiço nas escolas públicas de primeiro grau, é desnecessário dizer que não se está diante de pessoas desinteressadas ou irresponsáveis, mas de profissionais que portam a desumanidade do sistema e tentam sobreviver em condições precárias de formação e trabalho. (PATTO, 2000, p. 19).

No atual estágio do desenvolvimento capitalista em nosso país, temos assistido, conforme Libâneo (2012, p. 23), "[...] uma inversão das funções da escola: o direito ao conhecimento e à aprendizagem é substituído pelas aprendizagens mínimas para a sobrevivência". E, nesse processo, as maiores vítimas são os alunos das camadas mais pobres da população a quem tem sido oferecida "[...] uma escola sem conteúdo e com um arremedo de acolhimento social e socialização" (LIBÂNEO, 2012, p. 25).

Considerações finais

Conforme discutimos nas seções introdutórias deste texto, houve a inclusão de quase toda a população de 6 a 14 anos nas escolas. Contudo, a qualidade não acompanhou o movimento de inserção criando o que Bourdieu (2008) denomina "excluídos no interior".

A escola Maria da Silva, esforçando-se para atender às demandas da população de seu entorno, contribui para aumentar os índices de oferta do ensino. Entretanto, a educação a que os alunos têm tido acesso, bem como as condições de trabalho dos professores que dividem o tempo de seu contrato entre duas ou mais escolas, compromete qualquer discurso de justiça social por meio da educação.

Ao investigar as concepções e as práticas de recuperação de aprendizagem nas turmas de 6º e 7º ano da escola Maria da Silva, deparamo-nos com uma escola que, apesar de todas as suas limitações, considera as necessidades do público em seu entorno no momento em que precisa decidir sobre a ampliação do atendimento. Assim, em 2010, a escola transformou o almoxarifado em sala de leitura para atender ao 7º ano, pois não dispunha de espaço físico para fazê-lo. E, ao final de 2011, quando novamente precisava decidir entre atender o 8º ano e deixar as crianças do 1º ano sem vaga, decide que os pequenos terão mais dificuldade para deslocar-se até o bairro vizinho e decide não abrir matrículas para os maiores.

Deparamo-nos com uma escola, como muitas das periferias das cidades brasileiras, que não possui um corpo docente exclusivo, com tempo na jornada de trabalho para dedicar-se ao planejamento, às discussões coletivas e ao atendimento aos alunos, mas que faz um esforço para atender às demandas dos órgãos gestores em termos de elaboração de documentos necessários para a garantia de funcionamento: Projetos Pedagógicos, Projetos de Recuperação, Regimento Escolar.

São essas as escolas a que tem acesso a maioria da população brasileira. São nelas que aprendem, pouco ou muito, os meninos e as meninas das classes populares. Atuam nessas escolas os profissionais que se dividem entre várias unidades para cumprir uma exaustiva carga horária de trabalho, ganhando salários que não suprem suas necessidades básicas e, portanto, não garantem oportunidades de aperfeiçoamento profissional.

Em um processo perverso, o sistema escolar adia a exclusão: ao invés de alunos fora da escola, teremos analfabetos diplomados, que não terão instrumentos para lutar por mudanças sociais que lhes garantam os direitos negados pelo modelo vigente, conforme Patto:

A democratização do ensino requer muito mais do que "por toda a criançada na escola" para que ela obtenha não importa como o diploma no prazo previsto. Tal medida só tem aumentado, de modo irresponsável, o contingente de analfabetos diplomados pela escola. Quando se virem, mais cedo ou mais tarde, em situação de inclusão social marginal, os excluídos da educação escolar que se diplomaram terão de amargar o sentimento duradouro de incapacidade pessoal. (PATTO, 2010b, p. 43, grifo da autora).

O que nos permite manter a esperança é a constatação de que, apesar das estruturas atuarem na conformação dos sujeitos no sentido de impedir-lhes a capacidade de análise crítica do contexto em que vivem, há adolescentes solicitando respeito e professores propondo mudanças, mesmo que elas sejam difíceis de acontecer. A escola Maria da Silva é exemplo disso, corroborando a afirmação de Patto (2010a, p. 596) de que "[...] não existe a perfeita submissão. Em todas as narrativas, é possível ouvir alguma recusa da padronização".

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Notas

1 Todos os nomes que constam nesta pesquisa (tanto o da escola como dos/as participantes) são fictícios.
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