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Políticas educacionais para o Ensino Médio: conhecimento ou capacitação?
Education policies for High School: are they knowledge or training?
Políticas educativas para la Educación Secundaria: ¿conocimiento o entrenamiento?
Políticas educacionais para o Ensino Médio: conhecimento ou capacitação?
Práxis Educativa, vol. 11, núm. 3, pp. 881-896, 2016
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 08 Dezembro 2015
Revised document received: 10 Junho 2016
Aprovação: 20 Junho 2016
Resumo: O tema do artigo são as políticas educacionais produzidas para o Ensino Médio, na última década, objetivando examinar as concepções de conhecimento que emergem de tais políticas por meio da relação entre educação e desenvolvimento econômico. A metodologia utilizada foi a análise documental, e o referencial teórico adotado considerou autores como Licínio Lima, Stephen Ball e Nora Krawczyk. Os estudos realizados permitiram compreender de que forma a flexibilidade fez com que o conhecimento desse lugar a aprendizagens mínimas. Estas são caracterizadas por capacitações para formar personalidades produtivas para fomentar a competitividade econômica através do estabelecimento de percursos formativos individualizados. O conhecimento está associado à produção de um perfil formativo pautado na aprendizagem permanente, objetivando a empregabilidade.
Palavras-chave: Ensino Médio, Conhecimento, Flexibilidade, Competitividade.
Abstract: The theme of the articles is educational policies produced to the high school in the last decade, aimed at examining the knowledge of concepts that emerge from such policies through the relation between education and economic development. The methodology used was documentary analysis and the theoretical framework adopted considered known authors, like Licínio Lima, Stephen Ball and Nora Krawczyk. The studies carried out allowed us to understand how the flexibility has made the knowledge was replaced by the minimum learning. They are characterized by skills to shape productive personalities to promote economic competitiveness through the establishment of individualized training courses. The knowledge is associated to the production of a training profile guided on lifelong learning, aimed at employability.
Keywords: High School, Knowledge, Flexibility, Competitiveness.
Resumen: El tema del artículo son las políticas educativas producidas para a la escuela secundaria en la última década, objetivando examinar las concepciones de conocimiento que emergen de estas políticas, a través de la relación entre la educación y el desarrollo económico. La metodología utilizada fue el análisis documental y el marco teórico adoptado consideró autores como Licínio Lima, Stephen Ball y Nora Krawczyk. Los estudios permitieron comprender cómo la flexibilidad ha hecho el conocimiento cambiarse en aprendizajes mínimas. Ellos se caracterizan por habilidades capaces de formar personalidades productivas para promover la competitividad económica mediante el establecimiento de cursos de formación individualizados. El conocimiento se asocia con la producción un perfil de formación guiada sobre el aprendizaje permanente, dirigido a la empleabilidad.
Palabras clave: Escuela secundaria, Conocimiento, Flexibilidad, Competitividad.
Introdução
O artigo busca examinar os modos pelos quais o conhecimento escolar é posicionado nas políticas educacionais contemporâneas dirigidas ao Ensino Médio, considerando as estratégias políticas que regulam sua seleção para a formação dos jovens brasileiros. Ao inscrever-se no âmbito das Políticas Educacionais, este estudo procurou evidenciar algumas das formas pelas quais o Estado investe, atualmente, em determinados perfis formativos para a formação dos estudantes desta etapa da escolarização, regulando-a a partir de pressupostos econômicos (LIMA, 2012; SILVA, 2014).
As problematizações que acompanham a tessitura do texto derivam das pesquisas referentes a publicações que envolvem o contexto latino-americano em geral, e o Brasil, em particular, ao longo da última década, que forneceram os principais pressupostos que orientaram o processo de reforma do Ensino Médio. Da leitura de tais documentos emergiram as categorias de análise: flexibilidade, competitividade e aprendizagem ao longo da vida. Tais categorias permitiram tensionar o direcionamento dado ao conhecimento escolar, a partir de um contexto que prima pelo desenvolvimento econômico, marcado pelo que Lima (2012) caracteriza como aprender para ganhar e conhecer para competir.
Assim sendo, o artigo será composto de três seções. Na primeira delas, o Ensino Médio é caracterizado por meio dos delineamentos históricos e políticos, que representam os avanços e desafios trazidos a esta etapa da Educação Básica por meio das reformas implementadas neste nível de ensino. A segunda seção vai caracterizar o Ensino Médio a partir das capacitações necessárias para atuar em um mercado marcado por uma economia flexível. Tal perspectiva é complementada pela terceira seção, que vai abordar o perfil formativo do Ensino Médio fundamentado na busca pela aprendizagem permanente, capaz de tornar o sujeito suficientemente competitivo para atuar em um mercado cambiante. O que se pretende é estabelecer uma descrição dos modos pelos quais o processo de seleção do conhecimento escolar, no capitalismo contemporâneo, é regido por uma matriz econômica, que individualiza os percursos formativos, da mesma forma que privatiza as responsabilidades coletivas.
O Ensino Médio e seus delineamentos históricos
Historicamente, a trajetória do Ensino Médio é marcada por um conjunto de reformas que se acentuaram na última década, traduzindo este nível de ensino como etapa final da Educação Básica, com matrícula obrigatória para jovens até os 17 anos (BEISEGEL, 1995; KRAWCZYK, 2014; SOUZA, 2008; RAMOS, 2011). Todavia, cabe reiterar que o processo de democratização da escola pública brasileira tem início no período republicano, intensificando-se a partir da década de 1930. Neste período, a partir do que apresenta Souza (2008), a educação passou a assumir mais importância no cenário nacional, especialmente em termos de adequação dos cidadãos à nova realidade política e econômica vivenciada pelo país. Uma breve digressão histórica vai permitir que sejam vislumbrados alguns dos principais deslocamentos contidos nas políticas educacionais propostas para este nível de ensino.
Assim, a reestruturação do ensino secundário, sobretudo com o intuito de conferir a ele maior organicidade, democratização e aperfeiçoamento, marca o início de um período de contínuas transformações, a exemplo da reforma Francisco Campos. Tal reforma é caracterizada por uma nova organização do ensino, tanto em sua estruturação em séries, quanto por uma nova configuração curricular. Em torno desse período, começamos a encontrar um compromisso mais efetivo com esta etapa da escolarização que, ao mesmo tempo, sustenta o elitismo e a perspectiva dualista da educação secundária, manifestada por meio de um segmento voltado para ingressar no ensino superior e outro voltado para o ensino técnico profissionalizante (BEISEGEL, 1995; SOUZA, 2008; MARCHAND, 2007).
O referido dualismo, amplamente destacado pela literatura da área, foi reafirmado durante as reformas que se seguiram até a vigência da LDB nº 5.692/71 (BRASIL, 1971), que colocou como compulsória a profissionalização em todo o ensino de 2º Grau, nomenclatura produzida na época. Essas medidas, segundo Ramos (2011), foram marcadas por um direcionamento economicista, que concebia um vínculo linear entre o conhecimento escolar e a rentabilidade.
O revivescimento dos princípios democráticos presentes nos avanços trazidos pela Constituição Federal de 1988, em relação ao Ensino Médio, reafirmaram esta etapa da escolarização como direito dos cidadãos, endossando o debate em torno do compromisso do Estado em ofertá-lo (MARCHAND, 2007). Perspectiva que tomou forma, durante a década de 1990, a partir da vigência da LDB nº 9.394, que passou a vigorar em 1996, tornando o Ensino Médio uma etapa da Educação Básica desvinculada da educação profissional. Assim, passou a agregar as funções propedêutica, formativa e profissionalizante, em uma conjuntura onde prevaleceu a função formativa, reafirmada pelo estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em 1998 (MARCHAND, 2007). Tais documentos formaram as principais bases balizadoras das reformas dimensionadas para o ensino secundário, permeadas por um discurso que enfatizava a importância de uma educação para a vida, conduzida a partir da reestruturação curricular, fundamentada na flexibilidade e no desenvolvimento de competências e habilidades, voltadas tanto às necessidades do aluno quanto às exigências da sociedade (MARCHAND, 2007; MOEHLECKE, 2012).
Seguindo o percurso de reformas, as principais reestruturações que marcaram o Ensino Médio, na última década, podem ser apontadas na Emenda Constitucional n. 59/2009, que estabeleceu a obrigatoriedade da Educação Básica dos quatro aos dezessete anos, e na reorganização curricular desencadeada em 2012, através das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2012). Essas reformulações constituem dois importantes indicativos dos deslocamentos produzidos neste período, em termos de organização do Ensino Médio, referentes à identidade e estrutura curricular que, somados a outros documentos produzidos no mesmo período em relação a esta etapa da escolarização, constituem a base de análise das investigações que constam neste artigo. Tais materiais tornam possível discutir a perspectiva do conhecimento, em relação ao cenário produzido pelas relações do que Sennett (2006) caracteriza como o capitalismo flexível, marca da sociedade e da economia na contemporaneidade. As relações entre nosso objeto investigativo e economia contemporânea serão ampliadas na próxima seção.
O Ensino Médio no contexto da economia do conhecimento: problematizações
As reformas estruturadas para o Ensino Médio na última década, ao mesmo tempo em que refletem uma ampliação dos investimentos nesta etapa da escolarização, também anunciam uma aproximação do processo de escolarização com os princípios e leis de mercado, que têm como cenário um universo globalizado e volátil. Em tais condições, o valor do conhecimento é definido pelo potencial de empregabilidade que pode garantir ao sujeito em situação de aprendizagem.
Neste sentido, o sociólogo Licínio Lima (2012), ao analisar a centralidade atribuída ao conhecimento na sociedade da aprendizagem, contida nos programas e orientações de políticas educacionais de diversos governos e instituições internacionais, tece uma crítica à redução do conhecimento a ganhos econômicos por meio da valorização de aprendizagens com aplicabilidade prática e rentável ao sujeito. Tal crítica destaca que as reestruturações propostas, no intuito de ajustar os processos formativos para ampliar o potencial de empregabilidade e a competitividade econômica indicam que, sob a égide do capitalismo, a educação acabou sendo direcionada a uma perspectiva utilitarista.
O novo tipo de capitalismo, centrado nas mudanças socioeconômicas provocadas pelas tecnologias digitais e suas implicações na economia e na sociedade, evocam uma nova perspectiva em relação à educação, ao colocar, no conhecimento, o poder de ampliar a competitividade e a lucratividade (LIMA, 2012).
Sendo assim, no contexto neoliberal, a educação adquiriu centralidade, tanto pelo potencial de conduzir o desenvolvimento científico e tecnológico, quanto pelo poder de gerar força produtiva, provocando, assim, uma nova maneira de perceber as relações entre a política, o governo e a educação (AZEVEDO, 2004). Nessa lógica, o discurso em torno do poder da educação emerge, na sociedade pós-industrial, de onde surge uma nova forma de legitimação para a produção do conhecimento e sua transmissão por meio da educação.
Na visão de Azevedo (2004), a concepção utilitarista da democracia concebe a condução da atividade econômica pelo mercado como condição à maximização do bem-estar.
Os fundamentos da liberdade e do individualismo são tomados aqui para justificar o mercado como regulador e distribuidor da riqueza e da renda, na medida em que potencializa as habilidades e a competitividade individual, possibilitando a busca ilimitada do ganho, o mercado produz, inexoravelmente, o bem-estar social. (AZEVEDO, 2004, p. 10).
Acerca disso, Lima (2012) evidencia a centralidade que a educação assumiu na sociedade nos últimos tempos, fazendo uma reflexão sobre a ênfase na busca pelo conhecimento economicamente útil e rentável para o indivíduo. Assim, estabelece limites ao empoderamento dado à educação, especialmente quando apresenta uma crítica mais incisiva a sua subordinação aos interesses econômicos vinculados ao neoliberalismo.
Lima (2012) problematiza, ainda, a ênfase na perspectiva econômica, na qual o conhecimento torna-se indispensável para que o indivíduo não fique à margem do desenvolvimento, e possa fazer parte da economia do conhecimento e da sociedade da informação. Segundo o autor, isso fez com que a educação fosse perdendo espaço para a aprendizagem ao longo da vida, atribuindo, a cada indivíduo, a responsabilidade por se adaptar às mudanças apresentadas pela sociedade.
Esta perspectiva permite compreender o esforço realizado pelas proposições apresentadas pela UNESCO, assim como de outras organizações multilaterais, em definir novas características para o Ensino Médio por meio de uma reestruturação curricular, que vislumbra nova identidade para esta etapa da escolarização. Esta identidade seria moldada de acordo com as demandas que emergem das novas configurações assumidas pela economia e pela sociedade, na contemporaneidade, revitalizando, em alguma medida, os pressupostos já apontados por Schultz (1987). De acordo com o economista, o investimento no capital humano representa o valor econômico da educação, através da aquisição de capacidades e habilidades capazes de atender às demandas do mercado. A análise da educação, como política pública, evoca a problematização de um processo crescente de mercadorização do conhecimento em uma sociedade performativa (BALL, 2010).
Nas palavras de Ball (2010),
[...] o princípio de inteligibilidade do neoliberalismo passa a ser a competição: a governamentalidade neoliberal intervirá para maximizar a competição, para produzir liberdade para que todos possam estar no jogo econômico. Dessa maneira, o neoliberalismo constantemente produz e consome liberdade. Isso equivale a dizer que a própria liberdade transforma-se em mais um objeto de consumo. (BALL, 2010, p. 34).
Neste cenário, a educação passa a assumir centralidade, e o Ensino Médio começa a ter maior visibilidade nas políticas gestadas para a educação. Especialmente ao se considerar que o eixo da competitividade, posiciona o conhecimento escolar a ser ensinado a partir de duas lógicas políticas distintas e complementares: a ênfase nas capacitações para uma economia flexível e a busca de perfis formativos voltados a aprendizagens permanentes. Tais perspectivas figurarão ao longo da próxima seção que compõe este artigo.
Capacitações para uma economia flexível: composições analíticas
Para fins dessa análise, consideraremos a ênfase atribuída ao conhecimento enquanto forma de capacitar os sujeitos para que se tornem parte de uma economia flexível (SENNETT, 2006; LIMA, 2012). O termo flexibilidade, cabe reiterar, é caracterizado por Stoer e Magalhães (2005) como palavra-chave na literatura da atualidade, que denota a capacidade de adaptação às inesperadas mudanças nos ambientes organizacionais, e a capacidade de resposta aos desafios que emergem a partir das transformações produzidas com base na mobilização deste conceito.
As condições sob as quais se desenvolveu o capitalismo flexível demonstram como e por que a flexibilidade assume centralidade neste contexto, considerando não somente o campo econômico, mas a exigência de um novo tipo de trabalhador, que deve ser ágil, aberto a mudanças e capaz de assumir riscos (SENNETT, 2006). De acordo com Silva (2014), nessa concepção, a flexibilidade pode ser lida como um aspecto determinante para os modos de vida contemporâneos. As modificações produzidas no mundo do trabalho, que emergem desse arranjo capitalista, produzem um campo de incertezas constantes, onde a perspectiva de qualificação deve ser um processo contínuo e permanente. Dentre outros documentos, essa preocupação se manifesta no texto produzido pela UNESCO, no ano de 2002, intitulado Educação secundária: mudança ou imutabilidade. O referido documento tem como objetivo evidenciar as políticas educacionais necessárias para alcançar a competitividade e a democratização do acesso ao Ensino Médio, considerando as transformações econômicas e sociais nos países em desenvolvimento. Apresenta um conjunto de novas disposições subjetivas, necessárias para o trabalho nas organizações contemporâneas, como evidencia o excerto abaixo.
Tirar...O antigo modelo de um operário qualificado que possuía formação profissional especializada e experiência de trabalho foi substituído por um operário ou um técnico competente, flexível, capaz de pensar e de solucionar problemas, responsável, apto a tomar decisões de maneira autônoma e de responder rapidamente a sinais que vêm da máquina ou do mercado. Essas competências se adquirem na educação secundária geral (se realmente se mudarem e desenvolverem conteúdos menos abstratos, mais práticos e mais contextualizados) e em uma educação técnico-profissional de qualidade, em nível secundário e superior. (UNESCO, 2002, p. 28, grifos nossos).
O que o excerto evidencia, dentre outros aspectos, é uma preocupação com a formação do trabalhador, exigida pela nova configuração da sociedade, especialmente sob a lógica da economia, tal como demonstram os pressupostos de Sennett (2006), em relação às configurações do capitalismo flexível. O documento enfatiza que o espaço privilegiado para a formação desse novo indivíduo é a escola, mais especificamente a educação secundária. Em outras palavras, tal perspectiva torna possível vislumbrar novos sentidos para o trabalho e o desenvolvimento da carreira. Constata-se, então, a busca por novos perfis formativos, mais adequados a um tempo de mudanças, conforme apresenta o documento, há mais de uma década.
A ênfase na ideia de flexibilidade não apenas produz ressonâncias nos processos de trabalho, como também se constitui como um imperativo da vida social desse capitalismo. Os sujeitos e as instituições fazem da flexibilidade um modo de organização. (SILVA; SILVA, 2012, p. 5).
Torna-se relevante destacar que o conhecimento assumiu centralidade nos processos de produção engendrados a partir do capitalismo flexível, sendo decisivo na transição para uma sociedade fundada na informação. É o conhecimento que serve para fornecer a flexibilidade necessária às respostas exigidas pelos mercados globais, tornando-se, também ele, uma mercadoria (BERNSTEIN, 1996; LIMA, 2012; STOER; MAGALHÃES, 2005, CASTELLS, 1999; SENNETT, 2006; BALL, 2010).
A flexibilidade assume lugar de destaque na definição das novas propostas de organização curricular do Ensino Médio, ancoradas no novo tipo de formação profissional exigida pelo mercado de trabalho. Toma-se, como desafio, a busca de conhecimentos e competências que promovam novas capacidades. O excerto abaixo dá visibilidade para os delineamentos deste direcionamento argumentativo.
O desafio dessa modalidade consiste em aumentar o nível de rendimento do que se refere aos conhecimentos e competências dos alunos para satisfazer as novas exigências do mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, conseguir escolarizar grupos com interesses e capacidades diferentes. Em todo caso, é necessário visualizar um sistema flexível e aberto, que permita a alguém que começou a especializar-se, mudar de rumo, ou a quem deixou o sistema educativo, retomar os estudos. (UNESCO, 2002, p. 46, grifos nossos).
Neste direcionamento, o que preceitua o documento Ensino Médio no século XXI: desafios, tendências e prioridades, produzido pela UNESCO em 2003, ao mesmo tempo em que evidencia a importância das reformulações referentes às políticas educacionais, também manifesta a preocupação em preparar os jovens para atuar em um mundo em rápidas transformações. A flexibilidade é percebida como indispensável, na medida em que as mudanças contínuas marcam o nosso tempo. Aliás, como evidencia o excerto abaixo, a aprendizagem permanente é posicionada como uma questão de sobrevivência.
[...] o desejo de aprender em regime contínuo, como imperativo de sobrevivência num mundo em rápida evolução, implica que teremos de flexibilizar a rigidez no tempo e no espaço que tem caracterizado o nosso processo de educação atual. (UNESCO, 2003, p. 28, grifos nossos).
Desta maneira, a flexibilidade apresenta-se como princípio que figura no âmago da reforma do Ensino Médio, indicando formas privilegiadas de ensinar e aprender, assim como configura o conhecimento a ser selecionado para as instituições. É importante referir que o termo flexibilidade passa a fazer parte do vocabulário educacional a partir da década de 1990, tal como apresentado anteriormente, no capítulo que aborda a trajetória histórica do Ensino Médio no país (KRAWCZYK, 2014; RAMOS, 2011). Conceito que continua a fazer parte, de maneira bastante forte, dos indicadores da reestruturação desta etapa da Educação Básica na última década, especialmente nos aspectos subjacentes às reformas curriculares.
Esse ideário também se faz presente no que dispõe o documento Educação Secundária: Mudança ou imutabilidade, produzido pela UNESCO em 2002, ao considerar que os novos materiais curriculares da educação secundária latino-americana deveriam ser ricos e flexíveis, admitindo variantes, de acordo com as características de cada uma das diferentes instituições. Sob tal concepção, o ponto de partida para a elaboração de modelos curriculares consiste na adoção do desafio de formação de competências, no intuito de permitir que os egressos contribuam de maneira mais polivalente para a força de trabalho (UNESCO, 2002).
Consoante ao que propõe o documento apresentado acima, o foco na reestruturação dos sistemas educativos da América Latina, relativo ao ensino secundário, reflete-se nos materiais a seguir, que denotam como estas orientações foram internalizadas e materializadas nas políticas educacionais propostas no Brasil. Assim, as legislações e documentos orientadores evidenciam o princípio da flexibilidade como marco estrutural das reformas gestadas, sobretudo a respeito do currículo, que passa a ser organizado por áreas do conhecimento. Como explicitam os excertos abaixo, há uma preocupação com a forma de organizar os currículos escolares, de maneira que sejam adequados aos novos princípios.
Com o propósito de reduzir a quantidade de espaços curriculares, que os alunos têm de atender, em alguns casos, paralelamente, os novos materiais curriculares procuram substituir as disciplinas por áreas. (UNESCO, 2002, p. 212, grifos nossos).
[...] a organização curricular está distribuída em três áreas: i) Linguagens, códigos e suas tecnologias; ii) Ciências da natureza, Matemática e suas tecnologias; iii) Ciências humanas e suas tecnologias. Para cada uma dessas áreas foi definido um conjunto de competências básicas, esperadas como resultado final do ensino médio, que se constituem na Base Nacional Comum. (UNESCO, 2002, p. 295, grifos nossos).
A orientação que consta nos excertos acima, evidenciando uma proposta recorrente na atualidade, evoca a necessidade de reorganizar o currículo de maneira a torná-lo mais simplificado e compacto, substituindo as disciplinas por áreas do conhecimento. A referida escolha reflete uma das facetas da flexibilização do currículo, incidindo diretamente no perfil formativo dos concluintes da Educação Básica. Tal orientação, em relação à estrutura curricular, consta de maneira bastante semelhante nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer n. 15/98 - BRASIL, 1998). Reestruturado em 2012 (BRASIL, 2012), o documento constitui uma das principais produções em relação à organização curricular do Ensino Médio no país.
Tais indicativos revelam a estruturação de um currículo definido por grandes áreas do conhecimento, e não mais dividido por disciplinas, marcando a emergência do processo de flexibilização em curso nas reformas educativas realizadas no Brasil, em relação ao Ensino Médio. De acordo com Silva e Silva (2012), a ênfase atribuída ao princípio da flexibilidade, provocada pelo capitalismo, não produz ressonâncias apenas nos processos de trabalho, mas se torna um modo de organização social, tanto dos sujeitos quanto das instituições, também envolvendo a escola.
Ainda é importante destacar que o princípio da flexibilidade requer um conjunto de habilidades ligadas ao saber fazer, e também implica em assumir novas atitudes e valores. O objetivo é o sucesso, tanto dos indivíduos quanto das organizações, tendo em vista que, na lógica do capitalismo, a aceleração das transformações produz uma nova concepção dos processos produtivos. Sob tais condições, a capacidade de ser flexível é considerada o principal indicador da performance individual e coletiva, refletindo no âmbito das organizações, o que inclui os sistemas de ensino (STOER; MAGALHÃES, 2005).
Neste direcionamento, Silva (2014) apresenta a perspectiva de que a formação das competências necessárias para os novos sistemas produtivos está atrelada a novas lógicas de seleção e organização dos conhecimentos, orientada pela visão neoliberal de investimento no capital humano. Nela, os processos educativos devem ampliar o potencial dos indivíduos para competir. Assim, Silva (2014) postula que o conhecimento escolar é dimensionado a partir de um processo que Lima (2012, p. 33) caracteriza como "escolha das oportunidades de aprendizagem". Este processo emerge de estratégias e racionalidades individuais, onde o conhecimento fica reduzido a aprendizagens básicas, que são regidas pela lógica de que a finalidade de aprender é garantir o poder de competitividade e ganhos econômicos. Desta forma, restringe o conhecimento a uma mercadoria capaz de ser obtida por meio de relações que se assemelham às estabelecidas entre clientes e consumidores (SILVA, 2014; LIMA, 2012).
Tal perspectiva é caracterizada, seguindo o itinerário de análise do corpus documental da investigação, pelo conteúdo expresso no Parecer CNE/CP nº 11/2009, que aprovou a Proposta de Experiência Curricular Inovadora do Ensino Médio. Esse documento prevê, a partir da legislação que o situa como etapa final da Educação Básica, a necessidade de adotar diferentes formas de organização curricular que permitam, entre outros aspectos, a inserção no mundo competitivo do trabalho.
Tal direcionamento curricular, de acordo com o referido parecer, inclui componentes centrais obrigatórios e componentes flexíveis e variáveis, que possibilitam, eletivamente, formatos e itinerários que atendam aos interesses e necessidades dos alunos. Ambos os tipos de componentes devem ter um desenvolvimento integrado e interdisciplinar, organizados levando em consideração as dimensões estruturantes do trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Devem considerar, também, as áreas de conhecimento indicadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, que corroboram com a necessidade de se empreender uma forte indução à construção e colocação em prática de um currículo inovador, diversificado, flexível e criativo.
De acordo com o Parecer, é necessário
Promover a inclusão dos componentes centrais obrigatórios previstos na legislação e nas normas educacionais, e componentes flexíveis e variáveis de enriquecimento curricular que possibilitem, eletivamente, desenhos e itinerários formativos que atendam aos interesses e necessidade dos estudantes. (BRASIL, 2009, p. 21, grifos nossos).
Estimular a construção de currículos flexíveis, que permitam itinerários formativos diversificados aos alunos e que melhor respondam à heterogeneidade e pluralidade de suas condições, interesses e aspirações, com previsão de espaços e tempos para utilização aberta e criativa. (BRASIL, 2009, p. 21, grifos nossos).
O processo de reestruturação que concebe o currículo e o conhecimento escolar a partir de contornos mais flexíveis é caracterizado nos excertos apresentados. Silva (2014) os define como dispositivos de customização curricular. Tais dispositivos são marcados pela emergência de um currículo que permita a construção de percursos formativos diversificados, que permitam aos sujeitos direcionar a sua formação a partir das exigências de um mercado cambiante e competitivo.
No mesmo direcionamento, os Protótipos Curriculares propostos pela UNESCO/MEC no ano de 2011, preceituam um currículo variável. Nele, cada estudante, em dia ou período distinto do previsto para as atividades curriculares, poderá ampliar a carga horária de trabalho no grupo escolhido (trabalho, cultura, ciência ou tecnologia) ou participar de outros grupos, compondo um currículo individual variável, superior à duração mínima estabelecida pela escola (UNESCO/MEC, 2011).
A ideia de flexibilização do currículo capaz de proporcionar que o aprendiz organize seu próprio processo formativo, a partir de um currículo maleável que possa ser adaptado às necessidades e interesses individuais, fomenta um tipo específico de conhecimento traduzido no que Libâneo (2012) caracteriza como aprendizagens mínimas. O conceito traduz-se no que o autor denomina de kits de sobrevivência, formado por um conjunto de habilidades e competências com aplicabilidade prática, que permitam ao sujeito implementar seu potencial de empregabilidade.
Ainda nesta perspectiva, outro documento que busca apresentar recomendações aplicáveis às políticas educacionais, denominado Ensino Médio: Proposições para Inclusão e Diversidade, publicado pela UNESCO em colaboração com o MEC, em 2012, vai assinalar a importância de que a legislação prescreva a necessidade de se promover a diversificação nos currículos do Ensino Médio. O objetivo é atender a heterogeneidade e a pluralidade de necessidades, anseios e aspirações dos sujeitos, destacando, em seu conteúdo, diversos apontamentos de documentos normatizadores, produzidos no país, que estão de acordo com os preceitos indicados por este organismo.
[...] os sistemas educacionais devem prever currículos flexíveis, com diferentes alternativas, para que os jovens tenham a oportunidade de escolher o percurso formativo que atenda seus interesses, necessidades e aspirações, assegurando-se assim a permanência dos jovens na escola, com proveito, até a conclusão da educação básica (§ 3º). Deve-se destacar, também, que o CNE considerou de alta relevância (Parecer CNE/CP nº 11/2009) a proposta do MEC de "Experiência curricular inovadora do ensino médio: ensino médio inovador" (2009). Essa proposta despertou interesse geral, com ampla repercussão, demonstrando que se esperam novos encaminhamentos para o ensino médio. Das recomendações aprovadas, destacam-se o estímulo à diversidade de modelos, com currículos concebidos com flexibilidade e com ênfases e percursos variados que permitam itinerários formativos diversificados [...]. (UNESCO/MEC, 2012, p. 8, grifos nossos).
De acordo com o documento, a necessidade de flexibilizar o ensino contribui para que a educação dê resposta à diversidade de necessidades dos indivíduos e contextos, onde
Estimular alternativas de currículos concebidos com flexibilidade e com ênfases e percursos variados que permitam itinerários formativos diversificados, para melhor responder à heterogeneidade e pluralidade de necessidades, anseios e aspirações dos sujeitos. (UNESCO/MEC, 2012, p. 22, grifos nossos).
Texto semelhante consta nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, reestruturadas em 2012, conforme excertos a seguir.
XI - a organização curricular do Ensino Médio deve oferecer tempos e espaços próprios para estudos e atividades que permitam itinerários formativos opcionais diversificados, a fim de melhor responder à heterogeneidade e pluralidade de condições, múltiplos interesses e aspirações dos estudantes, com suas especificidades etárias, sociais e culturais, bem como sua fase de desenvolvimento. (DCN, 2012, p. 6, grifos nossos).
III - fomentar alternativas de diversificação e flexibilização, pelas unidades escolares, de formatos, componentes curriculares ou formas de estudo e de atividades, estimulando a construção de itinerários formativos que atendam às características, interesses e necessidades dos estudantes e às demandas do meio social, privilegiando propostas com opções pelos estudantes. (DCN, 2012, p. 8, grifos nossos).
É importante analisar que a perspectiva de diversificação dos percursos formativos, justificada nos excertos anteriormente apresentados, sob o preceito de atender aos interesses dos estudantes. Tal perspectiva também pode estar relacionada, considerando as questões inerentes ao capitalismo flexível, com as necessidades de adequação impostas pela economia, ofertando uma formação diversificada para potencializar a formação de um trabalhador flexível.
Considerando a perspectiva curricular de multiplicação dos percursos formativos contida nos excertos apresentados, Silva (2014) destaca uma intensa flexibilização dos processos formativos, permitindo que os estudantes possam escolher livremente os aspectos concernentes à sua formação escolar. Disso emergem novas formas de seleção e organização do conhecimento, tal como propõem os excertos dos documentos, em relação à flexibilidade do currículo. Evidencia-se, portanto, um discurso que evoca a necessidade de construção de percursos formativos diversificados capazes de atender às diferentes necessidades de formação dos sujeitos.
Ainda de acordo com Silva (2014), o intenso processo de reestruturação pelo qual o Ensino Médio passou, especialmente na última década, com destaque para as novas diretrizes curriculares e para a consolidação de modelos de avaliação de larga escala. Tal processo fez com que as políticas de currículo estivessem em evidência, desvelando uma preocupação ímpar com as formas de estruturar o conhecimento a ser veiculado pela escola média, onde, nas palavras do autor
[...] a configuração das políticas de escolarização produzidas em nosso tempo estabelece uma vinculação entre Estado e mercado e confia aos indivíduos a responsabilidade pela sua própria formação [...] fato que não ficou restrito apenas à realidade brasileira e ocorreu sob a égide das condições políticas do capitalismo contemporâneo, que, na perspectiva de uma sociedade globalizada e delineada por uma economia movida a conhecimento, tais políticas se desenvolveram a partir de um perfil formativo que visava moldar um sujeito inovador, pró-ativo e empreendedor. (SILVA, 2014, p. 128).
O conceito de competência surge como um conceito central nas atuais políticas educativas, considerando a articulação do sistema de ensino com o mercado, caracterizado, por sua vez, como volátil e imprevisível. Nele, a concepção de formação do sujeito sofre um processo de individualização, que, no limite, representa não apenas um processo de esvaziamento do conhecimento reduzido a aprendizagens práticas e úteis para garantir o potencial de empregabilidade, também um reflexo da proeminência do mercado na organização da sociedade (STOER; MAGALHÃES, 2005; BAUMAN, 2000; LIMA, 2012).
Neste sentido, face aos desafios da economia, que requer um processo de inovação permanente, onde a competitividade é uma característica determinante, a educação é compreendida como um meio eficaz na criação de condições que favoreçam a adaptação dos indivíduos, para que sejam capazes de responder aos desafios de um mundo complexo e competitivo (LIMA, 2012). Assim, o excerto abaixo, que deriva do documento produzido pela UNESCO em 2008, denominado Reforma da educação secundária: rumo à convergência entre a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de habilidades, revela o direcionamento que os sistemas educativos devem tomar em relação ao conhecimento.
A fim de ajudar os jovens a enfrentar eficazmente esses desafios, sejam eles positivos ou negativos, os sistemas de educação secundária precisam concentrar-se em conferir aos jovens a capacidade de desenvolver personalidades produtivas, responsáveis, bem equipadas para a vida e para o trabalho na atual sociedade do conhecimento baseada na tecnologia. É claro que, para que os indivíduos logrem ajustar-se e competir no ambiente em rápida evolução que caracteriza o mundo contemporâneo, necessitam de um repertório de habilidades para a vida que inclui, entre outras, habilidades analíticas e de resolução de problemas, criatividade, flexibilidade, mobilidade e empreendedorismo. (UNESCO, 2008, p. 9, grifos nossos).
Tendo presente a ênfase atribuída à reestruturação curricular pautada na flexibilidade, através da ênfase na produção de percursos formativos diversificados, que atendam às especificidades individuais, o excerto acima apresenta, ao propor que o conhecimento escolar seja composto de um repertório de habilidades para a vida, um conceito que parece central para a presente investigação, que é o desenvolvimento de personalidades produtivas.
Neste contexto, o conhecimento é visto de forma unidimensional e performativa, e a escolarização deve possibilitar, aos indivíduos, uma situação favorável em termos de empregabilidade, onde a formação individual responsabiliza o sujeito por sua colocação no mercado de trabalho. Faz-se necessário assinalar, ainda, que a promoção de personalidades produtivas está vinculada ao conceito de empregabilidade, compreendida como um conjunto de competências que proporcionam performance econômica. Considera-se que o capitalismo flexível vai requerer, dos indivíduos, uma reorganização para que se tornem empregáveis em um mercado de trabalho dualizado e dividido entre qualificação e não-qualificação, produzindo identidades mais voláteis e fragmentadas. Nessas condições, o sistema de ensino vai centrar sua preocupação na excelência acadêmica que garanta, ao indivíduo, as competências para se reposicionar neste mercado (SENNETT, 2006; STOER; MAGALHÃES, 2005; LIMA, 2012).
Ampliando o escopo da argumentação, é importante assinalar que a flexibilidade está vinculada ao conceito de competências que, na visão de Stoer e Magalhães (2005), passam a ser definidas como a capacidade criada, nos indivíduos e nos grupos, para desempenhar os seus papeis sociais e produtivos em ambientes continuamente em transformação. Tal capacidade compreende um processo contínuo de capacitação para lidar com a mudança, onde os conhecimentos teóricos e práticos a serem mobilizados segundo este critério são, portanto, aqueles que propiciam a contínua abertura para a inovação. Desta maneira, considerando as competências exigidas para o novo perfil profissional forjado a partir da flexibilidade, o conceito de empregabilidade passa a assumir papel central. A partir do que postulam Stoer e Magalhães (2005), ser empregável é possuir competências de adaptabilidade. É a capacidade de estar continuamente em processo de formação e circular no mercado de trabalho com uma velocidade o mais semelhante possível àquela com que o capital circula, com que as empresas reorganizam os seus processos e com que as inovações surgem (SILVA; SILVA, 2012).
Neste sentido, Stoer e Magalhães (2005) evidenciam que, no contexto da sociedade em rede, o conhecimento, como veículo de formação, configura-se a partir de duas possibilidades: como competências essenciais potencializadas por meio de uma gestão flexível do currículo; ou como formação integral do indivíduo, onde é possível perceber uma ambiguidade entre a compreensão do conhecimento como competência e o conhecimento como formação. Sendo assim, na visão dos autores, no que se refere ao lugar e à função do conhecimento no processo educativo, é possível vislumbrar um tensionamento que surge a partir de dois movimentos: a pressão resultante das exigências do mercado de trabalho, onde apenas os indivíduos competentes têm lugar; e a segunda, como uma pressão resultante da exigência da educação como emancipação individual; Nela, acentua-se que o conhecimento não pode ser esvaziado de seu potencial de intervenção política e social.
Partindo do que Sennett (2006) retrata como a cultura do novo capitalismo, vislumbra-se um cenário no qual a flexibilidade demarca as relações sociais e produtivas, e onde emergem as reformas curriculares propostas para o Ensino Médio, alicerçadas em um processo de inovação permanente. As análises referentes ao conceito de flexibilidade, fundamentada nos princípios do desenvolvimento de competências economicamente úteis ao indivíduo, conduziram a duas perspectivas que se entrelaçam. A primeira delas refere-se ao conceito de percursos formativos diversificados, e a segunda está relacionada com a formação de personalidades produtivas.
A ênfase contida nos documentos analisados evidenciam a necessária reestruturação do Ensino Médio, através de uma adequação curricular marcada pela flexibilidade, que objetiva tornar o conhecimento transmitido pela escola adequado às necessidades do indivíduo, dadas as exigências do mercado e da economia. Tal ênfase fez com que assumissem centralidade os conceitos de diversificação dos percursos formativos voltados ao desenvolvimento de personalidades produtivas, por meio da aquisição de um repertório de habilidades para a vida. Nas condições descritas nessa observação, o conhecimento dá lugar a aprendizagens rentáveis, capazes de garantir o potencial de empregabilidade e a participação dos indivíduos na sociedade do conhecimento, tal como denota a análise referente ao panorama do Ensino Médio brasileiro na atualidade, anteriormente apresentada.
Considerações finais
A análise acerca das concepções de conhecimento escolar emergentes do contexto das novas políticas educacionais propostas para o Ensino Médio consideram as estratégias políticas que colocam em ação determinadas formas de organização do trabalho escolar estiveram ancoradas nas ações implementadas pelo Estado. Especialmente no que se refere às orientações contidas nos documentos investigados, direcionadas para a formação dos estudantes desta etapa da escolarização, investindo em determinados perfis formativos e regidos pelas lógicas de mercado.
Retomar a perspectiva histórica que configurou o cenário atual que envolve o Ensino Médio contribuiu para que fosse possível conhecer a vinculação desta etapa da Educação Básica com os interesses determinados pelas vias econômicas que marcaram a sociedade brasileira, sobretudo a partir da metade do século XX. Ao longo do último século, a partir de algumas digressões históricas, constataram-se os modos pelos quais os sentidos acerca do Ensino Médio foram sendo ressignificados. O processo de mercadorização do conhecimento marca as condições que regulam o nível de desempenho e a competitividade necessária para ampliar os ganhos econômicos. Isto ocorre ao possibilitar que tanto os sujeitos quanto as instituições adquiram habilidades que contribuam para que se tornem cada vez mais performativos. Cabe esclarecer, todavia, o reconhecimento do Estado como um conjunto de estratégias políticas em ação.
Essa perspectiva marca um deslocamento de foco em relação à escola média, onde os discursos proferidos pelos organismos internacionais, ao mesmo tempo em que proclamavam o esgotamento do modelo de transmissão de conteúdos dissociados da realidade do aluno, voltaram-se para a promoção de um currículo que envolvesse a aquisição de habilidades práticas, capazes de preparar os estudantes para a vida.
O referido deslocamento, na atualidade, assume um novo foco, em relação à perspectiva do conhecimento a ser transmitido pela escola média, onde entra em cena o princípio da empregabilidade a partir dos moldes de mercado, que passam a direcionar o rumo das aprendizagens. A partir da implementação do princípio da flexibilidade que impacta nos modelos curriculares seguidos pela escola, a instituição é direcionada para constituir percursos formativos individualizados, para potencializar a formação de personalidades produtivas suficientemente competitivas e capazes de enfrentar os desafios de uma economia globalizada e mutante. O novo cenário configurado para o Ensino Médio, fundamentado pelos princípios da economia, produz importantes desafios para esta etapa da educação, no momento em que reduz o conhecimento a ser ensinado na escola à aquisição de capacitações, por meio de competências básicas que sirvam para implementar o potencial de empregabilidade e performatividade dos sujeitos.
Neste sentido, de acordo com os direcionamentos investigativos apresentadas neste texto, é urgente pensar, a partir do que apresenta Muller (2003), em uma necessária revitalização do conhecimento como conhecimento como alternativa para superar o economicismo e a competitividade exacerbada, presentes no âmago de uma escolarização voltada, nas palavras de Lima (2012), para a celebração das virtudes da aprendizagem prática e do conhecimento útil.
A esse respeito, Silva e Silva (2012), alertam que, embora os debates sobre experiências, competências ou habilidades escolares sejam significativos, é preciso trazer de volta, ao centro das políticas de escolarização, os conhecimentos escolares, revitalizando a emergência de um currículo fundamentado no conhecimento poderoso, tal como propõe Young (2007).
[...] uma posição contrária à defesa de um currículo por resultados, instrumental e imediatista, ressaltando a necessidade de garantir acesso ao conhecimento, em especial para crianças e jovens dos grupos sociais desfavorecidos; defende que a escola não se afaste de sua tarefa específica, disponibilizando o conhecimento especializado, que não se acessa na vida cotidiana e que pode oferecer generalizações e base para se fazer julgamentos, fornecendo parâmetros de compreensão de mundo. Entende que, para o desenvolvimento dessa compreensão de mundo, é importante dispor de conhecimentos e formas de pensamento que permitam problematizar a prática social com base nos conhecimentos especializados, de forma a aprofundar o entendimento das múltiplas relações envolvidas nos fenômenos naturais e sociais. (GALIAN; LOUZANO, 2014, p. 1.112).
Com base nestes pressupostos, é preciso ir em busca de uma educação desveladora, que não limite o conhecimento a uma adaptação que sirva aos imperativos da economia, restringindo-se a formar o perfil do trabalhador flexível perseguido por este modelo de desenvolvimento (LIMA, 2012). Entende-se como indispensável estabelecer uma crítica às reformas educacionais construídas sob um novo paradigma de aprendizagem, que vincula a educação a ganhos econômicos e, ao mesmo tempo, responsabiliza o indivíduo por seu sucesso ou fracasso.
Considerando a sua natureza multiforme, Lima (2012) ressalta que a educação não deve ignorar os problemas da economia e da sociedade, do trabalho e emprego. Contudo, um projeto de formação humanista não pode aceitar uma posição de subordinação aos interesses do mercado, determinado pela competitividade econômica. A educação é uma questão de economia; porém, é muito mais do que isso, sendo também uma questão de política social e cultural. Para além de competir para progredir, é preciso buscar uma formação para o exercício do pensamento crítico, onde se eduque para o desenvolvimento social, pessoal e para a liberdade, onde o conhecimento precisa representar bem mais do que variáveis econômicas orientadas para o desenvolvimento (LIMA, 2012).
Assim, os pressupostos abordados neste estudo evidenciaram que o neoliberalismo e os preceitos da globalização e da economia mantêm os sujeitos imersos em um processo de aprendizagem permanente. No âmbito do Ensino Médio, consoante as constatações referentes a este estudo, tal problemática é somada à ênfase na formação de personalidades produtivas caracterizadas pela flexibilização, pela responsabilização individual e pela valorização da individualização dos percursos formativos que, no limite, privilegiam uma versão mercantilizada de conhecimento.
Todos estes conceitos estão articulados nas seções que retrataram o corpo de análise desta investigação, onde se destaca a importância de refletir sobre os tensionamentos produzidos em torno do conhecimento escolar, e que permitem, nas palavras de Silva (2014), a emergência de um conjunto de novas pautas políticas para a escolarização obrigatória. As práticas escolares estão imersas em um mundo em transformação, e articulam-se produtivamente com as novas gramáticas políticas emergentes da sociedade contemporânea.
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