Dossiê: Educação Física escolar no contexto da inclusão e diferença
Apresentação
No cenário educacional brasileiro, o processo de escolarização de pessoas que apresentam condições peculiares de aprendizagem gera intenso debate de ordem acadêmico-profissional e política. A própria terminologia de referência é alvo de pseudodiscussões que, por vezes, invadem rodas de conversa pseudoacadêmicas ou, ainda, pseudoprofissionais. Este, a propósito, é um assunto que cabe, neste dossiê, mencionar já de partida. Seja no que se refere a aspectos orgânicos constitutivos do sujeito ou do contexto socioambiental no qual se encontra, seja com entrada na discussão por aspectos filosóficos ou fisiológicos, há que se considerar que, ao se reportar ao ser humano, todos os aspectos que o definem são imprescindíveis para sua compreensão e, consequentemente, para atuar na realidade que o abriga. Entretanto, vivemos um momento de extremismos reducionistas que obstaculizam a compreensão do ser humano, ao considerar uma perspectiva teórica, por exemplo, superior a outra. Tão superior que em alguns momentos sequer se admite a existência de diferenças epistemológicas, teóricas e metodológicas.
Então, como bárbaros, queimamos tudo que não se escreve como escrevemos e concebemos, afinal de contas, “Narciso acha feio o que não é espelho” (VELOSO, 1978). Compreender diferenças é importante exercício a ser assumido, preservado e perseverado nos campos acadêmico e profissional com vistas a um diálogo com nossa realidade social que nos permita vislumbrar seu aprimoramento. Já há tempo, diga-se de passagem, Guattari provoca-nos ao afirmar que “cada instituição [...] de educação [...] deveria ter como preocupação permanente fazer evoluir sua prática tanto quanto suas bases teóricas” (1993, p. 22-23). Assim como antes, noutro momento histórico e com assento noutra base epistemológica, afirmara-se - de modo deveras inspirador para a superação de nossas insistentes velhas contradições - como fontes e bases constitutivas do marxismo “a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês” (LÉNINE, 1913).
Essa necessária digressão, a anteceder a apresentação do conteúdo de nosso dossiê, permite-nos assumir que no campo das imbecilidades, excepcionalidades, necessidades educativas especiais, necessidades educacionais especiais, necessidades especiais, deficiências, enfim, temos como central a Educação Física escolar num contexto que se caracteriza pelo tensionamento produzido na relação entre as categorias inclusão e diferença. Contexto esse repleto de contradições e de disputas que se expressam nos campos acadêmico e profissional, tanto em nível mais imediato, quanto mais remoto. Ao considerar tratar-se de processo histórico, socioculturalmente produzido, fazemo-nos acompanhar pela inspiradora reflexão de Pedrinelli e Verenguer (2008, p.4) sobre “pessoas que apresentam diferentes e peculiares condições para a prática das atividades físicas” e, no âmbito das necessidades educacionais especiais, remetemo-nos a pessoas que apresentam condições peculiares de aprendizagem. Desse modo, reafirmamos a centralidade do processo ensino-aprendizagem a nos animar nessa nossa caminhada.
Seja com foco nas pessoas com deficiência, nas necessidades especiais, na diversidade humana ou na diferença, é possível observar discussões com entradas distintas para se abordar o referido tema. Aspectos relacionados às políticas educacionais, à formação profissional e à prática pedagógica, por exemplo, se entrecruzam e geram tensionamentos que se traduzem num movimento histórico dinâmico e complexo a desafiar recorrentemente nosso sistema de ensino. A Educação Física, na condição de componente curricular que caracteriza um campo de intervenção profissional academicamente sustentado, participa sistematicamente desse debate. De um lado, é visível sua contribuição como componente curricular a promover a ampliação do espaço de relação socioeducacional de pessoas que apresentam condições peculiares de aprendizagem em seus processos de escolarização, por intermédio de seus conteúdos de referência (esportes, jogos, ginásticas, lutas, danças).
De outro lado, a produção de conhecimento decorrente de dissertações e teses realizadas em programas de pós-graduação em Educação Física e em Educação problematiza as implicações decorrentes do efetivo envolvimento do campo nessa questão. Em nível mais específico, o Grupo de Trabalho Temático (GTT) Inclusão e Diferença, vinculado ao Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE) bem ilustra como as dimensões profissional, política e acadêmica se entretecem a partir da inquietação, já há algum tempo deflagrada, por uma perspectiva educacional inclusiva. Para além da ideia de desafio, a Educação Inclusiva encerra contundente crítica a um sistema de ensino que insiste em ignorar as inequívocas diferenças, quaisquer que sejam, que se expressam por ocasião da presença d@s alun@s a frequentar nossas escolas. A Educação Inclusiva provoca os sistemas de ensino na direção do aprimoramento de sua função e compromisso sociais com vistas ao desenvolvimento humano.
Nesse sentido, na expectativa de contribuir para adensar o debate sobre o assunto em epígrafe e com o propósito de avançar na interlocução da Educação Física com a problemática da Educação Inclusiva, o dossiê Educação Física escolar no Contexto da Inclusão e Diferença, conta com as seguintes contribuições: Educação Física: formação de professores e inclusão, de autoria de David Rodrigues e Luzia Lima-Rodrigues; Formação continuada para professores de Educação Física: a Tecnologia Assistiva favorecendo a inclusão escolar, de autoria de Maria Luiza Salzani Fiorini e Eduardo José Manzini; O processo de formação inicial em Educação Física na perspectiva inclusiva: o que nos dizem os egressos?, dos autores Maria das Graças Carvalho Silva de Sá; Daniela Lima Bonfat; Erineusa Maria da Silva; José Francisco Chicon e Zenólia Christina Campos de Figueiredo; Programa de formação de colegas tutores: a tutoria no processo de inclusão escolar nas aulas de Educação Física, das autoras Joslei Viana de Souza; Mey de Abreu van Munster; Lauren Leiberman e Maria da Piedade Resende da Costa; Concepções pedagógicas de Educação Física: os conceitos de diferença e inclusão, dos autores Telma Adriana Pacífico Martineli e Keros Gustavo Mileski; Concepções de professores de Educação Física sobre inclusão escolar, das autoras Raíssa Forte Pires Cunha e Adriana Leite Limaverde Gomes; Educação Física escolar e políticas de inclusão: entre a gestão de riscos e o ensino, de autoria de Roseli Belmonte Machado. Na sequência há os artigos de: Pedro Xavier Russo Bonetto, Marcos Ribeiro das Neves e Marcos Garcia Neira, sobre O tratamento destinado às diferenças nos currículos desenvolvimentista, psicomotor e crítico da Educação Física; Hugo César Bueno Nunes e Marcos Garcia Neira, sobre A diferença no currículo cultural: por uma Educação (Física) menor; Leandro Teófilo Brito e Miriam Soares Leite, Sobre masculinidades na Educação Física escolar: questões teóricas, horizontes políticos; Vagner Matias do Prado, Entre queerpos e discursos: normalização de condutas, homossexualidades e homofobia nas práticas escolares da Educação Física; Vanessa Gomes de Castro, Sobre o compromisso da Educação Física escolar com a inclusão social dos negros; Danielle Torri e Alexandre Fernandez Vaz, a respeito do Esporte paralímpico: difícil inclusão, incorporação tecnológica, corpos competitivos; Nerli Nonato Ribeiro Mori, João Paulo dos Passos Santos, Elsa Midori Shimazaki, Lucyanne Cecília Dias Goffi e Viviane Gislaine Caetano Auada, a respeito de Jogos e brincadeiras no desenvolvimento da atenção e da memória em alunos com deficiência intelectual. Chegamos ao final dos artigos com o texto de Patricia Santos de Oliveira, João Paulo da Silva Nunes e Mey de Abreu van Munster: Educação Física Escolar e Inclusão: uma revisão sistemática da produção discente na Pós-Graduação brasileira. Eduard Angelo Bendrath; Andréia Paula Basei e Fagner Sene Rodrigues brindam-nos com a resenha do livro Diretrizes em Educação Física de qualidade: para gestores de políticas, publicado pela UNESCO.
Agradecemos a tod@s que, de alguma maneira, a despeito de suas objetivas condições de existência - que não preveem em seus espaços/tempos de trabalho a destinação de espaços/tempos para a imprescindível elaboração de pareceres sustentadores da qualidade de nossos periódicos - colaboraram para a materialização deste dossiê.
Editores convidados:Gilmar de Carvalho Cruz (UNICENTRO e UEPG)Silvia Christina de Oliveira Madrid (UEPG)David Rodrigues - Universidade de Lisboa e ONG Pró-Inclusão