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Recepção: 28 Maio 2016
Aprovação: 03 Fevereiro 2017
DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.12i2.0009
Resumo: A diferença, no sentido da identidade cultural, desponta como demanda urgente aos currículos de todas as disciplinas. Diante disso, o presente artigo tem como objetivo identificar o tratamento dado às diferenças por algumas das propostas mais relevantes na área da Educação Física. Foram analisadas três obras brasileiras que reconhecidamente influenciaram na disseminação dos currículos psicomotor (FREIRE, 1989), desenvolvimentista (TANI et al., 1988) e crítico-superador (SOARES et al.,1992). Os resultados revelam uma perspectiva conservadora baseada a. na assimilação das diferenças ou b. na apropriação humanística, respaldada na crença do princípio de igualdade independentemente de questões de etnia, gênero ou sexualidade. A conclusão é de que, em ambos os casos, o que se busca é integrar os diferentes grupos culturais à cultura dominante para que todos possam competir em grau de igualdade na sociedade capitalista moderna.
Palavras-chave: Diferença, Educação Física, Currículo.
Abstract: Difference, as cultural identity, appears as an urgent demand in the curricula for all school subjects. Therefore, this paper aims at identifying the treatment given to differences by some of the most relevant proposals in the physical education area. Three Brazilian works were analyzed for having influenced the dissemination of psychomotor (FREIRE, 1989), developmental (TANI et al., 1988) and critical-overcoming (SOARES et al.,1992) curricula. The results revealed a conservative perspective based (a) on the assimilation of differences or (b) on the humanistic appropriation supported by the belief of the equality principle disregarding issues such as ethnicity, genre or sexuality. The conclusion is that, in both cases, integrating the different cultural groups to the dominant culture is sought so that everybody can compete as equals in the modern capitalist society.
Keywords: Difference, Physical Education, Curriculum.
Resumen: La diferencia en el sentido de la identidad cultural, surge como una demanda urgente en los currículos de todas las disciplinas. Por lo tanto, este artículo tiene como objetivo identificar el tratamiento de las diferencias en algunas de las propuestas más relevantes en el área de la Educación Física. Se analizaron tres obras brasileñas que influyeron en la propagación de los planes de estudio psicomotor (FREIRE, 1989), de desarrollo (TANI et al., 1988) y crítico-superación (Soares et al., 1992). Los resultados revelan un enfoque conservador basado a. la asimilación de las diferencias o b. la propiedad humanística, con el apoyo de la creencia del principio de igualdad con independencia de las cuestiones étnicas, de género o la sexualidad. La conclusión es que, en ambos casos, lo que se busca es la integración de los diferentes grupos culturales a la cultura dominante para que todos puedan competir en pie de igualdad en la sociedad capitalista moderna.
Palabras clave: Diferencia, Educación Física, Currículo.
Introdução
Não há como negar que a democratização do acesso e permanência no Ensino Fundamental, aliada à globalização crescente, modificou por completo o ambiente escolar. Destituídos os antigos dispositivos que forçavam a homogeneidade (segregação, repetência e exclusão), é possível dizer que o ethos educacional é plural e diverso, pois nele se faz presente a diferença cultural. Em linhas gerais, a diferença é o outro. O outro é a outra etnia, a outra religião, o outro gênero, a outra classe. Se considerarmos o contexto da escola pública brasileira, o outro, agora, está ao nosso lado.
Para explicar o conceito de identidade cultural, Silva (2012) atenta à noção de diferença e como ambos se articulam. Identidade, diz o autor, é simplesmente aquilo que se é: ‘sou homem’, ‘sou brasileiro’, ‘sou branco’, ‘sou homossexual’, ‘sou velho’. A identidade passa a ideia de ser algo natural, independente, autônomo, tendo como única referência sua própria existência. A diferença também é concebida como autorreferenciada, aquilo que o outro é: ‘ele é espanhol’, ‘ela é mulher’, ‘ele é negro’. Assim como a identidade, a diferença simplesmente existe.
Quando digo ‘sou brasileiro’ parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. ‘Sou brasileiro’ - ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros (SILVA, 2012, p. 75).
Quando afirmarmos ‘sou brasileiro’, estamos simultaneamente dizendo: ‘não sou argentino’, ‘não sou chinês’, ‘não sou japonês’, e assim sucessivamente, em um processo interminável. Consequentemente, as afirmações sobre a diferença também só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade. Dizer ‘ele é chinês’ significa dizer que ‘ele não é argentino’, ‘ele não é japonês’ etc. (SILVA, 2012, p. 74).
Nesta acepção, a identidade é sempre uma responsabilidade do próprio sujeito, que deverá manter-se fiel às normas socialmente aceitas em sua comunidade. Por sua vez, a diferença é sempre algo distante, exótico, que deve ser afastado com o intuito de não influenciar e descaracterizar a singularidade do sujeito.
As identidades culturais não são rígidas, muito menos imutáveis. Elas são o resultado sempre transitório de processos de identificação. Mesmo as identidades mais ‘sólidas’, como as de homem, mulher, país africano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidade em constante processo de transformação, responsáveis, em última instância, pela sucessão de significações que, de época em época, dão vida a tais identidades. Em outras palavras, identidades são identificações em curso (SOUSA SANTOS, 2010).
As identidades são marcadas pelas posições que interpelam o sujeito. Não sendo fixas, tampouco singulares, as identidades são uma multiplicidade relacional em constante mudança e, no curso deste fluxo, assumem padrões específicos, como num caleidoscópio, diante de conjuntos particulares de circunstâncias pessoais, sociais e históricas (BRAH, 2006).
Por ser uma construção histórica e cultural, a identidade se constitui por meio de relações que empreendemos com os outros e, por ser relacional, define-se por meio das relações de poder, que fixam uma identidade como norma, estabelecendo uma hierarquia entre ela e as demais (HALL, 2011). A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa atribuir a uma determinada identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras só podem ser avaliadas de forma negativa, constituindo-se como diferença (SILVA, 2012).
Skliar (2003) considera que, no discurso normalizador do outro, predomina a lógica binária em que a forma de distribuição do poder é desigual. Denomina-se com o intuito de dominar aquele que se opõe ao considerado essencial: o louco, o deficiente, o viciado, o homossexual, o imigrante e a mulher. O outro, da oposição binária, não existe fora do primeiro termo, mas dentro dele, como sua imagem velada, como expressão negativa, sendo então necessária uma correção normalizadora.
O que se vê então é a tentativa de fixá-lo em um ponto estático de um espaço pré-estabelecido. Traduzi-lo para nossa língua, para nossa gramática. Fazer do outro um outro parecido, mas nunca idêntico a nós. Negar sua disseminação, sua pluralidade inominável, sua multiplicidade. Designá-lo e inventá-lo para apagá-lo e fazê-lo reaparecer no lugar em que nos seja conveniente. Esta ideia traz o sentido de uma alteridade essencialista, de uma mesmidade regular, coerente, completa e, sobretudo, benigna, positiva, satisfatória, localizada em uma territorialidade oposta ao mal do outro e ao outro do mal. O outro funciona como depósito de todos os males, o portador de falhas sociais. Este pensamento acaba por supor que a pobreza é do pobre, a violência é do violento, a deficiência é do deficiente (SKLIAR, 2003).
O outro é um outro que não queremos ser, que odiamos e maltratamos, que separamos e isolamos, que profanamos e ultrajamos, mas que utilizamos para fazer de nossa identidade algo mais confiável, mais estável, mais seguro; é um outro que tende a produzir uma sensação de alívio diante de sua invocação - e também diante de seu mero desaparecimento; é um jogo - doloroso e trágico - de presenças e de ausências (SKLIAR, 2003, p. 121).
Entre as instituições responsáveis pela produção da identidade e da diferença, destaca-se a escola e, mais especificamente, o currículo (MACEDO, 2009). Concebido como prática discursiva, como modo de significação, o currículo é um dispositivo de normalização, constituindo a maneira correta de ser, ou seja, a identidade e, por consequência, a diferença. No âmbito da Educação Física, o trabalho de Neira (2011) assinalou que, majoritariamente, os currículos do componente fixam identidades, podendo ser tomados como espaços racializados, genderizados e classizados. Na visão do autor, ao selecionarem determinados conteúdos, estes configuram-se como uma maquinaria que estabelece a etnia adequada, o gênero melhor e a classe social de referência. Para Nunes e Rúbio (2008), as propostas curriculares da Educação Física objetivam a formação de diferentes identidades: saudáveis, vencedoras, competentes, emancipadas e solidárias.
A produção de conhecimentos sobre o assunto manifesta certo consenso em torno do fato de que toda teoria de ensino é, também, uma teoria de currículo. Os trabalhos de Silva (2011) e Lopes e Macedo (2011) despontam entre aqueles que se debruçam sobre a pedagogia tradicional, o escolanovismo, o tecnicismo educacional, as pedagogias críticas e as pós-críticas, para abstrair concepções teóricas de currículo. No campo da Educação Física, Neira e Nunes (2006 e 2009) replicaram esse processo, denominando de “currículos” as propostas de intervenção na área, disponíveis em inúmeras publicações. Nesse sentido, podem ser tomados por currículos as vertentes ginástica, esportivista, desenvolvimentista, psicomotora, crítica e cultural. Cada qual, elucidam os autores, tem em vista a formação de um determinado sujeito e, para tanto, além de se fundamentarem em epistemologias distintas, adotam princípios e procedimentos singulares para definir o quê e como será ensinado e como será avaliado.
Neste artigo analisamos como alguns dos principais currículos de Educação Física têm, historicamente, abordado a diferença. Cientes da heterogeneidade discursiva presente nas propostas curriculares, pensamos em promover tal discussão partindo de obras literárias que representam, de forma consistente, alguma proposta de organização do ensino. O exercício de analisá-las é, ao nosso ver, uma maneira de repensar e oxigenar, com outros olhares, aquelas obras que inspiram milhares de professores na organização e desenvolvimento do trabalho pedagógico.
Como critérios para selecionar os livros a serem analisados, levamos em consideração a relevância para a área; a representatividade diante de uma perspectiva curricular; o número de vezes que tivemos contato com as ideias contidas e por figurarem em bibliografias1 de concursos públicos para o magistério pelo Brasil afora. A partir daí, definimos três obras: “Educação Física de Corpo Inteiro” de João Batista Freire da Silva (FREIRE, 1989); “Educação Física: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista”, de Go Tani, José Elias Proença, Edison de Jesus Manoel e Eduardo Kokubun (TANI et al., 1988), e “Metodologia do Ensino de Educação Física” de Carmen Lúcia Soares, Lino Castellani Filho, Michele Ortega Escobar, Celi Neusa Zulke Taffarel e Valter Bracht (SOARES et al.,1992).
Sobre os procedimentos de análise, primeiro realizamos uma breve discussão dos objetivos e métodos recomendados em cada uma das propostas, a fim de caracterizá-las. Durante a leitura dos materiais, sublinhamos estrategicamente as palavras grafadas no singular que insinuam qualquer representação universalizante da função social de escola, sujeitos, concepções de cultura e conhecimento. Não foram poucas. Posteriormente, submetemos o conteúdo a uma análise crítico-filosófica tomando como referência duas perguntas: “Onde está a diferença?”e “Como ela é tratada em cada obra?” Fizemos questão de extrair e apresentar os fragmentos dos textos, como recursos para sustentar nossos posicionamentos.
De corpo inteiro
“Educação de Corpo Inteiro” segue uma orientação teórica influenciada pelas teorias psicobiológicas, principalmente na psicomotricidade de Jean Le Boulch e nas teorias desenvolvimentistas de Jean Piaget.
No primeiro capítulo, denominado “Pedagogia do movimento da escola de primeira infância”, o autor descreve densamente as teorias do desenvolvimento humano em que fundamenta sua proposta, além de apresentar as características da etapa que ele chama de primeira infância. Também propõe atividades (brincadeiras) e materiais pedagógicos (alternativos) para esta faixa etária, descrevendo seus eventuais benefícios para o desenvolvimento motor e cognitivo (formação do símbolo, brinquedo simbólico e o jogo de construção).
Recorre a Le Boulch (1982) para descrever as fases do corpo submisso e do corpo vivido. Prossegue, apoiando-se em Piaget (s/d) para explicar os estágios de desenvolvimento da inteligência: sensório-motor, pré-operatório, operatório-concreto e operatório formal ou hipotético-dedutivo. O jogo também é submetido a uma taxonomia: jogo simbólico, jogo de construção e jogo social.
Em suma, a proposta se fundamenta na teoria piagetiana para submeter as aulas de Educação Física ao aprimoramento da cognição, motricidade, socialização e afetividade. Opera classificando e hierarquizando o desenvolvimento humano a partir do conceito psicogenético de esquemas de ação. Afirma que é por estes esquemas que o ser humano se expressa em todas as ocasiões de sua vida.
A respeito da diferença, o autor assim se manifesta:
De Piaget a Frostig, de Ajuriagerra a Elkonin, o desenvolvimento infantil é analisado em suas diversas etapas. Esse procedimento tem gerado controvérsias e confusões pedagógicas. Uma delas, a mais evidente talvez, é a ideia que se forma ao se estudarem esses diversos autores, de que estes períodos de desenvolvimento são estanques, de que um deles começa em um certo momento, exatamente quando termina um outro. Convém lembrar que estamos falando de seres vivos, e mais, de seres humanos, o que torna impossível essa precisão matemática na análise do desenvolvimento. Vale lembrar ainda que as periodizações descritas pelos estudiosos referem-se a lapsos de tempo na história da humanidade e que, portanto, certos comportamentos motores referem-se a um tempo e a um contexto específicos, e que se tais comportamentos eram assim há séculos ou milênios atrás, provavelmente diferirão em tempos futuros (FREIRE, 1989, p. 32).
No entanto, o brilhantismo dessa colocação fica apenas como ressalva. O que se vê é uma proposta que segue, firme e forte, descrevendo como as crianças devem se movimentar, pensar e comportar-se em cada etapa. Meras generalizações a partir de uma concepção de infância romântica e moderna2, dividida em partes (primeira e segunda) e, às vezes, bastante discriminatória.
Todos nós temos alguma ideia de como é a criança: ela se arrasta, engatinha, corre, pula, joga, fantasia, faz e fala coisas que nós, adultos, nem sempre entendemos [...]. Alguns dirão, com razão, que nessa questão do movimento, a atual geração infantil de apartamento movimenta mais os dedos num videojogo e num sintonizador de televisão do que o corpo como um todo. Outras crianças, como as da favela, não brincam, trabalham para sobreviver. A escola, entre outras instituições, cumpre o papel de formar crianças para exercerem funções na sociedade (FREIRE, 1989, p. 12).
No segundo capítulo, ao discutir a função social da Educação Física, o autor elenca três aspectos que considera importantes: educação do movimento, educação pelo movimento e educação para o movimento. Desse modo, defende que a Educação Física tem que ser uma educação de corpo inteiro.
Entendendo-se, por isso, um corpo em relação com outros corpos e objetos, no espaço. Educar corporalmente uma pessoa não significa provê-la de movimentos qualitativamente melhores, apenas. Significa também educá-la para não se movimentar, sendo necessário, para isso, promover-se tensões e relaxamentos, fazer e não fazer (FREIRE, 1989, p. 84).
Ainda neste capítulo, discorre sobre as brincadeiras que são modificadas e transformadas à luz do construtivismo pedagógico. De forma bastante insistente, o texto valida o jogo e a brincadeira como conteúdos centrais do currículo de Educação Física. Defende que na escola deva predominar o jogo educativo, isto é, o jogo como recurso pedagógico. Que fique claro que nesta perspectiva os jogos e brincadeiras não são abordados como elementos da cultura ou artefatos culturais3, mas como estratégias utilizadas para o desenvolvimento de comportamentos padronizados: habilidades motoras, habilidades cognitivas, noções de tempo e espaço, a manipulação fina de objetos e também o desenvolvimento de lógicas de seriação, conservação e classificação, até a possibilidade de desenvolver a cooperação, solidariedade e respeito às regras.
Revelando certa contradição, afirma que os professores devem se preocupar com as habilidades motoras.
Os professores devem estar permanentemente preocupados com as habilidades motoras. Devem certificar-se de que seus alunos são capazes de correr, saltar, girar, rolar, trepar, lutar, lançar e pegar objetos, equilibrar-se etc. Porém, não devem esquecer-se de que essas habilidades são a expressão de um ser humano, de um organismo integrado (FREIRE, 1989, p. 76).
Ao longo do texto, embora o autor faça muitas ressalvas e advertências sobre os riscos da homogeneização, o brinquedo, o jogo e o movimento são dados como fundamentais para a vida das crianças. Reproduzindo o modelo dos manuais, são propostas brincadeiras que objetivam o desenvolvimento integral das crianças. É importante salientar que em nenhum momento o autor sugere que se pergunte às crianças se elas brincam de esconde-esconde, pega-pega, entre outras práticas citadas no texto. A atividade segue todo o script do professor de forma acrítica e neutra. Por isso, é um livro que “cai como uma luva” nas mãos daqueles que querem receitas prontas, o que apenas fortalece as políticas neoliberais.
Creio, na minha parte, que todas as propostas sérias de desenvolvimento poderiam ser realizadas dentro do jogo, aproveitando seu caráter lúdico. No entanto, não caiamos no exagero. Escola alguma poderia ser só jogo, nas escolas infantis, mesmo aquelas sem orientação escolar, o que a criança faz contém uma mistura inseparável de jogo e trabalho (FREIRE, 1989, p. 76).
Afirma, em um trecho do livro, que a educação não pode ser feita com os corpos imobilizados, e assim, faz fortes críticas ao modelo educacional que exagera na imobilidade.
Causa-me mais preocupação, na escola de primeira infância, ver crianças que não sabem saltar que crianças com dificuldades para ler ou escrever. Na primeira infância a ação corporal ainda predomina sobre a ação mental [...]. Sou o primeiro a defender a ideia de que todas elas devem aprender a fazer paradas de cabeça (plantar bananeira), dar cambalhotas, apostar corridas, jogar bola e assim por diante (FREIRE, 1989, p. 76).
O autor dedica um capítulo inteiro a descrever as relações entre a Educação Física e as outras disciplinas da escola. Neste, podemos ter uma ideia melhor do seu entendimento de educação pelo movimento. A visão funcionalista atribuída à Educação Física é desvelada, uma vez que as atividades propostas têm por objetivo aprender a contar, formar palavras etc. O autor explica, por exemplo: “pular corda com separação de sílabas” (p. 189), “zerinho com letras” (p. 188), “composição de palavras pulando corda” (p. 190), “pular corda com números e operações” (p. 190), entre outras.
Parece não haver dúvidas de que a identidade almejada por esta proposta de Educação Física é um sujeito desenvolvido integralmente, ou seja, um indivíduo com elevadas capacidades cognitivas, sócio-afetivas e psicomotoras. Outras condições de identidade serão solapadas por homogeneizações fundantes como as afirmações de que “todas as propostas sérias de desenvolvimento poderiam ser realizadas dentro do jogo, aproveitando o seu caráter lúdico” (p. 75); “o brinquedo infantil tem cumprido a importante missão de aperfeiçoara o acervo motor, elevando-o ao nível necessário” (p. 112), “Quando brincam de amarelinha, as crianças, principalmente quando já estão hábeis nesse jogo, executam uma quantidade enorme de saltos, aumentando, sem dúvida, sua força de salto, habilidade fundamental para a realização de inúmeras atividades importantes para o desenvolvimento infantil em todos os seus aspectos” (p. 128), e que “para essas crianças tudo se reduz ao concreto, daí a denominação operatório-concreto, dada por Piaget ao período que coincide com a escola primária, ou seja, um momento da vida em que esta é ‘vista’ pelo corpo” (p. 134).
Outro fato observado é que, em algumas poucas passagens, o autor admite que as crianças chegam à escola com certa “bagagem” que deve ser valorizada. Todavia, é interessante observar que a menção às diferenças é pautada na ausência do desenvolvimento esperado.
As diferenças [grifo nosso] entre crianças de um grupo aparentemente homogêneo são muito grandes. Enquanto a classificação dos objetos em pequenos e médios não é problema para algumas, outras só conseguem resolver o problema em relação aos muito grandes ou aos muito pequenos (FREIRE, 1989, p. 73).
O discurso normalizador é evidente quando se refere ao trato com as diferenças. “Não há duas crianças iguais, portanto, a partir da proposta, cada uma apresentará uma reação particular: uma mais veloz, outra menos; uma compreende mais os problemas, outras menos” (p. 206). A análise das recomendações didáticas deixa transparecer que o trabalho pedagógico deve apagá-las ou corrigi-las.
Batendo na mesma tecla, o autor afirma que algumas crianças demostram enormes dificuldades para, por exemplo, “entrar” na corda por um lado, pular fazendo giros de 180° e sair pelo outro lado. Diante dessa afirmação, cabe perguntar: Que mal há em não conseguir “entrar” em uma brincadeira de corda? Será que todos os adultos que não sabem “entrar” na corda por um lado, fazer giros e sair são seres não-desenvolvidos? Quais são as implicações no desenvolvimento para os sujeitos que simplesmente não tiveram oportunidade de aprender a “entrar” na corda?
Para Freire (1989), deve ser um problema sério, pois insiste que a diferença se torne a identidade, ou melhor, o incapaz e o não-desenvolvido se tornem capazes e plenamente desenvolvidos.
Depois de algum tempo de prática, elas conseguem um relativo êxito na tarefa, não tanto quanto a outra criança que já partiu de um nível bem mais elevado que o delas. No entanto, quem melhorou mais? É possível que uma tenha ido do nível 2 ao nível 6, enquanto a outra tenha partido do 5 e chegado ao 7. Portanto, o desenvolvimento da primeira foi mais significativo (FREIRE, 1989, p. 206).
A questão aqui é compreender como esse discurso se instituiu como verdadeiro. Inspirando-nos em Foucault (1979), para quem o importante é escavar verticalmente para entender a ordem dos enunciados, procurando descentrar o poder e entender como ele nos atravessa, nos constitui e nos governa. Identificamos uma maquinaria discursiva nestas obras que ajuda a constituir certos regimes de verdade sobre os corpos, o que torna importante perguntar: como a classificação do movimento em níveis, apresentada por Freire (1989), se estabeleceu verdadeira? Quem, ou que grupo, está autorizado a dizer o que é o nível 1, 2, 3? Será que todos precisamos alcançar o nível 7?
Não é nossa intenção responder a essas questões, mas enfatizar que qualquer classificação do movimento em níveis é uma mera construção discursiva, portanto, arbitrária e provisória. Todavia, seus efeitos promovem a criação de “tipos” de sujeitos. Em outras palavras, enquanto umas se tornam identidade (nível 7) outras, excluídas, são a diferença (nível 1, 2, 3).
No último tópico, “O espaço do corpo em Educação Física”, o autor analisa os ambientes da escola. Sobrevoando conceitos foucaultianos, refere-se à educação corporal como forma de disciplinamento, compara a escola a instituições como conventos e quartéis e afirma que esta demanda está em consonância com a industrialização e a ordem econômica que se organizou a partir do século XVIII. Para Freire (1989), a Educação Física na escola tem cumprido exatamente a função de disciplinar os corpos, ao separar, por exemplo, meninos e meninas durante as aulas.
Embora pareça reconhecer a diferença relacionada ao gênero, apóia-se em teorias inatistas que tratam o assunto de forma dicotômica, ou seja, apenas com os padrões cisgênero4 (masculino e feminino). Passando ao largo de outras sexualidades como travestis, cross-dresser5 e queer6. O autor, ingenuamente, propõe-se a combater a discriminação nas aulas de Educação Física, mas reforça e produz discursos preconceituosos e generalizantes, para tanto, recorre a observações empíricas absolutamente desprovidas de senso crítico: “Era interessante observar como as construções dos meninos eram voltadas para prédios e fazendas, pontes, enquanto as meninas se dedicavam mais a arranjos domésticos, como geladeiras, camas e televisores” (FREIRE, 1989, p. 71).
Enfim, considerando a preocupação que nos levou a analisar a obra, pode-se concluir que Freire mostra certa sensibilidade à condição de diferença, porém, sempre a partir de uma única concepção de infância. Atualmente, diante do acúmulo de conhecimentos produzidos pela Sociologia da Infância, especialmente quando defende a existência de inúmeras infâncias, é importante questionar: será mesmo que todas crianças são especialistas em brinquedos e se desenvolvem conforme as teorias anunciadas ou esta é uma visão estereotipada e romântica que segue nublando as representações dos professores de Educação Física?
De corpo desenvolvido
Por “corpo desenvolvido” nos referimos à promessa do chamado “currículo desenvolvimentista” (NEIRA; NUNES, 2006), cuja obra de Tani et al. (1988) é a maior representante no Brasil. A proposta se ancora nas teorias psicobiológicas, principalmente nas teorias desenvolvimentistas de Jean Piaget e os estudos taxonômicos de David Gallahue, nos quais o desenvolvimento dos sujeitos caracteriza-se por uma sequência fixa de mudanças morfológicas e funcionais. Nessa perspectiva, os diferentes aspectos do desenvolvimento estão intimamente relacionados e seguem níveis hierárquicos rígidos, dependentes das condições genéticas (maturacionais) e sociais (experiências).
Afirmam os autores que no currículo desenvolvimentista o movimento é o principal meio e fim da Educação Física, ou seja, a aprendizagem do movimento leva à melhoria da capacidade de se mover da criança, melhor controle e aplicação, enquanto a aprendizagem pelo movimento se refere à utilização deste no autoconhecimento e exploração do mundo que a rodeia. Em linhas gerais, a proposta desenvolvimentista estabelece o desenvolvimento motor do educando como objetivo central do componente e tem na aprendizagem de movimentos o seu carro-chefe. Uma vez alcançado o desenvolvimento motor, o cognitivo e o afetivo-social seguirão a reboque.
De acordo com os autores, o processo de desenvolvimento motor é previsível em termos de princípios universais e progressões sequenciais, correlacionados à maturação biológica. A partir desses pressupostos, o currículo de Educação Física deve acompanhar as fases do desenvolvimento, tomando como referência a ordem progressiva das habilidades, das mais simples, denominadas fundamentais, para as mais complexas, chamadas de específicas. A ordem de fixação das habilidades depende mais do fator maturacional, enquanto o grau e a velocidade em que ocorre é fruto das experiências e diferenças individuais (TANI et al., 1988).
O posicionamento fundamental neste trabalho é que, se existe uma sequência normal nos processos de crescimento, de desenvolvimento e de aprendizagem motora, isto significa que as crianças necessitam ser orientadas de acordo com estas características, visto que, só assim, as suas reais necessidades e expectativas serão alcançadas (TANI et al., 1988, p. 2).
A ausência de correspondência entre a tarefa a ser ensinada e o processo de desenvolvimento podem conduzir à subestimação ou à superestimação (ambas prejudiciais) ao desenvolvimento dos sujeitos (TANI, et al., 1989).
Apresentados os conceitos fundantes, podemos perguntar sobre o tratamento dispensado à diferença pelo currículo desenvolvimentista. Entendendo-a sempre em oposição recíproca à identidade, podemos questionar: Quem, nesta proposta, é produzido como identidade e quem ocupa o lugar da diferença? Parece claro que a identidade almejada é o sujeito habilidoso do ponto vista motor, ou seja, capaz de solucionar desafios corporais e, por outro lado, a diferença é o inábil, entenda-se, aquele que não alcançou o estágio maduro das habilidades motoras.
A questão então passa a ser: como a proposta curricular desenvolvimentista se relaciona com a diferença? Dito de outro modo, qual é o tratamento dado, por exemplo, aos inábeis? O que é feito com aquelas crianças que não apresentem um nível de desenvolvimento motor condizente com sua faixa etária?
É importante dizer que, nessa obra, a diferença só pode ser entendida pelo seu viés motor, pois na perspectiva psicobiológica, que fundamenta o trabalho, marcadores sociais como gênero, etnia, religião, classe etc., passam absolutamente despercebidos.
Analisando o texto, não encontramos nenhum tópico destinado ao tratamento da diferença, a não ser com o sentido de normatizá-la. Nota-se que os autores entendem que os seres humanos são diferentes, por isso afirmam que a velocidade do desenvolvimento varia de indivíduo para indivíduo. Tais oscilações decorrem da multiplicidade de fatores ambientais e hereditários. No limite, é um posicionamento conformista, pois o professor poderá pensar: para que investir esforços pedagógicos em alguém que provém de um ambiente pobre em estímulos e hereditariamente predestinado a ser inábil?
De modo geral, percebemos que o currículo desenvolvimentista propõe que os sujeitos sejam sistematicamente categorizados e classificados, por exemplo, no tocante ao estágio de desenvolvimento de determinado aluno7, para assim ofertar-lhe atividades motoras até que o mesmo atinja os tão desejados padrões de movimento e nível de desenvolvimento. Ou seja, até que a diferença se torne identidade.
Trata-se de uma proposta de Educação Física que afirma a existência de uma progressão normal e universal para o crescimento e desenvolvimento humanos (físico, motor, cognitivo, afetivo-social), classifica comportamentos e estabelece padrões de movimento a serem alcançados em função do nível maturacional dos aprendizes.
McLaren (1997) adverte que o fato de o caráter universal ser dotado de aspectos predominantemente eurocêntricos não é, em nenhum momento, colocado em questão. A partir de uma análise crítica, podemos constatar que as teorias desenvolvimentistas que subsidiam a proposta nasceram em berço euroestadunidense. Tal etnocentrismo nos leva a pensar que é um grupo bem específico que determina a norma, que assegura o que é da “natureza humana” e que relaciona o desenvolvimento motor à normalidade. A obra quer que os professores de Educação Física acreditem que as crianças brasileiras se movimentam como as inglesas ou estadunidenses, logo não haveria razões para questionar a taxonomia estrangeira.
Ora, nos tempos em que vivemos e diante da quantidade de conhecimentos já produzida sobre o assunto, é possível sustentar uma generalização que afirme piamente que todas as crianças do Brasil e do mundo seguem níveis de desenvolvimento hierárquicos e rígidos conforme advogam as teorias desenvolvimentistas que fundamentam esse currículo de Educação Física?
A fim de problematizar os princípios do currículo desenvolvimentista, podemos citar, como argumento, o fenômeno da aprendizagem da marcha. Muitos são os relatos que descrevem que as crianças de certas comunidades africanas começam a caminhar por volta do sexto mês de vida, enquanto que no livro, a marcha é um movimento esperado por crianças de 11 a 18 meses de idade. Longe de justificarmos essa distância a partir de aspectos genéticos (raciais), defendemos a hipótese de que a quantidade e a diversidade de estímulos fazem com que crianças e jovens do mundo, em suas mais diferentes culturas, tenham não apenas o ritmo, mas modos de adquirir habilidades, absolutamente distintos.
Cabe ainda outra questão com relação aos chamados padrões de movimento. Quem tem o poder de dizer que um movimento está certo ou errado? Será que as pessoas do mundo inteiro se locomovem, manipulam e equilibram da mesma forma? E os sujeitos com as mais diversas e complexas deficiências (físicas), também devem seguir padrões de movimento universais? Podem ser considerados sujeitos desenvolvidos? O que a obra diz sobre eles?
Resposta: nada. A perspectiva desenvolvimentista simplesmente se abstém de discutir o tratamento dado às diferenças. Ao invés disso, prefere abordar o “comum” e o “normal”, quando muito, os diferentes recebem o nome de “variações”, que devem, em algum momento, ser normalizadas a ponto de alcançarem “níveis ótimos”, “especializados” e “maduros”. Por isso, é importante questionar: será mesmo que todas as crianças se desenvolvem seguindo as fases anunciadas por essas teorias?
De corpo crítico
De corpo crítico se refere à promessa de emancipação dos sujeitos e transformação da sociedade defendida na obra de Soares et al. (1992). A questão central da proposta é contribuir para a formação de um cidadão consciente das amarras que o exploram no campo do trabalho via análise das práticas corporais e, com isso, contribuir para a superação da sua condição social.
O livro é dividido em quatro capítulos. No primeiro, os autores chamam atenção para a imbricação entre Projeto Político Pedagógico e as questões mais amplas, como os efeitos do capitalismo na estratificação social que perpetua o poder de uns poucos privilegiados enquanto segrega os demais. Para Soares et al. (1992), a pedagogia deve emergir de uma problemática do cotidiano, tendo como ponto central do ato educativo a luta de classes e, nessa perspectiva, o ato educativo deve estar sensível às reivindicações da população. A proposta foi por eles denominada de crítico-superadora.
A pedagogia crítico-superadora é diagnóstica, judicativa e teleológica. Diagnóstica porque realiza uma leitura da realidade; judicativa porque os achados merecem um julgamento e teleológica porque se almeja o alcance de um determinado objetivo, qual seja, mudar a realidade social.
No segundo capítulo, os autores ensaiam uma discussão sobre teoria de currículo e sinalizam a dificuldade e a escassez de estudos sobre o tema. Discorrem a respeito da etimologia da palavra “currículo” e denunciam que as teorias tradicionais trazem consigo uma concepção de aprendizagem pautada na psicologia. Em seguida, apresentam como possibilidade um currículo de Educação Física baseado nas Ciências Humanas.
O currículo capaz de dar conta de uma reflexão pedagógica ampliada e comprometida com os interesses das camadas populares tem como eixo a constatação, a interpretação, a compreensão e a explicação da realidade social complexa e contraditória. Isso vai exigir uma organização curricular em outros moldes, de forma a desenvolver uma outra lógica sobre a realidade, a lógica dialética, com a qual o aluno seja capaz de fazer uma outra leitura (SOARES et al., 1992, p. 28).
Os autores sinalizam a necessidade de um trabalho no qual se efetive o diálogo entre os componentes da escolarização para que os alunos possam entender a realidade na qual estão inseridos, por isso, defendem uma concepção de currículo ampliado que se materializa na escola por meio de uma dinâmica curricular.
No conceito de dinâmica curricular, portanto, o trato com o conhecimento corresponderia à necessidade de criar as condições para que se deem a assimilação e a transmissão do saber escolar. Trata-se de uma direção científica do conhecimento universal enquanto saber escolar que orienta a sua seleção, bem como a sua organização e sistematização lógica e metodológica (SOARES et al., 1992, p. 30).
É importante destacar a proposição reconhece uma única direção para o conhecimento universal. O que não deixa de causar certo estranhamento, afinal, quem dispõe de poder para definir que o conhecimento universal é aquele validado pelo método científico? Quem inventou esse saber? Quem inventou a ciência da qual falam? Quais são os vetores de força que a definem como verdade e inferiorizam os demais conhecimentos, atribuindo-lhes a pecha de “senso comum”? Estão os autores jogando o mesmo jogo que criticam, ou seja, o das elites, justamente de quem desejam emancipar os grupos oprimidos?
Em outras palavras, pensar em colocar um currículo a partir desta visão é validar o conhecimento científico dito verdadeiro, posicionando todos os demais como diferença.
O confronto do saber popular (senso comum) com o conhecimento científico universal selecionado pela escola, o saber escolar, é, do ponto de vista metodológico, fundamental para a reflexão pedagógica. Isso porque instiga o aluno, ao longo de sua escolarização, a ultrapassar o senso comum e construir formas mais elaboradas de pensamento (SOARES et al., 1992, p. 320).
Quando se referem aos princípios curriculares e ao trato do conhecimento se apoiam na pedagogia crítico-social de Libâneo (1985), argumentando que “não basta que os conteúdos sejam apenas ensinados [...]. É preciso que se liguem de forma indissociável a sua significação humana e social” (p. 31).
Soares et al. (1992) apresentam quatro princípios para seleção dos conteúdos que, na sua visão, rompem com o que denominam “etapismo” durante o processo ensino-aprendizagem: a relevância social, a adequação as possibilidades sócio-cognoscitivas do aluno, a contemporaneidade do conteúdo e a simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade.
Os autores defendem uma nova função social para o componente. Na sua visão, a Educação Física é uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza atividades corporais expressivas como jogo, esporte, dança, ginástica e capoeira, formas estas que configuram uma área de conhecimento que chamam de cultura corporal.
Interessante observar que existe uma vontade de romper com certas heranças, se assim se pode dizer. Por exemplo, a tentativa de evitar o “etapismo” implica superar o modelo baseado nas teorias tradicionais, tão presente nos currículos escolares. Mas, por outro lado, a proposta carece de referências empíricas baseadas na escola a partir do campo teórico em que se fundamentam, o materialismo histórico. Contraditoriamente, conforme já denunciaram Neira e Gramorelli (2016), situações em que as brincadeiras são tematizadas, mas os argumentos empregados apoiam-se nas ciências biológicas. O mesmo ocorre com o exemplo do projeto que procura tematizar as ginásticas nas quais, claramente, buscam referenciar-se nos princípios desenvolvimentistas.
Ao discorrerem sobre as questões mais amplas, que envolvem a organização do currículo em ciclos, os autores parecem esquecer-se de que as escolas se organizam de diferentes formas, além disso, distribuem os conhecimentos ao longo do percurso escolar reservando saberes qualitativamente distintos aos estudantes conforme a série em que se encontram. Ao nosso ver, mais uma influência das teorias psicobiológicas.
Outra contradição que reforça a impressão acima é a insistente recorrência ao jogo quando o foco do trabalho pedagógico recai sobre as crianças pequenas, como se não houvesse condições de discutir sobre e vivenciar outras práticas corporais.
O Jogo no Ciclo de Educação Infantil (Pré-Escolar) e no Ciclo de Organização da Identificação da Realidade (1ª a 3ª séries do Ensino Fundamental) a) Jogos cujo conteúdo implique o reconhecimento de si mesmo e das próprias possibilidades de ação. b) Jogos cujo conteúdo implique reconhecimento das propriedades externas dos materiais/objetos para jogar, sejam eles do ambiente natural ou construídos pelo homem. c) Jogos cujo conteúdo implique a identificação das possibilidades de ação com os materiais/objetos e das relações destes com a natureza. d) Jogos cujo conteúdo implique a inter-relação do pensamento sobre uma ação com a imagem e a conceituação verbal dela, como forma de facilitar o sucesso da ação e da comunicação. e) Jogos cujo conteúdo implique inter-relações com as outras matérias de ensino. f) Jogos cujo conteúdo implique relações sociais: criança-família, criança-criança, criança-professor, criança-adulto. g) Jogos cujo conteúdo implique a vida de trabalho do homem, da própria comunidade, das diversas regiões do país, de outros países. h) Jogos cujo conteúdo implique o sentido da convivência com o coletivo, das suas regras e dos valores que estas envolvem. i) Jogos cujo conteúdo implique auto-organização. j) Jogos cujo conteúdo implique a auto-avaliação e a avaliação coletiva das próprias atividades. k) Jogos cujo conteúdo implique a elaboração de brinquedos, tanto para jogar em grupo como para jogar sozinho (SOARES et al., 1992, p. 67).
É indisfarçável o olhar psicobiológico deitado sobre as crianças e suas possibilidades. Quando se arriscam a apresentar exemplos de outra ordem, tudo gira em torno de questões econômicas, como se fossem a única forma de opressão que atravessa as práticas corporais e os seus praticantes.
O futebol, enquanto jogo com suas normas, regras e exigências físicas, técnicas e táticas; - O futebol enquanto espetáculo esportivo; - O futebol enquanto processo de trabalho que se diversifica e gere mercados específicos de atuação profissional; - O futebol enquanto jogo popularmente praticado; - O futebol enquanto fenômeno cultural/que inebria milhões e milhões de pessoas em todo o mundo e, em especial, no Brasil (SOARES et al., 1992, p. 72).
Chega a ser curioso constatar a colonização presente na proposta, quando no capítulo destinado à exemplificação do currículo, os autores arrolam, tão somente, as práticas corporais hegemônicas, exceção feita à capoeira. Embora seja impossível utilizar exemplos de todas as práticas corporais presentes na sociedade, quais são as forças que definem esses exemplos, excluindo todas as outras manifestações? Por que não as práticas corporais indígenas ou do Sul do Brasil, ou da região Norte? Por que a capoeira e não a luta marajoara?
A obra se diferencia das demais quando posiciona a Educação Física no campo das Ciências Humanas. Pautados no materialismo histórico, os autores defendem que a seleção e a organização dos conteúdos da aula deveriam promover a leitura da realidade brasileira, buscando uma aproximação com a prática social e cultural estabelecida, o que, de certa maneira, rompeu com os pressupostos norteadores vigentes até a época da publicação da obra. Para Soares et al. (1992), a cultura corporal é o conteúdo próprio da Educação Física. É importante dizer que a contribuição dessa obra não se encerra na redefinição do objeto de estudo do componente, sua ousadia consiste em pontuar os interesses embutidos no ensino tradicional do componente.
Além disso, ela marcou definitivamente a área ao alertar que qualquer consideração sobre a pedagogia mais apropriada deve versar não apenas sobre como ensinar, mas também sobre como elaborar conhecimentos, valorizando a contextualização dos fatos e a retomada do processo histórico.
Os autores apresentam uma proposta progressista quando defendem que os alunos se tornem produtores culturais. A todo momento, enfatizam a importância de se discutir as questões de classe pelo estudo das práticas corporais.
Com base nas análises realizadas, corroboramos os achados de Nunes e Rúbio (2008) quando afirmam que a identidade almejada pelo currículo crítico é o sujeito emancipado, livre e consciente da sua condição de opressão, enquanto membro da classe trabalhadora. Logo, a diferença é o indivíduo consumista, acrítico, inconsciente e oprimido. Notemos, mais uma vez, que é uma obra que institui o que falta nos sujeitos educandos para que sejam posicionados como identidade. Em nenhum momento, termos como diversidade, pluralidade, ou melhor, diferença, são empregados. Quando os professores entram em ação influenciados pelos conceitos difundidos, direcionam suas discussões sempre para o campo que reduz todos os embates a questões de classe, logo, na perspectiva dos autores, a diferença se dá apenas a partir deste referencial. Outras condições da diferença que, na nossa compreensão, são tão importantes quanto a luta de classes, são desconsideradas. Assim, fica no ar uma importante questão: não podemos discutir e problematizar outros marcadores identitários, mesmo quando, nas aulas cotidianas, emergem discursos sobre gênero, religião, habilidade, local de moradia, cor de pele e sexualidade entrelaçadas às práticas corporais?
Onde está a diferença?
É importante destacar que as três obras foram escritas entre o final da década de 1980 e início dos anos 1990, o que nos obriga a considerar o contexto social, as políticas emergentes na época, os discursos em evidência como, por exemplo, o neoliberalismo8 e, principalmente, o acúmulo de conhecimentos da área. É justo dizer que o panorama epistemológico atual é bem distinto daquele. Temos à nossa disposição ferramentas de análise que naquele momento praticamente inexistiam. A própria questão da diferença, ao que indicam os estudos sobre o tema, ganhou evidência apenas no século XXI.
Embora cada uma das propostas analisadas apresente rupturas importantes diante da hegemonia do currículo esportivista, apenas algumas das questões que afligem a contemporaneidade já se faziam presentes no debate educacional da época. Tomando as atuais demandas sociais e a função social atribuída às escolas públicas brasileiras, nossas análises sinalizam que as propostas enunciadas como “de corpo inteiro (psicomotora)”, “de corpo desenvolvido” (desenvolvimentista) e “de corpo crítico” (crítico-superadora) possuem certa fragilidades no tocante ao trato com a chamada diferença.
As obras analisadas almejam a formação de sujeitos singulares. Os dois primeiros pretendem cidadãos integralmente desenvolvidos, apoiando-se na correlação dos domínios comportamentais cognitivo, afetivo-social e motor. Mesmo que tenhamos destacado passagens em que ambos concebam as pessoas como diferentes, isso, por si só, de acordo com McLaren (1997), constitui uma postura descritiva, o que em nada contribui para desconstruir as forças que produzem a diferença. Antes de qualquer coisa, é preciso analisar como as diferenças se relacionam e o que desencadeou a sua produção.
É importante não homogeneizar a classe. As crianças são diferentes no início e serão diferentes no final do processo educativo. Não adianta querer transformá-las em iguais segundo padrões estabelecidos. Quem é igual não tem o que trocar; por isso, é necessário conservar-se diferente. As relações, os direitos, as oportunidades, é que têm que ser iguais não os gestos, os comportamentos, os pensamentos, as opiniões (FREIRE, 1989, p. 206).
Sem sombra de dúvidas, a perspectiva psicomotora de Freire (1989) é, em comparação com as outras propostas, a que mais identifica a diferença entre os sujeitos. Todavia, tanto as atividades sugeridas como os objetivos apontados revelam que o projeto educacional generaliza os sujeitos (concepções de infância e fases de desenvolvimento), além de conferir um caráter quase milagroso aos jogos e brincadeiras que, pelo efeito anunciado, causam o apagamento e a homogeneização das outras formas de ser e viver.
A diferença, nesses casos, é ignorada não apenas conceitualmente, ela sequer é mencionada. As três propostas generalizam e universalizam de forma bastante grosseira os sujeitos, suas fases de desenvolvimento, suas necessidades, desejos e condições de opressão. Nota-se que, de maneira geral, nas obras analisadas, a diferença é sinônimo de problema, anormalidade, falta, necessidade e insuficiência, deixando de lado demandas importantes como, por exemplo, a lida com as diferentes culturas que habitam os currículos sem assimilá-las.
No caso específico da proposta crítico-superadora, fica claro que a única condição de diferença tratada é a de classe social. As atividades empregadas como exemplos objetivam uma discussão influenciada pelas questões econômicas, o que como destacou Silva (2000), acabam por reduzir tudo às questões de classe. Porém, a proposta deixa de fora outras tantas questões que envolvem as práticas corporais: a diferença relacionada às questões étnicas, de sexualidade, moradia, habilidade, entre outras, que certamente sofrem influências dos fatores econômicos. Cabe a ressalva de que não descartamos a importância e as contribuições advindas das questões da luta classista, mas pensamos que a diferença é muito mais que isso. Cremos que a centralidade dessa discussão está na cultura, em um âmbito bastante complexo e contingencial, e não apenas a partir das questões econômicas.
Tomando como referência as análises elaboradas por McLaren (1997), podemos descrever que a forma como os currículos psicomotor, desenvolvimentista e crítico-superador lidam com a diferença transitam entre dois projetos de multiculturalismo: o conservador e o liberal humanista. A perspectiva conservadora se baseia na assimilação da diferença às tradições e costumes da maioria, via universalização da cultura branca, respaldada nas teorias evolucionistas do século XIX9. Já a principal característica da concepção liberal é uma grande apropriação humanística, respaldada na crença do princípio de igualdade independentemente de questões de etnia, gênero ou sexualidade, busca integrar os diferentes grupos culturais a cultura dominante, nos quais todos podem competir “igualmente” em uma sociedade capitalista moderna.
A diferença nas propostas analisadas será, então, identificada, classificada, categorizada, tratada, assimilada e recuperada até que se torne identidade ou fique silenciada e à margem.
Por fim, com base nas análises aqui empreendidas, tentando resumir as problematizações sobre a questão que mobilizou o estudo − onde está a diferença? − encerramos, asseverando que nestas obras ela não está!
Referências
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Notas