Resumo: Ancorado nos estudos queers, o presente artigo visa a problematizar o processo de padronização de condutas, negação da homossexualidade e construção da homofobia por intermédio de algumas práticas escolares da disciplina de Educação Física. A partir de relatos gerados por entrevistas semiestruturadas, foi possível inferir que, dentre os conteúdos curriculares da área, os esportes são mobilizados para a construção e a manutenção de uma representação de masculinidade que subjuga e hierarquiza outras expressões da existência. Portanto, nesse jogo relacional, estudantes que não se adequam (ou não querem se adequar) aos modelos hegemônicos são alvos de constantes demarcações depreciativas, as quais objetivam estabelecer uma diferença que será “lida” socialmente como “anormalidade”.
Palavras-chave: Educação Física EscolarEducação Física Escolar,HomossexualidadesHomossexualidades,Teoria queerTeoria queer.
Abstract: Anchored in the queers studies, this article aims to discuss the tagging social process standardization of conducts, repudiation of homosexuality and construction of homophobia through some school practices of Physical Education. From reports generated by semi-structured interviews, it was possible to infer that, from the curriculum, sports are mobilized for the construction and maintenance of a representation of masculinity that subjugates and ranks other expressions of existence. In this relational game, students who do not fit (or will not fit) to the hegemonic models are targets of constant derogatory demarcations, which aim to establish a difference that “is read” socially as “abnormal”.
Keywords: School Physical Education, Homosexualities, Queer Theory.
Resumen: Anclado en los estudios de la teoria queers, este artículo tiene como objetivo discutir el proceso de normalización de conductas, negación de la homosexualidad y construcción de la homofobia a través de algunas prácticas de la escuela de educación física. A partir de los informes generados por entrevistas semiestructuradas, fue posible inferir que, desde el área de contenido de los programas, deportes se movilizan para la construcción y mantenimiento de una representación de la masculinidad que subyuga y ocupa otras expresiones de la existencia. En este juego relacional, los estudiantes que no encajan (o no se ajuste a) a los modelos hegemónicos son blanco de las demarcaciones despectivos constantes, cuyo objetivo es establecer una diferencia que es “leer” socialmente como “anormal”.
Palabras clave: Educación Física escolar, Homosexualidades, Teoría Queer.
Artigos
Entre queerpos e discursos: normalização de condutas, homossexualidades e homofobia nas práticas escolares da Educação Física*
Between queerpos and speeches: standardization of conducts, homosexualities and homophobia in the practices of School Physical Education
Entre queerpos y discursos: normalización de conductas, homosexualidades y homofobia en las prácticas de la Educación Física Escolar
Recepção: 30 Maio 2016
Aprovação: 25 Outubro 2016
As diferenças sociais podem ser consideradas como produções culturais que possibilitam a construção de significados sobre os sujeitos, instituindo suas possíveis relações com o meio. Durante esse processo, os corpos são capturados por discursos que tendem a classificá-los, diferenciá-los e inseri-los em relações de poder hierárquicas, assimétricas e excludentes. São diversos os “rótulos” que passam a revestir os corpos, dando-lhes certa aparência material, como as noções de deficiência, infância, juventude, senilidade, classe social, religião, nacionalidade, regionalidade, “raça”/etnia, gênero e sexualidade.
Mas o que tudo isso tem a ver com a escola? Quando abordamos a educação escolar, percebemos que, dentre os mecanismos que contribuem para a construção de um ideal de sujeito que, em muitos casos, transpassa ensinamentos sobre como devemos nos comportar com base nas atribuições culturais sobre gênero e sexualidade, os conteúdos divulgados pelos diferentes componentes curriculares exercem efeitos na materialização de corpos para que atendam a determinados interesses sociais (LOURO, 2004; MORENO, 1999; SILVA, 2002). Dentre eles, a disciplina de Educação Física pode tanto contribuir para uma formação crítica quanto para a normalização de sujeitos, segundo uma ótica social que elege o masculino, de classe média, branco e heterossexual, como modelo de verdade (DORNELLES; POCAHY, 2014; PRADO, 2014). É com base nesse pressuposto que nos lançamos a alguns questionamentos, no sentido de problematizar os possíveis impactos pedagógicos das práticas escolares da Educação Física, no que se refere aos processos de subjetivação de experiências relacionados aos gêneros e às sexualidades.
Ao tomar o gênero e a sexualidade como categorias analíticas, o objetivo específico do presente artigo é problematizar de que maneira a normalização de condutas, consideradas como apropriadas para meninos e meninas, incidem na negação da homossexualidade e na construção da homofobia em função de suas relações com as práticas escolares e com o trabalho pedagógico desenvolvido pela Educação Física na escola. A partir de relatos de vida gerados por meio de seis entrevistas semiestruturadas1, buscamos elementos para (re)pensar o impacto das intervenções da área no processo de subjetivação de estudantes gays, quando cursaram a educação básica. Nesse sentido, faz-se necessário problematizar a sexualidade, ou melhor, o processo de constituição cultural que institui a ideia de sexualidade, em vista de perspectivas capazes de subsidiar a compreensão dos elementos históricos que a constituem. Para tal, a teoria queer poderia aguçar um “pensar crítico” acerca dessa temática, inclusive quando analisada no interior das instituições escolares.
A teoria queer pode ser concebida como uma estratégia política, a qual permite desnaturalizar compreensões sobre os sujeitos. Tal ação sobre o pensamento possibilita perceber que somos assujeitados por discursos sociais que instituem nossa ideia de corpo, masculinidade, feminilidade, heterossexualidade, homossexualidade, branquitude, negritude, juventude, velhice etc. (BACHILLER, 2005; BUTLER, 2003; CÓRDOBA, 2005). Esse movimento questionador sobre os mecanismos sociais que nos constituem como sujeitos pode ser considerado como o foco de discussões dos pensamentos inspirados pela perspectiva queer.
O conceito de gênero é empregado em investigações científicas das áreas das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, para problematizar o processo de construção sociocultural do considerado como masculino ou feminino, em determinada sociedade. Tal reflexão ajuda a compreender os processos históricos de construção de assimetrias e hierarquizações, nas quais o considerado como feminino é subjugado e submetido a relações de poder opressivas que, de modo reiterativo, passam a justificar a inferioridade de um polo em relação ao outro (LOURO, 2004; NICHOLSON, 2000; SCOTT, 1995).
Dentre os mecanismos sociais ancorados na ficção fundante do gênero, as práticas pedagógicas são algumas das tecnologias que acionam o projeto de fabricação de sujeitos sob um viés dicotômico fixado pelo dispositivo. Os conhecimentos tidos como científicos, divulgados pelas instituições escolares, não são apenas informativos. Ao apresentarem determinada visão de mundo, eles se constituem em linhas de captura que exercem seus efeitos de verdade durante o processo de subjetivação de experiências. Assim, identidades são criadas e a produção de conhecimentos sobre os corpos, a partir da divisão entre machos e fêmeas, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais se estabelece como fato irrefutável sobre nossas vidas, limitando experimentações sobre nossos corpos, gêneros, sexualidades e desejos. Enfatiza July Cháneton (2009, p. 9):
Somos el producto social de una muy larga y densa fabricación histórica de las subjetividades, inevitablemente envueltos en la intrincada producción de significaciones identitarias a la vez que actualizamos, en la vida cotidiana, formas proteicas y contradictorias de hacernos y rehacernos como sujetos (y en ello cuerpos) del deseo e la voluntad.
Os discursos que ganham nossos sistemas culturais também instituem a heterossexualidade como princípio definidor de uma “verdadeira” identidade, utilizando justificativas diversas para assegurar o caráter de “naturalidade” dessa invenção (BRITZMAN, 1996; BUTLER, 2003; WEEKS, 2001). O sistema normativo que prevê a regulação da sexualidade, ancorado na prerrogativa da “naturalidade heterossexual”, passa igualmente a instituir a cisão radical entre homem e mulher e estabelece a valorização do macho em detrimento da fêmea (LAQUEUR, 2001; NICHOLSON, 2000). Nesse processo, com base em uma manobra hierárquica e assimétrica, características definidas como “femininas” são subjugadas e submetidas a manobras de poder que enaltecem determinado modelo de masculinidade como “prova” de superioridade de alguns sujeitos em relação a outros (BUTLER, 2003; RIOS, 2007). Segundo Monique Wittig (2010, p. 56), esse “[…] conjunto de mitos heterosexuales es un sistema de signos que utiliza figuras de discurso y, por tanto, puede ser estudiado políticamente desde la ciencia de nuestra opresión.”
Tanto a aversão ao considerado como feminino quanto a não legitimidade jurídica e social de sujeitos LGBTTIs3 constroem as bases para a instauração de processos discriminatórios em relação às diferenças de sexualidade, o que, nos dias atuais, facilmente reconhecemos como homo, lesbo e transfobia (JUNQUEIRA, 2007; RAMOS, 2005; RIOS, 2007).
A homofobia, que pode ser concebida grosso modo como ações discriminatórias direcionadas a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais ou sujeitos que não performatizam um modelo de masculinidade ou feminilidade hegemônico (BORRILLO, 2010; WELZER-LANG, 2001), torna uma parcela considerável da sociedade vulnerável à violência. Dados recentes apresentados pelo Grupo Gay da Bahia apontam que, no Brasil, no ano de 2013, um homossexual foi assinado a cada 28 horas (GGB, 2013):
Os gays lideram os “homocídios”: 186 (59%), seguidos de 108 travestis (35%), 14 lésbicas (4%), 2 bissexuais (1%) e 2 heterossexuais. Nessa lista foram incluídos 10 suicidas gays que tiveram como motivo de seu desespero não suportar a pressão homofóbica, como aconteceu com um gay de 16 anos, de São Luís, que enforcou-se dentro do apartamento “por que seus pais não aceitavam sua condição homossexual.” O Brasil confirma sua posição de primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos homo-transfóbicos, concentrando 4/5 de todas execuções do planeta. Nos Estados Unidos, com 100 milhões a mais de habitantes que nosso país, foram registrados 16 assassinatos de transexuais em 2013, enquanto no Brasil, foram executadas 108 “trans”. O risco, portanto, de uma travesti ser assassinada no Brasil é 1280 vezes maior do que nos EUA (GGB, 2013, p. 1).
Keith Braga (2014) corrobora tais constatações, ao argumentar que, durante o processo de escolarização, os sujeitos que subvertem os modelos padrões de comportamento esperados para meninos e meninas são alvos constantes de marcações depreciativas. Esse processo de estigmatização contribui, inclusive, para que estudantes que são vítimas de violência de gênero e sexualidade sejam considerados “culpados” pelas agressões, pois estas se manifestariam devido à forma como se vestem, performatizam seus corpos ou transitam pelos espaços escolares.
Ainda sobre dados que atestam a materialidade da homofobia na escola, a investigação coordenada por Fernando Silva Teixeira Filho e Carina Rondini, em três municípios do interior do Estado de São Paulo, apresenta resultados que deveriam ser problematizados. O estudo objetivou refletir sobre ideações ao suicídio entre jovens em idade escolar e seus resultados convergem com estudos internacionais, afirmando que, em cada 10 estudantes LGBTTIs, 3 já pensaram em findar a vida, em decorrência de sua orientação sexual ou identidade de gênero (TEIXEIRA FILHO; RONDINI, 2012). Cabe destacar que a negatividade atribuída pelos próprios sujeitos LGBTTIs refere-se à internalização dos estigmas sociais creditados às sexualidades não heterossexuais.
Em uma pesquisa que objetivou resgatar as “piores experiências escolares” de jovens universitários, Paloma Albuquerque e Lúcia Williams (2015) reproduzem relatos sobre experiências homofóbicas que marcaram, de maneira significativa, a vida de alguns estudantes. Após a aplicação de um instrumento denominado “Escala sobre Experiências Escolares Traumáticas em Estudantes (ExpT-R)”, de um total de 638 participantes, 21 detalharam os sentimentos produzidos e as formas de perseguição que sofreram por subverterem os regimes de verdade dos gêneros e sexualidades. Das situações descritas, foram ocorrentes: comentários inadequados sobre suas sexualidades, insultos, ridicularizações, atribuição de apelidos indesejados e rumores. Sensações de insegurança decorrentes da homofobia, frequência das agressões e insultos que perduraram anos, bem como a omissão e preconceito por parte de professores, também apareceram nas respostas geradas (ALBUQUERQUE; WILLIAMS, 2015).
Como consequência da homofobia na escola, alguns estudos apontam o desempenho escolar deficitário, falta à escola e ocorrência de comportamentos violentos (ALBUQUERQUE; WILLIAMS, 2015). Cabe ainda destacar a dificuldade de estabelecimento de relações amistosas, o isolamento, a falta de vínculos protetivos com a instituição e a culpabilização da própria vítima pela agressão sofrida, devido à internalização da ideia de que seu comportamento seria “inadequado” para os espaços escolares (BRAGA, 2014; PRADO; 2014).
Assim, na escola, a homofobia não é só consentida, mas também ensinada. A instituição escolar pode ser um espaço de (re)produção de preconceitos sociais, sexuais, raciais e de gênero, tornando-se um ambiente para construção de discriminações e violências. Como relatam Deborah Britzman (1996), Guacira Louro (2004) e Montserrat Moreno (1999), nos espaços escolares, meninos e meninas aprendem, muitas vezes de maneira cruel, a se tornarem masculinos, femininas e heterossexuais.
Durante esse processo de regulação escolar sobre a sexualidade, sua configuração heterossexual é a única valorizada positivamente como princípio de vida. Isso acontece não somente por intermédio dos conhecimentos que ganham status de currículo, mas ainda através do “silenciamento” de expressões culturais não hegemônicas. A omissão discursiva que acompanha a constituição das expressões subjetivas LGBTTIs, por exemplo, exerce efeitos reguladores (CLARKE, 2002; LOURO, 2004; MORENO, 1999). Assim, tanto o que é “dito” quanto o silêncio, ou seja, o que “não é dito” sobre essas sexualidades, possuem efeitos no processo de construção de subjetividades.
Ao apresentar a ideia de sexualidade como um dispositivo histórico, Foucault nos chama a prestar atenção nas omissões discursivas, nos “silêncios”; não como ausência, mas como parte importante do funcionamento da norma. Para o autor, um dispositivo compreende
[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2012, p. 364, grifos nossos).
A invisibilidade discursiva que cerca as homossexualidades sugere que a heterossexualidade é a única forma de vivência sexual possível e, quando muitos jovens se reconhecem como “não heterossexuais”, ficam alheios a compreender seus desejos como uma possibilidade.
Essa tentativa de marcação abjeta para desejos, afetividades, sentimentos ou práticas, procura assegurar a estabilidade da heterossexualidade, o que, em muitos casos, nos impede de a compreendermos como uma produção cultural. Historicamente, a expressão “heterossexual” apareceu na escrita médica da segunda metade do século XIX, depois da configuração do, até então inédito, sujeito homossexual (BRITZMAN, 1996; FOUCAULT, 1985; WEEKS, 2001). Ou seja, a heterossexualidade se institui como uma tentativa fictícia de atribuição de uma norma social que deverá ser seguida, compulsoriamente, por todos e todas. Entretanto, ela nem sempre foi utilizada para determinar e padronizar formas de desejo. Dessa maneira, ao se empreender esforços para visibilizar vivências não heterocentradas e positivá-las como possibilidades, pretende-se instaurar certa ruptura na heteronorma. Tal processo pode contribuir para favorecer a constituição humana, a partir de diversificados referentes.
Dentro desse contexto educacional, o qual intercala discursos e silêncios em favor do processo de fabricação de sujeitos, os conhecimentos e práticas pedagógicas instituídas pelas diversas disciplinas se encontram relacionados com a construção de determinadas posições sociais. É por esse contexto que a disciplina de Educação Física deveria ser problematizada.
Com base nas teorizações dos estudos pós-estruturalistas e da teoria queer, é possível conceber algumas proposições desestabilizadoras relativas aos processos de constituição dos sujeitos com a intenção de desconstruir a aparente “neutralidade” existente nas práticas educativas escolares (BRITZMAN, 1996; BUTLER, 2003; FOUCAULT, 1985, 2008; LOURO, 2004; SILVA, 2002). A perspectiva queer de análise procura evidenciar os mecanismos culturais que constroem as diferenças sociais ao problematizar modelos hegemônicos de sexo, gênero e sexualidade (SEDGWICCK, 1990; SPARGO, 2006; WARNER, 1993).
Segundo Richard Miskolci e Júlio Simões (2007), o termo queer, em uma interpretação literal, poderia ser traduzido como “esquisito”, “estranho”, ou como uma série de xingamentos direcionados a homossexuais nos Estados Unidos. Entretanto, no sentido utilizado pela teoria, queer também pode ser utilizado para designar alguém ou algo desestabilizador, que desafia os padrões de normalidade instituídos.
Todavia, seria reducionista compreender o queer como referente somente à questão das sexualidades. Essa perspectiva analítica pressupõe um rompimento com qualquer forma limítrofe de identidade e demonstra o quanto a afirmação do “esse sou eu” é repleta de exclusões e formatada por dispositivos sociais. Nesse sentido, o caráter militante dessa forma de pensar procura criticar valores e imposições sociais que não reconhecem coletivos humanos historicamente silenciados e subjugados, tais como: grupos étnico-raciais, imigrantes (principalmente os “ilegais”), mulheres, gays, lésbicas, transexuais, intersexuais, travestis, vítimas da Aids, dentre outros. Ao contrário de uma “teoria sobre dissidência sexual”, o queer evoca a resistência contra a gestão social normativa sobre os corpos e desejos (HALPERIN, 2004; JIMÉNEZ, 2002; SÁEZ, 2005).
Outra reflexão importante a que as teorias pós-críticas nos remetem, dentre elas a perspectiva queer, é a análise do caráter constitutivo da linguagem. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2002), a linguagem não se relaciona com uma simples descrição. Ao contrário, ela constitui o que “aparentemente” descreve. É a partir dessa noção que seus/suas adeptos/as atentam para a necessidade de desconstrução dos discursos culturais que circulam em nosso meio social, pois eles constroem representações e justificam as relações de desigualdades observadas em diversas situações.
Um exemplo “pedagógico” seria pensar nas possibilidades de atuação de professores e professoras, quando usam determinadas teorias para “compreender” a realidade dos estudantes. A divisão do processo de desenvolvimento em “fases”, promulgada por algumas linhas psicológicas atuantes na Educação, prevê, de antemão, como os discentes devem se comportar, para que os docentes possam ter garantias de que seus desenvolvimentos motores ou cognitivos são “normais”. Quando instituímos que uma criança de dois anos deve manifestar determinada tipologia comportamental de acordo com a teoria seguida, criamos uma realidade para observar e, prontamente, tentamos “adequar” os estudantes, em nossa observação. Para maior clareza, descreveremos uma experiência ocorrida com uma turma de educação infantil em uma instituição pública de ensino.
Durante o desenvolvimento de atividades artísticas com um grupo de crianças, uma professora atentou para o fato de uma delas colorir seus desenhos com tonalidades “escuras” ou “opacas” (preto, cinza, marrom etc.). Preocupada com o fato, pois pensou que a criança queria “comunicar algo de ruim” que acontecia em sua vida, convocou uma reunião com a equipe pedagógica da instituição e relatou sua preocupação. Após um diálogo, a coordenadora pedagógica, a psicóloga da escola, a diretora e a professora chamaram a criança para uma conversa e perguntaram: “Percebemos que você sempre pinta seus desenhos com as mesmas cores, por quê?” A criança então responde: “Sabe o que é, é que quando a professora pede para pintar eu sou @4 últim@ a pegar o giz colorido, daí acaba só sobrando essas cores”.
O que essa passagem, que fica a critério do/a leitor/a achar se é fictícia ou não, pode insinuar, a partir dos pressupostos queer e pós-estruturalistas, os quais argumentam que a linguagem (conhecimento) constrói a realidade que julga apenas descrever? Pensamos que, ao se valer de uma espécie de “psicologização” da criança, que queria expor seu sofrimento psíquico e social nas atividades solicitadas, a professora criou uma realidade na qual a enquadrou. Após a conversa, percebe-se que a “preocupação pedagógica” que originou a dúvida da professora não se sustenta. Não passa de uma realidade construída pela teoria que direcionou seu olhar. A criança não apresentava nenhum tipo de “distúrbio”, o qual, provavelmente, a construção teórica da docente a subjetivou a pensar. O que queremos dizer é que temos que ter cautela, quando pensamos em uma realidade direcionada por um olhar teórico e não por uma experiência vivida. Isso não quer dizer que devemos refutar as teorias que conduzem nosso processo de atuação profissional. Contudo, é imperioso lançar um olhar crítico que a contextualize de acordo com a realidade contemporânea em que atuamos. Assim, partimos dessa reflexão para a tentativa de aproximação entre essa forma de compreensão e a Educação Física.
Quando problematizamos o dispositivo do gênero e seus processos constitutivos ligados à área da Educação, nem todas as suas vertentes disciplinares assumem as críticas oriundas das discussões acadêmicas sobre o termo a fim de compreender os impactos de suas práticas na escola. Dentre elas, a Educação Física, na condição de componente curricular, ainda parece tímida na propositura de intervenções que levem em consideração o gênero e a sexualidade como categorias representacionais, analíticas e políticas, as quais incidem na constituição dos corpos/subjetividades.
Ao ser interpretada como uma produção cultural, a Educação Física se mostra inserida em sistemas discursivos que constroem e mantêm definições sobre o que será possível de ser compreendido como “normal” ou “natural” (CASTELLANI FILHO, 1994; SOARES, 2007). Por intermédio de suas intervenções, representações sobre perfeição/imperfeição, belo/feio, normal/anormal, masculino/feminino, aptidão/inaptidão ou eficiência/deficiência são in(CORPO)radas pelos sujeitos, nomeando-os, classificando-os e hierarquizando-os, de acordo com pressupostos voltados para a manutenção de uma sociedade moralista, discriminatória e excludente.
Nesse sentido, as finalidades normativas que forjaram a Educação Física como área de intervenção social acabam por reiterar afirmações naturalizantes sobre os corpos, ao reproduzirem preconceitos sociais ancorados em normalizações diversas. Nesse meio, podemos ainda observar a manutenção do sistema sexo-gênero-sexualidade-desejo, o qual fabrica os sujeitos com base no ideal político de diferenciação sexual (BUTLER, 2003).
Ostentar um corpo diferente dos padrões de saúde e beleza instituídos, não se adequar a condutas sociais “apropriadas” segundo seu gênero ou transgredir o sistema de inteligibilidade cultural que prediz uma relação causal e ordenada entre sexo, gênero e sexualidade são marcadores que denunciam a “diferença” de alguns sujeitos, durante aulas de Educação Física na escola. Esse processo possibilita que práticas discriminatórias contra representações identitárias não hegemônicas sejam instituídas.
Todavia, mesmo inseridos em sistemas normativos que tendem a normalizar condutas e pensamentos, é notório que, em muitas situações, os sujeitos escapam de tentativas padronizadas de definições. No âmbito das relações estabelecidas entre cultura, gênero e sexualidade, mesmo impactados/as pela heteronormatividade, os corpos fogem a esse domínio, demonstrando sua plasticidade, maleabilidade e potência singularizadora. Para Beatriz Preciado, o corpo não é tão passivo a determinismos. Ele se rebela. Constrói-se com base em referentes, muitas vezes, não anunciados. O corpo torna-se queer e reivindica seu reconhecimento, ao marcar presença nos espaços normalizados.
O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho de "desterritorialização" da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de "desterritorialização" do corpo obriga a resistir aos processos do tornar-se "normal". Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos "normais" ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual (PRECIADO, 2011, p. 14).
Assim, conceber uma educação que contribua para o processo de inclusão de todas e todos (no que concerne à garantia de acesso e permanência nas escolas) requer modificarmos nossa compreensão teórico-filosófica sobre os sujeitos. Reconhecer as diferenças humanas como produções culturais datadas historicamente pode contribuir para a desconstrução das atribuições valorativas que negativizam determinadas possibilidades de vida. Nesse debate, formas de pensamento que coloquem em suspeição verdades pré-estabelecidas acabam por contribuir para a reorganização dos espaços sociais/educativos, favorecendo o reconhecimento de que o que nos caracteriza como humanos é nossa capacidade de nos expressarmos diferentemente (DAOLIO, 1995).
A partir das entrevistas conduzidas durante o processo de investigação, foi possível inferir que alguns dos conteúdos curriculares mobilizados pela Educação Física escolar acionam dispositivos que contribuem para estigmatizar determinados corpos. No que tange às práticas esportivas, a marcação social de diferenças de sexualidade e a construção da homofobia fazem constantes aparições. Em muitos casos, a compreensão dos esportes como um cenário predominantemente masculino, viril e heterossexual se encarrega de subjugar qualquer forma de expressão que abale essa ideia:
Pesquisador: O que te marcou, talvez de um modo positivo ou negativo, em relação às aulas de Educação Física? Se eu pedisse para você contar uma situação, dar um exemplo de alguma situação de que você se recorda, o que você poderia falar das aulas?
Sujeito2: Ah, de como eu não participava de jogos de futebol, por exemplo, já era discriminado aí, entendeu? Tipo, de não participar, de não ser um moleque ativo a isso, entendeu? Mas aí como eu jogava handebol, daí eu acho que era mais... era menos. E, como a gente também... o que me marcava muito também no meu segundo colegial, principalmente, é que quando a gente tinha aula depois do terceiro [em referência às aulas após o terceiro ano ter tido], aí o terceiro ano, como a gente era menor assim, vinha e zoava comigo assim, tipo: “Ah, ele não participa de nada, ele não faz nada” tipo, já tinha um negócio assim, mas... (silêncio).
Não se mostrar adepto à prática esportiva pode contribuir para que alguns estudantes sejam “olhados” com desconfiança, tanto pelos colegas quanto pelos/as próprios/as professores/as. Pablo Scharagrodsky (2007) argumenta que o modelo considerado como apropriado para a prática esportiva corresponde à construção de uma masculinidade viril, competitiva e que, via ocupação dos espaços públicos, externaliza a superioridade do macho no campo social. As quadras esportivas tornam-se, assim, arenas para que meninos exercitem sua construção como homens. As negativas para participação nessas atividades, de certo modo, aproximam o menino do fantasma da “inatividade” feminina, o que não deve ser considerado na casa dos homens como algo passível de ser pensado. “Aprender a jogar hockey, futebol ou base-ball é, inicialmente, uma maneira de dizer: eu quero ser como os outros rapazes. Eu quero ser um homem e, portanto, eu quero me distinguir do oposto (ser uma mulher). Eu quero me dissociar do mundo das mulheres e das crianças” (WELZER-LANG, 2001, p. 463).
Além de ser construída em oposição ao considerado como feminino, a produção da masculinidade ainda é instituída a partir do controle da homossexualidade. Nesse sentido, a homofobia se faz presente na condição de linha de subjetivação que administrará as possibilidades de aproximação entre os meninos.
No ambiente esportivo contemporâneo, a homofobia, de maneira difusa e diversificada desempenha papel fundamental no dispositivo de controle dos corpos e das sexualidades, contribuindo para o estabelecimento de espaços e práticas sociais diferenciados tanto para quem se adéqua à matriz heterossexual hegemônica quanto para quem se desvia dela (ROSA, 2010, p. 199).
O caso ocorrido com o meio de rede Michael dos Santos, da equipe do Vôlei Futuro, durante um jogo pela Super Liga, em 2011, exemplifica a estreita relação entre esporte e homofobia. No primeiro jogo da semifinal, realizado em Contagem-MG, contra a equipe SADA/Cruzeiro, o atleta passou a ser hostilizado por toda a torcida adversária: “Foi um ato de preconceito, realmente. Estou acostumado com a pressão de torcida, mas nunca com um ginásio inteiro, inclusive mulheres e crianças me chamando de bicha o jogo todo” (WÂNDEGA, 2012).
Em uma tentativa de desestabilizar a equipe paulista, a torcida adversária elegeu como alvo a possível homossexualidade de um de seus jogadores. A homossexualidade se tornou o foco para depreciações e tentativas de marcação de uma diferença instituída por uma racionalidade machista e homofóbica. É interessante notar que a homofobia, tal qual o gênero, constitui-se em uma linha de subjetivação normalizadora, pois não somente homens, mas “mulheres e crianças”, adotam esse mecanismo heterossexista que visa a legitimar a heterossexualidade no meio esportivo como única forma legítima de expressão. O que caberia perguntar é: qual a importância da revelação forçada da homossexualidade, no que se refere ao desempenho atlético de determinado profissional? A resposta que conseguimos hipotetizar nos remete ao preconceito que, citacionalmente, utiliza a construção negativa de significados atribuídos à homossexualidade como técnica de abjeção.
O rechaço para com as homossexualidades parte do pressuposto de complementaridade entre homem e mulher e da ótica reprodutiva. Assim, a ideia de “diferença sexual” como algo natural e que justifica o posicionamento social dos sujeitos também é evocada pela tradição biologizante da área de Educação Física, durante os momentos educativos. Como demonstrado por Lino Castellani Filho (1994) e Carmem Lúcia Soares (2007), historicamente, a Educação Física foi marcada pela valorização do biológico e do corpo masculino, forte e saudável, como atributos indispensáveis para a construção de um projeto de nação ideal. Como exemplo, poder-se-ia citar a representação social esperada para as mulheres, as quais, por serem consideradas “frágeis” e movidas pelas “emoções”, foram subjugadas e viram seus corpos e comportamentos docilizados a serviço de uma função reprodutiva, doméstica e maternal.
Essas significações, que atuam de forma constitutiva, podem ser consideradas como efeitos de tecnologias que demarcam e mantêm sistemas hierárquicos de desigualdades. Esse quadro de referência contribui para a construção social das mulheres como uma “espécie de sujeito” de segunda ordem, desprovidas da capacidade racional (RIBEIRO, 2006). Com isso, a noção de homossexualidade que, de certa forma, nega a representação hegemônica do masculino, passa a ser considerada como característica “efeminadora” dos sujeitos. Ao realizar essa aproximação, a homossexualidade também é subjugada devido à compreensão cultural de “inferioridade” do feminino.
Quanto à construção da oposição entre masculino e feminino, no cenário esportivo, concebido como um espaço para homens, devido tanto aos atributos masculinos a ele relacionados (comparação de desempenho, força, agilidade, superação de dores, etc.) quanto à ocupação de espaços públicos para visibilidade masculina, a presença da mulher na prática dos esportes acompanha algumas ressalvas. No contexto escolar, isso pode ser visibilizado na fala de um de nossos colaboradores:
Pesquisador: Em relação à participação de meninos e meninas durante as aulas de educação física, meninos e meninas participavam em conjunto das atividades? Como era?
Sujeito4: Olha, geralmente formavam os times separados mesmo. Meninos contra meninos e meninas contra meninas. Aí, quando chegava a época do interclasse treinava todo mundo junto, porque eram os dois times mesmo que iriam participar do interclasse. Então até pra ser um treino mais puxado e tal, aí treinavam os meninos contra meninas.
Pesquisador: E em relação a meninos e meninas? Meninos e meninas faziam as atividades das aulas de educação física em conjunto, de forma separada, como era essa relação?
Sujeito5: Então, no primeiro colégio que eu estudei, lá o primeiro semestre com a professora, que no caso era um outro colégio, no caso geralmente era separado. Os meninos geralmente queriam jogar futebol, e as meninas, tinha umas duas que jogava, daí jogava com eles. Daí tinha eu e mais um menino que gostava de jogar vôlei, jogava com elas. Daí sem problema nenhum, entendeu? É aquela velha história, já que você está jogando com meninas, você tinha que dosar a força.
Por possuir uma matriz de conhecimento que supervaloriza aspectos anatômicos e fisiológicos da constituição dos corpos, durante aulas de Educação Física na escola, diferenças culturais entre meninos e meninas acabam justificadas como atributos naturais do macho e da fêmea (ALTMANN, 1998; BRITZMAN, 1996; GOELLNER; FIGUEIRA; JAEGER, 2008; LOURO, 2004; SCHARAGRODSKY, 2007). Essa reprodução acrítica de conhecimentos sobre a constituição dos corpos, a conformação destes em relação a suas marcas biológicas e a crença de que homens e mulheres são “diferentes por natureza” e devem ocupar lugares específicos no convívio social e afetivo possibilitam que diferenças de gêneros sejam constantemente produzidas e reiteradas, nessas aulas. Essa produção discursiva dificulta intervenções educativas voltadas para o reconhecimento das pluralidades corporais, sexuais, raciais, políticas e culturais, equidades de gêneros e empoderamento de sujeitos que foram historicamente silenciados pela heteronormatividade.
Helena Altmann (1998) corrobora essa problematização, ao questionar que, muitas vezes, em aulas de educação física, quando as meninas são inseridas nas práticas de determinados esportes, o professor acaba por adaptar as regras da modalidade vivenciada para adequar à participação “delas” em uma partida. Conforme a autora, tal adaptação pode remeter a uma compreensão de que as meninas, por serem consideradas “mais frágeis” e desprovidas de habilidades, necessitam de que, para elas, a prática seja adaptada. Esse fato materializa um discurso que não reconhece a mulher a partir de características atléticas.
Ainda seguindo uma problematização das mulheres nas práticas esportivas, percebe-se que a misoginia5 e a homofobia marcaram presença através dos testes de feminilidade adotados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), quando da dúvida sobre o sexo de determinadas atletas. Com o aumento do número de mulheres que ascendiam ao esporte e, de certa forma, o questionavam como espaço predominantemente masculino, a implantação de mecanismos que garantissem que estas não seriam “homens disfarçados” se tornou necessária. Segundo Fabiano Devide e Sebastião Votre (2005), a preocupação foi tanta que, em 1966, durante campeonato europeu realizado em Budapeste (Hungria), a Federação Internacional de Atletismo Amador (FIAA) determinou que todas as atletas desfilassem nuas perante um corpo médico constituído por três ginecologistas, antes que obtivessem permissão para competir.
Para a ótica analítica por nós adotada, os testes de feminilidade e a preocupação com o doping em mulheres atletas nada mais são do que estratégias heteronormativas que visam à manutenção da divisão sexual como “provas naturais” do macho e da fêmea. Entretanto, é interessante notar que, até para esse meio, a “diferença sexual”, anatomicamente atestada, passa a ter questionada sua condição de “prova da verdade” sobre os gêneros. Assim, é preciso lançar mão de tecnologias cada vez mais capazes de invadir a “essência” dos sujeitos, de sorte a revelar suas “identidades” como, por exemplo, os testes cromossomiais e os que identificam a utilização de substâncias anabólicas.
Durante nossas entrevistas, foi possível perceber que nas aulas de educação física algumas meninas transgridem o socialmente para elas esperado, demonstrando capacidades físicas, habilidades motoras e senso de competitividade para a prática dos esportes. Embora, em alguns contextos, tais representações de feminilidade sejam aceitas (e até disputadas) pelos meninos para a composição de seus times (ALTMANN, 1998), o relatado por um colaborador aponta para outra direção, quando remete a uma confusão que protagonizou com uma estudante, durante uma partida de futebol:
Sujeito1: [...] Essa vez que eu briguei foi com uma menina. Ela tinha o maior jeitão de sapatão assim, “pá”. E a gente tava jogando futebol. E eu não sei jogar futebol, sempre falei isso. E ela falou: “Porra, [nome], joga igual homem, não sei o quê”. Aí, no final do jogo, ela veio falar isso pra mim. Aí eu peguei e falei assim: “Ah, vira mulher pra poder falar, né?” Nossa, ela virou bicho. Daí, ela andava com um moleque meio mano, daí eles vieram, os dois, falando um monte, né? - “pá, pá, pá” [gestos com o dedo apontado]. Falei: “Meu, não vou brigar com vocês, tipo, eu to... você chegou me agredindo, eu só devolvi, meu, vira mulher, tipo (rs) isso não é atitude de mulher, vir pra cima assim... chutando”.
É possível estabelecer alguns questionamentos sobre a narrativa e o universo misógino e heterossexista presente nos esportes. Mesmo em uma tentativa de defesa, nosso colaborador acaba por relacionar a representação de feminilidade de sua colega como um “desvio de conduta”. Para além da prática esportiva, a qual poderia ser alvo de marcações sociais depreciativas (pela presença da mulher em grupos, predominantemente, constituídos por meninos), o fato de a colega se posicionar durante uma partida com certa agressividade verbal fez com que ela não fosse lida socialmente como uma “mulher de verdade”, pois jamais se esperaria tal atitude de confronto de uma menina. O interessante, nesse caso, é que, corriqueiramente, situações de disputa, agitações, falas acaloradas, xingamentos e até mesmo violência física ocorrem na prática do futebol. Todavia, na maioria das vezes, tais situações são protagonizadas por dois homens, o que não permite estranhar esse comportamento, talvez pelo fato de ser considerado como uma característica “natural” da masculinidade. O “jeito de sapatão” também aponta para uma tentativa de desqualificação da estudante por seu colega, visto que, socialmente, as lesbianidades carregam estigmas relacionados ao “desvio” da mulher de sua verdadeira “natureza”.
Para além do cenário esportivo, em alguns casos, a simples presença de uma mulher atlética aciona o dispositivo de vigilância e alerta em relação à transgressão de gênero. Como argumenta a teórica queerJudith Halberstam (1998), por essa razão, a “[…] mujer atleta se convierte, casi inevitablemente, en el objeto de una intensa vigilancia y observación de género” (HALBERSTAM, 1998, p. 81). Ao rechaçar a representação de fragilidade ou inatividade atribuída ao “feminino”, essas sujeitas, não raro, são imediatamente associadas à lesbianidade. Embora essa seja apenas uma das múltiplas configurações da sexualidade, é certo que esse aprisionamento identitário intenciona subjugar e estigmatizar a construção corporal da mulher na contramão do preconizado pelas políticas normativas do gênero.
O padrão de comparação esportiva sempre foi masculino. Dessa maneira, quando uma mulher demonstra uma performance superior ou quando quebra algum recorde, não raro, acaba por ter sua “feminilidade” questionada, uma vez que tais desempenhos seriam “impensáveis” para o gênero feminino. Esse mesmo pensamento transpassado pelo dispositivo do gênero aloca os atletas homossexuais a uma condição secundária no esporte de alto rendimento. Como questionam a masculinidade, não pode ser admissível que estes sejam reconhecidos por suas qualidades atléticas.
Helena Altmann (1998), Gill Clarke (2002) e Silvana Goellner, Márcia Figueira e Angelita Jaeger (2008) argumentam que, além da generificação dos corpos, a Educação Física lhes atribui marcas relacionadas à sexualidade. Não qualquer configuração de sexualidade, mas sim a sexualidade heterossexual e atendente aos padrões de gênero hegemônicos. Em conversas informais com sujeitos que se autorrepresentam como gays ou lésbicas, sobre suas relações com a Educação Física, Luciene Santos (2008) constatou que a disciplina se configurava como um terreno de conflitos sobre sexualidades e gêneros, no qual esses/essas jovens nem sempre se saíam bem. Para muitos/as deles/as, essas experiências criaram aversão pelas práticas esportivas.
Algumas pesquisas se lançaram em problematizar as relações entre Educação Física/Esportes, homossexualidade e homofobia, abrindo espaços para que essas discussões possam permear a experiência acadêmica e auxiliar durante o processo de questionamento dessas relações, na formação inicial do/a professor/a de Educação Física (ROSA, 2010; SANTOS, 2008; SILVA, 2008). Contudo, como destaca Luciene Santos (2008), mesmo com a presença da temática de gênero e sexualidade na produção científica da área, desde a década de 1980, a problematização sobre a homossexualidade e homofobia, no contexto da Educação Física, ainda se mostra incipiente, apontando para a necessidade de novas pesquisas acerca do assunto.
Esse fato impacta de maneira direta na atuação de professores e professoras, quando de suas inserções na educação básica. A investigação instaurada apresenta resquícios da discriminação vivenciada por nossos colaboradores, quando por seus trânsitos por esse nível educacional. Ao rememorar as relações vividas durante as aulas de educação física, um dos sujeitos relata:
Sujeito4: A relação com os outros estudantes sempre foi um pouco complicada. Não só nas aulas de educação física, mas, assim, eu acho que com todos os estudantes da escola mesmo. Que eu sempre fui diferente dos outros meninos, isso não tem como negar, eu nunca fui um exemplo de masculinidade. Mas aí, nisso você fere, você é vítima um pouco de preconceito. Na época era brincadeira, era zoação, hoje em dia é bullying, a coisa é um pouco mais séria. Mas, fui muito discriminado sim, inclusive nas aulas de futsal. Nas aulas de voleibol nem tanto, porque eu sempre fui razoável, sempre joguei bem.
Não se adequar (ou não querer se adequar) aos padrões de normalidade que asseguram as normas de gênero e de sexualidade pode se tornar motivo para que a trajetória escolar de alguns estudantes seja acompanhada por hostilizações, “zoações”, chacotas e depreciações, as quais marcam, de forma significativa, o processo de construção de suas subjetividades. Segundo Didier Eribon (2008), os insultos caracterizam uma das primeiras formas de socialização de muitos gays e lésbicas, vulnerabilizando-os/as frente a diferenciados modos de violência e enfraquecimento psíquico. Cabe perguntar: como a escola percebe o impacto dessa espécie de preconceito na vida dos estudantes?
A dificuldade de ser aceito pelo grupo e a falta de intervenção pedagógica dos/as professores/as também pode contribuir para o afastamento de alguns sujeitos das aulas de educação física. Ao serem discriminados socialmente por não performatizarem uma masculinidade requerida para a prática esportiva, alguns de nossos colaboradores optavam pela inatividade ou pelo desenvolvimento de atividades que os afastassem das quadras e, talvez, da possibilidade de se exporem como os “estranhos”, durante as aulas.
Sujeito2: [...] na prática eu já não participava, eu já não gostava... ficava no meu canto e quietinho... não fazia muito não.
Sujeito3: Como nunca gostei de futebol, afetou um pouco a prática de exercício físico... [pensativo] eu não fazia muita questão de ser escolhido, eu nunca gostei, e não tenho a habilidade, né? - e ou eu ficava meio assim de lado, ou com os reservas [...]
Pesquisador: E como você se sentia, durante essas aulas?
Sujeito6: Geralmente? Muito mal. Era mais ou menos assim, eu preferia ficar estudando, com o livro na mão, do que ter meu tempo livre pra mim, tipo... era, como se falava, era uma diversão, né? Era um tempo livre que você tinha pra treinar, pra você. Mas eu não, eu preferia ficar com o livro.
Pablo Scharagrodsky (2007) argumenta que, em situações escolares, são diversas as maneiras que meninos que não performatizam a masculinidade hegemônica encontram, para se afastar das práticas da Educação Física. Sua pesquisa ressalta algumas estratégias utilizadas pelos jovens: alegar dores inexistentes, inventar quadros patológicos e se apresentar para as aulas trajando roupas inadequadas para a prática do movimento, em uma tentativa de serem liberados das aulas.
Como último apontamento, cabe destacar que, nesse cenário, o processo de formação e de aprendizagem desenvolvido pelas instituições escolares fica comprometido. Para muitos sujeitos, a passagem pela escola torna-se um momento conturbado e que institui relações de difícil convivência:
Pesquisador: E você se recorda de um exemplo, de alguma situação de perseguição que te marcou? Você conseguiria relatar um exemplo?
Sujeito4: Bom. Não tenho muitos exemplos, porque eu evitava as brigas, mas... e eu evitava também sair de dentro da sala de aula. Então, mesmo quando chegava o intervalo, eu optava por não sair da sala. Mas, quando eu saía, aí tinha os meninos da outra sala, que às vezes, quando eu passava no corredor, te apontava, te chamava de viadinho. Às vezes, reuniam todos e ficavam gritando, como se fossem um coral, te xingando mesmo. Esse é o exemplo que eu acho que marca. Até pelo fato de você ver que não é só uma pessoa que tem preconceito, e que é toda uma sociedade, uma massa ali que é a maior... a maior parte da sociedade ainda é preconceituosa e, naquela época, eu acho que ainda era mais, que não tinha tantas campanhas voltadas ao homossexualismo, à diversidade sexual.
Pesquisador: Em relação, a gente pensando nessas memórias escolares, né? que você falou que tinham algumas situações de alguns comentários, né? Você chegava a pedir apoio para algum membro da equipe escolar? Como você reagia frente a essas situações na escola?
Sujeito6: Não. Nunca pedi não. Sempre guardava comigo mesmo, portanto, havia momentos, de tanto eles falarem, que nem ao banheiro da escola eu ia. Tipo, de vergonha, tal, porque eles comentavam. Então, nem no banheiro eu ia. Eu chegava na escola e aguentaria até a hora de ir embora para minha casa. Ou preferia ir no banheiro uma hora que não tinha ninguém, horário que tava todo mundo em aula. Eu pedia pros professores e saía, porque zoavam muito e assim mesmo até os professores de lá, eles eram preconceituosos. Eles... portanto, tinha um amigo meu, que ele se assumiu também, mas que tipo, ele dava mais na cara assim, todo mundo já sabia, ele nem ligava e tal, e até as professoras comentavam. Então, eles não davam, tipo assim uma... não davam ajuda, entendeu? Eles também excluíam de lado, deixavam a pessoa de lado.
Dessa maneira, as práticas pedagógicas escolares, em geral, assim como do componente curricular Educação Física, poderiam ser problematizadas como discursos que, ao contrário de apenas “informar”, instituem e gerenciam significados e representações atuantes na construção de identidades culturais (ALTMANN, 1998; CLARKE, 2002; GOELLNER; FIGUEIRA; JAEGER, 2008; SCHARAGRODSKY, 2007). Com isso, é preciso questionar os discursos em voga na área e criticar os efeitos subjetivos criados pela assimilação desses conhecimentos no cotidiano dos sujeitos aos quais essas práticas são direcionadas (FOUCAULT, 2008; FURLANI, 2008; SILVA, 2002).
Estaria a Educação Física em sintonia com a emergência social e política de novas corporalidades, novas afetividades e novas subjetividades que circulam em nosso momento TRANScontemporâneo? Quais as implicações das intervenções pedagógicas da área para o reconhecimento da pluralidade humana tão aclamada por nossos documentos governamentais? Como educar para a convivência cidadã e democrática, ao não reconhecer as múltiplas formas de subjetividades? Como erradicar toda e qualquer forma de preconceito, no próximo decênio, como querem as diretrizes de nosso atual Plano Nacional de Educação? De que maneira as práticas escolares podem se relacionar com a legitimação de modelos hegemônicos de comportamento? Quais os efeitos dos mecanismos escolares, na vida de estudantes que não se adequam ao modelo de masculinidade/feminilidade ou de sexualidade proposto? Quais as possíveis formas de resistência que jovens constroem, para combater os efeitos discursivos instituídos pelas práticas escolares? Como educar para a diversidade cultural, se nem todos os sujeitos são reconhecidos como cidadãos ou humanos? Como promover espaços de discussão sobre as diferenças na escola, as quais contemplem as sexualidades e os gêneros, na condição de modos políticos de contestação e transformação social?
Problematizar as práticas pedagógicas da Educação Física escolar, no que se refere à marcação social dos corpos associada ao gênero e a sexualidade, prevê a desconstrução do referencial heterossexista que institui, arbitrariamente, sexualidades não heterocentradas como “anormais”. Esse trabalho crítico vai ao encontro de parâmetros governamentais e de entidades de defesa dos Direitos Humanos e Sexuais, que objetivam minimizar as implicações da violência de gênero e sexual, nos espaços sociais (BRASIL, 1998, 2004; FURLANI, 2008; JUNQUEIRA, 2007).
Ao se contar com o aporte teórico dos estudos de inspiração pós-estruturalista e da teoria queer, e ao analisar suas contribuições para a Educação Física escolar, torna-se necessário que os/as profissionais da área “substituam” as lentes sociais com que representam suas práticas e intervenções. Essa mudança de perspectiva poderia contribuir para que esses/essas educadores/as reflitam sobre os “efeitos de verdade” que seus discursos pedagógicos exercem, durante o processo de subjetivação de experiências, bem como problematizar quais os tipos de sujeitos, logo, de cidadãos, produzem a partir de suas práticas.
As práticas corporais e esportivas educam os corpos para além de suas performances, saúde e beleza. Elas também produzem marcas associadas aos gêneros e às sexualidades, tendo como referencial de “normalidade” ideais heterossexistas. Essas marcações atuam na tentativa de enquadramento dos sujeitos em modelos padronizados e reconhecidos como legítimos pela sociedade. Porém, não pluralizam as possibilidades da existência humana.
O presente artigo, por intermédio das entrevistas realizadas, permite compreender a Educação Física escolar como um terreno de conflitos, no qual meninos que não performatizam a masculinidade valorizada como ideal (viril, heterossexual, machista e misógina) se tornam alvos constantes de demarcações depreciativas. Vale destacar que tais marcações acompanham os sujeitos durante seu processo de formação e podem cooperar para que eles internalizem a naturalização negativa sobre sua expressão de vida.
Ademais, destacamos que, dentre os conteúdos desenvolvidos pelo currículo, a prática esportiva acaba por tornar-se um espaço de ocupação masculina. Nesse sentido, tanto a presença da menina atlética quanto o rechaço para com performances de masculinidade que não demonstrem afinidades para com os esportes podem instaurar práticas e relações assimétricas e que objetivam subalternizar determinados corpos.
Pedagogias corporais, de gêneros e sexualidades são acionadas em diversos contextos. Em muitos casos, essas marcações realizam interfaces com a classe social, raça/etnia, geração, orientação sexual, religião ou nacionalidade, de sorte a exercer seus efeitos sobre os corpos. Ao se atentar para o fato de que a Educação Física também se constituiu (e se constitui) enquanto um artefato cultural, compreende-se que suas práticas discursivas possuem caráter formativo e fabricam sujeitos com corpos, gêneros e sexualidades específicos. Com isso, é preciso conceber os discursos pedagógicos não como meros aglomerados de teorias e suposições, mas segundo o que enfatiza Judith Butler: “[...] os corpos carregam discursos como parte de seu próprio sangue” (2002 apud GOELLNER; FIGUEIRA; JAEGER, 2008, p. 71).