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Deitar raízes no mundo: sobre as dimensões do pensar em Arendt e seu significado para o educar hoje
Laying roots in the world: about the dimensions of thinking through Arendt and its meaning for education today
Echar raíces en el mundo: sobre las dimensiones del pensar en Arendt y su significado para el educar de hoy
Deitar raízes no mundo: sobre as dimensões do pensar em Arendt e seu significado para o educar hoje
Práxis Educativa, vol. 13, núm. 3, pp. 675-691, 2018
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 25 Janeiro 2018
Revised document received: 01 Maio 2018
Aprovação: 03 Maio 2018
Resumo: O presente trabalho tem um caráter bibliográfico, fundamentando-se na análise de obras de Arendt bem como em intérpretes da autora. O artigo explora três dimensões da concepção do pensar em Hannah Arendt com o objetivo de tematizar o significado do educar hoje. Toma-se como ponto de partida a distinção entre pensar e conhecer e retoma-se o conceito de sensus communis para explorar a dimensão pós-metafísica e intersubjetivista do pensar arendtiano. Em um segundo passo, aborda-se a dimensão arendtiana do pensar como exame de si e seu caráter formativo. Por fim, explora-se o sentido formativo da dimensão do saber orientar-se no pensamento. O diálogo Arendt-Kant, mediante o conceito de sensus communis e das máximas do pensar bem, indica como a dimensão formativa aí identificada implica a capacidade de colocar-se no lugar do outro e, consequentemente, de assumir a responsabilidade pelos próprios atos, o que impõe à educação a exigência ética fundamental de assumir a responsabilidade para com o mundo.
Palavras-chave: Pensar, Educar, Hannah Arendt.
Abstract: This work has a bibliographical character, being based on the analysis of Arendt’s works, and on the interpreters of the author. This paper explores three dimensions of the conception of thinking through Hannah Arendt with the aim of addressing the meaning of education nowadays. The starting point is the distinction between thinking and knowing, and the concept of sensus communis is reconsidered to explore the post-metaphysical and inter-subjective scope of Arendt’s thoughts. In the second step, the Arendtian dimension of thinking as self-examination and its formative character is addressed. Finally, the formative meaning of the dimension of knowing how to be guided by thought is explored. The Arendt-Kant dialogue, following the concept of sensus communis and the maxims of good thinking, shows how the formative dimension identified implies the capacity of putting oneself in the other’s shoes and, consequently, being responsible for one’s own actions, which imposes on education the fundamental ethical demand of taking responsibility towards the world.
Keywords: Thinking, Educate, Hannah Arendt.
Resumen: El presente trabajo tiene un carácter bibliográfico, fundamentándose en el análisis de obras de Arendt así como en intérpretes de la autora. El artículo explora tres dimensiones de la concepción del pensar en Hannah Arendt con el objetivo de tematizar el significado del educar de hoy. Se toma como punto de partida la distinción entre pensar y conocer y se retoma el concepto de sensus communis para explorar la dimensión postmetafísica e intersubjetiva del pensar arendtiano. En un segundo paso, se trata la dimensión arendtiana del pensar como examen de si y su carácter formativo. Por fin, se explora el sentido formativo de cómo la dimensión del saber se orienta en el pensamiento. El diálogo Arendt-Kant, mediante el concepto de sensus communis y de las máximas del bien pensar, demuestra cómo la dimensión formativa ahí identificada implica en la capacidad de ponerse en el lugar del otro y, consecuentemente, asumir la responsabilidad por los propios actos, lo que impone a la educación la exigencia ética fundamental de asumir la responsabilidad para con el mundo.
Palabras-clave: Pensar, Educar, Hannah Arendt.
Introdução
Pensar e lembrar [...] é o modo de deitar raízes, de cada um tomar o seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo do pensamento que deita raízes. (ARENDT, 2004, p. 166).
Em 1961, Hannah Arendt acompanhou, em Jerusalém, o julgamento de Adolf Eichmann, o funcionário nazista encarregado de organizar a deportação dos prisioneiros aos campos de concentração. O que chamou atenção de Arendt, e a deixou aturdida logo no início do julgamento, foi justamente o fator que gerou desinteresse à grande maioria dos jornalistas e demais pessoas que o acompanhavam: a chocante normalidade de quem havia sido capaz de contribuir para a consecução de um mal extremo: o embarque de milhões de pessoas para a morte. Tratava-se não de um monstro, mas, na definição de Arendt (1999), de um sujeito “assustadoramente normal”, absolutamente superficial e, por essa razão, incapaz de dimensionar com um mínimo de profundidade a origem e o alcance do mal contido em seus atos. Durante o julgamento, Eichmann afirmara nunca ter dado ordem para matar nem nunca ter matado nenhum ser humano e que só ficava com a consciência pesada quando não cumpria aquilo que lhe era ordenado por seus superiores. Os atos eram monstruosos, mas o seu agente banal. Isso levou Arendt a observar que não era estupidez, mas irreflexão que o caracterizava. Não era um instinto demoníaco, mas o recurso a clichês e a códigos de conduta convencionais e padronizados que, em última instância, funcionavam como um mecanismo de autoproteção da realidade e traduziam uma completa ausência de pensamento.
A descoberta assustadora de que muitos sujeitos eram como ele - e que o mal mais extremo, como o de encaminhar milhões de pessoas para a despersonalização e a morte, pode ser praticado por uma motivação banal - levou Arendt a se perguntar se o problema do bem e do mal, associado à capacidade humana de distinguir o certo e o errado, poderia estar conectado com a faculdade humana do pensar. Tal descoberta constitui-se em uma das diretrizes da obra tardia da autora, e a pergunta configura-se como complexa, uma vez que Arendt (2004) lembra que somente hábitos e costumes podem ser ensinados e que estes rapidamente também podem ser esquecidos quando novas circunstâncias demandarem uma mudança nos padrões de comportamento. Arendt, a exemplo do que o fará mais tarde o psicólogo social Philiph Zimbardo, entende o mal a partir de uma perspectiva não essencialista. Isso significa que há nele toda uma dimensão situacional. Zimbardo (2012) chamará atenção que, para poder compreendê-lo, deve-se levar em conta não apenas os indivíduos, mas também as instituições e os sistemas onde estes agem, o que evidentemente não exime a responsabilidade singular do agente. O que há em comum entre Arendt e Zimbardo é uma compreensão não essencialista do mal amparada na premissa de que as raízes de um mal extremo não podem ser creditadas apenas a uma índole má ou a uma essência demoníaca.1 O argumento é que não há a necessidade de um “coração malvado” para que um grande mal seja praticado, e é por essa razão que, para evitá-lo, necessitaríamos do exercício da razão na forma da faculdade do pensamento.
Se a ausência de pensamento possibilita o mal, ao mesmo tempo mais banal em suas motivações e mais extremo em suas consequências, a problemática do pensar como capacidade humana não deveria passar ao largo dos processos educativos. Nesse sentido, vale lembrar do desafio decorrente da experiência do mal extremo traduzido por Adorno como a exigência mais fundamental colocada à educação, a saber: a de que “Auschwitz não se repita” (ADORNO, 1995, p. 119). Na perspectiva arendtiana, Auschwitz representa a barbárie naquilo que de mais profundo se pode impingir aos seres humanos: a destituição da personalidade jurídica, com seus direitos civis e políticos; da personalidade moral, transformando os humanos em seres completamente anônimos e descartáveis; e de sua individualidade, destruindo a dignidade e a espontaneidade, e, desse modo, a capacidade humana fundamental de iniciar algo novo.2 Arendt entende que se a capacidade de pensar estiver relacionada à de distinguir o certo do errado, então esse exercício pode ser exigido de toda “pessoa sã”. A chave para tematizar essa questão tão fundamental é buscada pela autora na sentença socrática de que é melhor sofrer o mal do que fazê-lo, para não entrar em contradição consigo e afastar-se de si próprio, e na distinção kantiana entre pensar e conhecer.
O pano de fundo da abordagem desenvolvida neste artigo consiste na ideia geral de que não é possível educar hoje sem levar em conta a dimensão formativa que, de um prisma normativo, é intrínseca aos processos educativos. As atividades da vida do espírito, conforme tematizadas por Arendt na forma do pensar, do querer e do julgar, podem constituir-se em um rico manancial para a abordagem de tão importante e complexa questão. O pensar nos possibilita “deitar raízes no mundo”, encontrando neste nosso lugar. Trata-se de uma atividade singular, e seu caráter formativo reside em um tipo de relação que estabelecemos com nosso próprio eu e na alteração que sua força crítica e corrosiva promove na maneira de nos relacionarmos com a realidade.3
No presente texto, tomando por orientação a pergunta O que significa educar hoje?, ater-nos-emos especificamente ao pensar e exploraremos três de suas dimensões em sentido formativo. (1) Na primeira parte, com base na distinção entre pensar e conhecer, e na retomada do conceito de sensus communis, procuramos mostrar que o educar hoje concerne a um ato a ser situado a partir da perspectiva de um pensamento pós-metafísico e de uma concepção intersubjetivista de ser humano. (2) No segundo momento, por nós denominado de “socrático”, abordamos a dimensão do exame de si e seu caráter formativo, situando-a a partir das características da vida do espírito e da concepção do pensar como diálogo silencioso consigo mesmo. (3) Na terceira parte, denominada de “momento kantiano”, estabelecemos um diálogo Arendt-Kant e recorremos ao conceito kantiano de sensus communis e das máximas do “pensar bem” para explorar o sentido formativo da dimensão do saber orientar-se no pensamento. No final do percurso, são indicadas algumas possibilidades abertas aos processos formativos e ao significado do educar hoje pelas dimensões do pensar arendtiano.
A dimensão pós-metafísica e intersubjetivista do pensar arendtiano
A abordagem sobre o pensar em Arendt é possivelmente o lugar mais próprio de sua obra para a identificação do esforço da autora em situar-se no horizonte de um pensamento pós-metafísico.4 Trata-se de uma tarefa complexa, elaborada na interlocução direta com a tradição filosófica clássica grega e com filósofos como Kant, Merleau-Ponty e Heidegger, entre outros. Temos de considerar que a inserção de Arendt dentro da tradição contemporânea de autores orientados por uma perspectiva de pensamento pós-metafísico deve ser justificada. O mesmo ocorre com sua vinculação a uma concepção intersubjetivista de ser humano. Trata-se de uma autora que, em razão da originalidade de seu enfoque, dificilmente pode ser filiada sem mais a esta ou àquela linha de pensamento. Por essa razão, sua vinculação a uma perspectiva teórica pós-metafísica e intersubjetivista tem de ser apresentada a partir de sua própria obra.
No final da primeira parte de A vida do espírito, há uma elucidativa passagem onde a autora afirma ter se juntado “[...] claramente às fileiras daqueles que, já há algum tempo, vêm tentando desmontar a metafísica e a filosofia [...]” (ARENDT, 1993a, p. 159). Sua posição é ancorada no argumento de que a distinção entre o sensível e o suprassensível, entre o espírito e seus sentidos, sustentada na ideia de que o que não é dado aos sentidos é mais verdadeiro que aquilo que aparece, exauriu-se. Justamente por essa razão, sua crítica à metafísica toma como ponto de partida o tema da aparência. O começar pela aparência deve-se ao fato de Arendt conceber o humano como um ser de existência mundana, existência essa envolvida por uma realidade fenomênica. O pensar ocorre nesse mundo fenomênico, marcado pela realidade imediatamente presente aos sentidos, mas requer um retirar-se momentaneamente tanto do mundo das aparências quanto da companhia dos semelhantes e da participação na ação. Todavia, esse retirar-se da aparência não pode mais significar o recurso ao dualismo caracterizado pela cisão entre mundo sensível e mundo inteligível. Para a autora (ARENDT, 1993a), o pensar é vida, mas não epifania; é invisível, mas ocorre em um ser que habita o mundo das aparências; é distinto das atividades da vida quotidiana e da visibilidade dos homens de ação, mas não implica solidão; requer um retiro provisório em relação às aparências, mas não a instauração de um dualismo entre dois planos de realidade.
Foi precisamente o retirar-se do mundo das aparências mediante a invisibilidade do pensar que originou na tradição filosófica ocidental as teorias dualistas que dividiram a realidade em duas esferas: a sensível, apreendida pelos sentidos; e a inteligível, acessível apenas por via do pensar. O dualismo metafísico decorrente da experiência humana do pensar é lido por Arendt como uma retirada do pensar em relação ao mundo das aparências para a invisibilidade de um outro mundo, seja o das ideias, no caso de Platão, seja o da subjetividade, como ocorre em Descartes e Kant. As posições dualistas seriam dependentes de noções ancoradas no senso comum5, de acordo com o qual o real é identificado com a aparência, e o pensamento seria deslocado para um lugar constituído como uma segunda aparência. O problema do dualismo residiria em aceitar que os critérios espaciais, próprios para dar conta do que ocorre na vida quotidiana, seriam válidos também para o pensar. Dessa forma, o pensar ocuparia um lugar, um espaço, apenas que invisível e além do quotidiano. Por conseguinte, à morada dos homens equivaleria a morada do pensamento, e esta seria compreendida também em termos espaciais, apenas que, ao invés de sensível, possuiria uma natureza inteligível. Arendt procura superar o problema do dualismo concebendo o pensar como uma retirada momentânea do mundo da aparência, mas sem refugiar-se em um mundo inteligível, cindido daquele.
Se o primeiro aspecto da crítica arendtiana à metafísica concerne ao dualismo entre o sensível e o suprassensível, que resulta na distinção entre a morada dos homens e a morada do pensamento, como acabamos de mostrar, o segundo encontra-se na distinção entre razão e intelecto e, pois, entre verdade e significado. Arendt (1993a, p. 14, grifos da autora) destaca que “[...] a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado”. A seu juízo, todas as falácias metafísicas teriam como base a não distinção entre verdade e significado. Por conseguinte, a distinção proveniente de Kant entre razão e intelecto coincide com a distinção entre pensar e conhecer, e ambos devem ser interpretados como duas faculdades espirituais completamente distintas e que vinculam dois interesses igualmente distintos, a saber, significado e cognição. A faculdade de pensar, a razão (Vernunft), distinta da faculdade da cognição, o intelecto (Verstand), tem como base a compreensão. Desse modo, enquanto o intelecto visa apreender o que é dado aos sentidos, a razão busca compreender o significado das coisas e do que acontece. Arendt aprofunda essa distinção da seguinte maneira:
[...] as questões despertadas pelo desejo de conhecer podem, todas, em princípio, ser respondidas pela experiência e pelo raciocínio do senso comum; estão expostas ao erro e à ilusão, corrigíveis da mesma forma que percepções e experiências sensoriais. [...]. Mas as questões levantadas pelo pensamento, porque é da própria natureza da razão formulá-las - questões de significado - são, todas elas, irrespondíveis pelo senso comum e por sua sofisticada extensão a que chamamos ciência. (ARENDT, 1993a, p. 46).
Se o desejo de conhecer é saciado ao alcançar seu objetivo, o pensar, ao contrário, não é exaurível e não deixa nada de tangível atrás de si. Nesse sentido, o propósito do pensamento não é a verdade e a cognição, de modo que seus resultados não possuem o mesmo tipo de validade que aqueles decorrentes dos processos cognitivos. Arendt argumenta que o pensamento se situa “fora de ordem” em razão de que a busca do significado não produz nenhum resultado que subsista ao próprio pensar. O pensar não comporta nenhum resultado para além dele mesmo e, se fosse uma atividade cognitiva, teria de seguir um movimento retilíneo de modo a partir da busca de seu objeto para concluir com o conhecimento deste. O pensar, entende a autora, seria melhor representado pelo modelo do movimento circular aristotélico tomado em conjunto com a metáfora da vida, que também gira em círculos, por um e outra sugerirem uma busca do significado que acompanharia todo o desdobrar da vida humana (ARENDT, 1993a).
Três implicações preliminares podem ser extraídas desse primeiro passo para o campo educacional. A primeira é de que o distanciamento da esfera da ação pelo sujeito, inclusive a ação educativa, representado pelo pensar, traduzir-se-ia como condição necessária para avaliar seu próprio significado. Em Arendt, esse distanciamento é representado pela perspectiva do espectador que olha os acontecimentos sob um prisma de conjunto. Nesse sentido, esse necessário distanciamento da ação educativa ajudaria a evitar tanto o imediatismo quanto a falta de articulação entre as atividades que a compõe. A essa pode ser associada uma segunda implicação, a saber: que a educação não poderia perder de vista uma dimensão compreensiva, vinculada à busca de significado para as coisas que acontecem com a vida de educandos e educadores. Na medida em que o pensar envolve uma retirada da aparência e da própria ação, propicia um necessário distanciamento da empiria para a elaboração da experiência em um sentido formativo. Uma terceira implicação do pensar, tomado sob um ponto de vista pós-metafísico, está em que não podemos mais falar em uma natureza humana, mas, sim, em condição humana. Isso significa que a formação do humano não pode mais ser concebida como uma essência a ser atualizada, mas como a condição de um ser que é aberto, plural e singular ao mesmo tempo, e que necessita ser orientado na forma de uma responsabilidade pelo mundo. A pluralidade é uma característica marcante de tal condição e da formação humana porque traduz, simultaneamente, tanto a impossibilidade de uma essência humana quanto o fato intersubjetivo de o humano somente poder constituir-se na companhia de outros humanos.
Até aqui sustentamos o esforço de indicar a feição pós-metafísica do pensar arendtiano e algumas de suas implicações educativas. Passamos agora, embora de forma mais breve, a tratar de sua dimensão intersubjetivista, decorrente também de seu modo pós-metafísico de pensar. Viu-se anteriormente que o pensamento é a atividade pela qual o ser humano busca o significado acerca do que percebe, acontece ou faz. A questão que se coloca agora é como se dá o vínculo entre o pensamento e o mundo. Para Arendt (1993a), este ocorre mediante as faculdades do sentido comum, da imaginação e da linguagem. Vamos nos deter apenas na primeira delas.6 O sentido comum ou sensus communis é um sentido interno que permite tanto que a realidade percebida pelo sujeito seja garantida por seu contexto mundano, que inclui seres que percebem como ele, quanto que seja apanhada pela atividade conjunta dos cinco sentidos. O sensus communis, essa espécie de “sexto sentido”, adequa as sensações dos cinco sentidos, que são estritamente privados, a um mundo comum partilhado com e pelos outros sujeitos. O senso comum dá estabilidade à realidade, pois refere-se a “[...] um mundo comum compartilhado pelos outros” (ARENDT, 1993a, p. 40), e a autora lembra que é a “[...] intersubjetividade do mundo, muito mais que a aparência física, que convence os homens de que eles pertencem à mesma espécie” (ARENDT, 1993a, p. 40).
O erro de Descartes teria consistido em querer superar a dúvida retirando-se completamente do mundo e, pois, eliminando a realidade mundana de seus pensamentos. Quando o pensamento, afastando-se do mundo das aparências e da companhia dos demais humanos, nega o sensus communis e sua sensação de realidade, cai facilmente na ilusão metafísica de que o mundo resulta do ato de pensar. Nesses termos, em Descartes (1988), a res extensa decorreria da res cogitans. Ocorre que, para Arendt, o pensamento não tem capacidade de provar nem de destruir o sentido de realidade que provêm do sensus communis. A seu juízo, Descartes estava de tal modo empenhado em encontrar a res cogitans e em atribuir a ela uma realidade que estivesse para além das ilusões sensoriais que acabou encontrando-a na forma de uma criatura fictícia, separada da realidade: “[...] a res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada, sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos” (ARENDT, 1993a, p. 38).7
O sentido comum corresponde à intersubjetividade do mundo em razão de que a realidade percebida por cada sujeito se deve ao fato de que o contexto, que dota cada objeto singular de significado específico e o torna identificável, é fundamentalmente uma realidade comum e relacional (LOBO, 2012). O sensus communis é uma espécie de sexto sentido, considerado pela autora como “muito elevado”, capaz de ajustar nossos cinco sentidos a um mundo comum e de nos tornar capazes de orientarmo-nos nesse mundo (ARENDT, 2004, p. 233). Em suma, o sensus communis permite deixar para trás o solipsismo e conferir uma perspectiva intersubjetiva ao sujeito na medida em que permite compreender a realidade humana como relacional e o significado por ela gestado como constituído intersubjetivamente.
Essa filiação de Arendt a um viés de leitura pós-metafísico e intersubjetivista da subjetividade torna-se produtiva em termos educacionais para, dentre outros aspectos, dimensionar o outro na sua singularidade. Como destaca Hermann (2014, p. 30), o pensamento grego, ao estabelecer a identidade e a diferença como relação fundamental do pensamento metafísico, influenciou profundamente nossa compreensão sobre o homem e suas relações com o outro. Isso se deu, sobretudo, na medida em que a diferença é estabelecida tomando a identidade como referência ou contraposição. O outro acaba sendo colocado como limite da identidade e não situado em sua singularidade de um si mesmo. Em Descartes, essa tendência a tomar o outro como o estranho, distinto ou contrário da identidade, permaneceria, uma vez que o sujeito constituir-se-ia sem o recurso e nenhuma exterioridade, o que seria bem exemplificado pela radical separação entre o pensar e a corporeidade. A separação e a tendência a reduzir o diferente a si mesmo geraram, como consequência, tanto a dificuldade em “[...] reconhecer o outro em nós mesmos [...]” quanto em compreender que “[...] o outro já está interiorizado no eu [...]”, que ele é “[...] uma espécie de duplo de mim mesmo [...]” (HERMANN, 2014, p. 34).
Uma compreensão intersubjetivista da subjetividade somente se torna possível quando se ultrapassa os limites de uma compreensão metafísica do sujeito, seja na concepção clássica do ser, seja na da subjetividade moderna. Em tal compreensão, opera-se o deslocamento de um sujeito centrado e autossuficiente para a perspectiva de um sujeito descentrado, não completamente transparente a si próprio, em que sua unidade-identidade não é mais concebida como um todo homogêneo, mas abriga e convive com aspectos desconhecidos e contraditórios dentro de si mesmo. Nessa perspectiva pós-metafísica, a identidade é constituída intersubjetivamente. Não bastasse, ela abre espaço nos processos educativos para a exigência do reconhecimento do outro e para uma dimensão ética na medida em que o reconhecimento recíproco demanda a permanente recriação tanto de si quanto do outro.
A dimensão do exame de si: o pensar como diálogo silencioso consigo mesmo
Antes de abordarmos o momento socrático do pensar arendtiano, compreendido como diálogo silencioso consigo mesmo, temos de caracterizar a vida do espírito, em que o pensar se insere. Para explicitar o que a constitui, Arendt (1993a) distingue espírito de alma. Esta última, como fonte das paixões, dos sentimentos e das emoções, agrega uma gama de eventos, mais ou menos caóticos, que sofremos em sua interioridade passiva. A vida do espírito, diferentemente, é pura atividade que pode ser iniciada e paralisada conforme nossa vontade, e isso vale para o pensar, o querer e o julgar. Além disso, nenhum ato do espírito contenta-se com seu objeto tal como lhe é dado, de modo a visar transcender a imediatez do que lhe despertou a atenção. O que caracteriza a vida do espírito é o estar sozinho e estabelecer uma relação consigo mesmo. O estado existencial de fazer companhia a si mesmo é denominado por Arendt de “estar só”. Tal estado é distinguido da “solidão”, pois nesta o indivíduo também se encontra sozinho, mas na situação de alguém abandonado tanto dos outros quanto de sua própria companhia, que pode ocorrer mesmo quando estamos em meio a outras pessoas. O “estar só” distingue-se também do “isolamento”, situação em que o indivíduo não está na companhia de si nem dos outros, mas preocupado com as coisas do mundo.8
As atividades espirituais do pensar, do querer e do julgar são marcadas por três características, a saber: autonomia, invisibilidade e reflexividade.9 Em primeiro lugar, sua autonomia reside no fato de tais atividades não serem condicionadas uma vez que a elas não corresponde diretamente nenhuma das condições da vida ou do mundo. Mesmo que os objetos do pensar sejam dados pela vida ou pelo mundo, não são condicionados nem por um nem por outro. Em segundo lugar, olhando-se do ponto de vista do mundo das aparências e das atividades condicionadas por ele, as atividades espirituais são caracterizadas por sua invisibilidade, pois não aparecem, embora se manifestem para o eu pensante, volitivo ou judicativo.
A terceira característica das atividades espirituais é a reflexividade. Tais atividades vinculam uma dualidade inerente à consciência, de modo que o sujeito, na qualidade de agente espiritual, somente pode ser ativo na medida em que age implícita ou explicitamente sobre si mesmo e na companhia de si mesmo. Nesse sentido, “[...] as atividades espirituais e [...], especialmente o pensar - o diálogo sem som de mim comigo mesmo - podem ser entendidas como a efetivação da dualidade originária ou da cisão entre mim e meu eu, intrínseca a toda consciência” (ARENDT, 1993a, p. 59). Todavia, Arendt apressa-se em observar que a pura consciência de “mim” não é uma atividade uma vez que ela acompanha todas as outras atividades e, dessa forma, constitui-se na garantia de um “eu-sou-eu completamente silencioso”.
No “estar só” e relacionar-se consigo mesmo por meio do diálogo silencioso do eu consigo mesmo, o sujeito abandona momentaneamente a companhia de seus semelhantes para estabelecer um trato exclusivo e explícito consigo mesmo. O sujeito coloca-se na presença de si para estabelecer um diálogo no qual é seu próprio interlocutor e permanece em sua própria companhia (LOBO, 2012). Por essa razão, assevera Arendt (1993a, p. 59, grifos da autora), “[...] todo cogitare, não importa qual for seu objeto, é também um cogito me cogitare”. A consciência das faculdades do espírito e da reflexividade, todavia, só está presente enquanto as faculdades espirituais estão em atividade, uma vez que a atividade do espírito atualiza a dualidade existente na consciência. A reflexividade concerne a um eu que age sobre si mesmo e consigo mesmo. Por essa razão, “[...] o ego do pensamento, do qual tenho perfeita consciência enquanto dura a atividade do pensamento, desaparecerá como se fosse uma simples miragem tão logo o mundo real volte a se impor” (ARENDT, 1993a, p. 59). Em sua atividade, o pensar distancia-se ou eleva-se sobre o mundo real, mas não se opõe a ele.
Como atividade do espírito, o pensar compartilha com as demais faculdades espirituais as três características anteriormente indicadas, mas possui também características que lhes são próprias e que retomaremos brevemente.10 A principal delas é a de o pensamento interromper todas as atividades ordinárias com as quais os sujeitos estão envolvidos de modo que, por ele, é como se ingressassem em um mundo diferente ao do quotidiano. Este “como se” possui apenas um sentido analógico pois, como vimos anteriormente, Arendt descarta qualquer possibilidade de operar com o dualismo metafísico dos dois mundos. A essa característica vincula-se uma segunda, a de que o pensar ocupa-se com objetos ausentes da percepção direta dos sentidos, de maneira que um objeto do pensamento se dá sempre na forma de uma representação. O objeto do pensamento constitui-se como algo ou alguém realmente ausente, mas presente apenas para o espírito. É pela imaginação que o espírito pode torná-lo presente e isso ocorre na forma de uma imagem. A imaginação traz ao espírito aquilo que está ausente dos sentidos. Por essa razão, ao pensar, o sujeito sai do mundo das aparências, mesmo que o pensamento se ocupe com objetos fornecidos pelos sentidos. Uma terceira característica do pensar é que ele é antinatural, razão pela qual está “fora de ordem”. Ocorre que a busca de significado não produz nenhum resultado último que sobreviva à própria atividade do pensar, além de inverter todas as relações habituais e anular as distâncias espaciais e temporais. Por fim, além de “não servir para nada”, o pensar é uma atividade “autodestrutiva”, e Arendt a equipara à dinâmica da tessitura do véu de Penélope. Trata-se de uma atividade que não permite que nada se acomode a um discernimento definitivo sobre o que quer que seja.
Arendt considera que não há pensamentos perigosos em si mesmos, mas que o próprio pensamento em si é perigoso na medida em que a busca de significado dissolve e examina sempre de novo todas as doutrinas e regras vigentes, gerando perplexidade. Isso deve-se à necessidade que os humanos possuem de tomar decisões toda vez em que são confrontados com alguma dificuldade, de ordem moral, por exemplo. O não-pensar, por outro lado, é perigoso no sentido avesso, pois protege as pessoas contra “[...] os perigos da investigação” (ARENDT, 2004, p. 245), levando-as a aderir rapidamente a tudo o que as regras de conduta prescrevem em um determinado contexto e a apegarem-se a tais regras vigentes sem examiná-las e a acostumarem-se a não tomar decisões por si próprias (ARENDT, 1993a).
Uma consequência do não-pensar é que quanto maior for o apego da pessoa ao código antigo, maior será sua propensão a, assim que o abandonar, imediatamente assumir um novo. Vale lembrar que Eichmann não tinha nenhuma motivação para fazer o que fez a não ser seu enorme esforço em obter avanços pessoais em sua carreira. Como argumenta Arendt, o que o caracterizava era uma falta de imaginação e uma completa irreflexão, de modo a sequer conseguir dimensionar o que estava fazendo. Sua língua era o “oficialês” e sua fala não ultrapassava o âmbito dos clichês (ARENDT, 1999, p. 61). O pensar, por seu turno, não produz nenhum novo código ou credo e acompanha uma vida em que há exame e busca de significado para o que nela acontece. Essa busca identifica-se com o eros socrático, um tipo de amor que se configura como necessidade e desejo de algo que não se possui, algo não presente, como a sabedoria. Trata-se de um anseio por algo que não se possui, mas que se deseja ter (PLATÃO, 1993).
Essas considerações permitem entrar no ponto central que nos interessa aqui. Arendt observa que a consciência humana sugere que a diferença e a alteridade são condições para a própria existência do eu. Nessa medida, “[...] esse ego, o eu-sou-eu, experimenta a diferença na identidade precisamente quando não está relacionado às coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo” (ARENDT, 2004, p. 252). Essa divisão do eu, ou no eu, é o que possibilita o “dois-em-um” que, por sua vez, pressupõe a harmonia do sujeito consigo mesmo. Essa harmonia resulta do exame de si, a atualização da dualidade existente no interior da consciência. O pensar implica, necessariamente, um relacionamento consigo mesmo na forma de um diálogo solitário silencioso e não apenas um relacionamento com os outros.11 Na perspectiva arendtiana, o “dois-em-um” pressupõe que, para pensar, os parceiros - os dois que fazem parte de um mesmo - devem ser amigos e que a consciência somente está presente quando a pessoa estiver sozinha. Arendt lembra que o que leva uma pessoa a temer sua consciência é a antecipação da presença de uma testemunha que a aguarda somente quando vai para casa examinar as coisas (ARENDT, 2004). Esse exame das coisas ou autoexame só é possível na atitude do “estar a só”.
O ponto central da argumentação de Arendt reside na ideia de que quem não experimenta essa interação entre si e si mesmo, em que o sujeito examina o que diz e o que faz, não se importará em se contradizer. Essa situação de inconsistência consigo mesmo significa para o sujeito não ser capaz e nem estar disposto a prestar contas do que diz ou faz. Essa ausência de interação entre eu e eu mesmo, e que resulta em estar em contradição consigo mesmo, leva o sujeito a converter-se em uma espécie de seu próprio adversário. Nesse sentido, o pensar só é possível na medida em que a diferença instalada na consciência de si mesmo se faz presente. Essa diferença só se instala quando se “está a só” e se distingue da identidade que se manifesta quando se está com os outros. A tese fundamental que orienta a análise arendtiana sobre o pensar é que este consiste em uma faculdade sempre presente em todas as pessoas e, por conseguinte, a incapacidade de pensar também é uma possibilidade sempre presente e isso ocorre quando qualquer pessoa evitar o diálogo consigo mesmo (ARENDT, 2004).
O pensar requer esse estar consigo mesmo de modo consistente, distanciado das preocupações quotidianas e disponível a ouvir esse outro que se faz presente em nós e a dialogar com ele. No pensar, a interação com esse outro de nós tem de ser ativada a cada vez que o exercitamos. Nele, a pessoa “vai para casa examinar as coisas”, afastando-se momentaneamente da companhia dos demais homens para estar consigo mesmo. Se no mundo das aparências o indivíduo é sempre uno, cuja identidade não pode ser confundida com a de ninguém, no pensar, como diálogo consigo mesmo, instaura-se a diferença e, pois, uma dualidade interior. No pensar, o um converte-se em dois, ou seja, simultaneamente no eu e no outro que também faz parte de si e diante do qual tem de examinar e prestar contas de si mesmo.
O pensar, tal como definido por Arendt, como um estar a sós e relacionar-se consigo mesmo, leva o sujeito a abandonar, momentaneamente, a companhia de seus semelhantes para estabelecer um trato exclusivo e explícito consigo mesmo. Se, como postula Arendt, do pensar nada resulta como produto do seu exercício, seu único “resultado” se faz no próprio processo reflexivo como transformação de si mesmo, o que, convém ressaltar, não deixa de ser uma das tarefas mais exigentes das colocadas aos seres humanos.12 Em Arendt, o estar de acordo ou colocar-se de acordo consigo próprio neste autoexame, na medida em que implica consistência na postura do próprio sujeito, demanda o desenvolvimento da capacidade de evitar a autocontradição e, pois, de discernir o certo e o errado e de colocar-se no lugar do outro.
Como vimos, a exigência do pensar encontrada na atitude do dois-em-um socrático-arendtiano exprime que somente quem procura se assumir como autônomo e capaz de pensar reúne condições de prestar contas a si mesmo de seus atos e assumi-los como seus, responsabilizando-se por eles. Essa exigência não é nada trivial em um mundo em que a ação do indivíduo é perpassada por forças heterônomas e levando-se em conta que ela se dá contextualizada em instituições e sistemas. O desafio aqui é como educar para o sentido de autonomia e responsabilidade em um tal contexto.
Todavia, Arendt (2004) alerta para que haja precaução com a ideia de que o pensamento possa ser ensinado. Reportando-se a Sócrates, no Menon de Platão, retoma a metáfora socrática da arraia-elétrica que paralisa e entorpece quem a toca. Sócrates não deixaria as pessoas perplexas por saber as respostas para as coisas, pois sua pedagogia não é uma pedagogia da resposta, mas da pergunta e da perplexidade. Sua postura consistia em infectar as pessoas com sua própria perplexidade ao examiná-las. Sócrates não teria nada para ensinar, nem verdades para transmitir. Seu esforço consistia em verificar se as pessoas partilhavam de suas perplexidades visando levá-las a examinarem a si mesmas. Essa atitude de perplexidade, própria de uma vida em que se faz presente o exame interior, é indispensável para levar adiante uma vida com sentido.
Uma vida sem questionamento é uma vida passiva e, nesse caso, as decisões são orientadas por crenças convencionais. O exercício do pensar demanda a realização permanente de um modo de vida pautado pelo exame de si e deve provocar, além de perplexidade, consciência de si e a pluralidade dentro de si próprio no que tange à formação de opiniões. Como argumenta Nussbaum (2005), também com base na figura de Sócrates, quando as pessoas não olham para dentro de si mesmas para perguntarem-se se as coisas poderiam ser de outra maneira, tais crenças convivem naturalmente com elas e as modelam, sem que nunca se tornem verdadeiramente suas. Nesse caso, não é colocado em questão se elas são dignas de guiar sua vida pessoal ou sua vida política (NUSSBAUM, 2005).
A dimensão do saber orientar-se no pensamento: sentido comum e máximas do pensar
Denominaremos essa terceira dimensão do pensar arendtiano de momento kantiano. Inicialmente, ela poderia ser melhor explicitada por meio do recurso de colocar Eichmann contra o próprio Eichmann, na medida em que este afirmara, em seu julgamento, ter se orientado a vida toda pelos princípios morais de Kant e, sobretudo, pela definição kantiana do dever. Ora, a ideia de consistência está no cerne do princípio moral de Kant uma vez que este coloca ao indivíduo a exigência de coerência consigo próprio e de portar-se de modo autônomo. Em Kant, a inconsistência no agir apresenta-se quando se instala uma contradição entre a máxima subjetiva que orienta o agir da pessoa e a lei moral. Essa situação é traduzida pelo célebre exemplo de fazer uma falsa promessa em que a contradição fica expressa pela seguinte pergunta:
[...] podes tu querer também que a tua máxima se converta em lei universal? Se não podes, então deves rejeitá-la não por qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas porque ela não pode caber como princípio numa possível legislação universal. (KANT, 1995, p. 35).
A inconsistência é expressa em Kant por meio da impossibilidade de universalizar a máxima (motivo) que orienta a própria vontade, implicando, por essa razão, um estado de contradição consigo próprio. Sob esse ponto de vista, o orientar-se pelos princípios de Kant, referido por Eichmann, seria impossível a este último justamente pelo fato de que a consistência, enquanto critério do pensar e do agir coerente implica, necessariamente, a capacidade de colocar-se no lugar do outro, algo impossível sem o exercício do pensar.
O sentido heteronômico presente na incapacidade de pensar referido por Arendt reside no fato de impedir o indivíduo de ir além das convenções, clichês e padrões de conduta institucionalizados. O parâmetro de uma moralidade pós-convencional, já presente em Rousseau e Kant e aprofundado contemporaneamente por autores como Piaget, Kohlberg, Habermas e Apel, demanda a capacidade de colocar-se do ponto de vista do outro e ultrapassar os limites ou as convenções instituídos pelos ambientes, sejam eles instituições ou sistemas sociais. Para Arendt, a falha mais singular e mais decisiva no caráter de Eichmann residia precisamente na sua “[...] quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro” (ARENDT, 1999, p. 60). O exercício do pensamento postulado por Arendt pode servir de parâmetro normativo e contraponto a todo tipo de educação que, de algum modo, visa a formação de pessoas bem ajustadas a instituições e sistemas, modelo que Eichmann representa à perfeição.
Adorno, nesse aspecto muito próximo a Arendt, proclamara que o único princípio que seria efetivo contra tudo o que Auschwitz representou seria o da autonomia como poder para a reflexão e autodeterminação. Adorno (1995) referira também que a educação seria questionável se se limitasse a produzir pessoas bem ajustadas e que seria igualmente opressiva se não levasse em conta os indivíduos. Essa observação de Adorno pode ser aproximada da abordagem arendtiana na medida em que a incapacidade para o pensar contribui para que os processos educativos tenham dificuldades de contemplar a singularidade de seus sujeitos e de criar condições para que estes possam praticar a experiência do aprender a dialogar consigo mesmos e com os outros.
Nesse sentido, a dimensão formativa do autoexame pode ser complementada com a da capacidade de orientar-se no pensamento. Arendt retoma as máximas do sensus communis que, em Kant, aparecem articuladas ao pensar. No parágrafo 40 da Crítica da faculdade do juízo, Kant (1993) refere-se ao sensus communis como um sentido extra que nos ajusta a uma comunidade, uma vez que esse sentido manifesta a própria humanidade do homem. São três as máximas do sensus communis, a saber: pensar por si mesmo (máxima do iluminismo), colocar-se em pensamento no lugar de qualquer outro (máxima da mentalidade alargada) e pensar sempre de acordo consigo próprio (máxima de estar de acordo consigo mesmo).13 Como destaca Arendt, com tais máximas, Kant não está se reportando a questões de conhecimento, mas de opinião e de juízo (ARENDT, 1993b, p. 90).
No que tange à primeira, Kant (1993) refere-se a um pensar livre de preconceito, com base em uma razão autônoma, esclarecida e livre da superstição. Hoje, poderíamos acrescentar, capaz de ultrapassar as convenções às quais os sujeitos, por muitas vezes, de bom grado se submetem. Vale lembrar que, para Kant (1985), é somente mediante a transformação ou o cultivo do próprio espírito - o modo de pensar - que o homem pode ultrapassar o estado de menoridade ou de tutela em relação aos que pensam em seu lugar. Trata-se de superar a “cegueira” do espírito expressa na “[...] necessidade de ser guiado por outros” (KANT, 1993, p. 141). Observe-se aqui que, assim como em Arendt, também em Kant o pensar é tomado como uma faculdade da razão e, neste último, a menoridade não reside em uma insuficiência de entendimento, mas de decisão e coragem de fazer uso de sua própria razão. Em Arendt, essa situação deve-se à incapacidade de o sujeito “não ir para casa” confrontar-se consigo mesmo.
A segunda máxima concerne à maneira de pensar alargada, a capacidade de o sujeito refletir sobre seu juízo de um ponto de vista universal. Esse ponto de vista somente pode ser determinado na medida em que ele se imagina situado do ponto de vista dos outros (KANT, 1993, p.141). Também Nussbaum (2005), mais recentemente, ressalta a necessidade de cultivarmos uma capacidade de imaginação receptiva para podermos compreender os motivos e as escolhas vitais das pessoas diferentes de nós. Para a autora, o cultivo da imaginação seria fundamental para deixar de vê-las como ameaçadoras e para tomá-las como seres que compartilham conosco problemas e oportunidades (NUSSBAUM, 2005). Nussbaum destaca ainda que a imaginação narrativa constitui-se em uma preparação essencial para a interação moral. Uma educação que levasse em conta tal cultivo faria com que a empatia e a capacidade dos educandos de fazer conjecturas fomentasse um tipo de cidadania e uma forma de comunidade que respeitasse as necessidades, a individualidade e a intimidade do outro (NUSSBAUM, 2005).
Por fim, a máxima de pensar em conformidade consigo próprio é a mais difícil de ser exercitada e pode ser alcançada mediante a ligação das duas primeiras máximas, o pensar livre de preconceito e o pensar alargado. Ela diz respeito ao pensar de modo consistente ou consequente, e Kant entende que ela depende de uma observância reiterada dessa ligação, “convertida em perfeição” (KANT, 1993, p. 142). Em Lógica (1992, A84, p. 74), Kant chama a primeira máxima de esclarecida, a segunda de ampliada e a terceira de maneira de pensar consequente. Como referimos, essas três máximas são fundamentais para a orientação no pensamento, sem a qual a comunicação entre os humanos seria impossível. Na Antropologia de um ponto de vista pragmático, Kant (2006) argumenta ser
[...] uma pedra de toque subjetivamente necessária da retidão de nossos juízos em geral e, portanto, também da saúde de nosso entendimento, que o confrontemos com o entendimento de outros, e não nos isolemos com o nosso e julguemos como que publicamente com nossa representação privada. (KANT, 2006, p. 116, grifos do autor).
Quem não se volta para esse sentido comum, por entregar-se a um jogo mental privado ou a experiências meramente privadas, torna-se incapaz de julgar em um mundo comum com os outros, ficando preso em seu próprio mundo. A experiência meramente privada inibe a possibilidade de comunicação. Kant (1993) destaca que a pedra de toque para nos orientarmos bem no pensamento reside em compararmos nossos próprios juízos com os dos outros, o que é possibilitado pelo sensus communis e suas regras. Esse entendimento humano comum, mesmo quando ainda não cultivado, é o mínimo que sempre se pode esperar de alguém que pretenda ser chamado de humano (KANT, 1993). O sensus communis é compartilhado por todos os humanos e somente pode ser moldado na companhia das outras pessoas. Ser capaz de bem orientar-se no pensamento é condição para rejeitar as diferentes formas de heteronomia que circundam a ação do sujeito. É condição também para fazer frente à perda de orientação que, por tantas vezes, marca a vida dos sujeitos. Tal perda pode traduzir-se como perda de sentido em um mundo em que não há mais um sentido único e abrangente com que se identificar.14 Como observa Almeida (2011), a perda de sentido, sua oferta mercadológica e a fragmentação no modo de o sujeito inserir-se no mundo, afeta tanto a ação quanto o pensamento e representa “[...] um dos grandes problemas de uma educação comprometida com um mundo em comum” (ALMEIDA, 2011, p. 191).
A capacidade de colocar-se no lugar do outro e de assumir a responsabilidade pelos próprios atos decorrente desse “momento kantiano” do pensar coloca como exigência ética fundamental à educação, uma vez que demanda assumir a responsabilidade para com o mundo, o amor mundi. A essa responsabilidade vincula-se nossa atitude face ao “fato da natalidade”, tarefa que, para Arendt (2000), não pode, todavia, ser delegada à pedagogia como ciência. Esse fato é o de “[...] todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento” (ARENDT, 2000, p. 247). Essa observação é justificada por Arendt mediante dois argumentos: O primeiro é que a educação é o “[...] ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens” (ARENDT, 2000, p. 247); o segundo é que a educação se constitui também no âmbito
[...] onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2000, p. 247).
Para isso, não se pode abdicar da tradição. O educador tem de mediar sua responsabilidade tanto com o mundo, salvando-o da ruína da ausência de sua renovação, quanto com as crianças, preparando-as a renovar o mundo. O educador tem de ser mediador, pois tem de ajudar a conservar o mundo ao mesmo tempo que tem de ajudar a renová-lo com a inserção dos novos - o fato da natalidade.
Considerações finais
No percurso desenvolvido, exploramos três dimensões do pensar arendtiano com o objetivo de tematizar o significado do educar hoje. Tomamos como ponto de partida a distinção entre pensar e conhecer e a retomada do conceito de sensus communis para explorar a dimensão pós-metafísica e intersubjetivista do pensar arendtiano. Vimos que, para o campo educacional, essa dimensão do pensar auxilia no necessário distanciamento da esfera da ação educativa para avaliar seu próprio significado, ao mesmo tempo que aponta para a dimensão compreensiva da educação e para uma concepção de ser humano tomado como aberto, singular e plural. Defendemos também que uma compreensão intersubjetivista só é possível na medida em que se ultrapassa os limites de uma compreensão metafísica do sujeito, operando o deslocamento de um sujeito centrado e autossuficiente para a perspectiva de um sujeito descentrado. Essa compreensão do sujeito abre espaço nos processos educativos para a exigência do reconhecimento do outro e para uma dimensão ética-formativa ancorada no reconhecimento recíproco.
No segundo passo, orientamos nossa abordagem à dimensão arendtiana do pensar como exame de si e seu caráter formativo. Vimos que a dimensão socrática do pensar arendtiano aponta para uma pedagogia da pergunta e da perplexidade na qual, ao invés da transmissão de respostas, deve-se buscar a perplexidade e o exame de si. Vimos, também, que a atitude de perplexidade, própria de uma vida em que se faz presente o exame interior, é indispensável para levar adiante uma vida com sentido e orientada para além de crenças convencionais e que, quando estas não são colocadas em questão, o indivíduo torna-se incapaz de guiar por si mesmo sua própria vida. O caráter formativo do pensar revela-se aqui em um tipo de relação que estabelecemos com nosso próprio eu e na alteração que sua força promove na maneira de nos relacionarmos com a realidade.
Por fim, na terceira parte, procurou-se explorar o sentido formativo da dimensão do saber orientar-se no pensamento. O diálogo Arendt-Kant, mediante o conceito de sensus communis e das máximas do pensar bem, indicou como a dimensão formativa aí identificada implica a capacidade de colocar-se no lugar do outro e, consequentemente, de assumir a responsabilidade pelos próprios atos, o que impõe à educação a exigência ética fundamental de assumir a responsabilidade para com o mundo. Essa responsabilidade demanda do educador a atitude de amor ao mundo tendo de, ao mesmo tempo, ajudar a conservá-lo e a renová-lo com a inserção dos novos sujeitos que a ele chegam.
Levando-se em conta o significado de educar os novos que hoje chegam ao mundo, um grande desafio posto é o de criar condições para que estes se constituam como pessoas, o que, para Arendt, é algo muito distinto de serem meramente humanos. Só é possível a alguém tornar-se uma pessoa se for capaz de pensar por meio da capacidade de relacionar-se de modo consistente consigo mesmo e de agir na condição de testemunha de si mesmo. Se um ser humano pode se recusar a ser uma pessoa, como alerta Arendt, e Eichmann representa à perfeição essa possibilidade, o significado mais profundo do educar hoje passa pela atividade do pensamento e ancora-se no desafio de criar condições para que os sujeitos não apenas sejam humanos, mas constituam-se como pessoas. Como refere a epígrafe deste trabalho, o pensar, juntamente ao lembrar, é o modo como cada ser humano toma seu lugar deitando raízes em um mundo em que chega como estranho. Os processos educativos deveriam contribuir para que nenhum ser humano permanecesse mero ser humano e estranho ao mundo. O que distingue uma pessoa de um mero ser humano ou, mesmo, de um ninguém, resulta, pois, do “[...] processo do pensamento que deita raízes” (ARENDT, 2004, p. 166). Em última instância, o pensar remete a um educar que crie condições para que cada ser humano como pessoa possa deitar raízes no mundo. Afinal, lembra nossa autora, “[...] uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência - ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos” (ARENDT, 1993a, p. 143).
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Notas