Resumo: Este artigo problematiza as relações de poder que envolviam a prática docente de professoras surdas que atuavam no Atendimento Educacional Especializado (AEE) de escolas públicas de João Pessoa, Paraíba. A pesquisa foi embasada na abordagem qualitativa, nos Estudos Culturais, com contribuições de Michel Foucault, e nos Estudos Surdos, utilizando como técnicas a entrevista semiestruturada e a observação não participante. Os dados empíricos revelaram que as identidades docentes das professoras surdas, especialmente de uma, estavam em constantes negociações. Elas, mesmo ocupando, legitimamente, um lugar social (docentes) na instituição escolar, eram vistas como passíveis de colonização por profissionais ouvintes. Suas ações sofriam, repetidamente, interferências, desconsiderando sua autonomia docente e criando, para elas, situações de constrangimento e violência nas escolas.
Palavras-chave: Relações de poderRelações de poder,Prática docentePrática docente,Professoras surdasProfessoras surdas.
Abstract: This paper problematizes the power relations that involved the teaching practice of deaf teachers who worked in the Specialized Educational Service (SES) of public schools in João Pessoa, Paraíba, Brazil. The research was based on the qualitative approach, in the Cultural Studies, with contributions of Michel Foucault, and in the Deaf Studies, using semi-structured interviews and non-participant observation. Empirical data revealed that the teacher identities of the deaf teachers, especially of one of them, were in constant negotiations. They, even legitimately occupying a social place (teachers) in the school institution, were seen as likely to be colonized by hearing professionals. Their actions repeatedly suffered interference, disregarding their autonomy and creating, for them, situations of embarrassment and violence in schools.
Keywords: Power relations, Teaching practice, Deaf teachers.
Resumen: Este artículo problematiza las relaciones de poder involucradas en la práctica docente de profesoras sordas que actuaban en la Asistencia Educacional Especializada (AEE) de escuelas públicas de João Pessoa, Brasil. La investigación se basó en el enfoque cualitativo, en los Estudios Culturales con aportes de Michel Foucault, y en los Estudios Sordos, utilizando como técnicas la entrevista semiestructurada y la observación no participante. Los datos empíricos revelaron que las identidades docentes de las profesoras sordas, especialmente de una, estaban en constantes negociaciones. Ellas, aun ocupando legítimamente un lugar social (docentes) en la institución escolar, eran vistas como pasibles de colonización por profesionales oyentes. Sus acciones sufrían interferencias repetidamente, desconsiderando su autonomía docente y creando para ellas situaciones de constreñimiento y violencia en las escuelas.
Palabras clave: Relaciones de poder, Práctica docente, Profesoras sordas.
Artigos
Diferença surda e relações de poder na prática docente
Deaf difference and relations of power in teaching practice
Diferencia sorda y relaciones de poder en la práctica docente
Recepção: 06 Março 2018
Revised document received: 18 Junho 2018
Aprovação: 22 Junho 2018
Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações [...], captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam [...]. Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício. (FOUCAULT, 1979, p. 182).
Os Estudos Culturais apresentam-se como um importante aporte teórico-político de análise para problematizar as relações de poder. O conceito de cultura, por exemplo, foi desnudado historicamente e deslocado de um conceito que distinguia, hierarquizava e segregava, com base em uma visão elitista, para um que considerasse uma diversidade de sentidos e significados cambiantes e versáteis (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003).
De igual modo, as identidades, nesse campo, passam a ser compreendidas como plurais, cambiantes, versáteis, múltiplas, fluidas e contraditórias (HALL, 2011). Rompe, assim, com o verdadeiro (FOUCAULT, 2012) da modernidade, que visava investir de poder e manter o discurso identitário único e inflexível, representado pela identidade branca, masculina, heterossexual, “normal”, sem deficiência, entre outras. Dessa forma, os Estudos Culturais concebem as identidades como construídas e “[...] produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas” (HALL, 2014, p. 109) sob tensas relações de poder.
A abordagem desse campo, portanto, vai ao encontro do pensamento de Michel Foucault. Considerado o cartógrafo1 das margens, das fronteiras, dos limites, Foucault visava mostrar e analisar as relações de força que instituíam o poder, possibilitando-nos o estudo dos fenômenos educativo-culturais a partir de uma visão mais difusa, em que os poderes (no plural) passam a ser vistos como presentes em todas as relações sociais. Ressaltamos, no entanto, que esse aspecto do pensamento foucaultiano se aproxima mais dos Estudos Culturais produzidos atualmente, uma vez que aqueles desenvolvidos pelos primeiros autores do Centre for Contemporary Cultural Studies at Birmingham encaravam o poder como advindo apenas verticalmente, ou seja, do Estado (VEIGA-NETO, 2000).
A epígrafe foucaultiana que antecede este texto, de algum modo, ilustra nossa intenção em captar como as relações de poder vêm operando dentro da instituição escolar no que concerne à prática de professoras surdas. Para tanto, os Estudos Surdos, inscritos como uma das ramificações dos Estudos Culturais, “[...] também enfatizam as questões das culturas, das práticas discursivas, das diferenças e das lutas por poderes e saberes” (SÁ, 2006, p. 65-66). O campo dos Estudos Surdos objetiva, dentre outras coisas, desvendar, a partir da diferença, as relações de poder que envolvem as pessoas surdas na sociedade e na educação, desconstruindo binarismos e estereótipos.
Assim, este artigo, proveniente de uma pesquisa de Mestrado em Educação2, à luz dos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais, dos Estudos Surdos e de Michel Foucault, problematiza as relações de poder que envolviam o trabalho de professoras surdas nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), onde desenvolviam, por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras), o Atendimento Educacional Especializado (AEE) para crianças surdas, em escolas públicas de Ensino Fundamental de João Pessoa, Paraíba, ditas inclusivas.
Com inspiração em Foucault, o filósofo que se interessava pela história dos sujeitos infames, nosso estudo focará no trabalho de três mulheres surdas, usuárias e professoras de uma língua considerada inferior (Libras). Neste texto, elas receberam os pseudônimos Karin, Carolina e Gladis.3 A seguir, expomos uma síntese das informações sobre elas:
Karin: 29 anos, era surda pós-lingual (surdez adquirida), graduanda em Letras-Libras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tinha sete anos de carreira (quatro anos na escola em que atuava, no momento da pesquisa, como prestadora de serviço), recebia cerca de um salário mínimo por um turno trabalhado e desenvolvia o AEE para alunos surdos e alunas surdas do Ensino Fundamental I.
Carolina: 27 anos, era surda pré-lingual (surdez congênita), graduada em Letras-Libras pela UFPB, cursava especialização em Libras, tinha quatro anos de carreira, atuava na mesma escola durante esses anos como prestadora de serviço, recebia aproximadamente dois salários mínimos por dois turnos trabalhados e desenvolvia o AEE para alunos surdos e alunas surdas do Ensino Fundamental I e II.
Gladis: 43 anos, era surda pós-lingual (surdez adquirida), graduada em Letras-Libras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Libras, possuía dez anos de carreira (seis anos na escola em que atuava no momento da pesquisa, como prestadora de serviço), recebia cerca de um salário mínimo por um turno trabalhado e desenvolvia o AEE para alunos surdos e alunas surdas do Ensino Fundamental I e II.
Além das protagonistas da pesquisa, são citados, nas entrevistas, ou aparecem nas situações observações, outras participantes e outro participante: Olívia, Osória e Osana (professoras ouvintes do AEE, que atendiam a crianças com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação); Inácia e Izaura (Tradutoras-Intérpretes de Língua de Sinais - TILS); e Sofia,Suelen e Samuel (alunas surdas e aluno surdo).
Procuramos, contudo, estar atentos aos procedimentos éticos de pesquisa. Por isso, a pesquisa foi submetida, antes de tudo, ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFPB, por meio da Plataforma Brasil. Para além de uma exigência institucional, a submissão dos projetos de pesquisa a um Comitê de Ética é imprescindível, visto que “[...] seu objetivo maior é preservar a integridade dos sujeitos, objeto da pesquisa científica, bem como apreciar previamente os projetos de pesquisa” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 47). A assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), conforme a Resolução do CNS Nº 196/96 (BRASIL, 1996), também foi uma etapa importante, haja vista que proporcionou às participantes informações sobre todas as etapas da pesquisa e sobre as técnicas que seriam realizadas, ficando livres para participarem ou não, bem como desistirem a qualquer momento.
Embasamos a pesquisa na abordagem qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 2006), porque ela perpassa vários campos, temas e disciplinas do conhecimento, oferecendo-nos a oportunidade de interpretar o objeto de estudo em sua dimensão cultural, subjetiva e objetiva. Ademais, as pesquisas qualitativas são importantes para as pesquisas em Educação porque são abertas a diversas possibilidades como, por exemplo, a combinação de mais de uma técnica de pesquisa, o que permite ao pesquisador e à pesquisadora chances de alcançar resultados mais significativos. Por isso, utilizamos a observação participante e a entrevista semiestruturada como técnicas para a coleta de dados.
A escolha da observação não participante (RICHARDSON, 1999) ocorreu pelo fato de ela permitir que desenvolvêssemos um olhar multidirecional sobre o tema. As observações foram realizadas de forma articulada, buscando identificar na prática das professoras surdas pistas que corroborassem ou contradissessem seus discursos, além de outros indicativos silenciados em suas narrativas. Consideramos, então, a observação um meio apropriado para o caso, uma vez que ela permitiu o estudo do tema sob diferentes perspectivas.
Durante três meses, ao realizar esse tipo de observação, permanecemos em local reservado das salas durante toda a aula. Nesse ínterim, anotamos todas as situações pedagógicas, sem interromper a explicação das professoras e evitamos emitir comentários a respeito das situações. Tais observações foram registradas em diário de campo, seguindo as recomendações de Cruz Neto (2002, p. 63-64), para quem “[...] quanto mais rico for em anotações esse diário, maior será o auxílio que oferecerá à descrição do objeto estudado”. Para fins deste texto, os fatos mais relevantes observados foram organizados em quadros e denominados “Situações”.
Além da observação, utilizamos a entrevista semiestruturada, por considerarmos importante relacionar prática e discurso, considerando-os como uma arena de significados (SILVEIRA, 2007). Com essa técnica, é possível uma aproximação das subjetividades dos sujeitos pelos quais a pesquisa se interessa. Embora discursos possam ser produzidos simplesmente para responder a determinadas questões da pesquisa, a entrevista pode ratificar ou negar indícios observados no contexto dos sujeitos. Por isso, nesta pesquisa, as entrevistas foram importantes, porque permitiram aprofundar questões que surgiram no processo de observação do trabalho das professoras surdas. Conforme Gaskell (2014, p. 65), “[...] a entrevista qualitativa pode desempenhar um papel vital na combinação com outros métodos”.
As entrevistas ocorreram em Libras e gravadas em vídeo. As professoras sentiram-se um pouco nervosas, ou melhor, preocupadas se iam compreender as perguntas, mas foram muito solícitas, generosas e compreenderam bem todas as questões contidas nas entrevistas, que duraram entre 48 e 55 minutos. Conforme Gaskell (2014, p. 82), “[...] a entrevista individual ou de profundidade é uma conversação que dura normalmente entre uma hora e uma hora e meia. Antes da entrevista, o pesquisador terá preparado um tópico guia, cobrindo os temas centrais e os problemas da pesquisa”. Nesse sentido, a partir do tópico guia (roteiro de entrevistas), realizamos várias outras perguntas, de forma tranquila e informal, tentando deixar as professoras confortáveis e, ao mesmo tempo, buscando aprofundar questões a partir de suas próprias colocações.
Após a coleta, foram realizados os seguintes procedimentos:
Ordenação dos dados: de acordo com a norma culta da Língua Portuguesa, transcrevemos para o computador todas as anotações feitas durante as observações das práticas pedagógicas de cada professora, além de traduzirmos todas as entrevistas da Libras para a Língua Portuguesa e também transcrevê-las.
Categorização dos dados: pensando na análise de conteúdo em uma perspectiva mais qualitativa, híbrida, elencamos categorias mestras para este estudo, que surgiram explicitamente nas observações e nos discursos das professoras durante as entrevistas. No entanto, questões implícitas e/ou secundárias também foram abordadas, visto que elas eram fundamentais para ratificarem ou negarem questões mais gerais.
Análise dos dados: nessa fase, articulamos os dados empíricos com os referenciais teóricos dos Estudos Culturais, dos Estudos Surdos e de Foucault, procurando corresponder aos objetivos deste estudo. Além disso, para um melhor resultado, relacionamos as práticas pedagógicas das professoras surdas aos discursos proferidos durante as entrevistas, a fim de analisar o objeto deste estudo de forma articulada entre prática e discurso. Para tanto, utilizamos princípios da análise de conteúdo para subsidiar esta pesquisa. A respeito desse método, Bardin (2011, p. 15) afirma que a análise de conteúdo é “[...] um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes) extremamente diversificados”. A análise de conteúdo foi incorporada à pesquisa por permitir que diversos instrumentos e técnicas pudessem ser utilizados no processo investigativo, além de que, por meio dela, é possível analisar diferentes objetos de estudo, correspondendo aos Estudos Culturais em sua aplicabilidade em diversas áreas do conhecimento e objetos.
Assim como afirma Foucault em A arqueologia do saber, consideramos que a história é descontínua, cíclica, feita de idas e vindas, com rupturas, porém, não totais. Foucault (2008) critica a história tradicional dizendo que ela “[...] procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização, o princípio - material ou espiritual - de uma sociedade, a significação comum a todos os fenômenos de um período, a lei que explica sua coesão - o que se chama metaforicamente o ‘rosto’ de uma época” (FOUCAULT, 2008, p. 10-11).
Dessa forma, é possível afirmar que, ciclicamente e com trajes distintos, as relações de poder permeiam a educação das pessoas surdas desde os seus primórdios, sendo expressas em diversos contextos. No campo docente, por exemplo, apesar de os primeiros professores4 de surdos serem os próprios surdos, que contribuíam para disseminar a língua de sinais; com a proibição do uso dessa língua no século XIX, eles foram excluídos desse campo (REIS, 2006). Atualmente, com o advento da inclusão, pessoas surdas têm retomado a importante função docente. No entanto, assim como acontece em todas as modalidades educacionais, as relações de poder enviesam também a educação das pessoas surdas, atualizando as formas de diminuição dessas pessoas. Segundo Sá (2006, p. 70), “[...] a história dos surdos é a história das relações entre as comunidades surdas e as ouvintes. É, portanto, uma história que expõe uma luta por poderes e saberes”. Sobre as relações de poder, Foucault (1995) afirma que:
[...] as relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; e que elas não reconstituem acima da “sociedade” uma estrutura suplementar com cuja obliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros. Uma sociedade “sem relações de poder” só pode ser uma abstração (FOUCAULT, 1995, p. 245-246).
Tal como o filósofo, os Estudos Culturais compreendem que o poder é indissociável dos processos culturais; portanto, para compreendê-los e intervirmos nesses processos, é imprescindível colocarmos o poder em nossas equações e agendas (VEIGA-NETO, 2000). É nessa perspectiva, então, que inserimos a discussão sobre identidade e prática docente. As relações de poder, enraizadas e difusas na sociedade - em todos os campos, espaços e relações sociais -, estão imbricadas e incidem diretamente sobre o trabalho de professoras surdas.
Esse trabalho acontecia no AEE. A Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva indica que esse serviço
[...] tem como função identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes, considerando suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. (BRASIL, 2008, p. 11).
Recomenda-se que o AEE seja desenvolvido na SRM, envolvendo todas as pessoas com deficiência, no contraturno da sala de aula regular. No tocante ao AEE específico para as pessoas surdas, consideradas pessoas com deficiência pela Política, recomenda-se que ele aconteça em três momentos didático-pedagógicos: AEE em Libras, AEE para o ensino de Libras e AEE para o ensino da Língua Portuguesa.
Damázio (2007) esclarece que o AEE em Libras se constitui em práticas didático-pedagógicas que abordem diferentes conteúdos curriculares, explicando-os em Libras às alunas surdas e aos alunos surdos. Para tanto, é recomendado que esse momento seja realizado por uma professora surda ou um professor surdo e que ocorra diariamente. O AEE para o ensino de Libras tem por objetivo favorecer o conhecimento e a aquisição dessa língua, em termos práticos e científicos. De igual modo, essa prática pedagógica deve ser realizada por professoras surdas e professores surdos de Libras. Segundo a autora, é preciso considerar o estágio de desenvolvimento da língua de sinais em que a aluna surda ou o aluno surdo se encontra (DAMÁZIO, 2007).
E, por fim, AEE para o ensino de Língua Portuguesa objetiva trabalhar as especificidades dessa segunda língua para as pessoas surdas. Também deve ocorrer todos os dias, à parte das aulas da turma comum, por uma professora graduada, preferencialmente, na área de Língua Portuguesa. Ademais, deve ser planejado, coletivamente, envolvendo professoras e professores de Libras e docentes da sala comum (DAMÁZIO, 2007).
Nas escolas onde trabalhavam as professoras surdas, o AEE era desenvolvido por elas e por professoras ouvintes. As docentes surdas, porém, mesmo ocupando na instituição escolar o papel docente - um lugar social legitimado e de autoridade nesse espaço, o que lhes daria também o direito de enunciar -, sofriam com as ações do poder sobre as suas ações. As professoras ouvintes não atendiam crianças surdas. Por isso, embora as atividades e os sujeitos atendidos fossem diferentes, o espaço do trabalho era (ou deveria ser) o mesmo. No entanto, na prática, as situações eram diversas e complexas, sobretudo pelo fato de o(s) poder(es) se expressar(em), por vezes, explicitamente, como mostra a situação a seguir.

Nessa situação, Olívia incomodou-se com a autorização de Karin para o desenvolvimento da pesquisa, apesar de ser apenas mais uma, visto que a direção escolar bem como a Secretaria de Educação também já haviam autorizado. Na opinião de Olívia, o início de qualquer atividade naquele espaço deveria ter a sua anuência. E, nesse caso, a outra professora havia descumprido a norma. De fato, seria mais diplomático se Karin tivesse comunicado à Olívia sobre o desenvolvimento da pesquisa, inclusive porque qualquer trabalho investigativo altera a rotina escolar. No entanto, ficou claro, nessa situação, que existiam outras questões além do incômodo pela falta de comunicação.
A professora ouvinte considerava que a SRM era de sua responsabilidade, portanto, era ela quem aprovava qualquer ação a ser desenvolvida ali. Isso ficou perceptível, inclusive, quando ela enunciou: “adoro receber estagiários na minha sala!”. Ora, aquele espaço era o ambiente de trabalho das duas professoras. Percebemos, então, a partir desse primeiro contato, que, naquele espaço didático-pedagógico, havia relações complexas de poder que o perpassavam, especialmente, na relação entre as duas professoras. Para respaldar essa percepção, baseamo-nos em Foucault (1979), para quem o poder não é algo que pode ser compreendido apenas de forma vertical, centrado em uma única fonte superior. Ele deve ser entendido de modo vertical e horizontal, multifacetado, difuso e presente em todas as relações humanas e práticas socioculturais, podendo ser tratado, inclusive, no plural (poderes). De acordo com o filósofo:
É preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o possuem. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 1979, p. 193).
Desse modo, até mesmo a mobília da SRM tem algo a nos dizer sobre essa relação. Como consta na Situação I, assim que chegamos, observamos que havia “uma mesa redonda no centro da sala, que era utilizada pela professora ouvinte, e uma carteira que era usada pela professora surda”. A mesa era grande, enquanto que a mobília utilizada por Karin era uma simples carteira escolar. O fato de Olívia ter uma melhor condição material de trabalho, bem como ter a SRM como sua, fez-nos supor, em um primeiro momento, que isso ocorria por ela estar há mais tempo na escola. Todavia, Olívia trabalhava ali havia dois anos, enquanto que Karin havia mais de quatro. Esse dado descartou a nossa suposta justificativa da autoridade conquistada pela professora ouvinte pelos anos de trabalho na escola. Tendo essa hipótese descartada, passamos a pressupor que isso ocorria, então, pela diferença surda.
Ao discutirmos as relações de poder na prática docente, precisamos considerar que vários problemas podem delineá-las, tais como: a organização da escola e suas hierarquias, a história da institucionalização dos serviços do AEE, as assimetrias de conhecimento, a experiência ou o status institucional, a presença histórica de práticas autoritárias dirigidas a colegas, discentes, servidoras e servidores escolares, entre outros. No entanto, em “tempos politicamente corretos”, as relações entre pessoas surdas e ouvintes podem não ser tão explícitas como outrora. Por isso, elas devem receber atenção em suas sutilezas, pois, embora possam não ser a única variável, também não podem ser descartadas, considerando, sobretudo, o processo histórico de opressão e desigualdades contra as pessoas surdas.
A sutileza da opressão e das desigualdades precisa, ao menos, ser problematizada a partir de indícios que os discursos fornecem. A fala da professora Karin, nesse sentido, indica que um dos problemas existentes na relação entre ela e a professora ouvinte se dá, justamente, pelas suas condições (surda/ouvinte), indicando, inclusive, que a relação com seus pares surdos seria diferente:
Eu quero trabalhar com professor@5 surd@. Tem uma troca, é bom! Ajuda nas atividades, nas festas, nos materiais, é bom, tem uma troca! Com ouvintes é diferente, podem falar mal de mim pelas costas e eu não vou saber de nada. E se el@s falarem mal de mim, eu não posso falar nada, não posso ficar com raiva del@s, não. (PROFESSORA KARIN).
Essa discussão - de relações de poder entre professora surda e professora ouvinte - pode ser incluída no campo da teoria pós-colonialista do currículo (SILVA, 2011), uma vez que, inseridas no campo escolar, as professoras surdas também fazem parte desse mecanismo de poder e são representadas ali, mais uma vez, como o Outro em sua face perversa e, por conseguinte, passível de colonização por meio dessas relações de poder-saber. Segundo Silva (2011, p. 127), “[...] tal como ocorre, de forma geral, nos Estudos Culturais, o conceito de ‘representação’ ocupa um lugar central na teorização pós-colonial”. O Outro surdo, mesmo em uma posição legitimada dentro da escola, ou seja, na condição de professora ou professor, permanece representado na condição do Outro colonizado, tendo, inclusive, a sua prática docente interferida por outrem. Veiga-Neto (2000) embasa nosso discurso, ao afirmar que, para Foucault, “[...] o poder não é entendido como uma ação direta e imediata sobre os outros, mas sobre as ações dos outros” (VEIGA-NETO, 2000, p. 62-63, grifos do autor). Assim, as relações de poder são disseminadas de modos heterogêneos e singulares, o que, muitas vezes, possibilita a ação sobre a ação dos outros.
Ao questionarmos Karin sobre como era a sua relação com as crianças, ela afirmou:
Aqui na sala do AEE é... Bom. Faltam materiais, falta papel, lápis, lápis de cor, é ruim. Eu preciso tirar do meu bolso para pagar, e eu não posso. Tem professor@s que falam: “você precisa comprar!” Eu falo: “eu não vou comprar, não!”. (PROFESSORA KARIN).
Como é possível perceber no enunciado, a prática docente da professora surda sofre interferência de outras profissionais, que cobram dela atitudes que ela não pode realizar. No entanto, Karin resiste a essa tentativa de submissão que lhe impõem, confirmando o que Foucault assegura na obra História da sexualidade I: vontade de saber, isto é, “[...] onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) este nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (FOUCAULT, 1985, p. 91). Ressaltamos que a Foucault interessava ainda mais a questão da resistência do que a do poder. Nesse sentido, destacamos que a professora resistia, reafirmando a sua posição docente no espaço escolar, enunciando aquilo que achava correto e negando-se a fazer o que fora “solicitado” pelas colegas de trabalho. Todavia, mesmo com nosso direcionamento para que ela se sentisse à vontade em explicitar se era Olívia quem fazia essas sugestões, sentimos, inclusive pelo tempo em que já estávamos realizando as observações, que Karin evitava falar sobre a colega, provavelmente por receio do que Olívia pudesse fazer caso tivesse conhecimento do conteúdo da entrevista. Ou seja, embora a professora em alguns aspectos resistisse, ela sabia que poderia sofrer sanções por fazê-lo.
Mais adiante, durante a entrevista, sob a reiteração da garantia do sigilo da pesquisa, Karin falou sobre a sua relação com a outra professora:
Ah, a confusão, já teve confusão! No passado, eu estava doente e não vinha trabalhar e precisei colocar muitos atestados. Então, Olívia me disse: “Cuidado! Você está colocando muitos atestados. Lá na Prefeitura, el@s vão ver e te mandar embora!”. Ela não é a minha chefe! Então, eu perguntei: “Você é a minha chefe? Você não é minha chefe, não! Nunca!”. Olívia respondeu: “Eu sei, eu só queria ajudar!”. Eu disse: “Eu sei, eu agradeço a sua ajuda. É bom, eu gosto! Mas não precisa ficar falando muito. Quando surge uma doença, quando a minha filha fica doente, com febre, eu se eu não venho, é normal!”. Eu não tenho preguiça de vir trabalhar, mas, com minha filha doente, eu não posso. Minha filha é mais importante, por isso eu faltei. Também teve outra confusão com Olívia porque faltaram materiais e ela me disse que eu precisava comprar, e eu disse que não tinha dinheiro, eu trabalho e ganho só um salário, um salário! Ela ganha dois salários. Dois! Manhã e tarde. O meu salário é R$ 800,00, o dela é mais, mais ou menos R$ 1.300,00 e o meu só R$ 800,00. Eu não posso comprar materiais. No ano passado, eu já comprei materiais para a festa do “dia d@ surd@”. Eu gastei pouco, R$ 20,00. É ruim! Ela falou: “pior vai ser agora no Natal, vai ter que gastar mais!”. Eu disse: “eu vou fazer o quê?”. Ela quer festa bonita, eu também quero fazer festa bonita, mas fazer o quê? A gente não tem uma relação de amizade, não! É diferente. Professora ouvinte de professora surda é diferente! Eu tenho vontade de trabalhar com outr@s surd@s, nós dois surd@s, eu tenho vontade. É bom, tem uma troca, ajuda. (PROFESSORA KARIN).
As imposições de Olívia, nesse caso, interferem não só na vida profissional de Karin, mas também em sua vida pessoal, pois o que estava em questão era a sua saúde e a de sua filha. Não obstante, Olívia possa ter dado um conselho a Karin com boas intenções, esta não o recebeu bem, provavelmente pela relação desestabilizada que elas já haviam construído.
Na outra situação narrada pela professora surda, o tom e a atitude impositiva e autoritária da professora ouvinte ficaram mais evidentes, sobretudo quando afirmou que Karin ia ter de gastar ainda mais no Natal. Karin, novamente, resiste e se impõe da mesma forma, quando questionou se Olívia era a sua chefa. Contrariando os discursos históricos proferidos por ouvintes sobre a história das pessoas surdas, ela - a história surda6 -, na realidade, é produto de muita resistência e não de acomodação aos discursos dominantes (SÁ, 2006). De acordo com Foucault (1995, p. 276), “[...] para compreender o que são as relações de poder, talvez devêssemos investigar as formas de resistência e as tentativas de dissociar essas relações”.
Historicamente, a relação entre pessoas surdas e pessoas ouvintes é complexa e permeada por relações de poder. Embora em situações do dia a dia possa aparecer travestida por outros discursos, a diferença surda (em uma perspectiva cultural) ou a surdez (em uma perspectiva biológica) pode ser a gênese de toda essa dificuldade na complexa relação entre as duas professoras, Karin e Olívia.
O corpo está fortemente inserido nas relações de poder. Na abordagem foucaultiana, ele é considerado uma superfície discursiva. Quando se materializa em discurso, isto é, quando determinado corpo passa a ser “discursivizado”, como é o caso do corpo surdo - considerado deficiente, patológico, anormal -, este “[...] também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 28).
À luz foucaultiana, consideramos que os poderes, como micropoderes, incidem diretamente sobre o corpo surdo. O corpo surdo é socialmente posto como um corpo deficiente, anormal, que, desse modo, necessita de correção, normalização. Imerso em tensas relações de poder e à luz do saber médico-terapêutico, historicamente, ele tem sido reafirmado como uma deficiência e uma anormalidade, que, portanto, deve ser recuperado e normalizado.
De acordo com Foucault (1979), a medicina no século XVIII surge e é intensificada para normatizar a situação caótica da saúde pública, descrevendo e classificando as doenças. Desde então, esse saber tem predominado em detrimento de vários outros, como no caso do educacional na perspectiva dos Estudos Culturais. Ao tratar sobre a surdez, essa abordagem dá condições de se tratar de forma oposta os procedimentos a serem implementados na vida e nos processos educativos das pessoas surdas, defendendo o uso da língua de sinais como melhor alternativa linguística, bem como compreendendo a surdez como uma diferença e não como uma anormalidade ou uma deficiência. Em Os anormais, ao tratar arqueologicamente sobre a anormalidade do homem no século XIX, Foucault afirma que:
O indivíduo anormal do século XIX seguirá marcado - e muito tardiamente, na prática médica, na prática judicial, tanto no saber quanto nas instituições que o rodearão - por essa espécie de monstruosidade cada vez mais difusa e diáfana, por essa incorrigibilidade retificável e cada vez mais cercada por certos aparatos de retificação. (FOUCAULT, 2001, p. 75).
As identidades surdas, então, são deixadas de lado, levando-se em consideração apenas a interpretação sobre a surdez de base natural, biológica (o corpo, a patologia, o cérebro, a audição e o ouvido). Nessa óptica, o sujeito surdo, mesmo quando está em um lugar legitimado, que lhe outorgaria autoridade e lhe daria o direito de enunciar, como é o caso da escola, permanece sendo representado como um sujeito subalterno, inferior, com pouca capacidade, um deficiente, devido à surdez, ao corpo surdo. Vê-se isso no caso da professora surda. O fato de Karin ser surda tem uma relação direta com as representações sobre ela. Essa relação binária (pessoa surda-pessoa ouvinte) possui, na educação e na escola, “[...] uma representação colonialista, um fazer dos surdos subalternos, um discurso ouvintista” (SKLIAR, 2013, p. 21).
Na história, certamente com descontinuidades, a educação das pessoas surdas vem sendo dominada pela perspectiva do ouvintismo, que sugere uma forma particular de colonização das pessoas surdas (SKLIAR, 1998). Dessa forma, o ouvintismo - modo específico de relação de poder sobre as pessoas surdas - tenta silenciar as produções culturais e os enunciados expressos pela gestualidade dos sujeitos surdos, reforçando o conceito de corpo danificado, deficiente, anormal e incapaz, como assegura Perlin (2013, p. 53): “[...] o conceito de corpo danificado remete a questões de necessidade de normalização, o que significa trabalhar o sujeito surdo do ponto de vista do sujeito normal ouvinte”.
A tentativa ouvintista de fazer com que a docente surda e todas as outras pessoas surdas vejam a diferença surda como algo negativo, patológico, não é exitosa com Karin. Ela reconhece que existem diferenças entre o trabalho de professoras surdas e professoras ouvintes, por uma questão cultural, pelo modo diferente de agir no mundo, mas não como uma questão de maior ou menor valia. Segundo ela, “professora ouvinte de professora surda é diferente! Eu tenho vontade de trabalhar com outr@s surd@s, nós dois surd@s, eu tenho vontade. É bom, tem uma troca, ajuda” (PROFESSORA KARIN).
Instigados com a situação de Karin, questionamos a professora Gladis sobre como era a sua relação com a professora Osória. Ela respondeu:
É boa, ela me ajuda. Ela tem muita vontade de aprender Libras, ela sempre pergunta. Eu acredito que, no próximo ano, ela vai melhorar. Eu ensino L17. Quando eu não posso, ela me ajuda com Saulo. Ela me ajuda muito. Ela é de primeira. Quando eu preciso da ajuda d@s intérpretes na sala de aula, eu peço a ajuda do diretor e pedimos juntos que eles venham, então eles vêm e ajudam. Só Osória me ajuda (PROFESSORA GLADIS).
Fizemos a mesma pergunta à Carolina com relação à professora Osana; ela disse:
É boa, é boa, ruim não! Quando Osana tem dúvida, me pergunta. E quando eu tenho dúvida em português, ela me ajuda. Há uma troca. Quando existe uma falta de comunicação entre ela e @ alun@ surd@, eu ajudo. Tem uma troca, não é ruim não. É boa, é boa. É uma união. Eu erro, ela erra, não tem problema não, assim a gente aprende. O desenvolvimento é melhor quando tem união. (PROFESSORA CAROLINA).
Diferentemente da relação entre Karin e Olívia, tanto a relação entre Gladis e Osória quanto a de Carolina e Osana eram boas. As duas professoras surdas afirmaram haver ajuda e trocas provindas de ambas as partes. Nesse sentido, é preciso que se compreenda que as relações de poder existem em todas as relações. Faz-se necessário, porém, desestabilizar a ideia de que há dominação em todas elas e que apenas uma das partes age nesse processo, até porque os poderes emanam de todas as partes (FOUCAULT, 1979).
Os enunciados mostram que essa concepção cristalizada de que a relação entre pessoas ouvintes e pessoas surdas é sempre de dominantes e dominadas precisa ser relativizada. Ela é histórica e recorrente; no entanto, não se aplica a todas as relações. Há sempre a necessidade de estarmos atentos e atentas, problematizando-as, para que a diferença não se torne desigualdade. Contudo, não podemos desconsiderar a possibilidade da existência de relações interculturais, que vão construindo as identidades, ainda que também estejam investidas de poder; afinal, “[...] trata-se de processos em que estão sempre envolvidas das relações de poder, ou seja, relações que procuram impor determinados significados (e não outros quaisquer). É como resultado desses processos que se estabelecem as identidades” (VEIGA-NETO, 2000, p. 56).
Se considerarmos que todas as relações sociais são perpassadas pelos micropoderes, a partir das observações realizadas, poderíamos afirmar, inclusive, que, no caso de Gladis, a professora dominante seria ela, pois, além de estar ali havia mais de seis anos, enquanto que Osória apenas um, era nítido que ela tinha bem mais vez e voz no AEE do que a professora ouvinte. Já no caso de Carolina, percebemos que a relação era ainda mais horizontal, pois, sempre quando Osana precisava tomar alguma decisão, consultava sua colega. Aliás, Carolina a considerava sua amiga, como afirmou na entrevista.
Assim, sobre as relações entre professoras surdas e professoras ouvintes, reforçamos: embora saibamos que existem relações de poder em todas as interações sociais, é preciso que se relativize a concepção de que determinado sujeito é sempre o dominado. Todavia, nas relações de força estabelecidas, geralmente são os sujeitos surdos que sofrem, passando, inclusive, a serem vítimas de violência, como veremos na situação a seguir:

A conduta da intérprete vai de encontro aos pressupostos básicos de respeito às diferenças e à dignidade humana. Essa prática recorrente de expor sua diferença à zombaria causava-lhe um constrangimento, que pode ser caracterizado como violência. Foucault, contudo, mostra-nos que existem diferenças entre poder e violência. Para o filósofo:
Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas. Ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto a si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que o “outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis. (FOUCAULT, 1995, p. 243).
Identificamos nessa situação que Inácia, ao invés de contribuir para o trabalho da professora surda, que, naquele momento, era a responsável pelas suas alunas no AEE, praticava uma violência contra a colega de trabalho, uma vez que agiu sobre a ação dela, sobre o seu corpo (o corpo surdo), não dando chance de resistência, ao zombar de sua condição pelas suas costas. Ela contraria totalmente as orientações do Código de Ética de TILS (QUADROS, 2004), que orienta os(as) profissionais à prestação de assistência às pessoas surdas, inclusive, combatendo equívocos construídos em relação a elas.
Vale ressaltar que a presença das intérpretes naquele espaço era desnecessária, pois a professora e as suas alunas eram usuárias da mesma língua (Libras). Elas - intérpretes - encontravam-se no AEE em um momento que não estavam exercendo sua função, já que não havia outro espaço adequado para elas ficarem nos momentos livres ou porque elas se sentiam “guardiãs” das alunas surdas. Desse modo, elas exerciam uma forma sutil de poder, visto que a responsabilidade sobre as crianças no AEE era da professora surda.
Nas situações a seguir, é possível perceber outras práticas permeadas por relações de poder:

Essas situações colocam em destaque a invisibilidade do trabalho da professora surda no espaço do AEE. A professora ouvinte negava o trabalho que sua colega realizava, quando, na verdade, o Ministério da Educação (MEC) recomenda que dois dos três momentos didático-pedagógicos do AEE (AEE em Libras e AEE para o ensino de Libras) devem, preferencialmente, ser realizados por uma professora surda ou um professor surdo (DAMÁZIO, 2007). Vale ressaltar também que as três professoras surdas, na prática, desenvolviam os três momentos, assumindo o AEE para o ensino de Língua Portuguesa, como mostra o depoimento:
Eu penso que Olívia precisa ajudar-me com o português para surd@s. Ela tem tempo apenas para ensinar @s ouvintes e não tem tempo para ensinar @s surd@s. Ela ensina só mais @s ouvintes. Parece que ela não tem espaço no seu horário para ensinar português para @s surd@s. O pessoal da coordenação me disse que todas as professoras do AEE precisam ensinar o português, mas Olívia não tem um horário para ensiná-l@s. Eu percebo que ela acha melhor quando eu estou ensinando-@s, porque quando ela está atendendo-@s, el@s não entendem nada. Não tem uma relação. Entendeu? Por exemplo, lá na Prefeitura, o pessoal da coordenação falou que ela precisa ensinar também o Português, mas eu percebo que parece que Olívia não quer, não quer ensinar. Sabe por quê? Porque el@s não entendem o que ela fala. Quando el@s, @s alun@s e Olívia estão sentad@s conversando, el@s não entendem, perguntam: “O quê? O quê?”. Sempre eu, sempre eu? E ela não? (PROFESSORA KARIN).
Ao enunciar, Karin sinaliza que, em alguns momentos, esse atendimento ocorria ou já havia ocorrido. Isso mostra que Olívia, pelo menos, já tentara ensinar português às crianças surdas, porém sem sucesso, por conta da limitação linguística em Libras, o que confirma que ela não realizava o AEE naquele período junto àquelas crianças.
A negação do trabalho de Karin não era apenas retórica. Em outro momento, Olívia omitiu a informação de que as crianças surdas eram atendidas pela professora Karin. Ela elaborou um documento afirmando que era ela quem atendia às crianças surdas, mesmo sendo este trabalho exclusivo de Karin. Assim, Olívia desconsiderou o papel da professora surda como professora do AEE, não a citando em nenhum momento, nem ao menos por meio de uma breve observação no documento. Destaca-se ainda que Karin era quem digitava o texto, o que pode ser compreendido como uma forma de Olívia mostrar a ela “o seu lugar” ou o seu “não-lugar” naquele espaço didático-pedagógico.
Essa invisibilidade do trabalho de Karin foi percebida também na situação IV, quando a diretora da escola, mesmo sabendo que a pesquisa estava sendo realizada com a professora surda, perguntava pela ouvinte. Quando fizemos as primeiras visitas à escola, a diretora e a vice informaram que havia uma professora surda trabalhando ali, porém não sabiam ao menos os dias e os horários em que ela trabalhava, embora esse trabalho fosse diário. A invisibilidade do papel das docentes surdas expressou-se também durante a pesquisa exploratória, quando a coordenadora da Educação Especial de João Pessoa afirmou que não existiam professoras surdas e professores surdos trabalhando com crianças surdas, o que durante a pesquisa mostrou-se o contrário.
Dessa forma, as relações de poder que operam no campo docente em que as professoras surdas estão inseridas expressam-se desde a sua invisibilidade, passando pela violência como ocorria com Carolina, até a negação das identidades docentes dessas professoras, como ocorreu nas situações III e VI, quando Olívia fez questão de frisar que Karin não era professora, mas instrutora, a ponto de causar incômodo à própria Karin que, em uma conversa informal, disse não saber a diferença entre professora e instrutora: “eu sou professora, mas Olívia fala que eu sou instrutora de Libras, não sei a diferença!”. Se seguirmos de forma literal o Decreto No 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que considera que instrutora/instrutor de Libras é aquela ou aquele que possui formação em nível médio (BRASIL, 2005), poderíamos afirmar que Olívia tem razão: Karin era instrutora de Libras, diferentemente de Gladis e Carolina que, por possuírem formação em nível superior, eram professoras.
Não obstante, consideramos que o discurso legislativo é dúbio em relação a esse “rótulo” para as pessoas com formação em nível médio para o ensino de Libras, quando afirma: “[...] § 1º Admite-se como formação mínima de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a formação ofertada em nível médio na modalidade normal, que viabilizar a formação bilíngüe, referida no caput” (BRASIL, 2005, p. 28, grifo do autor). Além disso, é necessário imprimir sentido real ao termo docente8, independentemente da formação da professora surda e do professor surdo ser em nível médio ou superior. A função docente de Karin, por exemplo, é clara! Isso é ainda mais palpável se considerarmos os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) disponibilizados pela plataforma CultivEduca9, que mostra que, em 2016, a porcentagem de docentes da Educação Básica no Brasil sem Ensino Superior completo era de 22,1% (485.685). Assim sendo, questionamos: Como a professora surda pode não ser considerada uma professora enquanto que pouco mais de um quinto das(os) docentes ouvintes brasileiras(os) não possuem formação superior e, nem por isso, são chamadas(os) de instrutoras e instrutores ou quaisquer outras denominações?
Embora consideremos que, para o exercício da docência, a formação inicial, continuada, permanente e, sobretudo, qualificada, seja imprescindível, não é possível aceitar que se faça disso mais um mecanismo de poder excludente dentro do espaço escolar. A exclusão e a invisibilidade do papel e do trabalho de professoras surdas e professores surdos nos processos educacionais precisam ser problematizadas.
Em uma visão macro, em termos de sociedade e de mercado de trabalho, o viés neoliberal, no Brasil, estipula a remuneração do corpo docente de acordo com o nível de formação, o que não deixa de ser uma relação de poder. Para além dos aspectos burocráticos que envolvem a carreira, discursos como os da professora Olívia contribuem para expor as formas de hierarquização nas práticas docentes cotidianas e corroborar a histórica subalternização das funções exercidas pelas pessoas surdas e seus subsalários (RANGEL; STUMPF, 2012). Em uma perspectiva micro, na escola, os enunciados presentes na relação entre as duas professoras, Karin e Olívia, por exemplo, sugerem que não era o dispositivo legislativo que incidia sobre a ênfase da professora ouvinte na nomenclatura instrutora que ela tanto fazia questão de lembrar, mas relações de poder sutilmente travestidas desse dispositivo.
Segundo Garcia, Hypolito e Vieira (2005, p. 48), “[...] as identidades docentes não se reduzem ao que os discursos oficiais dizem que elas são”. De acordo com a autora e com os autores, as professoras negociam as suas identidades mediante uma gama de variáveis, tais como: a história familiar, as condições de trabalho e os enunciados proferidos sobre elas e sobre as suas funções. A fala de Karin vai ao encontro dessa ideia quando afirma:
As pessoas falam que eu sou instrutora, porque eu não sou concursada. Sou instrutora de Libras nas salas de aula comuns. Quando eu comecei a trabalhar, eu pensei que ia trabalhar apenas em salas de surd@s como professora de Libras, mas, na Prefeitura, disseram que eu precisava trabalhar, também, nas salas inclusivas, porque tinham surd@s nestas salas, senão, como ia ter comunicação? @s ouvintes precisavam aprender para ter uma comunicação com @s surd@s, entendeu? Então, o nome certo é instrutora de Libras. Professora de Libras é quem é concursada, que passou no concurso para ser professora de Libras. Eu sou instrutora, mas as pessoas me chamam de professora. @s alunos não conhecem “instrutora”, eles chamam “professora Karin”. [...] Eu me sinto professora! Porque eu ensino @s alun@s. Eu não me sinto instrutora, porque “instrutora” parece instrutora de cursos particulares de Libras (PROFESSORA KARIN).
Se a discussão das identidades das professoras surdas for refletida a partir da política educacional em vigor, ou seja, a inclusão, e caso esta esteja mantendo um modelo de hierarquização das diferentes expressões culturais e, de modo geral, das identidades, criam-se novas formas de relações de poder: as que são feitas por dentro do sistema, que mantém as pessoas à margem das oportunidades (DORZIAT, 2008).
No caso de Karin, embora ela exercesse a função de professora, recebia de algumas pessoas com quem trabalhava o rótulo de instrutora. Isso demarcava um lugar inferior, que ela própria acabava por incorporar, mesmo sentindo-se uma professora. Esse dado mostra que, embora esteja em um sistema que deveria ser inclusivo, a própria professora surda sofria as consequências das práticas subliminares de poder. Ademais, Karin não tinha muita clareza do motivo pelo qual lhe foi designado esse rótulo, atribuindo a isso o fato de não ser concursada, o que demonstra que este também pode ser mais um motivo para a excluírem. Destarte, a professora surda vinha tendo a sua identidade docente negada por sutis, embora contundentes, relações de poder, o que refletia na forma como ela se representava e, por conseguinte, na sua prática docente.
A história da educação das pessoas surdas é marcada por relações de poder. A cultura ouvinte, na tentativa de apagar a diferença surda, utiliza-se de estratégias subliminares de poder para alcançar êxito. No campo docente, por exemplo, essas relações têm se expressado desde a exclusão de docentes surdos no século XIX, até a negação dessas identidades no século XXI.
No que concerne à realidade estudada neste texto, os dados deixaram sobressair situações e enunciados em que as relações de poder são evidenciadas, ratificando a perspectiva teórica dos Estudos Culturais, dos Estudos Surdos e o pensamento de Michel Foucault, de que o poder é indissociável dos processos culturais (VEIGA-NETO, 2000). Os processos educacionais também o têm como basilar, como mostraram os dados em que as identidades docentes das professoras surdas, em especial de uma, estavam em constantes negociações no AEE, mesmo que a diferença surda não fosse o motivo explícito para tal. Essa forma implícita de poder sobre as pessoas surdas pela sua condição, em “tempos politicamente corretos”, pode ser regra ao invés de exceção.
As professoras, na condição de Outro surdo, mesmo ocupando um lugar social na instituição que representa legitimidade, autoridade, o que lhes daria, inclusive, o direito de enunciar, eram sujeitas, de forma recorrente, a atitudes de colonização. Essas representações eram materializadas por professoras ouvintes e intérpretes, com atitudes de discriminação direta sobre as ações das professoras surdas, sendo, inclusive, posta em dúvida sua condição de professoras. Isso desnuda o modelo de inclusão em vigor, apresentando seu lado excludente, resultado de constrangimentos violentos, protagonizados pelas(os) próprias(os) profissionais da educação.
É imprescindível, portanto, que as relações de poder que permeiam a educação das pessoas surdas sejam problematizadas e desnudadas. Os pressupostos teóricos dos Estudos Culturais, dos Estudos Surdos e de Foucault dá-nos essa possibilidade, contribuindo, inclusive, para que esses sujeitos se unam e resistam às faces mais perversas de processos educacionais pouco educativos.


