Seção temática: E depois do pós-estruturalismo?: experimentações metodológicas na pesquisa em currículo e educação - Apresentação
E depois do pós-estruturalismo?: experimentações metodológicas na pesquisa em currículo e educação
And after post-structuralism?: methodological experimentations in curriculum and education research
¿Y después de el postestructuralismo?: experimentos metodológicos en la investigación curricular y educativa
O nome do pós-estruturalismo encontra-se indubitavelmente ligado ao campo do currículo no Brasil. Hoje, é quase inelutável a tentação de associá-lo a um conjunto de variações teóricas que o campo curricular brasileiro suscitou e promoveu nos últimos vinte anos na pesquisa em educação, sobretudo, a partir das traduções promovidas por Tomaz Tadeu da Silva1. Uma afirmação dessa magnitude pode, de fato, parecer estranha, quando não, pretensiosa ou, simplesmente, não passar de uma conclusão corriqueira. De qualquer forma, sua enunciação permite dimensionar o impacto pós-estrutural nos horizontes imaginativos do pensamento curricular brasileiro. Há uma década, por exemplo, em investigação sobre teses e dissertações, entre 1996 e 2006, as perspectivas críticas - tributárias, em grande parte, de aportes marxistas e com forte marco sociológico - eram apontadas como as hegemônicas no campo curricular no Brasil (LOPES; MACEDO; PAIVA, 2006).
Embora a entrada das perspectivas pós-estruturais tenha emergido desde o início da década de 1990, sua força "desarrumadora" e criativa, salientada por Marlucy Paraíso (2004, 2005), ainda parecia pouco audível no enquadramento mais amplo da pesquisa em currículo. Se o mapeamento do Grupo de Trabalho (GT) de Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) empreendido pela autora, àquela altura, sinalizava para linhas de fuga diante de sinais de esgotamento das perspectivas críticas, nos últimos anos (CARVALHO, 2012), essas abordagens cederam vasto lugar aos chamados estudos pós-críticos2, concomitantemente à perda de influência das abordagens estruturalistas e marxistas.
De lá para cá, uma multiplicidade de posturas intelectuais passou a habitar o campo do currículo, constituindo uma variedade de tons discursivos e de formas escriturais que autorizam vários lugares de enunciação e de registros de experiências para pensar currículos. Os nomes e as obras de Michel Foucault, de Jacques Derrida, de Gilles Deleuze, de Homi Bhabha, de Ernesto Laclau e de Chantal Mouffe, de Judith Butler têm sido extensivamente absorvidos, ainda que frequentemente hibridizados (LOPES; MACEDO, 2002, 2003; LOPES; MACEDO; PAIVA, 2006). A sucessão de influências que o pós-estruturalismo e tantas outras viradas "pós" arrastaram para o campo curricular brasileiro pode ser vista, aliás, como reações imunológicas ao determinismo sociológico, enxertando-as de modo inventivo no enraizado hábito pragmatista, do que, acertadamente, Peter Taubman (2009) chamou de linguagem da pedagogia. Todavia, ao contrário do que se poderia esperar, essa "conversa complicada" - preciosa expressão que William Pinar (2004) usou para descrever a complexidade espaço-temporal do campo do currículo - ainda se mostra demasiadamente tímida nas discussões sobre metodologias de pesquisa em educação e, até mesmo, em currículo, e as tentativas de articulação ainda são relativamente raras.
Esforços iniciais foram empreendidos na, hoje, clássica coletânea organizada por Marisa Vorraber Costa (COSTA, 2002a; 2002b; COSTA; BUJES, 2005), marcada, de modo especial, pelo impacto do pensamento de Michel Foucault e dos Estudos Culturais - movimento retomado uma década depois em obra organizada por Dagmar Meyer e Marlucy Paraíso (2012). No entanto, a influência do pós-estruturalismo, este complexo heterogêneo, produzido na interface entre filosofia e teoria social no final do século XX, está longe de ter atualizado todo o seu potencial. Sua presença na própria contestação metodológica dos caminhos de investigação em educação e currículo é bem menos evidente e direta, manifestando-se antes por meio de efeitos da sistêmica difusão desse ambiente teórico-cultural que marca o campo curricular da virada dos anos 2000. Embora a literatura introdutória ao pós-estruturalismo (PETERS, 2000; PETERS; BURBULES, 2004; WILLIAMS, 2012) e suas relações e distinções com o pós-moderno e pós-colonial, inclusive no próprio campo do currículo (LOPES, 2013; SILVA, 2001) tenha salientado como a radicalidade do enfoque na linguagem implica em críticas coextensivas à ciência e à produção do conhecimento -, ainda é preciso explorar uma forma de acolher, sem com isso domesticar, as implicações pós-estruturais para a metodologia de pesquisa em educação e em currículo.
Em outro diagnóstico do GT de Currículo da ANPEd, Alfredo Veiga-Neto e Elizabeth Macedo (2008, p. 249) já sinalizavam para como "[...] a ideia de que a linguagem não é transparente caiu como uma luva numa área que se debatia contra o positivismo, mas não nos afastou necessariamente do realismo". Essa indicação revela como se buscou manter e justificar não só o realismo, mas também, em especial, os marcos do humanismo face à entrada e à difusão do pensamento pós-estrutural na pesquisa em currículo. Apesar de o campo ter se tornado progressivamente mais aberto e ter consolidado o pós-estruturalismo como quadro teórico das pesquisas, ele ainda se debate com tudo aquilo que importunaria e fustigaria a ideia de realismo e de humanismo da metodologia de pesquisa, assim como com o heterogêneo que dilacera pretensões universalistas e representacionais. Este é o fenômeno mais significativo do presente século na educação: a intromissão da diferença, que, agora, mais formidável do que nunca, introduz, no horizonte histórico do humanismo, o sentimento de irrupção incontornável. Enfim, enquanto percebíamos, cada vez mais, que os modos de existência vêm à tona não por meio das substâncias pétreas, mas da diferença, quiçá monstruosa, os fantasmas humanistas e realistas foram reativados com força descomunal, demonstrando alguma dificuldade ética e política de nossa parte em conjurá-los.
Talvez se possa sugerir que a prevalência do humanismo e do realismo seja fruto, ao menos em parte, de certo abandono das discussões metodológicas no campo do currículo e, mesmo, da educação. Tal abandono pode ser a reativação dos traumas de décadas em que a metodologia assumiu protagonismo na pesquisa em currículo e em educação de forma mais geral. Nem falamos aqui dos anos de 1970 e do início dos anos de 1980, em que a prevalência do empirismo quantitativo fez proliferar um conjunto de estudos pouco relevantes que, a despeito de justificados pelas intervenções que podiam gerar, pouco chegavam efetivamente a impactar a educação. A virada qualitativa dos anos subsequentes, alicerçada em certa medida na rejeição a uma pesquisa inócua, fez proliferar um conjunto de métodos e técnicas de matriz compreensiva e interpretativa que até hoje predominam nos estudos curriculares no Brasil. A situação descrita por Alice Casimiro Lopes, Elizabeth Macedo e Edil Paiva (2006) entre 1996 e 2006 não parece muito distante se feita uma nova busca nos principais bancos de teses e de dissertações. A ideia de que há uma realidade a ser investigada e de que a ela se pode ter acesso via observação e "conversas" com informantes privilegiados segue naturalizada mesmo quando a possibilidade mesma de representação é posta em discussão.
Esta seção temática parte do intuito de detonar um horizonte de possibilidades para os modos de pesquisar a partir das múltiplas valências do pós-estruturalismo. E, com efeito, seria preciso assinalar o duplo sentido da interrogação-título; aquele de multiplicar as diferentes perspectivas que fustigam o rótulo pós-estrutural como um objeto compacto e unitário e, ao mesmo tempo, de difratar uma série de vínculos adicionais implicados no nome pós-estrutural nas metodologias de pesquisa. Isso porque a literatura internacional no campo da educação, que, ao longo já dos últimos 20 anos, tem discutido como produzir pesquisas no marco pós-estrutural, passa quase despercebida no cenário da pesquisa em educação brasileira. Textos clássicos (SCOTT, 1991; LATHER, 1993, 2001, ST. PIERRE, 1997) que problematizaram a experiência, a noção de validade e de realidade, assim como apontaram para a possibilidade de dados transgressivos tais como emoções, sensações e sonhos são pouco conhecidos e referenciados. As próprias noções de informantes ou colaboradores de pesquisa, largamente usadas nas investigações de cunho qualitativo, têm passado quase incólumes às críticas pós-coloniais às icônicas imagens dos sujeitos nativos (SPIVAK, 1999; ALCOFF, 1991-1992; SAID, 1989). O mesmo segue ocorrendo com as subversões que a leitura de Deleuze tem provocado no campo da pesquisa educacional. As implicações da crise da representação e da materialidade da linguagem (MACLURE, 2013); os desdobramentos da noção de experiência no terreno da voz (MAZZEI, 2013; JACKSON; MAZZEI, 2009); a problematização da relação do sujeito com o dado quando os limites entre sujeito e objeto são corroídos (ST. PIERRE, 2013) são exemplos de discussões que têm trazido para o campo metodológico a opção pós-estrutural e mesmo pós-material.
No Brasil, mesmo assumidas com força teórica no campo do currículo, as implicações pós-estruturais parecem, portanto, constituir um hiato metodológico quando se trata de responder à interpelação como fazer pesquisa?, tendo-se em conta que "[...] os limites do conhecimento têm um papel inevitável em seu âmago" (WILLIAMS, 2012, p. 14). Ou seja, de que não se trata mais apenas de trabalhar "[...] para mostrar a parcialidade da ciência (coisa que de, todas as formas, foi bastante fácil de conseguir) e para separar o bom cordeiro científico das más cabras" (HARAWAY, 1995, p. 139, tradução nossa). Assim, o conjunto de autores reunidos nesta sessão explora a metodologia de pesquisa em currículo e educação como uma questão "[...] mais de ética e de política do que de epistemologia" (HARAWAY, 1995, p. 32, tradução nossa). Atravessados por implicações pós-estruturais de múltiplas formas e a partir de múltiplas fontes e referências, os artigos aqui reunidos não se preocupam apenas em sinalizar para como a resistência ao pós-estruturalismo tornou-se um local de medo mais geral sobre a perda do domínio cognitivo - algo que Judith Butler e Joan Scott (1992) salientavam no domínio da política. Antes, exploram, diante de um amplo enquadramento teórico - Filosofia da Diferença, estudos pós-coloniais, estudos queers e feministas, virada ontológica e neomaterialismo - e a partir das narrativas biográficas, das imagens e do cinema, da cartografia, como podemos abrir veredas outras para a metodologia de pesquisa em educação por fora e para além da centralidade da representação.
O fio que atravessa os seis artigos dessa seção é, de fato, essa herança do já conhecido questionamento da representação nas ciências sociais. Não é, assim, de se estranhar que, nos ziguezagues desse percurso, ficção, composição, experimentação, relação, criação e outros tantos termos aparentados povoem os textos. Mais do que maneirismo linguísticos, tais expressões denotam a busca por radicalizar a sensação de inacabamento perpétuo e exacerbar a impossibilidade da representação a fim de enfrentar a multiplicidade de todo e qualquer coisa que chamemos "objeto" (ou sujeito). "Objeto", para nós, seria apenas um estado particular de transformações em fluxo e devir cujos limites são radicalmente contingentes e, além disso, definíveis de modo relacional.
É explorando uma ontologia do sujeito relacional que Janet L. Miller e Elizabeth Macedo complicam as pesquisas biográficas e a pesquisa intervenção no campo curricular e educacional. Por sua vez, Marcelo Santana Ferreira aborda a dimensão ficcional de qualquer emergência de um "eu" em pesquisas interessadas nas escritas em primeira pessoa e autobiográfica. Ficção e relacionalidade encontram-se no artigo de Thiago Ranniery como condição inescapável da política de escrita da pesquisa em currículo para figurar um campo de multiplicação ontológica e alianças conceituais. É sob o signo da aliança com a arte que Glaucia Conceição Carneiro e Marlucy Alves Paraíso se apropriam da cartografia como um exercício intensivo e criador de emaranhar performances queers, as ruas da cidade de Belo Horizonte e o currículo. Compondo com o cinema, Antonio Carlos Rodrigues de Amorim aposta ainda nos obras audiovisuais na pesquisa em currículo como possibilidade de criação de mundos possíveis. Por fim, a seção encerra-se com a tradução inédita de um texto de Elizabeth St. Pierre. Nele, o/a leitor/a poderá acompanhar, entre as viradas da trajetória intelectual da autora nos Estados Unidos, a emergência do debate sobre a pesquisa pós-qualitativa e mesmo da pós-investigação.
Esses artigos orbitam em torno de um conjunto de questões éticas e estéticas, tateando algumas indicações, por certo, precárias que deslocam o quadro pós-estrutural da pesquisa em educação e em currículo da abordagem sociológica e reflexiva para uma espécie de campo experimental filosófico. É, por exemplo, possível não se contentar apenas com "[...] uma explicação da contingência histórica radical sobre todo conhecimento postulado e todos os sujeitos cognoscentes" (HARAWAY, 1998, p. 15), mas antes lançar mão de "[...] uma prática crítica de reconhecimento de nossas próprias 'tecnologias semióticas' para a construção de sentido" (HARAWAY, 1998, p. 15)? Podemos compor metodologias que "[...] encontr[em] uma maneira de pôr em questão os fundamentos que são obrigada[s] a estabelecer" (BUTLER, 1998, p. 17)? Ou seja, que não se atenham mais exclusivamente ao esforço de colar métodos buscados em diversas disciplinas - como, defendia a bricologem nos Estudos Culturais - de operar, assim, com uma coleção de métodos que capacitem para a construção de objetos de pesquisa, mas problematizar o próprio método como algo incessantemente redefinido em função dos encontros nos quais a pesquisa não cessa de engajar-se? Que, por fim, possam se deslocar do realismo e do humanismo em nome da experimentação, da desconstrução, da relação e da criação de outros possíveis? Essas e outras perguntas atravessam os textos desta sessão temática, restando-nos, aqui, encerrar com um convite à leitura.
Elizabeth Macedo (UERJ) Thiago Ranniery (UFRJ)Editores convidados