Resumo: A inspiração deste texto vem de um projeto de pesquisa "intervenção" que está sendo realizado em escolas públicas em que argumentamos que políticas públicas em currículo não precisam nem devem ser centralizadas. Ao longo do projeto e deste texto, dialogamos com uma longa tradição de estudos autobiográficos no campo do currículo e da formação de professores. Argumentamos que muitos desses estudos, apesar de trazerem para o discurso da política educacional termos ligados ao mundo da vida e às subjetividades, operam com uma noção metafísica de sujeito e uma crença na reflexão consciente como garantia de melhoria da experiência subjetiva. Em bases pós-estruturais, complicadas pelo neomaterialismo, defendemos a potencialidade de uma ontologia do sujeito relacional para a pesquisa autobiográfica e, com ela, conceptualizamos nossa versão de "intervenção".
Palavras-chave: CurrículoCurrículo,Pesquisa autobiográficaPesquisa autobiográfica,Pós-estruturalismoPós-estruturalismo.
Abstract: The inspiration for this text comes from an ‘intervention’ research project that is being carried out in public schools, in which we argue that public policies in curriculum do not need to be, nor should be, centralized. Throughout the project and in this text, we dialogue with a long tradition of autobiographical studies in the field of curriculum and teacher education. We argue that many of these studies, despite bringing to the discourse of education policy terms linked to the world of life and subjectivities, operate with a metaphysical notion of subject and a belief in conscious reflection as a guarantee of improvement of a subjective experience. In poststructural bases, complicated by neomaterialism, we defend the potentiality of an ontology of the relational subject for autobiographical research and, with it, we conceptualize our version of ‘intervention’.
Keywords: Curriculum, Autobiography, Poststructuralism.
Resumen: La inspiración para este texto proviene de un proyecto de investigación de "intervención" que se lleva a cabo en las escuelas públicas, en el cual argumentamos que las políticas públicas en el currículo no necesitan ni deben ser centralizadas. A lo largo del proyecto, y de este texto, dialogamos con una larga tradición de estudios autobiográficos en el campo del currículo y de la formación docente. Argumentamos que muchos de estos estudios, a pesar de traer al discurso de la política educativa términos relacionados al mundo de la vida y a las subjetividades, operan con una noción metafísica de sujeto y una creencia en la reflexión consciente como garantía de mejora de la experiencia subjetiva. En bases postestructurales, complicadas por el neomaterialismo, defendemos la potencialidad de una ontología del sujeto relacional para la investigación autobiográfica y, con ella, conceptualizamos nuestra versión de "intervención".
Palabras clave: Currículo, Investigación Autobiográfica, Postestructuralismo.
Seção temática: E depois do pós-estruturalismo?: experimentações metodológicas na pesquisa em currículo e educação
Políticas públicas de currículo: autobiografia e sujeito relacional*
Curriculum public policies: autobiography and relational subject
Políticas públicas de currículo: autobiografía y sujeto relacional
Recepção: 30 Junho 2018
Revised document received: 20 Julho 2018
Aprovação: 23 Julho 2018
Publicado: 03 Agosto 2018
Este texto evidencia um encontro entre duas pesquisadoras, assim como entre uma herança reiterada como différance e um compromisso ético-político nunca totalizável. Uma, nascida e sediada no EUA, envolvida com o movimento da reconceptualização dos estudos curriculares da década de 1970, marcada por variadas teorias feministas, incluindo pós-estruturais e neomateriais, com as quais perturbou a fenomenologia-existencial dos estudos curriculares nos quais se formou. Outra, brasileira, se aproximou dos estudos curriculares pela teoria crítica e, não sem alguma relutância, foi migrando para abordagens pós-estruturais e pós-coloniais. Uma vinda do campo da literatura, outra química de formação. Experiências e estilos que aqui se enredam, justapõem, friccionam em um texto que, em vez de esconder seu movimento de escrita, quer tirar da diferença sua potência1.
Herança e compromisso talvez digam do nosso encontro (im)possível aqui-lá-agora-antes-depois frente a um desconforto, metaforicamente condensado em políticas globais de currículo que buscam sufocar a alteridade e inviabilizar vidas. Um desconforto a que é preciso responder sem a contraposição de uma alternativa confortável, esta somente possível sob os escombros da diferença, como nos ensina nossa herança. Responder de forma ética aos chamados de ser educadoras e pesquisadoras do currículo - na miríade de possibilidades de resposta - tem nos aproximado e nos remetido a nossas heranças no campo do currículo, mas também no âmbito dos estudos pós-estruturais e pós-coloniais. Remetimento que, como différance, não nos leva à origem ou ao passado como tal e que, na relação, se difrata ainda mais. Lembramos a herança da reconceptualização americana do campo que, com sua rejeição à racionalidade técnica e à ênfase administrativa, ampliou o entendimento de currículo para tudo o que cerca os contextos educativos e neles acontece, incluindo dimensões políticas, sociais, culturais, históricas, de gênero e de raça. Movimento que, em sua não-unidade, congregava fenomenologia e marxismo em luta e que chega a um Brasil recém saído de uma longa ditadura, mais de uma década depois, quase que exclusivamente por sua vertente marxista. Herança que, desde então, aqui-lá tem lidado com movimentos identitários por direitos, complicações pós-estruturais, reivindicações pós-coloniais, questionamentos teóricos ao sujeito humanista que animava tanto a fenomenologia quanto o marxismo da reconceptualização.
Nossa lembrança, aqui-lá-agora-antes-depois, segue, assim, deslocada por um fantasma global, por demandas locais, por nós mesmas, por nossa relacionalidade, entre outras. É, assim, pura difração que, no entanto, nos leva a responder ao chamado do outro, rejeitando as grandes soluções que esquecem que a educação tem a ver com sujeitos e subjetividades. Leva-nos, também, a recuperar a autobiografia como o modo principal de interrogação e de pesquisa em currículo e, ao mesmo tempo, rejeitar a ideia de um sujeito auto-constituído. Obriga-nos a, por mais paradoxal que isso possa parecer, tentar seguir produzindo uma teoria que seja, a um só tempo, ampla, genérica e situada, que permita, não a intervenção mecânica, ou mesmo estratégica, mas a "intensificação máxima de uma transformação em curso" (DERRIDA, 2010, p. 14).
O chamado que ressoa em nosso encontro é, portanto, o de produzir uma teorização ética de currículo capaz de responder ao recrudescimento de políticas de controle, testagens de larga escala, que, agora, extrapolam fronteiras nacionais. Triste ironia quando, agora já há quase 50 anos, a reconceptualização imaginou estar, de alguma forma, barrando o avanço da racionalidade tyleriana e do eficientismo a que ela deu melhor forma. Exames, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), moldando currículos ao redor do mundo são a vingança perpetrada pelos fantasmas que nunca foram efetivamente mortos. Fantasmas do controle e da previsibilidade, que jogam o sujeito no limbo da boa política para uma educação de qualidade (MILLER, 2014; MACEDO, 2015). Onde está o outro, totalmente outro, onde a relação intersubjetiva, onde o imprevisível e o incontrolável que nossa herança nos impele a ver como o sentido mesmo de educar? Fantasmas que seguem nos lembrando a responsabilidade ético-política que temos, não apenas para com aqueles que não cabem nas políticas de reconhecimento vigentes (BUTLER, 2015c), mas para com a própria educação como devida ao outro (DERRIDA, 2010).
Fiéis, até onde isso é uma possibilidade, à herança que nos habita, sabemos não ser possível produzir uma teoria ética que, em sua totalização, se apresente como solução para o ataque global. Isso seria matar a potência do chamado que nos aproxima, ele precisa seguir ressoando e nos instigando a intervir na contingência e no desconforto. É a responsabilidade ético-política de tal "intervenção" que nos fez responder, com um grupo de colegas, a um edital do CNPq para projetos na área de ciências humanas anunciado como parte "[...] do esforço nacional de melhoria da educação básica" (CNPq, 2016, p. 1). Afinal, um tal esforço tem sido, independentemente de referir-se ao Brasil ou aos EUA, um dos compromissos que anima a vida acadêmica da ampla maioria dos pesquisadores do campo da educação, assim como a teorização de currículo herdeira da reconceptualização. Julgamos, portanto, que, mais do que algo a dizer quando se busca produzir "[...] conhecimento de modo a subsidiar a elaboração, implementação e avaliação de políticas educacionais, capazes de contribuir para a elevação da qualidade da educação brasileira" (CNPq, 2016, p. 1), temos a obrigação de fazê-lo.
Embaralhamos nossas heranças - com as heranças de outros - em um projeto de "intervenção"2 que se apresenta como resposta necessária exigida pelo outro sem o qual não há educação. Ecoando as palavras de Brown (2011, p. 315, tradução nossa), perguntamo-nos: "[...] como um sujeito construído historicamente, não-unificado, não-auto-consistente e não-auto-constituído pode, eticamente, apresentar-se para si como um 'eu' e responder eticamente a um outro 'eu'?". Ecoamos aí, além das lições da reconceptualização, rupturas e desafios pós-fundacionais a versões racionais e totalmente conscientes de sujeito que nos marcam como sujeitos-em-relação. Não há como responder a essa questão a não ser se jogando, com responsabilidade, mais do que no desconhecido, naquilo que não se pode jamais totalmente conhecer - sob pena de torná-lo o mesmo.
Nesse sentido, estamos, no momento, nos jogando na relação com o outro, professores- sujeitos "construído(s) historicamente, não-unificado(s), não-auto-consistente(s) e não-auto-constituído(s)" em escolas das redes municipais de Niterói (RJ), Rondonópolis (MT), Cachoeira e São Félix (BA). Pretendemos - e não queremos apagar desse verbo o sentido de arrogância que a pesquisa de décadas talvez nos permita - responder à chamada pública explicitando, primeiro, que "elaboração, implementação e avaliação das políticas educacionais" não são processos isolados e subsequentes. Contra essa ideia, aliás, podem ser apresentadas, se a teorização curricular não é suficiente, as próprias evidências - seja lá o que isso quer dizer - de que não se tem tido sucesso na "elevação da qualidade da educação" pela reiterada aplicação desse modelo. A ausência de qualidade que precisa, segundo a lógica imperante nas políticas públicas (e na chamada do CNPq), ser atacada tem sido, há muito, produzida por essa mesma lógica. O fantasma tyleriano redivivo vem reforçando a ilusão de que as políticas curriculares, para serem públicas e universalmente distribuídas, precisam ter por destinatário um projeto de sujeito abstrato.
Nosso mergulho na relação com o outro explicita nossa crença na educação como um processo de subjetivação que só pode ocorrer na relação com a alteridade. Herdeiras fiéis - e subversivas - das lições da reconceptualização, complicadas pelos muitos pós, vemos a suposta crise da educação, tal como apontada nos diagnósticos das políticas, como efeito do controle que, para ser efetivo, tem de apostar na destruição do sujeito "construído historicamente, não-unificado, não-auto-consistente e não-auto-constituído" a que a educação se refere. Ao invés de intensificar o controle, acreditamos que políticas públicas em currículo devem ser locais, produzidas nas relações concretas no espaço da escola. Nossa intervenção ocorrerá, portanto, nas escolas em que os processos curriculares acontecem e, talvez, produza (apenas) uma teorização que ajude a liberar as interações invisibilizadas pelo discurso político ou pela própria teoria pedagógica. Nesse sentido, pretendemos produzir uma ação política, no sentido de Butler (1999, p. 212, tradução nossa), ou uma "[...] afirmação de possibilidades locais de intervenção pela participação precisamente nas práticas de repetição", nunca como o mesmo, de normas universalizadas. Não é, pois, uma ação contra as políticas centralizadas, mas aquela que pretende deslocá-las.
Estranhamente, talvez a grande questão que nos impele neste texto é entender que intervenção é esta que estamos propondo depois de tê-la proposto. Não há dúvidas de que fazer currículo, com professores, nas escolas, não é nada novo e que a ideia de fazê-lo lançando mão de narrativas autobiográficas conta com uma longa tradição. Também não há nada de original em tomar intervenções desse tipo como políticas públicas em currículo, ainda que este nem sempre seja o foco de estudos que Cestari (2013) bem nomeou de crença autobiográfica. A potência do que propomos está, acreditamos, em buscar produzir intervenções locais mantendo o diálogo teórico com abordagens pós-estruturais. Não se trata, assim, de fazer reviver um sujeito depositário do humanismo, conhecedor e conhecível, no controle de suas intervenções no mundo. Queremos, aqui, perturbar uma longa história de pesquisas autobiográficas no campo da política curricular e da formação de professores para, dessa perturbação, sem contraposição binária e sem superação, pensar uma intervenção que, de certa forma, também pressupõe "protagonismo" docente. Em outras palavras: como pensar "possibilidades locais de intervenção" e narrativas autobiográficas de professores sujeitos "construído(s) historicamente, não-unificado(s), não-auto-consistente(s) e não-auto-constituído(s)"?
Por tudo que vimos argumentando e pelo que, esperamos, ainda fique mais claro, parece óbvio que se trata de uma questão retórica a qual não é possível responder sem destruir a própria localidade ou situacionalidade à que ela se refere. O movimento que propomos, neste texto, assim como na pesquisa, é adensar o emaranhado teórico que permitirá estranhar sempre - e durante o processo - aquilo que for se constituindo em nossa intervenção. Partiremos das tradições humanistas que herdamos e produzimos no campo - e que contribuíram para que o local se tornasse visível à teoria educacional -, perturbando-o; e, em seguida, com o pensamento pós-estrutural e com as complicações que a virada ontológica neomaterial tem trazido à baila.
Uma noção de reforma e pesquisa da escola situada reforça meu trabalho de modo que eu olho para formas como situações particulares podem tornar professores e eu mesma capazes de reescrever e retrabalhar qualquer discurso de reforma e pesquisa educacional que venha a generalizar, universalizar, padronizar e reificar as identidades de professores e pesquisadores. Precisamos fazer isso, como sugere Butler (1993), utilizando a sempre presente ameaça de fora para expor os pressupostos fundantes do de dentro, para reescrever a história e os próprios usos desses termos e para expandir os sentidos do que e de quem conta em situações particulares. Eu acredito que é essa situada e, sim, até potencial e positivamente disruptiva versão das práticas de reformas em escola e pesquisa, que contém a promessa de "mudança da escola" que não se restringe a categorias normalizantes, exclusionárias e reificadas de sentidos, identidades e trabalho de professores e pesquisadores que querem criar espaços na escola para uma multiplicidade de sujeitos e conhecimentos. (MILLER, 2005, p. 176, tradução nossa).
Nosso primeiro movimento para pensar uma política pública "potencial e positivamente disruptiva" é dialogar com uma longa tradição na formação de professores, o que faremos tomando a liberdade de pinçar citações variadas de pensamentos distintos. Não garantiremos, assim, a inteireza dos argumentos de cada autor, porque o que nos interessa aqui é apenas trazer, de forma indiciária, a crença autobiográfica de que fala Cestari (2013). Nas palavras do autor, trata-se de uma crença na valorização da "[...] vida e [d]a experiência do processo de pesquisa como experiência formativa e existencial [...] e [d]a experiência socializadora das autobiografias como experiência afirmativa" (CESTARI, 2013, p. 13). Dentre os autores que Cestari ilumina, está todo um conjunto de pesquisadores brasileiros do campo da formação de professores e, também, nomes europeus como Gaston Pineau, Pierre Dominicé, Antônio Nóvoa e Ivor Goodson. Com esse conjunto, já tão heterogêneo teoricamente, queremos, ainda, mesclar a discussão americana do campo da autobiografia, desenvolvida, entre outros, por William Pinar e Madeleine Grumet, Jean Clandinin e Michael Connely, assim como a ideia de professor reflexivo tal como vem sendo tratada por Ken Zeichner. A partir do trabalho desses autores, distintos entre si, histórias de vida, narrativas, memórias, autobiografias, mundo da vida, experiência e voz dos sujeitos passaram a fazer parte de um léxico sobre políticas de formação e currículo antes completamente dominado por estatísticas e "intervenções objetivas". Usaremos aqui tais termos de forma intercambiável porque tomamos a todos como "[...] práticas contemporâneas de representação designadas para mover [a pesquisa de formação de professores e de currículo] [...] para longe da cientificidade e da apropriação do outro" (LATHER, 2001, p. 206, tradução nossa).
Talvez fosse possível dizer que esse emaranhado diverso de autores se move entre a fenomenologia e o pragmatismo de Dewey, produzindo uma teorização que traz a experiência subjetiva para a pesquisa, assim como para o próprio fazer da educação. Em relação aos autores americanos, talvez fosse possível, inclusive, aproximá-los no que Schubert (2010) chama de experimentalismo, que, segundo Pinar et al. (1995, p. 446, tradução nossa), implica compartilhar a "[...] enorme promessa de entender currículo como texto vivido". Tal atenção, no entanto, como lembram os diferentes autores, com ênfases diversas, não afasta os estudos autobiográficos da esfera pública:
[...] o foco da pesquisa narrativa não é apenas a experiência dos indivíduos, mas também as narrativas social, cultural e institucional nas quais as experiências individuais são constituídas, formatadas, expressas e vividas (CLANDININ; ROSIEK, 2007, p. 42, tradução nossa).
[...] contamos nossa história como um evento de fala que envolve relações sociais, culturais e políticas nas quais e para as quais falamos (GRUMET, 1990a, p. 281, tradução nossa).
Há algo na crença autobiográfica - que talvez esteja também em nossa "promessa de 'mudança da escola'" - de que precisamos desconfiar. Não nos parece suficiente asseverar o caráter social da "experiência dos indivíduos" ou de "nossas histórias", sem desconfiar da transparência de tais noções. Como destacava Pollock (2009), as representações das experiências ou das histórias do eu e do outro, em um contexto de pesquisa específico, com intenções determinadas, são já "realidades composicionais", fabricadas sobre assunções de uma linguagem transparente e de uma pressuposta autoridade do estar presente. Não é que os professores não vivam experiências que pudessem vir a narrar, grafar, refletir sobre, mas que tais experiências não são nem suas nem acessíveis a si. Em nossa (também) "crença" no potencial disruptivo de "situações particulares", queremos expressar, não sem dificuldades, que há limites, opacidades, na capacidade dos sujeitos de dar conta de si para si e para os outros. Partimos de quatro exemplos sobre como funciona a experiência na crença autobiográfica para trazer a, já antiga, problematização de Scott (1991) acerca do caráter de evidência da experiência:
A eficácia das histórias de vida nos procedimentos de formação está ligada, de modo constitutivo, à dimensão de socialização inerente à atividade biográfica, [...] entendida como o conjunto de operações segundo as quais os indivíduos escrevem suas experiências nos esquemas temporais que organizam mentalmente seus gestos, seus comportamentos, suas ações de acordo com uma lógica de configuração narrativa. (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 369).
As pessoas formatam suas vidas diárias por stories histórias [stories] sobre quem eles e outros são e como eles interpretam seu passado em termos dessas histórias [stories]. A pesquisa narrativa, o estudo da experiência como história [story] é, portanto, antes de tudo, uma forma de pensar sobre a experiência. [...]. Usar a metodologia da pesquisa narrativa é adotar uma visão particular da experiência como fenômeno sob estudo. (CONNELLY; CLANDININ, 2006, p. 477, tradução nossa).
Currere é uma tentativa de revelar as formas que as histórias [stories] (coletivas e individuais) e esperanças inundam nossos momentos e de estudá-los contando as histórias de nossa experiência educacional. (GRUMET, 1981, p.118, tradução nossa).
Ao olharem para si mesmos como pessoas que vivem experiências, eles se tornam mais felizes e melhores professores porque estarão mais sensíveis à maneira como os estudantes estão experienciando o mundo. Isto os coloca de volta em contato com eles mesmos e, ao assim fazerem, se colocam em contato com os alunos de uma forma melhor. Este seria meu argumento acerca do trabalho de reflexão sobre histórias de vida (GOODSON, 2007, p. 59).
Referindo-se especificamente ao campo da história, Scott3 (1991) incomodava-se com a autoridade que a experiência adquiria e com o caráter transcendental e incontestável que assumia, mesmo quando tal experiência era apresentada como histórica e contingente. Em suas palavras, "[...] a evidência da experiência opera como fundamento, oferecendo tanto um ponto de partida como uma explicação de tipo conclusivo a partir da qual poucas questões podem ou precisam ser formuladas" (SCOTT, 1991, p. 790, tradução nossa). O problema fundamental, para Scott, era que as "vozes" dos sujeitos, em geral de minorias marginalizadas, substituíam a problematização histórica e eram tomadas como evidências autorizadas, quase que exclusivamente porque vividas e sentidas. Dessa forma, a autenticidade era dada por uma espécie de pertencimento do pesquisador ou dos "sujeitos" da pesquisa àquele grupo ou contexto de que falavam.
Em contraposição ao que entende como uma leitura transparente da experiência, Scott (1991) vai argumentar, a partir de Foucault, em favor do caráter discursivo da experiência: "[...] não são os indivíduos que têm experiência, mas sujeitos que são constituídos pela experiência" (SCOTT, 1991, p. 779, tradução nossa). A experiência é discursiva, o vivido só faz sentido dentro de uma ordem discursiva que produz aquilo de que fala (FOUCAULT, 2009). As vidas narradas, grafadas pelos professores, ou as experiências sobre as quais refletem são interpretações fortemente influenciadas por discursos sociais e culturais, assim como por condições materiais, que enformam "como suas visões são estruturadas" (FOUCAULT, 2009, p. 82).
Nosso diálogo com Scott pretende problematizar as pesquisas narrativas ou autobiográficas no campo da formação de professores em seu realismo e, também, na ideia de que se narrar é potente para a autocompreensão e para uma melhor atuação profissional. Aqui, talvez, seja também importante colocar sob suspeita a ideia de identidade profissional necessária para erigir essa crença na narrativa autobiográfica. Mesmo que lidando com a narrativa de sujeitos singulares, tal crença precisa constituir um sujeito coletivo, algo universal - profissional, nesse caso. Tomando a advertência de Scott, seria necessário "[...] entender as operações de processos discursivos complexos e mutáveis pelos quais as identidades são atribuídas, assumidas, resistidas e quais processos são apagados e, de verdade, atingem seus efeitos porque são apagados" (SCOTT, 1991, p. 792, tradução nossa). A autora exorta-nos a considerar as re-inscrições de identidades e experiências supostamente compartilhadas de forma universal, sob pena de estarmos diluindo a diferença, com a qual estamos lidando nas autobiografias, na mesmidade. As ideias de colaboração e relacionalidade que marcam nossa intervenção - e suportam também a crença autobiográfica - precisam ser confrontadas com os exercícios de poder e de autoridade que as permeiam consolidando identidades.
Nosso argumento não é, no entanto, contra algo a que se poderia chamar de experiência (profissional), o que soaria como um contrassenso em um projeto que se propõe a produzir políticas públicas nas escolas. Com Scott (1991), tomamos, por enquanto, essa "experiência" como "evento linguístico particular" que acontece em um espaço discursivo (e material). Se a experiência, ao longo do projeto, será narrada ou grafada, não o será como o que ocorreu, mas como "[...] aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o que o conhecimento é produzido" (SCOTT, 1992, p. 26, tradução nossa). Assim, apoiadas em Scott (1991), imaginamos que a narrativa da experiência possa ser útil para o questionamento das normatividades que têm profundas implicações sobre "[...] como a diferença é estabelecida, como ela opera e de que forma constitui os sujeitos que veem o mundo e nele agem" (SCOTT, 1991, p. 777-778, tradução nossa).
A experiência como fenômeno linguístico põe em questão também a noção de subjetividade - e, como já destacamos, de identidade -, constructo inevitável na referência à pesquisa autobiográfica. As considerações de Scott não apontavam apenas para uma discussão epistemológica sobre o que pode ser tomado como conhecimento sobre o sujeito, mas punham em questão a própria ontologia do sujeito moderno, centrado e autoconsciente, sobre a qual repousa a crença autobiográfica:
[...] alegando que a identidade é uma ficção, pós-modernos atribuem nossos rabiscos e fantasias a determinações de gênero e códigos. [...]. O método autobiográfico nos convida a combater essas determinações [...] para nos desenvolver de formas que transcendem as identidades que outros construíram para nós. (GRUMET, 1990b, p. 324, tradução nossa).
[...] as práticas [biográficas] modernas parecem impulsionadas por necessidades de formação e de orientação permanente de sujeitos inacabados à busca de sentido, em todas as acepções do termo, de sensibilidade, de direção e de significação. (PINEAU; JOBERT, 1993, p. 58, tradução nossa).
Para mim, a negação de si, a negação do sujeito, a negação de identidade é apenas uma cumplicidade pós-moderna de jogos de palavras que mostram que a universidade está tomando o lado errado. O que eu aceito irrefutavelmente é que há 'eus' fragmentados, há múltiplos 'eus', há individualidades que não funcionam. Mas, ainda penso em um lugar onde a individualidade é um espaço importante para trabalhar [...]. (GOODSON, 2007, p. 63).
O colapso na noção de sujeito centrado já há muito se anuncia e, obviamente, os estudos autobiográficos vêm respondendo às demandas pós-estruturais e da própria modernidade de formas distintas ao longo dos anos. Como Hall (2006) destaca, o descentramento do sujeito veio se constituindo com as obras de Freud e Lacan e com o estruturalismo saussuriano, assim como com o trabalho de autores críticos, em especial Althusser, desaguando em Foucault e nas teóricas feministas, já na segunda metade do século passado. Com a guinada linguística pós-estrutural, a desconstrução do sujeito unitário, autocentrado e consciente - o sujeito do humanismo, como chama St. Pierre (2009) -intensificou-se com desdobramentos ontológicos que importam não apenas para a pesquisa autobiográfica, mas para o próprio sentido de educação. O humanismo de que fala St. Pierre é possivelmente aquele que Derrida (1991, p. 154) vai reconhecer como "[...] o solo e o horizonte [...] [de uma] ontologia fenomenológica [...], uma familiaridade metafísica que não é interrompida", e marca profundamente parte substantiva da pesquisa qualitativa - e autobiográfica - em educação.
Como falar de um eu (auto ou não) cuja bio seria grafada quando as ideias de sujeito e identidade entraram em colapso? A impossibilidade de localizar a experiência, a vida ou mesmo aquilo que é dito na unidade ontológica conhecida como indivíduo ou sujeito humano torna imperativo complexificar a pesquisa autobiográfica, se não se deseja abandoná-la. Nesse sentido, Miller (2005), em obra publicada, pela primeira vez, em 1998, destaca que
[...] educadores que desejam usar biografia, autobiografia e narrativa como formas de pesquisa na educação de professores e na pesquisa curricular [...] precisam considerar questões de construção de identidade, subjetividade e relações de poder que circulam pela linguagem, assim como pelas relações humanas. (MILLER, 2005, p. 50, tradução nossa).
Com o eu irremediavelmente entre aspas, a ideia de um sujeito totalmente realizado, consciente, soberano, racional, cuja voz unitária e coerente (WEEDON, 1997) só precisa ser liberada por uma experiência socializadora ou de empoderamento, parece ingênua. A promessa da crença autobiográfica colapsa com o sujeito e a representação em crise. Não são apenas as narrativas totalmente articuladas, transparentes e não-mediadas que estão em xeque, mas os sujeitos plenamente constituídos - conhecedores e conhecíveis - que as instituem. Tanto narrativas como sujeitos são, se aceitamos as lições pós-estruturais, efeitos de relações de poder e estes não podem, de fora de tais relações, manejá-las ou mesmo serem delas conscientes.
Não há, no entanto, autobiografia - e diríamos mesmo educação - sem sujeito. Eles têm papel fundamental na proposta de intervenção que fazemos, assim como, de forma diversa, nos estudos que aqui reunimos sob o rótulo de crença autobiográfica. Como podem ser conceptualizados na visão discursiva que assumimos? Ou, de forma mais radical, que "professor" - como sujeito e como identidade profissional - é este com o qual "contamos" para defender versões situadas e disruptivas das práticas de reformas na escola (MILLER, 2005)? Nossa resposta mais rápida é que "o sujeito" de que falamos - também, professor - é constituído por operações densas, por redes discursivas conflitantes e por materialidades e práticas socioculturais historicamente situadas (WEEDON, 1997), sendo simultaneamente constituído e descentrado por uma série de processos e relacionalidades. É essa ontologia do sujeito relacional, a um só tempo discursivo e material, que queremos explorar e complicar para pensar a relação entre subjetivação e prática autobiográfica de professores longe do sujeito humanista e da crença na reflexão sobre a experiência como aquilo que o faz melhor (seja lá o que isso quer dizer) ou mais consciente.
[...] o outro vê nosso rosto de maneira que nenhum de nós pode ver. Estamos assim, mesmo quando localizados, sempre em outro lugar, constituídos em uma socialidade que nos excede. Isso estabelece nossa exposição e nossa precariedade, bem como as formas em que dependemos de instituições políticas e sociais para persistir. (BUTLER, 2011, n.p., tradução nossa).
Já ao longo de algumas décadas, as demandas pós-estruturais que destacamos vêm pondo em questão a matriz de inteligibilidade da pesquisa narrativa autobiográfica - marcada "[...] por conceitos que repousam sobre a metafísica da presença" (ST. PIERRE, 2009, p. 224, tradução nossa). Mais do que a rejeição de uma versão humanista do autobiográfico, tais demandas têm nos permitido reagir às diversas práticas divisórias entre o "eu" e "outro", razão pela qual elas seguem presentes em nossas formas de responder, política e eticamente, ao outro enquanto tal. O que faremos aqui é, portanto, seguir em diálogo com a conceptualização de sujeito que vimos formulando - e a ontologia relacional que ela implica -, complicando-a com o que tem sido denominado de "virada ontológica". As críticas dos neomaterialismos (por exemplo, HEKMAN; ALAIMO, 2008; BARAD, 2007; COOLE; FROST, 2010) - e mesmo do novo empirismo, de Clough (2009) -ajudar-nos-ão, como vêm fazendo com autoras feministas pós-estruturais como Butler, a explicitar a materialidade e a corporeidade daqueles cujas vidas são narradas. Smith e Watson (2010) dão destaque a tal materialidade ao destacar que a autobiografia a "liga inextrincavelmente à memória e à subjetividade" (SMITH; WATSON, 2010, p. 49, tradução nossa). Para elas, "[...] o corpo - em particular, por causa da sua pele, anatomia, química - ressoa tanto como um lócus de identidade quanto como um registro das semelhanças e das diferenças que criam inflexões nas identidades sociais" (SMITH; WATSON, 2010, p. 51, tradução nossa).
Portanto, o movimento que buscamos, ao trazer a complicação neomaterial, não tem a ver com o abandono do linguístico, pois, como destaca Hekman (2014, p. 162, tradução nossa), "[...] no caso do sujeito, parece bastante óbvio que somos totalmente constituídos por linguagem. Posicionar um eu fora da constituição linguística é altamente problemático e parece exigir um retorno ao essencialismo do modernismo". Como a autora, no entanto, também nos parece "[...] igualmente inaceitável (imaginar que) a linguagem nos constitui inteiramente e somos, em certo sentido, bobos sociais" (HEKMAN, 2014, p. 162, tradução nossa). Ao reconhecer as complexas combinações de elementos que envolvem o sujeito ontológico, Hekman (2014) sustenta que uma ontologia do sujeito deve ser capaz de descrever intra-ações de múltiplos fatores que constituem a subjetividade, incluindo o linguístico, o racial, o material, o sociocultural e as preferências sexuais, dentre outros.
Esse debate entre, de um lado, a primazia do linguístico e, de outro, a materialidade do corpo, embora antigo, lastreado no dualismo entre natureza e cultura, foi e tem sido influente na teorização do sujeito da autobiografia. Entre outras críticas de autoras feministas a tal dualismo, a denúncia da associação subordinada de "mulher" à materialidade do seu corpo já não é recente. Mesmo o neomaterialismo (feminista), que tem trazido o corpo de volta às análises, especialmente àquelas envolvendo questões de diferença sexual, pode ser remetido a trabalhos que têm mais de 30 anos. Ouvimos, neles, os ecos de Haraway (1991), com suas teorias do cyborg - "[...] uma ficção que mapeia nossa realidade social e corporal como um recurso imaginativo que sugere alguns acoplamentos muito frutíferos" (HARAWAY, 1991, p. 191, tradução nossa) - ou da teoria do interacionismo de Tuana (1983). Nela, a autora rejeitava o dualismo natureza/cultura, preocupando-se com os impactos cognitivos da corporeidade e com as interações complexas entre o corpo e o mundo, incluindo as relações entre a materialidade humana e o mundo-mais-que-humano (TUANA, 2001).
Hekman (2014) acompanha essas mais de três décadas de neomaterialismo feminista, destacando algumas obras fundamentais na teorização da mulher como "[...] um fenômeno produzido pela linguagem, ciência, tecnologia e aparelhos" (HEKMAN, 2014, p. 159, tradução nossa). O que chama atenção nessa história é a teia intrincada na qual o sujeito se constitui, nas palavras de Bennett (2010, p. 161, tradução nossa), "[...] como uma montagem impura, humana e não humana", na qual a agência humana é uma rede intricada de humanidade e não humanidade. Nada muito distinto da noção de trans-corporeidade de Alaimo (2010), na qual a autora descreve o humano como uma mistura desordenada, contingente e emergente do mundo material e argumenta que humano e ambiente não se separam. Ou da rejeição de Grosz (2004) a qualquer versão de determinismo biológico, em favor de "uma política de afirmação da diferença" (GROSZ, 2004, p. 72, tradução nossa) que reconfigura a natureza como dinâmica e a materialidade como culturalmente produtiva, tudo escapando às práticas humanas - dentre as quais a linguagem - que tentam contê-las. O sujeito nômade de Braidotti (1994) é mais uma tentativa de situar, dar corpo, complexificar o sujeito como entidade múltipla que funciona em uma rede de interconexões - um sujeito culturalmente diferenciado, um mito, uma ficção política que permite o movimento entre categorias estabelecidas. Por fim, os já bem conhecidos estudos de Barad (2007) sobre a natureza das práticas discursivas que permitem relacioná-las aos fenômenos materiais, destacando que os indivíduos não possuem uma existência independente e autônoma, mas emergem de suas emaranhadas intra-ações.
Sem dúvida, as complicações dessas e de outras autoras do neomaterialismo são fundamentais para pensar uma outra ontologia do sujeito - que não o sujeito do humanismo -, sem o qual o recurso a narrativas autobiográficas arrisca se dissolver na ingenuidade e produzir as práticas divisórias que queremos evitar. Mais promissoras do que o simples questionamento do binário natureza/cultura, material/linguístico, tais complicações têm subvertido a noção temporal (cronológica e simultânea), com desdobramentos claros para a pesquisa autobiográfica, assim como para uma ontologia relacional do sujeito. Nesse sentido, o trabalho de Barad (2010) - influenciado por Derrida - tem nos instigado a considerar a "multiplicidade espectrológica4", descrita pela autora como a ruptura fantasmal da continuidade ou como relações de herança intra-cortadas por descontinuidades e indeterminações. É importante destacar que tal multiplicidade não se refere a incertezas sobre um progresso contínuo, linear e sequencial, no entendimento humano - como se houvesse certezas que, finalmente, poderiam ser obtidas ou narradas acerca de uma entidade fixa como o outro ou mesmo o eu. Barad está se referindo a indeterminações de fronteiras e seus exteriores como fechamentos impossíveis - o porvir. Tudo intra-age como uma ética da alteridade, em que o respeito ao outro envolve um trabalho espectral, perturbando as expectativas por narrativas fundadas em desejos de continuidade, limites e semelhança.
Com uma compreensão realista e agencial da "[...] matéria como um emaranhado dinâmico e mutante de relações" (BARAD, 2007, p. 224, tradução nossa), Barad vai operar uma "metafísica performativa" em que também as coisas - os objetos sobre os quais, supostamente, os humanos agem - ganham agência em si, como "componentes" intra-atuantes de fenômenos ontologicamente inseparáveis. "Entidades distintas, agências, eventos não precedem, mas emergem de/através de sua intra-ação" (BARAD, 2010, p. 267, tradução nossa) como "[...] multiplicidades coexistentes de relações entrelaçadas de passado-presente-futuro-aqui-ali que constituem [...] fenômenos do mundo" (BARAD, 2010, p. 264, tradução nossa). Essas multiplicidades espectrológicas geram "[...] reabertura(s) contínua(s) e inquietante(s) do que pode ainda ser, do que foi e do que virá a ser" (BARAD, 2010, p. 264, tradução nossa). Tais reaberturas (e incertezas) revitalizam, constantemente, "relações irredutíveis de responsabilidade" (BARAD, 2010, p. 265, tradução nossa).
Em vez de reforçar binários (como passado/presente) e limites fixos que produzem uniformidade e rejeição ao outro, a ética da alteridade toma as (des)continuidades como novas aberturas para enredar afirmações novas e narrativas do Outro, totalmente Outro. De fato, Barad (2012) argumenta que:
[...] herança e endividamento não são apenas a substância de qualquer história autobiográfica particular, mas [estes] também [vão] ao âmago da ontologia (ou melhor, da ético-epistem-ontologia) de realismo agencial: os fenômenos não ocorrem em algum momento particular no tempo; os fenômenos são reconfigurações específicas e contínuas de espaçotempomatéria [em que a matéria está materializando performativamente o tempo e o espaço, em vez de se desdobrar dentro deles]. (BARAD, 2012, p. 12, tradução nossa).
Assim, os fenômenos ou as experiências narradas na autobiografia não repousam no passado ou são trazidas do passado ao presente, eles se difratam em uma "multiplicidade de processos", simultaneamente, em várias temporalidades. A difração, como intra-ação, não sinaliza um "[...] refletir ou (um) voltar a um passado que lá estava, mas re-tornar como um constante revirar - reiterativamente intra-atuando, difratando de novo, na criação de novas temporalidades [...] que perturbam a própria noção de dicotomia [...] como um ato singular de diferenciação absoluta" (BARAD, 2012, p. 1, tradução nossa). Não há, portanto, origem em qualquer história; não há uma vida ou uma memória, perfeita ou não, a ser narrada, há, apenas, uma "[...] abertura contínua da narrativa para futuras recontagens, [...] [abertura que permite] herdar [do] futuro tanto quanto o passado" (BARAD, 2012, p. 11, tradução nossa).
Nosso movimento de pesquisa não tem sido, pelo menos até o momento, operar com a ético-epistem-ontologia de realismo agencial de Barad, mas entendê-la como uma perturbação que provoca efeitos no pensamento de Butler, obrigando a autora a retomar sua obra para, nela, reiterar a dimensão material. Como nos ensina o pensamento pós-estrutural, não há reiteração ou citação que não seja, em si, uma traição àquilo que supostamente estava lá para ser reiterado. Talvez pudéssemos usar, de forma livre, a própria subversão "espaçotemporalmaterial" de Barad (2007) para destacar "não há rupturas profundas" (BARAD, 2012, p. 13, tradução nossa). Em nossa tentativa de pensar o sujeito autobiográfico, retornamos, pois, a Butler e sua ontologia do sujeito que sempre existe em relação ao e com o social (BUTLER, 2015a, 2015b). Tal retorno revira o já revirado pensamento da autora em intra-ação com as complicações neomateriais.
Assim como Hekman (2014), entendemos que o diálogo com Butler - especialmente, mas não apenas, com suas preocupações mais recentes com os sentidos de sujeito, com a despossessão e com uma teoria performativa da montagem - pode ser útil para pensar essa outra ontologia. Com tal diálogo, queremos destacar a ambivalência constitutiva das formas sociais ou que as categorizações normativas não definem o "tornar-se" ou eliminam a possibilidade de uma figura liminar que não se conforma com a ideia de humano ditada por normas específicas. Quaisquer formas sociais que prometem totalidade - de parentesco, gênero, assim como a noção fixa e soberana de Eu que sustenta a ontologia humanista - são perigosamente atrativas, na medida em que buscam apagar a sua "mutabilidade promissora" (BUTLER, 1999, p. 50) de tais formas.
A ontologia do sujeito relacional vem sendo, há muito, trabalhada por Butler a partir de um diálogo com Levinas que ganha novos entendimentos em fricção com a "multiplicidade espectrológica" de Barad. É, talvez, importante destacar que, desde há muito, a teorização de Butler (1999, 2005, 2015a, 2015b) sobre como os humanos, em particular, são produzidos como sujeitos nas relações com os outros e com as normas sociais que os antecedem têm entendido esses outros como animados e inanimados5. Isso implica que a condição ontológica do ser sujeito é uma relação ética com o outro - incluindo o liminar, o monstruoso, o não-humano ou o inerte - capaz de romper o que Levinas denominou sentimento primordial "egológico" de ser (VASSILIEVA, 2016, p. 52). Essa ética demanda, para Butler (DUMM; BUTLER, 2008), o questionamento sobre a resposta do sujeito quando "[...] atingido [por um outro] de uma forma que ele nunca escolheu e pensar sobre o que isso significa sobre quão profundamente afetada pelo outro nossa vida é" (DUMM; BUTLER, 2008, p. 99, tradução nossa). Ao mesmo tempo, essa "exigência de ética" não implica qualquer indício de identidade coletiva como reconhecimento que nos devolve ao familiar, a noções fixas de identidade ou a um eu ideal e soberano. Em vez disso, Butler argumenta que a relacionalidade nos obriga a interrogar as normas socioculturais, historicamente situadas, e seus pressupostos fundamentais. Não há laços comuns que constituem uma identidade ou uma identidade profissional ou que costure uma história narrada de um sujeito humano particular.
As teorizações de Derrida (2005) sobre aberturas à democracia porvir - não lineares, contingentes, plurais, inesperadas, conflituantes - e seu remetimento ao trabalho de Levinas inspiraram as sensibilidades éticas de Butler, como ela mesma assume. A ética da alteridade ecoa, assim, no pensamento da autora, uma ética que reconhece que o outro - por causa dessa mesma alteridade - não pode ser reduzido a visões e a narrações de uma subjetividade compartilhada e, portanto, à mesmidade. Imaginando aberturas necessárias, Levinas, segundo Derrida (1996, p. 3), argumentou que a abertura à alteridade do outro requer que o reconhecimento do outro seja, também, preenchido com a "[...] responsabilidade ilimitada [...] de um sim incondicional". A convicção do autor de uma responsabilidade ilimitada, mesmo à luz de suas indeterminações - um amor nunca totalmente realizável, a alteridade do Outro, a hospitalidade condicionada, a opacidade do sujeito - marca a democracia por vir de Derrida (2005), assim como a ética da relacionalidade como teorizada por Butler. Ela não está ali como princípio regulador, ideal a ser atingido, mas como "[...] a abertura do desvio entre uma promessa infinita [...] e as formas determinadas, necessárias, mas necessariamente inadequadas, do que se deve medir com essa promessa" (DERRIDA, 1994, p. 93).
O exercício de Butler de pensar uma ontologia de um sujeito constituído-descentrado na relação ética com o outro ecoa, ainda, a crítica de Foucault à precedência ontológica do sujeito como uma categoria fundante, unitária e auto-evidente, assim como seu entendimento da subjetividade como "[...] percebida nas práticas [e nos lugares de produção] materiais da vida cotidiana" (WEEDON, 1997, p. 175, tradução nossa). Tais práticas são "[...] discursivas [...] [e, nelas,] formas de subjetividade - conscientes, inconscientes, racionais e emocionais - são produzidas dentro do corpo e sobre ele por meio de discursos socialmente localizados" (WEEDON, 1997, p. 175, tradução nossa). Se Butler sustenta que essas práticas não determinam a subjetividade, elas a restringem o suficiente para que não seja possível, simplesmente, contar a excêntrica história (story) de um Eu autônomo. Ser um sujeito, afirma Butler (2005, p. 64), é ser "[...] implicado, devedor, derivado, sustentado por um mundo social que está além e antes de nós", um mundo de gente e coisas das quais não somos, de forma alguma, autônomos. O sujeito que narra sua história (story) é, simultaneamente, constituído e descentrado por uma teia de processos e relacionalidades cambiantes.
Uma ontologia do sujeito, para Butler, teria, portanto, que partir da presunção de que existe uma precariedade compartilhada que permeia as materialidades do tornar-se. Existimos como sujeitos na relação com o outro - humano ou não - e com o simbólico. Ainda que essa precariedade seja constitutiva do sujeito, é importante destacar que alguns, mais do que outros, estão desproporcionalmente expostos à ferida ou à morte precoce. As condições de precariedade a que determinados corpos são submetidos, que tornam certas entidades vivas e não-vivas não passíveis de produzir luto ou ser valorizadas, são desigualmente distribuídas, e isso torna imperativa uma ética para com o outro. Assumimos, como Hekman (2014), que essa ética na precariedade aproxima e distancia Butler de demandas neomateriais, na medida em que não há nenhum humano fora de redes de vida e que a vida humana é apenas uma das espécies possíveis de vida. Somos precários porque somos seres materiais, ainda que dependentes de normas sociais e políticas para essa existência material. A subjetividade seria, assim, para Butler, uma espécie de mistura de componentes materiais e discursivos que não podem ser isolados uns dos outros: "[...] a distribuição diferencial da precariedade é , ao mesmo tempo, uma questão material e perceptual [...] e o limite de quem eu sou é o limite do corpo, mas o limite do corpo nunca pertence inteiramente a mim (2009: 54)6" (HEKMAN, 2014, p. 178-179, tradução nossa). A exposição dos corpos - humanos, não humanos, animados e inanimados - nos espaços públicos, constitui qualquer iteração desses corpos como social, vulnerável e mesmo precário. Os efeitos do entrelaçamento e da interdependência de corpos, nunca totalmente separados do discursivo, têm sido, efetivamente, a preocupação da autora com as quais queremos construir nossa proposta de intervenção.
Nosso diálogo com Butler e autoras neomateriais, em especial Barad, procurou aqui (e tem procurado ao longo do projeto) afastar a problemática do sujeito - e, portanto, do autobiográfico - de noções essencializadas, seja como eu individual seja como identidade coletiva. Nosso intuito tem sido conceituar as práticas autobiográficas como imersão em ambientes, conectividades, relacionalidades e materialidades particulares, o que, certamente, complica a simplicidade ingênua com que os sujeitos são tomados como presenças ônticas, supostamente autônomas, em muitas pesquisas autobiográficas. A partir do questionamento de uma presença metafísica do sujeito (DERRIDA, 1991), procuramos deslocar a possibilidade de versões humanistas de experiências auto-reflexivas que suportam a crença autobiográfica. Talvez a conclusão mais confortável, para nós, agora, apontasse para a impossibilidade da intervenção que vimos propondo como alternativa às políticas públicas de controle. No entanto, essa opção não nos é dada, a responsabilidade ético-política para com o outro nos obriga a responder, mesmo que, como nomeia Pillow (2015), no desconforto, produzindo "práticas de confusão e rupturas" (PILLOW, 2015, p. 192, tradução nossa).
O argumento é que a agência existe na possibilidade de variação dentro da repetição. Para ser inteligível, nós precisamos repetir o familiar e o normalizado. A tarefa não é portanto se se deve repetir, mas como repetir de uma forma que a repetição desloque aquilo que a permite. (LATHER, 2001, p. 204, tradução nossa).
Desconforto e responsabilidade são os termos com os quais produzimos este texto, assim como nossas pesquisas e, por que não, nossas vidas. Pesa sobre eles as aprendizagens de uma epistem-ontologia moderna que nos instiga a, em nome da responsabilidade, afastar o desconforto. Des-conforto, des-controle, im-previsibilidade, o indesejado explicitado pelos prefixos negativos que marcam a oposição ao meticulosamente planejado pelo sujeito responsável. Ou seja, aqui-lá-agora-antes-depois, nossa tarefa tem sido desaprender com a teoria, de modo a poder intra-agir com o outro mais-que-humano, deslocando os limites com que estamos acostumadas e que nos tornam inteligíveis - e confortáveis. Essa nos parece a agência responsável e necessária, não porque, como sujeitos auto-constituídas, conscientes, tenhamos uma obrigação profissional. A agência responsável impõe-se pelo chamado do outro, ela é relação que nos constitui na intra-ação.
Se, por vezes, nossos textos e pesquisas namoram com o desconforto, das conclusões é esperada a suspensão, ao menos provisória, do diferimento. Como nas versões humanistas das práticas autobiográficas reflexivas, um eu soberano, uma intencionalidade competente de pesquisador, deve ser capaz de transcender o já sabido e restabelecer o conforto a si mesmo e a todos. Entretanto, nem o investigador nem a alteridade investigada - humana ou não humana - podem ser conceptualizados como simples e inocente presença ôntica de sujeitos autônomos, conhecedores e conhecíveis. Como aprendemos com Butler, os sujeitos não dependem propriamente do outro, eles existem e se tornam em relação ao e com o social. Eles não preexistem e, então, se relacionam; surgem na intra-ação, dependem da relação e de suas variáveis materialidades. Não é, portanto, possível - ou desejável - tirar lições ou sugestões sobre "como repetir de uma forma que a repetição desloque aquilo que a permite" disso que vimos apresentando. Este texto é - e pretende ser - pura inutilidade, se a busca é por respostas. Ele traz, apenas, a teoria com que vimos desaprendendo a deixar para lá toda perturbação que não traz conforto.
É preciso confessar, no entanto, sua intenção normativa, não a intenção de suas autoras, mas aquela própria de todo texto (teórico). Mais do que isso, como vimos destacando, ele está sendo escrito como parte de um projeto de pesquisa e intervenção em curso, o que facilmente pode resvalar para a ideia de que aqui está o que pretendemos fazer na pesquisa. Se as autobiografias de professores estão no centro do projeto, elas serão produzidas de uma outra forma, com uma metodologia que, este texto, ajudaria a descrever. Como evitar a crença autobiográfica e a ontologia humanista em uma pesquisa autobiográfica na qual o sujeito é tomado como relacional em sua materialidade? Se é verdade que partimos dessa pergunta, isso não implica respondê-la produzindo uma outra onto-metodologia, aplicável a toda uma sorte de casos. A pesquisa - e a autobiografia - pós-qualitativa é um "projeto ético-onto-epistemológico" (ST. PIERRE; JACKSON; MAZZEI, 2016, p. 100, tradução nossa). Ela se faz de deslocamentos singulares e responsáveis e este texto, como a teoria com a qual nos relacionamos para escrevê-lo, é apenas mais uma peça na intra-ação nominada pesquisa.
É isso! Como projeto "ético-onto-epistemológico", gostamos de pensar nossa intervenção como um momento de relação ética com o outro-mais-que-humano, não previamente constituído. Nas palavras de Lather (2001, p. 204, tradução nossa), a pesquisa "[...] é re-situada como uma forma de entrar na confusão do fazer [...] via práticas de risco que, ao mesmo tempo, viajam entre contextos e são recriadas em cada situação". Ela é "[...] um momento de dispersão, um momento de proliferação dentro de relações de sobredeterminação (LATHER, 2001, p. 204, tradução nossa). Nós-eles-teorias-textos-ambiente-normas emaranhados, se afetando, produzindo perturbações que vão nos constituindo-descentrando como efeitos da relação. Ao final, ou quando o tempo cronológico dos projetos financiados tiver se esgotado, teremos algumas histórias, autobiografias porque todo texto é, provavelmente, autobiográfico. E continuaremos sujeitos-em-relação, ainda-não, porvir.
Como uma intervenção que apenas desconforta - ou chama a atenção para os desconfortos escondidos - pode ser política pública em educação e currículo? Se por política tomamos a ação calculada com vistas a atingir um fim desejado e projetado, não pode, mas isso nos parece apenas pretensão messiânica. Nossas heranças ensinaram-nos a duvidar dessa pretensão porque ela não entrega aquilo que promete - há quantos anos mesmo vimos apostando em políticas que supostamente sabem como produzir qualidade na educação? - e, principalmente, porque ela quer saturar todas as possibilidades de ser e de fazer política. Com isso, não estamos, claro, sugerindo que projetos não existam ou que possam existir ações, políticas ou não, fora de qualquer normatividade. Acreditamos, apenas, que é necessária uma postura para sempre desconstrutiva em relação às normas que nos constituem, um movimento de deixar acontecer o excesso irredutivelmente porvir. Sem romantismos, sabendo das demandas do cálculo.
No fim, ecoa, neste texto e em nosso projeto - de pesquisa, como de vida -, uma crença de que a educação que reduz o outro ao mesmo ou ao já sabido mata a si própria. Educar implica alteridade e, portanto, é preciso fazê-lo "[...] tão longe quanto possível, para além do lugar em que nos encontramos e para além das zonas já identificáveis" (DERRIDA, 2010, p. 56). Por isso, ao invés de ordená-lo, seria produtivo que as políticas públicas em educação reconhecessem o imprevisível que pipoca nas intra-ações, porque é ele que nos desloca para cada vez mais longe.