Dossiê: Desenvolvimento profissional docente
Desenvolvimento profissional docente: articulação entre contextos e disposições*
Teacher professional development: articulation between contexts and dispositions
Desarrollo profesional docente: articulación entre contextos y disposiciones
Desenvolvimento profissional docente: articulação entre contextos e disposições*
Práxis Educativa, vol. 13, núm. 2, pp. 385-406, 2018
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 17 Julho 2017
Aprovação: 01 Novembro 2017
Resumo: Compreender as condições que podem promover o desenvolvimento profissional docente é de extrema relevância, sobretudo na perspectiva de oferecer subsídios para o planejamento de contextos destinados a esse fim. Neste trabalho, tivemos como objetivo investigar a trajetória de dois professores de Física ao interagirem com dois contextos formativos (Mestrado Profissional e Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-PIBID) diferenciados em termos de exigências e de possibilidades de desenvolvimento profissional docente. Por meio de entrevistas semiestruturadas, obtivemos os elementos necessários para reconstruir a trajetória desses professores durante suas participações naqueles contextos com base em uma Análise Narrativa, associada a outro procedimento vindo da Sociologia, que é o Retrato Sociológico. Para reconstrução da história desses professores, levamos em consideração o conceito de patrimônios individuais de disposições abordado por Bernard Lahire (2005), bem como as dimensões de desenvolvimento profissional propostas por Barolli et al. (2017). Nossos resultados indicam que não basta propor um contexto que segue as orientações da literatura no sentido de não se pautar, por exemplo, apenas nas orientações de uma racionalidade técnica, para que o sujeito se desenvolva profissionalmente. Mudanças profundas parecem requerer condições que têm se mostrado estreitamente vinculadas às particularidades dos sujeitos e dos contextos.
Palavras-chave: Desenvolvimento profissional docente, Disposições, Contextos formativos.
Abstract: Understanding the conditions that can promote professional teacher development is extremely relevant, especially in the perspective of providing subsidies for the planning of contexts for this purpose. In this work, we had the objective of investigating the trajectory of two Physics teachers when interacting with two formative contexts (Professional Master’s and Teaching InitiationScholarship Institutional Program - PIBID) differentiated in terms of requirements and possibilities of professional teacher development. Through semi-structured interviews, we obtained the necessary elements to reconstruct the trajectory of these teachers during their participation in those contexts based on Narrative Analysis associated with another procedure coming from Sociology, which is the Sociological Portrait. To reconstruct the history of these teachers we took into account the concept of individual heritage of dispositions addressed by Bernard Lahire (2005), as well as the dimensions of professional development proposed by Barolli et al. (2017). Our results indicate that it is not enough to propose a context that follows the guidelines of the literature in the sense of not being guided, for example, only in the guidelines of a technical rationality, so that the subject develops professionally. Deep changes seem to require conditions that have been closely linked to the particularities of subjects and contexts.
Keywords: Teacher professional development, Dispositions, Formative contexts.
Resumen: Comprender las condiciones que pueden promover el desarrollo profesional docente es de extrema relevancia, sobre todo en la perspectiva de ofrecer subsidios para la planificación de contextos destinados a ese fin. En este trabajo tuvimos como objetivo investigar la trayectoria de dos profesores de Física al interactuar con dos contextos formativos (Maestría Profesional y Programa Institucional de Beca de Iniciación a la Docencia-PIBID) diferenciados en términos de exigencias y de posibilidades de desarrollo profesional docente. A través de entrevistas semiestructuradas, obtuvimos los elementos necesarios para reconstruir la trayectoria de esos profesores durante sus participaciones en aquellos contextos con base en un Análisis Narrativo, asociado a otro procedimiento proveniente de la Sociología, que es el Retrato Sociológico. Para la reconstrucción de la historia de estos profesores tomamos en consideración el concepto de patrimonios individuales de disposiciones abordado por Bernard Lahire (2005), así como las dimensiones de desarrollo profesional propuestas por Barolli et al. (2017). Nuestros resultados indican que no basta con proponer un contexto que sigue las orientaciones de la literatura en el sentido de no pautar, por ejemplo, sólo en las orientaciones de una racionalidad técnica, para que el sujeto se desarrolle profesionalmente. Cambios profundos parecen requerir condiciones que se han mostrado estrechamente vinculadas a las particularidades de los sujetos y de los contextos.
Palabras clave: Desarrollo profesional docente, Disposiciones, Contextos formativos.
Introdução
No cenário das políticas públicas brasileiras, a principal ação no âmbito da formação de professores efetivou-se por meio da Lei Nº 11.502/07 (BRASIL, 2007), que ampliou as atribuições da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para a Educação Básica, não apenas de modo a induzir e fomentar a formação inicial e continuada de profissionais da educação, mas também estimular e valorizar o magistério em todos os níveis e modalidades de ensino. No âmbito dessa nova atuação da CAPES, podemos citar alguns programas que esse órgão do Ministério da Educação tem implementado com o compromisso de valorizar o magistério da Educação Básica, tais como o Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica (PARFOR), Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), Programa de Consolidação das Licenciaturas (PRODOCÊNCIA), Novos Talentos, Cooperação Internacional para a Educação Básica, Observatório da Educação (OBEDUC), Programa de Licenciatura Internacional (PLI), entre outros.
Outra iniciativa da CAPES que merece destaque diz respeito à modalidade de Pós-Graduação stricto sensu conhecida como Mestrado Profissional (MP), direcionada à melhoria da formação docente na Educação Básica. Essa iniciativa inclusive traz, a nosso ver, uma perspectiva de formação contínua que se realiza de maneira diacrônica, levando em consideração as necessidades dos professores em relação ao seu grau de experiência e à etapa de desenvolvimento da sua carreira (PERRENOUD, 2000; DAY, 2001; VILLEGAS-REIMERS, 2003; AL-HINAI, 2007; HONAN, 2007; MARCELO, 2009; NÓVOA, 2009; IMBERNÓN, 2010).
Day (2001) aponta para o desenvolvimento profissional do professor um conjunto de propósitos que leva em conta as responsabilidades morais, sociais e instrumentais dos professores, bem como a necessidade de aprendizagem ao longo de toda a vida. São elas: adaptação e desenvolvimento contínuo dos repertórios pedagógicos e científicos; aprendizagem contínua a partir da experiência, reflexão e teorização sobre a melhor maneira de fazer convergir as necessidades dos alunos; aprendizagem contínua por meio da observação mútua e da discussão com os colegas; desenvolvimento contínuo da capacidade de contribuir para o ciclo de vida profissional da escola; desenvolvimento contínuo de interação entre agentes educativos; proficiência contínua em assuntos relevantes e atuais à disciplina e nas formas de torná-los acessíveis para os alunos; recolha de dados contínua sobre as políticas e as práticas em outras escolas; acesso contínuo a um novo pensamento educacional relevante para melhoria da qualidade da escola; aquisição contínua de conhecimentos relevantes sobre a própria sociedade em mudança para sustentar uma boa comunicação com os alunos; esforço contínuo para compreender a racionalidade sobre as resoluções dos decisores políticos externos que têm jurisdição sobre a escola.
Entretanto, que contextos podem ser considerados como aqueles que transcendem as características de uma formação contínua e que possuem o potencial de criar condições efetivas para o desenvolvimento profissional docente? Como mencionado, foram criados há algum tempo, diversos programas dentre os quais destacamos dois que, a nosso ver, se constituem como espaços privilegiados para que os professores possam se desenvolver profissionalmente, quais sejam: o MP em Ensino de Ciências e o PIBID.
No que se refere ao contexto do MP, este nos parece ser um canal no qual podem ser valorizadas as experiências dos professores (mestrandos) no sentido de mergulharem no bojo de suas inquietações cotidianas da prática educativa e as tornarem como objeto de investigação para avançar na sua prática e na sua concepção sobre educação. O MP é considerado pela CAPES como
[...] uma resposta muito eficiente e eficaz para os problemas que o professor tem no dia a dia, ao mesmo tempo em que ele amplia seus conhecimentos e competências docentes. Então, o Mestrado Profissional é esse diálogo entre teoria e prática, que promove uma formação continuada do professor em um nível crescente de complexidade, ao mesmo tempo em que permite a esse professor já interferir positivamente em sala de aula. (BRASIL, 2013, n.p.).
O contexto do PIBID, por sua vez, embora tenha sido concebido para a formação inicial de professores, tem atuação na escola como elemento essencial para a sua sustentação. Assim sendo, interfere diretamente no cotidiano dos professores em exercício (supervisores), principalmente no que se refere à possibilidade de criar condições para que também possam avançar em seu processo de desenvolvimento profissional (NASCIMENTO, 2014).
Podemos considerar, desse modo, que esses dois programas têm em comum o fato de abrirem oportunidades para o professor desenvolver-se profissionalmente, mesmo levando em conta o fato de que o potencial de cada um para essa finalidade pode ser considerado diferente. Questionamos, então, como poderia se dar o desenvolvimento profissional de professores ao interagirem com as condições oferecidas por esses diferentes contextos.
Sem dúvida, esses programas guardam suas especificidades em termos do contexto proporcionado para um possível desenvolvimento profissional docente. O PIBID, diferentemente do MP, não exige do professor um determinado desempenho do ponto de vista de um curso, mas, sim, prevê que o professor elabore, desenvolva e acompanhe as atividades dos licenciandos, atue como coformador, participe de seminários de iniciação à docência; estabeleça uma interlocução com docentes da universidade e compartilhe "boas práticas” com a direção da escola e com seus pares. Por outro lado, o MP é um curso de Pós-Graduação stricto sensu que fornece diploma aceito nacionalmente, cujas atividades devem ser realizadas dentro de um prazo máximo de 36 meses. O curso, qualquer que seja, exige o cumprimento de disciplinas específicas da área do conhecimento, participação em seminários, elaboração de uma dissertação e um produto educacional, etapa de qualificação e defesa desses trabalhos de conclusão de curso.
São, por conseguinte, contextos diferenciados em termos de exigências e de possibilidades de desenvolvimento profissional docente. Contudo, mesmo reconhecendo essas diferenças, tomamos a iniciativa de selecionar dois professores, um participante de um MP em Ensino de Ciências e outro de um projeto PIBID dessa mesma área, na perspectiva de compreender como se relacionaram com cada um desses contextos. As perguntas que nortearam nossa investigação foram: Os professores focalizados se desenvolveram profissionalmente ao interagir com esses contextos? E, se isso ocorreu, como se deu esse processo?
Cabe, então, perguntar: O que se ganha em termos de produção de conhecimento ao focalizarmos dois professores, cada um em um contexto específico? Sem dúvida, é possível que um mesmo professor interaja com esses contextos de diferentes formas e alcance em contrapartida diferentes saberes que podem compor o desenvolvimento profissional docente. Assim, ao focalizar o professor como indivíduo, carregado de suas crenças e disposições, procuramos explicitar fatores que podem influenciar processos de desenvolvimento profissional em contextos diferenciados, mas que apresentam potencial para tanto. Enfim, é possível que o contexto de um projeto desenvolvido no âmbito do PIBID ofereça condições para que um professor de fato se desenvolva profissionalmente? E, de modo análogo, que elementos podem dar uma contribuição efetiva nos cursos de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências a favor do desenvolvimento profissional de seus egressos?
Procedimentos da pesquisa
O delineamento metodológico da presente investigação situa-se no campo das pesquisas educacionais de abordagem qualitativa. Bogdan e Biklen (1999) afirmam que a pesquisa qualitativa deve privilegiar um processo de condução de investigação que reflete uma espécie de diálogo entre os pesquisadores e os sujeitos, sendo que estes não ocupam um papel neutro.
Para realizar o levantamento das informações necessárias para o presente estudo, optamos pela utilização de entrevistas semiestruturadas. Buscamos estabelecer um diálogo com os sujeitos da pesquisa, professores em exercício, por meio de um roteiro que abordasse aspectos do desenvolvimento profissional docente, mas, também, as particularidades de cada contexto (MP e PIBID). Neste estudo, focalizamos as entrevistas de dois professores de Física que atuam na Escola Básica, sendo um egresso de um curso de MP em Ensino de Física e outro supervisor do PIBID. Nas entrevistas, buscamos contemplar os seguintes temas: trajetórias pessoal, profissional e de formação, contexto do programa (MP e PIBID), condução do ensino, sustentação da aprendizagem e atualização científica e pedagógica.
Com os relatos dos professores obtidos por meio das entrevistas, reconstruímos e apresentamos suas histórias buscando associar um procedimento de análise que temos adotado há algum tempo, que é a Análise Narrativa (BOLÍVAR BOTÍA, 2002; CURY 2013; NASCIMENTO, 2014), com outro procedimento vindo da Sociologia, que é o Retrato Sociológico (LAHIRE, 2004; LIMA JÚNIOR; MASSI, 2015). Esses dois procedimentos têm se mostrado bastante compatíveis, pois tanto um quanto o outro condensam dados empíricos, referencial teórico e análise em uma mesma narrativa.
Para Cury (2013), a análise narrativa busca compor "[...] o significado das experiências dos narradores mediante a busca de elementos unificadores e idiossincráticos, buscando com isso um desvelamento do modo autêntico da vida individual dos depoentes e da situação/contexto investigado” (CURY, 2013, p. 158). Nesse sentido, esse procedimento consiste em, a partir dos depoimentos dos entrevistados, produzir uma nova narrativa que explicita argumentos e torna os dados de pesquisa mais significativos.
Lima Júnior e Massi (2015) defendem o uso dos Retratos Sociológicos em pesquisas em educação, entre outras coisas, por justamente contemplarem os três aspectos no mesmo documento - dados empíricos, referencial teórico e análise - e terem como norte um problema de investigação bem definido.
Ao reconstruirmos as histórias, levamos em consideração o conceito de patrimônios individuais de disposições abordada por Lahire (2004). Para esse autor, uma disposição é
[...] uma realidade reconstruída que, como tal, nunca é observada diretamente. Portanto, falar de disposição pressupõe a realização de um trabalho interpretativo para dar conta de comportamentos, práticas, opiniões, etc.”, isto é, "trata-se de fazer aparecer os princípios que geraram a aparente diversidade das práticas. (LAHIRE, 2004, p. 27).
Nesse sentido, segundo o sociólogo, disposições são como heranças imateriais que os indivíduos transportam convertidas em maneiras duráveis de ver, sentir, agir, hábitos, crenças, categorias de percepção e de apreciação, interesses e desinteresses, gostos e desgostos. Assim, a noção de disposição permite-nos entender as razões pelas quais os atores individuais podem "[...] perceber diferentemente as mesmas situações e reagir diferentemente face às mesmas solicitações ou injunções exteriores” (LAHIRE, 2010, p. 25), uma vez que suas respostas se baseiam tanto nas experiências socializadoras passadas quanto na influência do contexto.
Em nosso caso específico, foi bastante oportuno reconstruir as histórias dos dois professores com base nas maneiras pelas quais eles se relacionaram com os contextos, pois, desse modo, pudemos não apenas inferir disposições incorporadas, mas também destacar dimensões de desenvolvimento profissional docente que nos pareceu ser por eles experimentadas. Cabe salientar que os dois professores que participaram da pesquisa são identificados com nomes fictícios.
Há de destacar-se que nosso trabalho não busca reconstruir a gênese das disposições dos professores, até porque optamos pelo estudo de apenas uma instância de suas socializações. São contextos bem específicos de práticas, prioritariamente no âmbito de suas profissões docentes e, mais especificamente, em suas participações em um determinado MP e PIBID. Procuramos, portanto, apenas indícios que nos permitissem inferir disposições, que, de maneira geral, mobilizam as ações dos professores em seus respectivos contextos, de modo a compreender como se deram seus processos de desenvolvimento profissional.
Na análise narrativa, estruturamos a ideia de desenvolvimento profissional docente baseados principalmente nas oito dimensões propostas por Barolli et al. (2017). Os autores tomaram como referência os saberes, as competências e as habilidades que a literatura considera significativa para a prática docente (PERRENOUD, 2000; DAY, 2001), e, em um esforço de síntese, estabeleceram oito dimensões amplas que em princípio deveriam ser aprimoradas constantemente ao longo da formação docente e que, portanto, poderiam ter relação com as atividades desenvolvidas durante a participação em contextos como o MP e o PIBID. São elas: atualização nos conteúdos científicos; atualização nos conhecimentos pedagógicos; organização e condução do ensino; sustentação da aprendizagem dos alunos; participação na gestão escolar; investigação da própria prática; planejamento da carreira profissional; e participação na responsabilidade social.
Desenvolvimento profissional, contextos e disposições
O contexto do Mestrado Profissional: a história do professor Selênio
O professor Selênio é licenciado em Física e tem 10 anos de profissão docente. Quando entrou no Mestrado Profissional (MP), cursava uma faculdade de Engenharia e, segundo ele, "trabalhava de domingo a domingo” com "72 tempos na semana e tinha 1028 alunos”.
Incentivado pelos amigos e por vislumbrar progredir na carreira, Selênio entrou no MP em 2010 e o concluiu em 2012, tornando-se professor com Dedicação Exclusiva (DE) da escola e diminuindo sua carga horária. Ao término do MP, Selênio já havia abandonado o curso de Engenharia.
Um dos objetivos para eu fazer o Mestrado foi o de melhorar o meu salário, porque o salário de professor é ruim e a única alternativa é aumentar a carga horária, eu trabalhava de domingo a domingo, então o meu objetivo era fazer o Mestrado para ganhar um pouco mais e também ganhar qualidade de vida com a diminuição da carga horária. [...]. Aqui na escola tem um incentivo legal se você é DE, eu sou DE agora e graças ao Mestrado a minha qualidade de vida melhorou e para ser honesto esse foi o motivo principal pelo qual eu quis fazer o Mestrado. (Professor Selênio).
Selênio deixou claro que não tinha expectativas com o Mestrado, uma vez que, em seu depoimento, afirmou: "Nunca tinha passado pela minha cabeça fazer Mestrado, eu era muito ocupado”, e apenas queria o diploma por conta da progressão salarial.
Eu fiz uma tentativa, um êxito e acabou. Foi bem simples, não foi nada planejado, eu não sabia nada sobre as disciplinas ou sobre o Mestrado em geral, eu fui com o objetivo de entrar e aumentar o meu salário, essa é a verdade nua e crua. (Professor Selênio).
Ao iniciar o curso, Selênio foi se dando conta das demandas do Mestrado e do incômodo de voltar a ser aluno, ou seja, voltar a estudar, concentrar-se, cumprir horários e tarefas. Quanto às disciplinas, ele nos informou que esse curso de Mestrado era carregado de disciplinas de conteúdos específicos de Física e que elas não acrescentaram nada em relação à sua atualização científica, visto que sua Graduação foi muito proveitosa nesse aspecto.
Eu fiz Física numa universidade, e lá a licenciatura é muito pesada, tem matéria de Física dura em um nível de bacharelado, acho que a grade que diferencia uma da outra é de quatro disciplinas e, quando eu entrei no Mestrado, a gente teve disciplinas que eu já tinha visto na minha Graduação. Então, não foi nada muito surpreendente nas matérias de Física dura, tinha bastante disciplina de Física dura no Mestrado e essas matérias não me surpreenderam, eu já sabia tudo aquilo. (Professor Selênio).
Ainda em relação às disciplinas específicas de Física, Selênio acrescentou que, quando havia uma discussão de como transpor aqueles conteúdos para a sala de aula, os docentes da universidade faziam um discurso contraditório com a realidade vivenciada pelos mestrandos em seu ambiente de trabalho.
[...] como todo professor que não entra em sala de aula, que é o caso de alguns professores do Mestrado, eles têm as questões teóricas formadas na mente deles, de que o professor do Ensino Médio tem que fazer de um jeito "A”, quando a nossa realidade só nos permite fazer de um jeito "B” e, quando eu discutia isso com o professor, ele não entendia. (Professor Selênio).
Embora afirmasse que não tinha expectativa com o curso, ele se mostrou decepcionado com o fato de os docentes não considerarem a realidade da escola quando apresentavam métodos de ensino e orientações pedagógicas que, para ele, eram incompatíveis com aquela realidade. Essa situação parecia causar ainda maior incômodo a Selênio, possivelmente pelo fato de sentir que seus saberes e seus conhecimentos da prática estavam sendo ignorados.
Além disso, sua prática era orientada em grande parte pelos conteúdos cobrados no vestibular e, nesse sentido, buscava preparar o aluno para ser aprovado nesse exame. Em contrapartida, as orientações do curso propunham uma redução dos conteúdos de Física regularmente abordados no Ensino Médio, fato que tornava sua relação com o curso mais conflituosa, pois, na sua interpretação, os docentes estavam lhe pedindo para abrir mão daquilo que era uma de suas crenças mais viscerais.
As matérias que mais me deram trabalho foram as pedagógicas, as que misturavam física com uma nova metodologia, essas foram mais surpreendentes. [...]. Os professores do Mestrado dizem que nós devíamos trabalhar com menos conteúdos para que a aula tivesse mais qualidade. Todo mundo aceita essa ideia na hora que o professor fala, só que o mesmo professor lá do Mestrado [aluno] é o que trabalha com o vestibular e o vestibular por sua vez cobra tudo. Aí, nós alunos falávamos para o professor que não era possível abrir mão de certas coisas enquanto aquilo continuar caindo no vestibular. Aí, os professores diziam que não podíamos vincular a nossa aula com o que é cobrado no vestibular, mas isso nos deixa entre "a cruz e a espada”; se eu não trabalho o que vai cair no vestibular com o meu aluno, eu estou preparando ele para que então? (Professor Selênio).
Há de destacar-se, ainda, que essa prática de Selênio encontrou em sua realidade de trabalho um contexto fértil para enraizar-se, haja vista as demandas específicas da escola. A todo o momento, ele afirmava a necessidade de prestar contas aos pais dos alunos e ao coordenador da escola até como forma de justificar sua prática, deixando evidente sua inflexibilidade com propostas que iriam de encontro à sua crença.
Eu trabalho com o Ensino Médio e são pessoas que têm expectativas de fazer uma Graduação, portanto eles têm que estar preparados para o vestibular, então o professor não pode abdicar de um conteúdo que está na grade do vestibular. Se um assunto cair no vestibular e eu não ensinar, posso receber uma ligação de um pai ou sou cobrado pelo coordenador. Então, enquanto o formato do vestibular não for alterado, o meu processo de ensino também não pode ser alterado. Essas discussões eram bem comuns no Mestrado, e esse tema era o que mais discordava dos professores. (Professor Selênio).
Embora houvesse divergência entre a visão de ensino de Selênio e aquilo que era proposto pelos docentes do curso de MP, ele dava conta das demandas das disciplinas repetindo de forma consciente o discurso adotado pelos docentes, mesmo considerando que a maioria das discussões em aula não contribuíam efetivamente para sua prática educativa.
Uma coisa é a realidade, outra é o que você tem que escrever para o professor te dar um certo. Eu escrevi o que o professor queria ler, independentemente de eu concordar; eu não tinha tempo para discutir sobre aquilo, então eu fazia o que mandavam. [...] tem coisas que era hipocrisia e só é viável para o profissional que não entra em sala de aula. [...]. Eu acho que o pedagogo tem muita teoria para quem fica sentado fora da sala de aula. Eu quero ver quem foi o pedagogo que deu aula para 50 alunos no estado e saiu dali com uma teoria concreta de auto rendimento, porque, em uma sala dessas, se eu trabalhar da maneira como eles estão sugerindo, eu não vou ter resultado. (Professor Selênio).
Esse "faz de conta” que o professor escolheu para atender as demandas do curso e dar continuidade a ele para alcançar sua meta inicial é, a nosso ver, também uma forma de proteger sua inflexibilidade quanto às suas crenças, tanto no que se refere aos seus critérios de seleção de conteúdo, que não lhe permitiam abrir mão de qualquer temática da Física escolar, quanto na sua maneira de conduzir o ensino, centrado quase que exclusivamente nele como professor. Ou seja, os pressupostos epistemológicos pelos quais o curso do MP era conduzido mostravam-se incompatíveis com suas crenças sobre o processo de ensinar e que orientavam a condução do seu ensino. Quando afirmou: "eu escrevi o que o professor queria ler, independentemente de eu concordar; eu não tinha tempo para discutir sobre aquilo, então eu fazia o que mandavam”, não há dúvida de que Selênio buscou atender formalmente as propostas das disciplinas, mas sem um investimento em se envolver em um processo reflexivo genuíno que lhe permitisse problematizar suas verdades.
A resistência de Selênio em colocar em questão suas verdades, manifestada por meio de uma defesa insistente de suas crenças, pode ter subjacente um patrimônio de disposições ascéticas1. Essa nossa inferência justifica-se por suas ações em termos da rigidez de suas opiniões, de sua prática de magistério imutável e no rigor consigo mesmo e com os outros.
Em sua obra Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais, Lahire (2004) identifica uma disposição semelhante em um de seus estudos, o caso de Paul Ritz, que, em universos distintos de práticas como o escolar, o familiar, o profissional, o cultural e o esportivo, manifestava claramente seu forte ascetismo. Sua disposição ascética, por exemplo, revelava-se no contexto de suas práticas esportivas:
Ele não pratica mountain bike ou esqui com espírito de competição ou para melhorar seu desempenho, mas também não tem vontade de viver esses momentos simplesmente para ficar entre amigos, em família, fazer bons passeios tranquilos ou admirar as paisagens e os lugares. Geralmente, sua prática é solitária e ele privilegia a queima de energia a qualquer outra coisa. Sozinho, concentrado em seu intenso esforço físico, põe em prática sua disposição ascética [...]. (LAHIRE, 2004, p. 136).
Se seguirmos o significado mais comum de ascético, isto é, de que o sujeito ascético é aquele que pratica uma renúncia ao mundo com objetivo de adquirir um elevado intelecto e espírito, diríamos que Paul renúncia à convivência com amigos e familiares durante suas práticas esportivas, que realiza de forma concentrada e com intenso esforço físico, para alcançar uma realização corporal, muito em função de suas preferências estéticas. No caso de Selênio, nossa interpretação também nos parece plausível, na medida em que ele, ao participar do MP, não considerava a possibilidade de ter satisfação experimentando uma prática docente que privilegiaria uma forma e uma seleção de conteúdos mais inclusiva do ponto de vista da aprendizagem, e que não tivesse como critério o vestibular. Sua satisfação estava fortemente vinculada à crença de que sua realização profissional não poderia deixar de abordar todo o conteúdo de Física que ele considerava absolutamente necessário. Parece-nos, assim, que o professor só se reconhecia como profissional se pudesse ser o representante do conhecimento científico.
O ascetismo de Selênio, inclusive, encontrava eco em seu contexto de trabalho, isto é, na escola em que lecionava, visto que é uma instituição pública bastante antiga que tem como missão uma educação de excelência, porém de cunho considerado tradicional. Assim, a nosso ver, a escola em que trabalhava constituía-se em um contexto bastante favorável às suas disposições para agir em conformidade com suas crenças. Lahire (2004) destaca a importância dos contextos afirmando que, "[...] embora as grandes disposições sejam fortes e gerais, elas permanecem muito dependentes dos contextos nos quais encontram ou não as condições para sua ativação” (LAHIRE, 2004, p. 173) ou atualização.
Assim, o curso de MP, que pretendia uma transformação didático-pedagógica na gestão de sala de aula, da maneira como se apresentou a esse professor inicialmente, não foi capaz de abalar ou mesmo de provocar um processo reflexivo que problematizasse suas crenças.
Ainda no período em que estava cursando as disciplinas, Selênio sentiu-se propenso a inserir em suas aulas uma novidade: o ensino por investigação, mas cuidando para que, com isso, sua prática não fosse radicalmente modificada.
É muito bonito trabalhar com investigação, a questão de esperar o tempo de cada aluno, é tudo muito bonito, mas a gente tem um programa para fechar que é imenso. Então não adianta ficar falando que cada aluno tem seu tempo, se fizer assim não dá para fechar a matéria. Com certeza deu para aproveitar algumas coisas de ensino por investigação nas minhas aulas, só que não pode ser em todas as aulas e você não pode dar o tempo para todos os alunos dominarem aquela questão, um ou outro matou a charada, tem que seguir com o conteúdo. [...]. O que eu trabalho, por exemplo, nessa perspectiva de ensino por investigação, é a questão do experimento, eu levo uma atividade experimental para a sala de aula e, ao invés de fazer o experimento em grupos pequenos como os professores do Mestrado sugerem, eu tento juntar a turma inteira em cima de um objeto para ganhar esse tempo, então por meio de um experimento demonstrativo eu trago perguntas que provocam o aluno para que ele pense e argumente sobre aquilo, mas sempre em mente que quando alguém responder eu vou seguir para o próximo passo da atividade. (Professor Selênio).
Nesse depoimento, o professor deixa bastante explícito o fato de que a condução de seu ensino não era compatível com a possibilidade de garantir a todos os alunos durante as aulas o tempo que necessitavam para alcançar a aprendizagem. Assim, ao participar da disciplina "Ensino por Investigação”, ele sentiu que poderia organizar seu ensino introduzindo colaborações dessa metodologia, mas ainda em acordo com suas crenças. O professor parece ter reconhecido, portanto, pelo menos em parte, a legitimidade da cultura didático-pedagógica proposta pelo MP. Nesse sentido, pôde utilizar a experimentação e a contextualização de modo a experienciar uma prática menos engessada. Como podemos observar pelo seu depoimento, isso só parece ter sido possível porque a inserção de novos elementos na sua prática não implicou no abandono de sua tradição pedagógica.
Eu sou um professor muito rigoroso, tudo o que tem que ser ensinado no Ensino Médio para o aluno passar no vestibular eu apresento em aula linha por linha. Hoje, às vezes, abro mão de um detalhe muito matemático e procuro outros meios de apresentar uma equação sem um passo a passo tão matemático. E o Mestrado foi o que me fez perceber que isso funciona até melhor em relação à aprendizagem, pois atinge um público maior. Como eu dava a minha matéria antes do Mestrado, eu atingia apenas os alunos com aptidão para matemática, hoje, levando essas atividades com experimentação para a sala de aula, eu atinjo mais gente. O Mestrado abriu a minha cabeça para olhar mais para os alunos e menos para a minha zona de conforto. Sem dúvida a minha aula antes do Mestrado é diferente da minha aula depois do Mestrado, mesmo que eu não consiga levar sempre coisas para a sala, é uma aula com mais exemplos cotidianos. (Professor Selênio).
Ao mesmo tempo, essa flexibilização parece-nos ter sido um enfraquecimento disposicional, que trouxe a possibilidade de o professor se desenvolver profissionalmente não só no que se refere à dimensão organização e condução do ensino, como também na dimensão atualização nos conhecimentos pedagógicos.
Ora, as disposições distinguem-se entre elas segundo o seu grau de fixação e de força. Existem disposições fortes e disposições mais fracas, e a força e a fraqueza relativas das disposições dependem, em parte, da recorrência da sua atualização. Não incorporamos um hábito durável em apenas algumas horas, e certas disposições constituídas podem enfraquecer ou apagar-se pelo facto de não encontrarem condições para a sua actualização, e às vezes mesmo pelo facto de encontrarem condições de repressão. (LAHIRE, 2005, p. 21).
Em nossa interpretação, o enfraquecimento de suas disposições ascéticas contribuiu para que experimentasse por meio da metodologia de ensino formas de satisfazer a si mesmo em relação ao seu objetivo de ensino e, ao mesmo tempo, contemplasse o que era demandado pelo MP. A consequência disso em sua visão foi um melhor aproveitamento dos alunos na sua aula.
Essa flexibilização em relação a uma nova metodologia de ensino e ao alcance de maior amplitude da aprendizagem dos estudantes indicam que a possibilidade de desenvolvimento profissional se efetivou em certa medida. Oliveira-Formosinho (2009) considera o desenvolvimento profissional como um processo contínuo de melhoria das práticas docentes, centrado no professor e com a preocupação de promover mudanças educativas em benefícios dos alunos, ou seja, pressupõe que a grande finalidade dos processos de desenvolvimento profissional não é só o enriquecimento pessoal, mas também o benefício dos estudantes. Day (2001) também defende que o professor que se desenvolve profissionalmente aprende continuamente por meio da sua experiência, reflexão e teorização sobre a melhor forma de convergir às necessidades individuais e coletivas dos alunos. Perrenoud (2000) destaca, ainda, como uma competência necessária ao professor a capacidade de envolver os estudantes em suas aprendizagens.
A elaboração do produto educacional também representou para Selênio a possibilidade de desenvolver-se profissionalmente. Foi uma tarefa que lhe exigiu pesquisar por conta própria para ver que tema poderia trabalhar e se aprofundar em um conteúdo específico de Física que não foi discutido em nenhuma das disciplinas.
No Mestrado, esse professor que acabou sendo meu orientador estava com uns projetos de sensores, sensores de temperatura, de umidade, de luminosidade; aí eu tive a ideia de juntar isso com aquele simulador. Eu mostrei isso ao professor, ele mandou eu pesquisar mais e não confirmou se iria me orientar. Então eu fui pesquisar, eu achei uma propaganda que pedia para as pessoas pintarem o telhado de branco dizendo que isso poderia diminuir a temperatura do planeta em um grau Celsius, e essa questão do número me deixou muito curioso. Aí tinha um projeto de lei em São Paulo para que as pessoas pintassem os telhados de branco, eu achei tudo isso muito interessante, então eu resolvi trabalhar com uma questão chamada conforto térmico e, depois, mostrei tudo isso ao professor e ele gostou muito. Acabou que o professor comprou a minha ideia e se tornou meu orientador. (Professor Selênio).
Em nossa interpretação, a tarefa exigida pelo curso de criar um projeto ou, ainda, de conceber um produto educacional parece ter ido ao encontro de suas habilidades em criar dispositivos ou artefatos, haja vista sua satisfação em relatar o processo de definição do seu produto educacional.
A ideia ficou sendo montar uma maquete com uma casa sustentável que melhorasse o conforto térmico das pessoas, mas não que isso vá diminuir em um grau Celsius a temperatura do mundo. O meu orientador comprou a minha ideia, não trabalhamos com os simuladores, mas sim com essa proposta de maquete. (Professor Selênio).
Além dessa sua satisfação na construção da maquete, o professor também se mostrou motivado a desenvolvê-la na sala de aula, embora tomando o cuidado de não abandonar suas crenças mais arraigadas em relação à condução do ensino, muito relacionadas as suas disposições ascéticas. Para tanto, realizou sua proposta junto a uma turma que considerava "especial”, pois, em sua visão, os discursos dos pedagogos só funcionam para uma sala selecionada para determinado fim.
[...] os trabalhos pedagógicos que eu vi acontecem em uma sala selecionada para aquele fim. Eu posso citar inclusive o meu trabalho de dissertação que eu escolhi a turma mais interativa e mais disposta. Naquele ano do Mestrado, eu fiz com uma turma, mas eu escolhi a dedo qual seria para eu conseguir um bom resultado. (Professor Selênio).
Isso significa que o professor encontrou uma forma de manter sua crença e as ações a ela associadas acerca do ensino. Contudo, parece-nos razoável supor mais uma vez que, ao socializar-se com o contexto do MP, houve um enfraquecimento de seu patrimônio de disposições ascéticas que lhe permitiu elaborar um projeto que pudesse ser realizado em paralelo às suas aulas, sem atrapalhar o andamento dos conteúdos que são cobrados no vestibular. Como consequência, o professor encontrou novos horizontes de possibilidades de desenvolvimento profissional. Essa inferência, inclusive, encontra ressonância na perspectiva declarada pelo professor de que gostaria de "fazer coisas novas”, coisas diferentes da sua prática pedagógica habitual, sem abandoná-la, mas que poderiam agregar para seus alunos novos elementos da cultura científica.
Eu realizo meu trabalho de dissertação até hoje, mas eu não realizo mais em uma sala. [...]. Hoje em dia, eu pergunto quem quer participar independentemente das turmas, de forma paralela às aulas. Eu junto em torno de 8 a 10 alunos e trabalho com eles, a atividade não é vinculada a notas e tem o objetivo de que os alunos desenvolvam uma cultura científica que eles não tinham antes e quem quiser participar pode participar indiferentemente de ser primeiro, segundo ou terceiro ano. [...]. Eu não posso mudar o projeto agora, porque o colégio não permite, porque essa é a minha pesquisa vinculada ao fato de eu ser dedicação exclusiva, mas eu gostaria de fazer novas coisas, eu gostaria de montar um projeto chamado Clube da Física aqui, para que eu possa fazer também outras coisas, porque eu acabei gostando de fazer esse tipo de atividade. (Professor Selênio).
Há de destacar-se que essa aproximação de um processo de desenvolvimento profissional se refere à possibilidade de esse professor começar a problematizar suas ações frente à condução do ensino e à sustentação da aprendizagem. Embora com certa relatividade, esse professor encontrou condições de implicar-se em algumas das dimensões do desenvolvimento profissional, como aquelas relacionadas à adaptação e ao desenvolvimento dos repertórios pedagógicos e científicos ao lançar mão da problematização e da experimentação em sala de aula (atualização nos conhecimentos científicos e atualização nos conhecimentos pedagógicos), envolver os alunos nas suas aprendizagens ao alcançar um número maior de alunos (sustentação da aprendizagem dos alunos), bem como servir-se das novas tecnologias ao elaborar e utilizar-se do produto educacional (organização e condução do ensino).
O contexto do PIBID: a história do professor Ronaldo
Ronaldo é licenciado em Física e atuava, na ocasião da entrevista, como professor há cerca de 12 anos. Formado por uma Instituição Federal de Ensino Superior, também possuía uma especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos pela mesma instituição. Durante a licenciatura, atuou como monitor de oficinas de xadrez na Prefeitura e como professor eventual no Estado, assumindo aulas de Física e de Química. Depois de formado, foi aprovado no concurso do Estado como professor de Física. Há cerca de oito anos, atuava na escola que foi convidada para participar, no ano de 2009, de um projeto dentro do PIBID na área de Física vinculado à mesma instituição na qual ele havia se licenciado.
Para efetivar a parceria com a escola, a coordenadora de área do projeto, juntamente aos docentes da Instituição de Ensino Superior que atuavam como colaboradores, reuniu-se com a gestão da escola, bem como com Ronaldo - o único professor de Física na ocasião -, para discutir os objetivos do projeto a ser implementado. Esse projeto previa desenvolver junto aos licenciandos atividades investigativas, lúdicas, experimentais e, ainda, novas metodologias de ensino em sala de aula. A gestão da escola mostrou-se imprescindível na sustentação da parceria com a universidade, pois potencializou as ações do projeto, sempre apoiando a realização das atividades, inclusive aquelas que eram realizadas fora da escola. Esta abraçou o projeto acolhendo os bolsistas e dando-lhes toda a liberdade para usufruir de sua estrutura, bem como acompanhar o cotidiano da sala de aula: "o PIBID aqui é muito bem visto, inclusive, sempre quando há uma necessidade da escola se organizar a favor do PIBID ela se organiza também” (Professor Ronaldo).
A relação do professor com a escola pública, inclusive, já era marcada por uma visão que não concebia essa instituição como exclusivamente problemática a ponto do exercício do magistério trazer apenas insatisfação.
A escola tem muitos problemas mesmo, mas quando você vivencia tudo, você vê que tem muitas coisas boas. O governo não demonstra isso, mas há muita desistência de professores que iniciam no magistério e acabam exonerando porque não conseguem lidar com essa realidade da sala de aula. (Professor Ronaldo).
O contexto de colaboração entre a universidade, por meio dos bolsistas e dos docentes e a escola pública, por meio da gestão da escola, veio ao encontro do interesse do professor Ronaldo que já buscava criar ações didáticas inovadoras.
Para mim foi um desafio. O projeto do PIBID era bastante interessante porque tinha a concepção da sala de aula como um laboratório de investigação. Então a minha ideia era desenvolver, tanto ampliar como aprofundar algumas coisas que eu vi no curso de Graduação. (Professor Ronaldo).
O encontro de Ronaldo com a proposta do projeto, além de trazer para o professor a possibilidade de agregar à escola "coisas boas”, deixou transparecer um professor muito disponível para planejar, desenvolver e sustentar as atividades previstas para a sala de aula. Nesse processo, o professor estabeleceu uma relação pouco hierárquica com os licenciandos, procurando tratá-los como "colegas professores”, evitando estabelecer uma relação de subordinação, mas, ao mesmo tempo, sem deixar de se responsabilizar pela organização e pela supervisão dos trabalhos que eram desenvolvidos em sala de aula. "[...] não é um trabalho em que eu direciono as coisas, pelo contrário, nós nos organizamos para que a gente pegue a ideia de um licenciando, a ideia do supervisor, e, por meio dessas ideias, nós conseguimos estruturar um conteúdo” (Professor Ronaldo).
Essa relação de horizontalidade e harmonia apresentou-se em diversos momentos da interação entre o grupo, principalmente na forma como Ronaldo tratava os bolsistas, procurando estabelecer um clima de igualdade e de confiança mútua. Havia uma valorização de que todos os trabalhos fossem realizados em equipe e que todas as decisões fossem tomadas coletivamente, com participação de todos na estruturação dos conteúdos de ensino.
Essa questão de trabalharmos em equipe tem contribuído tanto para o meu aprendizado como para o aprendizado deles, porque nosso trabalho é um trabalho que nós planejamos e replanejamos. E aí o que nós fazemos? Nós juntamos as ideias e a gente consegue estruturar um conteúdo. [...]. Você tem um trabalho em equipe, um trabalho colaborativo. Por exemplo, você tem licenciandos que tem a bolsa do PIBID que atuam na mesma série, então a gente consegue desenvolver um trabalho coletivo. Esse trabalho coletivo acaba sendo um trabalho mais rico porque um tem ideia de fazer uma atividade lúdica, outro experimental, então a gente acaba fazendo o planejamento onde se tem um conjunto de atividades para desenvolver. (Professor Ronaldo).
Há de destacar-se que essa harmonia no projeto ocorria também entre os formadores da universidade. Como mencionado, além da coordenadora de área, havia outros professores da licenciatura em Física que cooperavam na coordenação do projeto, contribuindo, principalmente, com a orientação dos licenciandos. Assim, o contexto colaborativo era a principal tônica do projeto no desenvolvimento das várias atividades, inclusive na preparação de aulas, consideradas por Ronaldo como uma atividade muito importante, sendo todas elas planejadas previamente, analisadas e avaliadas por todos os integrantes.
Ao conseguir estabelecer relações horizontais entre os participantes, Ronaldo conseguiu viabilizar cada vez mais atividades em grupo, em que todos trabalhavam conjuntamente na troca de ideias.
Antes de nós irmos para a sala de aula, nós já temos um planejamento, então o licenciando já prepara algo no sentido de ele desenvolver na sala de aula. Antes de nós entrarmos na sala de aula, muitas vezes nós fazemos um ensaio. No pós-aula, nós nos organizamos e vemos o que deu certo, o que pode ser melhorado, então é como estou falando, é um trabalho em equipe mesmo. A gente tem toda essa questão de aprender juntos. (Professor Ronaldo).
[...] para nós é um desafio você lecionar uma aula, então as nossas aulas são planejadas, nós desenvolvemos a regência e no decorrer dessas regências a gente se reúne após a aula para fazer uma autoavaliação do nosso trabalho. E aí por meio dessa autoavaliação nós criamos novas ações como meio de intervenção. (Professor Ronaldo).
A crença de Ronaldo em relações horizontais e igualitárias refletia-se, também, em suas orientações aos licenciandos no que se refere à relação com os alunos da escola. Ele incentivava que, nas intervenções, fosse instituído um clima de amizade com os estudantes da escola. "No caso das intervenções, primeiramente eu deixo eles bem à vontade. Em que sentido? Eles interagirem com a turma” (Professor Ronaldo). A troca de valores na relação dos licenciandos com os estudantes era incentivada pelo supervisor, pois percebia que, além de contribuir para que os futuros professores ficassem mais à vontade na interação de sala de aula, estes compartilhavam uma gama de vivências com a comunidade escolar, os alunos.
Há também essa questão social dos alunos [da escola] não terem uma perspectiva, então a gente tem tentado trabalhar valores, tentado expandir mais essa ideia de conhecimento científico que está envolvido no dia a dia dos alunos. A gente tem percebido que os alunos se organizam, participam e a gente está tendo resultados bons. (Professor Ronaldo).
Nessa mesma direção, o professor, juntamente aos licenciandos, procurava diagnosticar as maiores dificuldades das turmas, de modo a orientar a condução do ensino e promover, da melhor maneira possível, a aprendizagem de seus alunos.
Tudo isso é um trabalho enriquecedor. Por exemplo, agora nós estamos no final do semestre, então nós percebemos que os alunos estão mais cansados. Então, qual que vai ser nossa estratégia? Nós vamos organizar vídeos como meio deles fazerem dissertações sobre os vídeos, que foi uma habilidade que nós identificamos que eles tinham dificuldades. Logo no começo, nós fizemos uma avaliação diagnóstica. A gente percebe que eles conseguem compreender os conceitos, mas eles têm dificuldades para articular esses conceitos, ou seja, organizar as grandezas. Então uma estratégia nossa foi fortalecer a leitura, e a gente está desenvolvendo isso, por meio de textos, que nem agora, essa ideia de a gente trabalhar vídeos. (Professor Ronaldo).
Enfim, o que nossa narrativa destaca de forma enfática é que, no âmbito desse projeto do PIBID, encontramos um professor muito envolvido com o ofício do magistério. Um professor que acreditava que a condução do ensino pode se realizar por meio de relações colaborativas e pouco hierárquicas, com atenção às necessidades dos alunos, isto é, por meio de práticas centradas predominantemente nos estudantes, que requerem planejamento, experimentação e avaliação, em um movimento que implica reflexão sobre a ação. No entanto, mais do que dar destaque a um professor dedicado à profissão, importa-nos também chamar a atenção para o fato de que todas essas ações do professor são orientadas pela busca de um prazer. Em outras palavras, o professor, quando se refere à satisfação que alcança na maneira pela qual organiza e conduz seu ensino, deixa transparecer que o faz de modo justamente para buscar o prazer no âmbito de sua profissão. Assim, deixa-nos a sensação de que a escola efetivamente é um lugar em que é possível realizar um trabalho gratificante e, sobretudo, prazeroso. Nesse sentido, podemos inferir que a maneira pela qual o professor Ronaldo se relaciona com as práticas e com as ações por ele desenvolvidas têm subjacente disposições hedonistas2.
Na Filosofia, a ideia de hedonismo admite que o prazer, independentemente da sua origem, tem sempre a mesma qualidade, e o único caminho para a felicidade é a busca do prazer e a diminuição da dor. Lahire (2004), ao descrever uma disposição hedonista, a contrapõe ao ascetismo, associando-a a um liberalismo. Em um de seus casos, no domínio de práticas alimentares de um de seus entrevistados, encontramos uma situação em que uma disposição hedonista é identificada.
Para Sébastien, o corpo é essencialmente uma realidade dada sobre a qual é difícil agir. Essa naturalização do corpo explica a relação hedonista com seu próprio corpo e a inutilidade, aos seus olhos, de qualquer ascetismo alimentar ou esportivo. [...]. Uma lógica hedonista guia os comportamentos alimentares de Sébastien. Quando está sozinho, ele pode fazer massa "todas as noites” ou beliscar durante o dia em vez de preparar refeições. E, em todos os casos, essas consumações são comandadas menos pela preocupação com seu peso ou com uma higiene de vida do que pela satisfação esperada. (LAHIRE, 2004, p. 252-253).
No caso anterior focalizado, a busca pelo prazer é realizada em detrimento de um equilíbrio alimentar que oferecesse a Sébastien uma existência possivelmente saudável. Isso porque, para ele, dietas e exercícios físicos seriam fontes de dissabores que deveriam ser eliminadas a favor de uma vida voltada exclusivamente para satisfazer a própria vontade.
No caso de Ronaldo, a busca por criar situações didáticas pouco hierárquicas, que para ele se constituem como alvo de prazer e satisfação, trazem em contrapartida o fato de o professor não considerar que ele tem um conhecimento diferenciado dos alunos e dos licenciandos, o qual pode lhe legitimar a posição de professor e de supervisor. Assim, seu planejamento do ensino, bem como as estratégias didáticas que concebia eram orientadas, em geral, por relações horizontalizadas que, por um lado, podem, sem dúvida, favorecer a aprendizagem, mas, por outro lado, exigem que o professor abra mão de sua posição de representante de um saber.
A nosso ver, houve um encontro bastante oportuno entre as perspectivas e as demandas de Ronaldo e o contexto criado pelo PIBID naquela circunstância. Em outras palavras, esse contexto apresentou-se ao professor como bastante favorável e estruturante para a mobilização de práticas sustentadas por disposições hedonistas.
Nessa experiência que Ronaldo considerou ser um privilégio, o supervisor procurou aproveitar ao máximo as oportunidades proporcionadas pelo PIBID, sobretudo pela gama de conhecimentos construídos por meio da prática pedagógica coletiva com os bolsistas e com os formadores da universidade, além da participação e da apresentação de trabalhos em congressos e seminários de ensino.
Para o professor, é um meio de formação continuada, você tem várias oportunidades de aprender, porque você desenvolve um trabalho em equipe na escola. Organizar a escola a favor do desenvolvimento das atividades é um aprendizado, você participa de atividades extraescolares, eventos do PIBID. Teve um encontro institucional do PIBID em junho do ano passado, oficinas, a questão de congressos de ensino porque os trabalhos que estamos desenvolvendo nós queremos divulgar. Então é muito rico, é enriquecedor. Eu, particularmente, nesses quatro anos praticamente que eu estou no PIBID, para mim foi uma experiência que eu considero um privilégio. (Professor Ronaldo).
Como vimos, Ronaldo concebia o PIBID, certamente pelas condições contextuais e de trabalho que encontrou em seu subprojeto, como um lugar de formação continuada para o professor em exercício. O professor ainda lamentou que uma atribuição como essa de supervisor não fosse oferecida para todos os professores que se encontravam na escola: "Gostaria que mais pares pudessem ter essa oportunidade” (Professor Ronaldo). Assim como também o PIBID não alcança todos os estudantes das licenciaturas.
Disposições dessa natureza parecem impelir o professor a buscar formas de incluir os licenciandos e outros professores na mesma perspectiva com que ele se relaciona com as tarefas docentes. Ele procura partilhar sua satisfação, criando condições para que licenciandos e professores também se sintam satisfeitos e tenham prazer em suas práticas; em outras palavras, sua busca dá-se no sentido de trazê-los para o mesmo contexto para que possam mobilizar a mesma disposição.
Sua participação no PIBID, sobretudo pela forma como o subprojeto se organizava, corroborou suas expectativas uma vez que ele mesmo se sentia privilegiado e muito satisfeito em ser um dos construtores do projeto.
Se eu não estivesse no PIBID, eu não estaria, por exemplo, tanto no instituto como na USP me aperfeiçoando. No ano passado, eu fiz um curso de óptica num curso de inverno que tem na USP, e agora eu já estou inscrito para fazer outro curso, que é um curso de Interdisciplinaridade no Ensino de Ciências. Então, também parte de mim essa iniciativa de favorecer minha formação continuada, e o PIBID é um meio de formação continuada. (Professor Ronaldo).
Ronaldo encontrou no PIBID a oportunidade de formar-se continuamente e, encarando-o dessa forma, aproveitava todas as possibilidades de atualização e de aperfeiçoamento que lhe eram proporcionadas, gerindo, assim, sua própria formação contínua (PERRENOUD, 2000). Por meio dos cursos de curta duração que já realizou, suas participações em congressos com a apresentação de trabalhos e nas constantes investigações e estudos realizados com o grupo, Ronaldo passou por um processo de adaptação e de desenvolvimento contínuo dos repertórios pedagógicos e científicos (DAY, 2001), atingindo, assim, diferentes dimensões do desenvolvimento profissional, como atualização nos conhecimentos científicos, atualização nos conhecimentos pedagógicos, organização e condução do ensino, sustentação da aprendizagem dos alunos e planejamento da carreira profissional. "[...] nós estamos também sempre pesquisando referenciais bibliográficos, fazendo cursos, e isso favorece o enriquecimento dessas atividades” (Professor Ronaldo).
Ronaldo mantinha-se motivado a aperfeiçoar-se por meio de estudos e de pesquisas, principalmente por considerar a estruturação do conteúdo científico um meio produtivo de sustentar a aprendizagem em seus alunos. "[...] eu particularmente sou uma pessoa preocupada com a mediação do conteúdo. Para você estar ali organizando a aula no sentido que ela tenha um significado para o aluno, você tem que estudar, pesquisar”. Para ele, a própria organização que o PIBID demandava favorecia seu aprendizado, tendo em vista o que sua função de supervisor requeria. "[...] tem toda uma organização e isso favorece muito a sua criatividade no sentido de você poder organizar a aula”.
Fica evidente a importância que os contextos podem representar na criação de condições para a mobilização de disposições que proporcionam diferentes aspectos do desenvolvimento profissional, quando percebemos que o supervisor também havia sido supervisor de estágios curriculares e não experimentou vivências tão significativas.
Para ele, o mérito do subprojeto que participava estava nessa possibilidade de se planejar previamente e de maneira coletiva e colaborativa as atividades didáticas, promovendo, assim, uma aprendizagem contínua por meio da observação mútua e da discussão com os colegas, bem como a partir da experiência, da reflexão e da teorização sobre a melhor maneira de fazer convergir as necessidades dos alunos (DAY, 2001).
Segundo o professor Ronaldo, no PIBID, tinha-se mais tempo e organização para trabalhar, uma vez que os bolsistas recebiam uma bolsa que garantia mais comprometimento, além de permanecerem por um longo tempo na parceria com a escola. Já no estágio curricular da licenciatura, os licenciandos, muitas vezes, já vinham com uma orientação de pesquisa e as atividades acabavam se resumindo em apenas observação das aulas, sem muita intervenção.
No PIBID, como o aluno [licenciando] recebe uma bolsa, a dedicação dele é maior, ele tem um tempo maior para trabalhar. Nós temos todo um trabalho que vai desde o planejamento ao replanejamento, passando pela regência das atividades; então acaba sendo um trabalho mais organizado. [...] a gente tem um tempo que a gente vai construir as atividades e essas atividades muitas vezes envolve roteiro, pesquisa de material didático e, no estágio, já é bem menor a quantidade de atividades que nós realizamos. O PIBID ele é muito mais completo. É que nem eu comentei, o fundamental no PIBID é esse trabalho em equipe. (Professor Ronaldo).
O supervisor destacou ainda que normalmente os estágios, por não comportarem uma intensa inserção no ambiente escolar e na sua dinâmica de funcionamento, permitiam apenas que os licenciandos tivessem acesso aos aspectos mais contraditórios da escola, transmitindo, desse modo, uma visão mítica da escola pública como sendo um ambiente hostil de trabalho. Por ser um sujeito que mostrou certo otimismo com relação à escola pública e com uma tendência a trabalhos colaborativos, notamos, na sua participação no estágio, um sentimento de frustração e de culpabilidade, que, segundo Lahire (2004), pode ser explicado pelo produto do descompasso entre suas disposições e as possibilidades reais de ação.
Considerações finais
Para além das diferenças já mencionadas em relação aos dois contextos de formação docente focalizados, podemos afirmar, em termos gerais, que uma das principais características do contexto de um MP em Ensino de Ciências, no que se refere às condições de promover desenvolvimento profissional, é a possibilidade de o professor em serviço apropriar-se de uma prática de pesquisa, especialmente no processo de elaboração de um produto educacional de caráter original. Já o contexto de projetos desenvolvidos no âmbito do PIBID traz a possibilidade de criar condições para que o professor supervisor se envolva em um trabalho colaborativo, no qual todos os integrantes do projeto (docentes universitários, professores em formação inicial e continuada) podem investir em um processo de reflexão compartilhada de suas práticas.
Com base em nossa análise, foi possível perceber que os dois contextos focalizados, cada qual com suas peculiaridades, foram favoráveis para que os professores pudessem acessar algumas de suas disposições. Um dos fatos que nos chamou atenção é que ambos os professores ao interagirem com seu contexto revelaram um investimento significativo nas tarefas propostas.
No caso do MP ficou, a nosso ver, bastante evidente o esforço e o investimento do professor em incorporar, em sua prática, uma condução do ensino diferente daquela que praticava. Mesmo considerando que o professor não fez uma mudança radical, é possível ponderar que, de seu ponto de vista, o ensino por investigação lhe acenou com a possibilidade de experimentar uma prática diferenciada. Para tanto, ele precisou investir esforços em flexibilizar sua metodologia, o que lhe custou o enfraquecimento de sua disposição ascética. Esse esforço também se revelou na elaboração do produto educacional na medida em que o professor desenvolveu um tema com relativa originalidade, embora nos parece que essa qualidade de seu produto tenha se restringido ao curso realizado. Houve, desse ponto de vista, um certo acoplamento entre a revisão e a reflexão sobre os métodos de ensino e o vigor da inovação da prática do professor que passou a ser apoiada na exploração de estratégias de cunho experimental e na incorporação do produto educacional por ele elaborado. Assim, não poderíamos deixar de destacar que as inovações que o professor passou a considerar relevantes para sua prática tiveram continuidade incorporando-se a ela, o que nos leva a afirmar que ele revelou responsabilidade com aquilo que produziu e transformou.
Como pudemos evidenciar na história de Selênio, suas ações eram muito marcadas por seu ascetismo, de modo que grande parte de suas práticas eram pautadas na defesa de suas crenças sobre o ensino que já praticava. Ao socializar-se com o MP por meio de algumas disciplinas cursadas e da elaboração do produto final, sua disposição ascética foi enfraquecida, permitindo-lhe revisar algumas rotinas de sua prática e desenvolver-se profissionalmente no que se refere às dimensões atualização nos conhecimentos científicos, atualização nos conhecimentos pedagógicos, organização e condução do ensino e sustentação da aprendizagem dos alunos.
Ronaldo, no entanto, ao contrário de Selênio, parece ter encontrado no contexto proporcionado pelo PIBID a possibilidade de atualizar disposições que, em nossa interpretação, estão relacionadas a disposições de natureza hedonistas. Desse modo, nossa narrativa colocou em evidência todo o investimento do professor em planejar e desenvolver atividades colaborativas, nas quais podia estabelecer relações horizontalizadas que, em consequência, davam sentido ao seu trabalho docente e lhe traziam muita satisfação. Ronaldo também se mostrou responsável no que se refere a implementar junto aos bolsistas de iniciação à docência sua crença no valor que ele conferia às práticas de natureza colaborativa, bem como ao potencial dessas práticas para criar propostas inovadoras. Além disso, sua responsabilidade mostrou-se também na forma como encarou o PIBID: uma formação continuada, em que aproveitou todas as oportunidades de desenvolvimento profissional, principalmente no que se refere às dimensões atualização nos conhecimentos científicos, atualização nos conhecimentos pedagógicos, organização e condução do ensino, sustentação da aprendizagem dos alunos e planejamento da carreira profissional.
Poderíamos dizer que contextos como aqueles que se apresentam no âmbito dos projetos do PIBID não se constituem, em princípio, em contextos favoráveis para o desenvolvimento profissional do professor supervisor, sobretudo pelo fato de o PIBID, em sua origem, estar voltado preferencialmente para a formação inicial. Até recentemente a literatura trazia poucos trabalhos que focalizavam o desenvolvimento profissional do professor participante desses projetos que, via de regra, tinham como preocupação a formação dos licenciandos. No entanto, Ronaldo mostrou-se um professor que aproveitou do projeto para desenvolver-se profissionalmente, e isso, a nosso ver, deve-se à particularidade de suas disposições.
Seguindo Lahire (2004, 2005), podemos considerar que as disposições têm um papel fundamental na relação que um sujeito estabelece com seus contextos de socialização, bem como nas ações que ele pratica em consequência. No caso do desenvolvimento profissional docente, nossos estudos colocaram em evidência que essa interação contexto e disposição pode se dar de diversas maneiras. Um mesmo contexto pode representar para um sujeito ensejo para que suas ações se realizem em consonância com suas disposições; em contrapartida, esse mesmo contexto para outro sujeito pode não ser favorável para que ele atualize suas disposições. Pode, ainda, contribuir para que uma disposição seja enfraquecida, como nos parece ter ocorrido na história de Selênio. Essas diferentes circunstâncias têm consequências várias em termos de processos de desenvolvimento profissional, em particular, no caso da profissão docente.
Nos contextos formativos focalizados, não foi possível encontrar práticas e atividades que acarretassem no desenvolvimento profissional em algumas de suas dimensões. No caso de Selênio, sua disposição ascética constituiu-se como grande obstáculo para que se desenvolvesse na dimensão investigação da própria prática. As discussões promovidas em algumas disciplinas não se constituíram para ele contextos favoráveis para problematizar suas crenças sobre o ensino e, assim, levá-lo a uma reflexão mais genuína sobre a própria prática. No contexto do PIBID, Ronaldo, ao estabelecer relações igualitárias com os licenciandos, não conseguiu estabelecer o distanciamento necessário para se engajar em um processo de investigação da própria prática.
Nossos dados sobre a participação desses professores nos programas focalizados não nos apontaram indícios de que as dimensões participação na gestão da escola e na responsabilidade social foram experimentadas por eles. Nesse caso, há de considerar-se que, provavelmente, os contextos não se propuseram a criar condições para que disposições pudessem ser mobilizadas para tanto.
Essas considerações sugerem não só a complexidade desses processos, mas também a importância dos cuidados a se tomar no desenho de contextos que têm como finalidade a formação continuada, ou mais especificamente o desenvolvimento profissional docente. Assim, sejam contextos como aqueles criados pelo PIBID, sejam aqueles proporcionados pelos MPs, seria desejável que eles criassem condições efetivas para que o professor pudesse refletir e revisar sua prática em concomitância com propostas pedagógicas inovadoras, mesmo que a amplitude dessa inovação fosse mais limitada localmente. Essa conjunção de fatores parece-nos muito promissora para que aquele professor que, como Ronaldo, se propõe a desenvolver-se profissionalmente, encontre um contexto favorável para atualizar suas disposições, colocando seu fazer em sintonia com as diferentes dimensões do desenvolvimento profissional. O caso de Ronaldo traz outra consideração quanto ao que se refere aos contextos formativos criados pelo PIBID. Reparem que, em termos exclusivamente contextuais, esse programa tem a possibilidade de criar condições efetivas para o desenvolvimento profissional de professores supervisores. Certamente não basta apenas o contexto ter essa vocação, pois, como pudemos notar, há também de haver da parte do professor disposições que contribuam para esse desenvolvimento.
Parece-nos, ainda, que buscar a efetivação daquelas condições também pode ser favorável para que um professor que, assim como Selênio que ingressa em um curso de MP sem expectativa de se desenvolver profissionalmente, também encontre um contexto que, embora não lhe sirva para atualizar determinadas disposições, pode enfraquecer aquelas que o impedem de rever suas práticas. Pode ser, inclusive, que um contexto de socialização com aquelas características, mas incompatível com as disposições de um professor, também possa favorecer a constituição de disposições que contribuam para que ele se desenvolva profissionalmente, desde que tenha a oportunidade de experimentar aquele contexto de maneira intensa e frequente.
Outro aspecto que nosso estudo permite destacar e que poderia ser uma característica relevante no que se refere ao desenho de contextos de formação, refere-se a contextos que promovem situações de natureza colaborativa. Essa, inclusive, é uma característica bastante enfatizada por pesquisadores, que a consideram fortemente promissora quando tratam das condições que contribuem decisivamente para a formação continuada e para o desenvolvimento profissional (MARCELO, 2009; NÓVOA, 2009). O projeto do PIBID do qual Ronaldo participou favorecia fortemente atividades com essa característica, permitindo que o professor atualizasse suas disposições. O MP, ao contrário, até por se tratar de uma formação mais individualizada, não tem conseguido dar conta de atividades em que os professores se veem às voltas com questões e temáticas que requerem ações coletivas. Kuenzer (2011) observa que "[...] a qualificação individual tem impacto reduzido sobre a qualidade do trabalho, quando não se insere em uma dinâmica mais ampla e intencional de qualificação do coletivo de professores a partir da escola” (KUENZER, 2011, p. 674). Retomamos aqui esse mesmo aspecto que impacta o desenvolvimento profissional docente, porém, agora fundamentados em Lahire (2004, 2005), no que diz respeito à importância de criar contextos no âmbito dos cursos de MPs que favoreçam a atualização de disposições de natureza colaborativa. Noutras palavras, na medida em que um contexto formativo entra em ressonância com determinadas disposições, muito provavelmente o professor poderá tirar proveito das oportunidades em benefício próprio que, no caso, vai redundar para que ele avance em termos das diversas dimensões relativas ao desenvolvimento profissional docente.
Procuramos, neste trabalho, compreender a interação de professores com contextos considerados potencialmente formativos. Mais especificamente procuramos conhecer fatores importantes e, por vezes, decisivos, que tornam os contextos formativos favoráveis para que o professor encontre as condições, por ele próprio requeridas, para se desenvolver profissionalmente, alcançando, assim, uma gama de saberes e habilidades que vão compor seu repertório profissional. Como têm mostrado os resultados de nossas investigações (NASCIMENTO, 2014), não basta ter um contexto que, em princípio, siga as orientações da literatura no sentido de não se pautar, por exemplo, nas orientações de uma racionalidade técnica para que o sujeito se desenvolva profissionalmente. Mudanças profundas parecem requerer outras condições que têm se mostrado estreitamente vinculadas às particularidades dos sujeitos e dos contextos.
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Notas