Dossiê: Desenvolvimento profissional docente

As tecnologias digitais e o ensino de Química: o caso do Programa de Desenvolvimento Profissional para Professores da CAPES

Digital technologies and Chemistry teaching: the case of CAPES Professional Development Program for Teachers

Las tecnologías digitales y la enseñanza de Química: el caso del Programa de Desarrollo Profesional para Profesores

Marcelo Prado Amaral-Rosa
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brazil
Marcelo Leandro Eichler
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil

As tecnologias digitais e o ensino de Química: o caso do Programa de Desenvolvimento Profissional para Professores da CAPES

Práxis Educativa, vol. 13, núm. 2, pp. 515-539, 2018

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 15 Julho 2017

Aprovação: 10 Outubro 2017

Resumo: O objetivo deste artigo foi analisar o panorama global da formação de professores ofertada pela CAPES, ocorrida em Portugal e com acompanhamento no Brasil, com a finalidade de apresentar as categorias de análise provenientes do campo empírico. A abordagem é qualitativa com inspiração (micro)etnográfica, tendo como estratégia o estudo de caso. A investigação durou três anos e houve imersões internacionais e nacionais. Os sujeitos foram 50 professores de Química na fase internacional e 10 professores na fase nacional. A análise foi baseada na Análise de conteúdo com auxílio do software QSR Nvivo. Os principais resultados foram o surgimento de três domínios emergentes: i) Aqui na escola; ii) As pessoas aqui; e iii) Lá em Portugal. Os resultados indicaram a existência de divergências entre o programa de formação e as expectativas dos cursistas, bem como entre as narrativas e as práticas dos professores.

Palavras-chave: Formação de professores, Cooperação internacional, Tecnologias digitais, Ensino de Química.

Abstract: The aim of this paper was to analyze the global overview of teacher training offered by CAPES, held in Portugal and with follow-up in Brazil, in order to present the categories of analysis from the empirical field. The approach is qualitative with (micro)ethnographic inspiration, having as strategy the case study. The investigation lasted for three years and there were international and national immersions. The subjects were 50 Chemistry teachers in the international phase and 10 teachers in the national phase. The analysis was based on Content analysis with the help of the QSR Nvivo software. The main results were the appearance of three emerging domains: i) Here in the school; ii) The people here; and iii) There in Portugal. The results indicated the existence of divergences between the training program and the expectations of the teachers in professional development, as well as between the narratives and the practices of the teachers.

Keywords: Teacher training, International cooperation, Digital technologies, Chemistry teaching.

Resumen: El objetivo de este artículo fue analizar el panorama global de la formación de profesores ofrecida por la Capes, ocurrida en Portugal y con seguimiento en Brasil, con la finalidad de presentar las categorías de análisis provenientes del campo empírico. El enfoque es cualitativo con inspiración (micro) etnográfica, teniendo como estrategia el estudio de caso. La investigación duró tres años y hubo inmersiones internacionales y nacionales. Los sujetos fueron 50 profesores de Química en la fase internacional y 10 profesores en la fase nacional. El análisis se basó en el Análisis de contenido con ayuda del software QSR Nvivo. Los principales resultados fueron el surgimiento de tres ámbitos emergentes: i) Aquí en la escuela; ii) Las personas aquí; y iii) Allí en Portugal. Los resultados indicaron la existencia de divergencias entre el programa de formación y las expectativas de los profesores en desarrollo profesional, así como entre las narrativas y las prácticas de los profesores.

Palabras clave: Formación de profesores, Cooperación internacional, Tecnologías digitales, Enseñanza de Química.

Considerações iniciais

Atualmente, ainda que de forma controversa, discursos oficiais e políticas públicas educacionais apontam para a necessidade do desenvolvimento de competências e de habilidades dos profissionais da educação diante das tecnologias digitais. Nesse contexto, encontram-se os professores e os processos formativos (SAVIANI, 2009). Com a situação da tecnologia na sociedade posta e sem possibilidades de recuo (DOWBOR, 2001), a abordagem sobre os processos destinados à formação de professores parece de extrema importância, uma vez que os profissionais da educação necessitariam desenvolver aprendizagens diante das tecnologias que lhes permitissem mudanças e inovações em suas práticas didático-pedagógicas (UNESCO, 2009).

Nesse sentido, as discussões que apresentam como ponto central as tecnologias digitais nos ambientes educacionais são e, ao que parece, serão oportunas por longo período na sociedade. Isso é decorrente da presença já indissociável das tecnologias digitais em nossas vidas (CASTELLS, 1999). As "virtualidades” das tecnologias ultrapassam seus limites e interferem nas "presencialidades” em todas as esferas sociais (PORTO, 2006).

Nesse contexto, estão conectados os professores da rede pública de educação. Esses sujeitos, atores outrora com papel de destaque diante da plateia estática, hoje convivem com "corpos digitais” no centro das atenções. Agora os espectadores levantam-se das cadeiras e com seus aparelhos dominam a cena com a ponta dos dedos e com poucos toques em uma tela minúscula e luminosa. E, assim, hoje, dentro das salas de aula de qualquer escola do Brasil, é possível deixar os professores sem (inter)ação.

O problema entre professores, em especial da rede pública, e as tecnologias é a própria formação dos professores (UNESCO, 2009; BARRETO, 2011; GABINI; DINIZ, 2009). Os problemas são de ordem pessoal (IMBERNÓN, 2004) e, também, organizacional (BARRETO; MAGALHÃES, 2011). De ordem pessoal, pois as tecnologias permitem aprendizado autônomo de qualquer parte em qualquer horário. Já o problema organizacional é fruto do status de prioridade secundária (ou seria ainda pior?) do setor educacional nas pautas políticas.

Há tentativas de melhorias do cenário, porém ainda poucas e pontuais. É sobre uma dessas tentativas que este estudo irá se debruçar na busca por entendimentos no que tangem as situações que (in)existem entre professores de Química da Educação Básica da rede pública e as tecnologias que estão em voga no mercado, por meio de uma ação governamental inédita e única no cenário nacional. Nesse sentido, entende-se que, para que seja possível a compreensão adequada sobre as relações que se desenvolvem em situações de formação continuada de professores, torna-se necessário que o contexto seja considerado com tudo que lhe é peculiar (NASCIMENTO, 2007).

O programa brasileiro para formação continuada de professores no exterior tem titulação de Programa de Desenvolvimento Profissional para Professores (PDPP) (BRASIL, 2013). Ele surgiu com base no acordo de Amizade, Cooperação e Consulta, celebrado entre Brasil e Portugal, em 22 de abril de 2000 (BRASIL, 2001), com vistas ao desenvolvimento profissional de professores da rede pública da Educação Básica (BRASIL, 2013).

No âmbito do PDPP, em janeiro e fevereiro de 2014, foram realizados cursos de atualização e de formação continuada para professores de Ensino Médio brasileiros em Aveiro e em Porto. Participaram desses cursos 175 professores de Química, Física, Matemática, Pedagogia e Letras de diferentes regiões do Brasil. Os professores brasileiros participantes desses cursos de formação estavam vinculados, no Brasil, a outras atividades de formação continuada de professores para escola básica promovidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (NEVES, 2012), como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) ou o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) (CLÍMACO; NEVES; LIMA, 2012). Uma das ênfases das atividades formativas desses professores em Portugal foi, conforme item 2.1.4 do edital do PDPP, "[...] estimular o uso de tecnologias educacionais na construção de estratégias didático-pedagógicas de caráter inovador” (BRASIL, 2013). Não se pode deixar de registrar que as tecnologias digitais são um tema de constante atenção da então coordenadora de Educação Básica na CAPES (NEVES, 2009).

Dentre os 26 estados e o Distrito Federal, foram contemplados professores de 22 unidades da Federação (81.48%). Apenas os estados do Amapá, Roraima, Pará, Maranhão e Espírito Santo não tiveram representantes nas formações em Portugal. A Tabela 1 expõe o número de vagas preenchidas conforme áreas prioritárias por macrorregiões do Brasil.

Tabela 1
Preenchimento das vagas ofertadas pelo PDPP
Preenchimento das vagas ofertadas pelo PDPP

Foram preenchidas 167 do total das vagas ofertadas (95,4%), sendo 93 na Universidade de Aveiro e 74 na Universidade do Porto. Na área de Física, não houve procura suficiente para completude das vagas, sendo preenchidas 42 vagas (84%). Destas, 24 professores foram para a Universidade do Porto e 18 para a Universidade de Aveiro. As vagas disponíveis para as outras áreas foram preenchidas em sua completude (BRASIL, 2014). No processo de seleção, um ponto chama atenção: o não preenchimento das vagas nas macrorregiões Norte e Centro-Oeste. Ambas não completaram as vagas nas duas instituições formadoras parceiras. Do total de vagas destinadas à macrorregião Norte, apenas 37% foram preenchidas, e, para a macrorregião Centro-Oeste, o preenchimento foi de 77%. As vagas remanescentes ajudaram para que os percentuais das macrorregiões Sul e Nordeste fossem elevados em 22,85% e 34,3%, respectivamente.

Os professores selecionados para esse intercâmbio profissional e cultural tiveram todas as despesas de primeira ordem custeadas pelas CAPES. Entende-se como despesas de primeira ordem: passagens aéreas, deslocamentos de chegada e saída de Portugal, hospedagem, alimentação, seguro-saúde e ajuda de custo/dia (BRASIL, 2013).

Ao retornar da formação em Portugal, os professores brasileiros deveriam socializar e/ou multiplicar as experiências vivenciadas. A responsabilidade da estratégia era da Instituição de Ensino Superior responsável pelo projeto do PIBID ou PARFOR. A situação ideal de ações oriundas em formações de professores é que repercutam nas escolas em que os professores desenvolvem suas atividades laborais (DAY, 2001; GARCÍA, 1999). Entretanto, esse aspecto de responsabilidades ao fim das formações é tratado em segundo plano no documento norteador da CAPES (BRASIL, 2013). Talvez, nesse sentido, se possa dizer que o próprio nome do programa da CAPES use a expressão Desenvolvimento Profissional de Professores em uma semântica pouco técnica e genérica, como uma expressão "guarda-chuva” (FIORENTINI; CRECCI, 2013) para vários tipos de atividades, de processos e de concepções de formação docente.

Nesta pesquisa, o foco de interesse foram as formações na área de Química. Logo, o objetivo aqui foi analisar o panorama global da formação de professores ofertada pela CAPES, ocorrida em Portugal e com acompanhamentos no Brasil, com a finalidade de apresentar as categorias de análise provenientes do campo empírico. Na próxima seção, descrevem-se as características metodológicas da investigação, que durou cerca de três anos, para, em seguida, dar voz aos professores na seção de resultados e discussões.

Procedimento metodológico

O trabalho investigativo foi realizado por meio de uma abordagem qualitativa com inspiração (micro)etnográfica (AMADO, 2013; ANDRÉ, 1995, 1997; GARCEZ; BULLA; LODER, 2014; GRAY, 2012), sendo a estratégia metodológica o estudo de caso (GRAY, 2012; YIN, 2015). Entende-se que, nesta pesquisa, há dois tipos de estudo de caso. A descrição dessa situação não foi encontrada em Yin (2015) ou em Gray (2012). É fruto da apresentação de contextos com circunstâncias específicas, como a ocorrência da formação do PDPP ter ocorrido em duas instituições distintas, em cidades e períodos diferentes.

Há a compreensão de que, no contexto da fase da formação ocorrida em Portugal em 2014, o enquadramento do estudo é de tipo projeto de caso único incorporado, proposto por Yin (2015) para situações em que haja duas unidades de análise distintas - no caso desta pesquisa, a primeira ocorrida na Universidade do Porto e a segunda na Universidade de Aveiro (BRASIL, 2013).

Por outro lado, na fase sequencial de acompanhamento nas escolas brasileiras, após a realização dos cursos do PDPP, o enquadramento do estudo de caso sofre alteração para o tipo projetos de casos múltiplos holísticos (YIN, 2015). A explicação para a variação da tipologia é o fato de o próprio cenário do acompanhamento nacional in loco dos professores-cursistas. Nesse último tipo, há o entendimento de que cada professor é um caso e que os limites investigativos estariam voltados à influência ou à irrelevância da formação continuada ofertada pelo PDPP nas suas rotinas profissionais.

Nesse sentido, delimitou-se o campo empírico da pesquisa em duas macrodimensões. A macrodimensão Internacional corresponde ao contato [de um dos pesquisadores] com os sujeitos da pesquisa em Portugal, no ano de 2014. Essa macrodimensão apresenta duas microdimensões internas: Invicta1 e Veneza Portuguesa2. Contudo, a mesma lógica não pôde ser adotada para todo o campo empírico. Na macrodimensão Nacional, cada um dos 10 professores participantes da pesquisa foi entendido como uma microdimensão de análise.

As técnicas e os instrumentos utilizados para coleta de dados foram distintos em cada macrodimensão. Na macrodimensão internacional, fez-se uso basicamente de questionários (PAIVA et al., 2017), entrevistas informais (BOOGDAN; BIKLEN, 1999; GRAY, 2012) e notas de campo por meio da observação participante (AMADO, 2013; BOOGDAN; BIKLEN, 1999; GRAY, 2012). Por sua vez, na macrodimensão nacional, foram utilizadas entrevistas informais, notas de campo por meio da observação não participante e entrevistas abertas formais e compreensivas (BOOGDAN; BIKLEN, 1999; DUARTE, 2004; KAUFMANN, 2013).

Os sujeitos da pesquisa foram os professores de Química participantes do PDPP em Portugal. Foram considerados, em um primeiro momento, todos os professores de Química participantes, tanto da formação ofertada, em janeiro de 2014, pela Universidade do Porto (n=25) quanto pela ofertada, em fevereiro de 2014, pela Universidade de Aveiro (n=25). Já as imersões nas escolas brasileiras foram realizadas entre abril de 2015 e maio de 2016, com dez professores cursistas das formações ocorridas em solo português, tanto da Universidade do Porto (n=5) quanto da Universidade de Aveiro (n=5). Os professores de Química foram acompanhados em seus locais de trabalho, em localidades pertencentes aos estados da Bahia (n=3), Paraná (n=3) e Rio Grande do Sul (n=4).

Para a codificação dos sujeitos das imersões na macrodimensão nacional, foram adotados nomes fictícios, independentemente de gênero, procurando fugir de denominações "protecionistas dos sujeitos” que anulam completamente suas identidades, como se sujeitos fossem apenas números ou letras do alfabeto, como, por exemplo, P1, P2, P3 ou entrevista1, entrevista2, entrevista3. Concorda-se com a necessidade ética de proteção dos sujeitos de pesquisa, porém há outras formas de fazê-lo.

Entende-se que o convívio entre pessoas, por mais que seja breve e pontual, carrega consigo as percepções de mundo de cada um dos sujeitos envolvidos como seres culturais que integram e interagem nas comunidades em que existem. Assim, a nomeação dos sujeitos de pesquisa demonstra aqui a preocupação com o primeiro movimento para considerar e compreender "o mundo do outro”: a formação de uma identidade no convívio. Os nomes escolhidos para os sujeitos de pesquisa foram de deuses e heróis da Mitologia grega. De modo metafórico, é possível traçar aproximações entre as histórias míticas e as histórias dos professores de modo geral. Os deuses e os heróis da Mitologia, via de regra, do alto da sua imortalidade, comandavam as relações sociais em seus contextos de atuação em histórias sempre permeadas de superação, de paixão e de lutas pelos seus interesses (FRANCHINI; SEGANFREDO, 2007). Assim, por meio da característica pessoal mais saliente ao primeiro autor deste artigo, cada professor de Química foi acompanhado, em seus contextos de atuação, por codinomes de deuses e por heróis do Olimpo, conforme exposto no Quadro 1 que segue.

Quadro 1
Codificação dos professores de Química do PDPP
Codificação dos professores de Química do PDPP

Cada professor de Química acompanhado in loco, como todos os indivíduos, demonstrou diversas características que poderiam identificá-los e distingui-los. Entretanto, a proposta aqui foi encontrar uma característica para cada professor que diferenciasse cada um dentro do grupo de professores de Química acompanhados. Elencou-se, desse modo, a característica que se aproximou das dos personagens da Mitologia grega. O que não significa que aquele que demonstra liderança não seja paciencioso, dedicado ou amoroso, por exemplo. A intenção foi reconhecer as identidades, levando-se a cabo a importância dada aos diálogos, às observações e às vivências.

Os dados foram analisados mediante interpretação dos questionários, das notas de campo e das entrevistas. Para a análise das entrevistas, foram considerados os preceitos da escuta sensível (BARBIER, 2002) e da escuta ativa (GRAY, 2012). A primeira, mais contextual que a segunda, evoca a habilidade em perceber e respeitar a fala e os sentimentos do outro, de modo que o interlocutor se sinta confortável para produzir seus enunciados. A segunda, mais técnica, "[...] envolve ouvir com atenção, não apenas as palavras que estão sendo ditas, mas também o tom e a ênfase. Às vezes, silêncios ou afirmações incompletas podem revelar mais do que o que realmente é dito” (GRAY, 2012, p. 309).

O método da análise de conteúdo (BARDIN, 2011) auxiliado pelo software QSR Nvivo (LAGE, 2011; TEIXEIRA; BECKER, 2001) foi adotado para a construção dos sentidos e das significações das narrativas dos sujeitos. De tal modo, adota-se, para a codificação global dos dados, de modo geral, um processo híbrido (BARDIN, 2011; MAYRING, 2014), permitindo, assim, a emersão do novo. A adoção de softwares destinados ao tratamento de dados qualitativos, como é o caso do QSR Nvivo, é indicada para minerar uma grande quantidade de dados, podendo, assim, potencializá-los ao ponto de servirem como informação relevante para interpretações do estudo, outrora não percebidas pelo pesquisador (DOWBOR, 2001). Além disso, permitem o tratamento de áudios, de imagens e de grandes quantidades de informações de diferentes fontes de modo simultâneo, permitindo analisar os conteúdos sem a necessidade de haver transcrições prévias do material.

Resultados e discussões

As codificações dos dados do campo empírico na fase nacional foram pré-categorizadas em decorrência da utilização do software QSR Nvivo. Essa pré-categorização foi baseada nas narrativas de outros professores de Química acerca do uso de tecnologias, envolvendo declarações sobre, por exemplo, "infraestrutura da escola”, "tecnologias na escola”, "tecnologias e alunos” e "tecnologias e professores” (ROSA; EICHLER; CATELLI, 2015). Após a codificação apriorística no QSR Nvivo, partiu-se para a composição das categorias definitivas, admitindo-se uma categorização híbrida, com a nomeação baseada em expressões recorrentes nas narrativas dos próprios professores de Química acompanhados durante as imersões no campo. A análise de grupos (cluster com coeficiente de Jaccard) oferecida pelo QSR Nvivo auxiliou a compreensão dos enunciados dos professores participantes PDPP3. Nesse sentido, foram delimitadas as narrativas em três domínios: i) Aqui na escola; ii) As pessoas aqui; e iii) Lá em Portugal.

Esses domínios foram organizados de forma independente apenas para fins didáticos, uma vez que estão interligadas ao longo dos discursos dos professores de Química participantes do programa em questão. As narrativas não seguem necessariamente a cronologia temporal em que ocorreram. Ainda, salienta-se que não é objetivo realizar julgamentos de nenhuma espécie frente ao fazer profissional dos professores de Química participantes do PDPP, mas, sim, buscar compreensões que venham a auxiliar outros professores ou o próprio campo da pesquisa em ensino mediado com tecnologias, bem como, por extensão, subsidiar uma análise de eventuais novos programas formativos de desenvolvimento profissional de professores em cooperação internacional.

Domínio do Aqui na escola

O domínio emerge das categorias prévias adotadas (nós) no QSR Nvivo infraestrutura da escola e tecnologias na escola. Os nós estão vinculados aos professores de Química, principalmente a fatores como: i) precariedade de recursos estruturais da escola; ii) os (des)usos das tecnologias na escola; e iii) determinações institucionais frente às tecnologias.

Dados das entrevistas formais com os professores de Química dos dois grupos do PDPP em Portugal demonstram a média percentual de referências nas narrativas em cada um dos nós infraestrutura na escola (19,5%) e tecnologias na escola (17%), conforme Tabela 2.

Tabela 2
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química acerca da infraestrutura e das tecnologias na escola
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química
						acerca da infraestrutura e das tecnologias na escola

As necessidades de infraestrutura das escolas não é nenhuma novidade no contexto brasileiro. Pelo contrário, chama atenção quando a escola tem condições mínimas de funcionamento de todas as suas instâncias educativas, como salas de aula em bom estado, computadores disponíveis e rede que funcionem adequadamente para atender às necessidades da comunidade escolar. Sobre a situação geral das escolas, ao falar da formação ocorrida em Portugal, Atena deixa transparecer um sentimento de desesperança com a realidade frente aos recursos tecnológicos disponíveis e das possibilidades de colocar em prática o que foi trabalhado na formação: "A gente volta e fica triste com nossa realidade” (Atena). Sobre a realidade escolar Herácles faz eco com a narrativa ao dizer com ênfase que a "infraestrutura aqui é limitada, bemmmm limitada!”. Os limites, para Herácles, extrapolam as paredes da escola ao ponto de ser vulnerável inclusive às intempéries do tempo, pois "quando chove os alunos não vão para a escola, pois há outras emergências familiares, como eles não podem molhar a roupa, pois pode ser que outra pessoa da família precise sair” (Herácles - Notas de campo).

"‘Se vais querer ver sobre as questões de tecnologia, já vou avisando que lá na escola vai ver pouca coisa. Já vou avisando para não te decepcionar’. Interessei-me de imediato para saber mais: ‘Como assim?’, indaguei. ‘Você vai ver... Você vai ver’, disse Cronos, fazendo sinal com a mão e com cara de deboche” (Cronos - nota de campo). Em geral, a fala de Cronos resume as falas dos outros professores acompanhados quando o trato são as tecnologias na escola.

Durante as imersões no campo, foi comum a percepção de que nas escolas as tecnologias são entendidas como um recurso semelhante à lousa ou ao caderno, porém com a diferença que nenhuma pessoa negligencia o uso da lousa e do caderno. Em todas as escolas, as tecnologias estão presentes. Entretanto, a regra é não funcionar como deve e sempre há ao menos um fator que faz com que elas sejam abandonadas em espaços esquecidos ou nem mesmo conhecidos das escolas.

A situação dos laboratórios de informática da maioria das escolas é similar: existe, porém o uso é nulo ou pontual por parte dos professores de Química. "Há alguns computadores, internet razoável e era isso” (Herácles). Contudo, a questão de acesso à rede na escola não é verídica. A rede mundial de computadores não funciona. Em outra escola, o espaço no qual está alocado o laboratório de informática "é inadequado e não temos internet. Dá bastante despesa. A gente tem que estar sempre atrás [recursos]” (Zeus).

A existência de laboratório de informática ou de qualquer outro aparato tecnológico (mesmo fora dos laboratórios) nas escolas públicas não implica em recursos potenciais para o professor (re)formular suas práticas, sejam pessoais ou profissionais. Tal ponto também aparece no domínio Aqui não tem condições (ROSA; EICHLER; CATELLI, 2015), e aqui os professores cursistas da formação em Portugal reforçam o coro: "A tecnologia em si está muito difícil em função de não ter estrutura” (Zeus); "Essa questão das tecnologias, aqui ainda não chegou” (Herácles); "A internet na escola não funciona, estamos duas semanas sem internet” (Hefesto); "Não tem nenhum computador e a sala de informática foi transformada em sala de aula” (Eros); "Eu gostaria de ter acesso a laboratórios, internet, mas não temos” (Hera); "Em sala de aula não tem como usar, só causa mais dor de cabeça” (Cronos).

Os problemas nas escolas são de toda ordem quando o assunto é "tecnologias”. Não são somente os problemas estruturais que assombram, há também má formação para o uso: "Dá para usar, mas o uso, às vezes, é consciente e às vezes não...” (Hefesto). Os usos inadequados feitos por alguns professores causam, por vezes, impressões equivocadas nos responsáveis pela gestão escolar. As más práticas fazem com que se disseminem, entre o grupo de professores, estudantes e coordenação pedagógica, a ideia de que usar as tecnologias para a disciplina seja sinônimo de aula sem compromisso e sem planejamento: "Nós tínhamos professores na escola que usavam sempre e isso foi um problema, devido às práticas. Foi visto pela direção que a prática não era bem executada” (Hefesto).

A situação relatada por Hefesto causa preocupação. As formações para as tecnologias nas escolas são tão precárias, em via de regra, que os próprios professores, mesmo sem formação sobre as possibilidades dos recursos tecnológicos em sala de aula, atestam categoricamente a ponto de gerar advertências aos professores "maus usuários”. "Então ficou com maus olhos por um tempo. Eles iam ao laboratório de informática e copiam as coisas da internet e era isso” (Hefesto).

Entretanto, há momentos que os professores demonstram que as tecnologias estão dentro das escolas, mesmo sem à devida percepção deles. "Os computadores, celulares, internet mudaram o mundo. Hoje, até ensinam coisas que a gente (professor) não consegue” (Cronos). As palavras de Cronos reverberam pelas paredes das salas de aula. A narrativa é fruto das facilidades que todos temos em resolver problemas com a rede mundial de computadores por meio do Google, YouTube e afins.

A professora Atena é a mais entusiasta com as tecnologias dentre os professores acompanhados in loco. Na escola que leciona, há ações que estão atualizando algumas atribuições dos professores, como, por exemplo, a questão de fazer a chamada de forma digital: "Eu já faço a chamada e os registros de aula pelo celular” (Atena). Com base nas dez (10) referências de codificação para um dos nós que constitui esse domínio, percebe-se que a professora Atena comemora as ações na escola conquistadas por meio do projeto chamado Conectados, que é uma ação do Governo do estado de Atena. Contudo, percebe-se que, no momento, as ações ficam restritas à parte burocrática de suas atividades. É notório também que as tecnologias na escola ainda não são usadas a pleno, pois há pouco tempo a rede de computadores era ruim e com o projeto "melhorou bastante”. Assim, os recursos ainda são utilizados para demonstrações de "vídeos de complementação de conteúdo”, porém sempre com atenção à extensão dos audiovisuais. Ressalta-se com a narrativa de Atena que o envolvimento com as tecnologias por parte dos professores de Química acompanhados ainda é instrucional, mesmo com entendimentos frente aos benefícios nas práticas de sala de aula.

Uma das escolas visitadas na macrodimensão nacional chamou atenção por seus espaços e práticas com as tecnologias: a escola do professor Ares. Segundo o próprio, há o reconhecimento da comunidade escolar diante da infraestrutura disponível: "Ao que eu vejo, somos uma escola pública diferente da grande maioria, pois aqui as coisas têm funcionado” (Ares). Para o professor Ares, a sua escola diferencia-se das demais escolas públicas em um sentido amplo. O principal fator de diferenciação está "em as coisas funcionarem” e, de fato, esse aspecto chama atenção na escola, o que a torna uma espécie de ilha no contexto dos professores acompanhados na fase nacional da pesquisa.

O professor Ares deixa claro que as tecnologias são importantes para a escola e para as aulas de Ciências. No entanto, também, deixa claro que a escola tem problemas com o uso dos celulares pelos alunos, e que ainda é preciso ter um controle sobre isso para evitar problemas. Todavia, destaca que, na aula, o professor tem autonomia para usar e que é uma prática da escola os professores usarem as tecnologias, mas que poderiam ser melhores exploradas, uma vez que considera que há condições. A postura de Ares é corroborada por Zeus, mesmo sem as mesmas condições estruturais: "Vejo as tecnologias como algo integrado na Química, sendo o ideal ficar com as máquinas funcionando e que pudesse trabalhar com os alunos” (Zeus).

Domínio do As pessoas aqui

O domínio emerge das categorias prévias adotadas (nós) no QSR Nvivo tecnologias e alunos e tecnologias e professores. Os nós estão vinculados aos professores de Química, principalmente a fatores como: i) formação e posturas assumidas pelos próprios professores de Química; ii) como os professores enxergam os colegas de profissão na escola; iii) competências e habilidades dos estudantes com vistas às tecnologias no contexto de atuação docente.

Esse domínio, assim como ocorrido no domínio anterior, aproxima-se em alguns aspectos dos domínios apresentados em outro âmbito (ROSA; EICHLER; CATELLI, 2015), que teve como sujeitos professores sem formações específicas para o ensino de Química medido com tecnologias. O centro de diferenciação mais latente na comparação entre os professores de Química que não receberam nenhuma capacitação para trabalhar com as tecnologias e os professores de Química cursista do PDPP está baseado no que pensam os professores frente às relações entre os estudantes e as tecnologias de uma maneira mais incisiva e pontual quando o assunto são as apropriações direcionadas para os estudos: "Os alunos não sabem usar muito bem as tecnologias que não seja para Facebook e outras coisas...” (Eros).

Para o professor Eros, os alunos, em geral, não aproveitam as tecnologias para além do uso em redes sociais e comunicação em aplicativos para celular (outras coisas...). Não há o uso voltado para ações de estudo, salvo algumas exceções de usos de YouTube para tirar dúvidas. A opinião de Eros resume, em sentido amplo, a opinião coletiva dos professores cursistas do programa em Portugal.

Eros toca em um ponto interessante que suscita reflexões um pouco mais amplas. Os professores alegam categoricamente que um dos problemas é a capacidade dos estudantes em utilizar as tecnologias para além das "outras coisas” (Eros). Entretanto, os próprios professores que realizaram uma formação de alta intensidade frente às tecnologias para o ensino de Química apresentam as narrativas a seguir: "Os professores não usam [tecnologias]” (Atena); "Particularmente, eu usei pouco o laboratório de informática” (Herácles); "Eu não uso tecnologias na sala de aula” (Afrodite); "Eu não vejo os professores usar, eu não sei se usam...” (Zeus); "Os professores em geral, e eu estou nisso, não usam as tecnologias para instigar os alunos” (Cronos); "Os professores que me desculpem, mas eles não sabem usar [tecnologias]” (Hefesto).

Dados das entrevistas formais com os professores de Química dos dois grupos do programa ocorrido em Portugal demonstram a média percentual de referências nas narrativas em cada um dos nós tecnologias e alunos (09,92%) e tecnologias e professores (17,13%), conforme mostra a Tabela 3.

Tabela 3
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química acerca da relação entre tecnologias e alunos ou professores
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química
						acerca da relação entre tecnologias e alunos ou professores

Com base nas narrativas dos professores de Química, percebe-se que há a tendência dos professores em relatar e/ou criticar as próprias ações e/ou de colegas professores, de modo geral. Isso é compreensível ao passo que eles entendem que o acompanhamento da pesquisa é realizado com vistas a algum tipo de avaliação do curso do PDPP, realizado em Portugal. Ainda, quando o assunto são os estudantes, a Tabela 3 demonstra que existe uma redução do número de codificações, ocasionado devido à atenção dos professores estarem direcionada para si ou para os colegas professores.

Outro aspecto relevante para a construção do domínio concerne à formação da maioria dos professores das escolas para utilizar os recursos tecnológicos em suas práticas. As resistências face às possibilidades tecnológicas são fortes em virtude de formações precárias, conforme declara o professor Eros: "Os professores não querem [tecnologias na escola] porque não sabem mexer” (Eros).

O professor Eros, por exemplo, expõe as suas dificuldades iniciais no manuseio das tecnologias ("Eu era um analfabeto digital”), porém ele relata que, com o tempo e a ajuda de amigos, "aprendi um pouco mais”, superando as barreiras no manuseio das tecnologias. Esse aspecto é importante dentro do contexto de Eros, pois ele mesmo relata que "os professores não querem porque não sabem mexer” (Eros), o que já causou na escola em que Eros trabalha rejeições coletivas com vistas a implantar algumas ações burocráticas com o uso das tecnologias: "Já tivemos duas reuniões para implantar algumas práticas digitais, mas as duas vezes o ‘não’ ganhou” (Eros).

Essa situação demonstra que, no caso de Eros, ele é privado de recursos que poderiam melhorar o seu trabalho em razão da vontade da maioria dos professores, que, ao longo de suas jornadas pessoais ou profissionais, foram privados de formação adequada frente aos recursos digitais da sociedade atual. O professor Hermes faz eco à narrativa ao caso de Eros: "Eu já me indispus com isso e então desisti” (Hermes).

A alegação coletiva dos professores para a rejeição é que já há um costume frente às ações que se quer modernizar, o que acarretaria problemas e, como consequência, mais trabalho extraclasse para o professor. Além disso, aqui não está se entrando em questões para uso pedagógico, logo, é possível que, se as discussões avançassem para esse nível, a negativa seria ainda mais imperativa. A situação causa em Eros desânimo e frustração diante da formação que teve em Portugal: "Eu fiquei muito triste. Várias coisas que vi lá, eu cheguei e tentei usar” (Eros).

"Do jeito que estão às formações vejo pouco reflexo dentro das escolas” (Atena). A narrativa da professora Atena corrobora com as consequências das resistências presentes na escola do professor Eros. Para essa professora, as formações não cumprem seu papel, e tal sensação é presente na maioria das narrativas dos professores de Química acompanhados. Atena e Hefesto estão descrentes quanto à qualidade das formações. A sensação é de total inutilidade das formações ofertadas que abordam o tema das tecnologias na escola. Em relação a auxílio de fato às formações do professor, para os docentes participantes da pesquisa, "do jeito que estão” (Atena) "não servem de nada mesmo” (Hefesto). O intuito, segundo os professores cursistas, é apenas para o cumprimento de planejamentos acadêmicos desconexos com a realidade escolar ou, o mais usual, para ascensões em planos de carreira. Aliás, sobre a situação das formações que visam o plano de carreira, Afrodite relaciona muito bem a questão em sua narrativa: "tinha (tem ainda) professor que não sabe nem ligar o computador aqui. O povo fez (formação em tecnologias) porque precisava para progressão de carreira. Fez, mas não usam nada do curso nas aulas” (Afrodite).

Entre os professores, há também o discurso de que "as práticas dependem de os professores quererem fazer, mas na escola não é uma prática enraizada” (Eros). Os professores reconhecem que são os principais responsáveis pela adesão ou pela repulsão das tecnologias nas aulas, porém o fato de as tecnologias não serem algo institucionalizado atrapalha, pois a coordenação escolar deixa as ações pedagógicas apenas no âmbito pessoal, dependente exclusivamente do professor. "Aqui na escola, não sei de nenhum professor que teve formação específica para uso das tecnologias” (Ares), evidenciando-se, com isso, o caráter não institucionalizado das ações formativas voltadas às tecnologias dentro da escola. Assim, quando há o uso pontual das tecnologias em alguma prática de laboratório ou de sala de aula, é devido ao fato de ter aprendido sozinho ou com ajuda de algum colega um pouco mais experiente no assunto: "O pessoal usa porque aprendeu a usar por conta ou com colegas” (Ares).

O principal sujeito atingido pelas situações relatadas até aqui não poderia deixar de ser outro: o estudante. Na Tabela 4 são apresentadas as codificações do conjunto global das notas de campo frente ao nó tecnologias e alunos.

Tabela 4
Referências de codificações das notas de campo acerca da relação entre tecnologias e alunos
Referências de codificações das notas de campo acerca da relação entre
						tecnologias e alunos

Com base nas notas de campo dos processos de imersão com os professores de Química, percebe-se que não há uma forte tendência de os professores comunicarem e/ou estarem envolvidos em situações que envolvam estudantes e tecnologias, uma vez que a média de codificação geral para todas as notas de campo geradas foi de apenas cerca de 11%. Isso é compreensível para ambientes nos quais as tecnologias não são consideradas possibilidades pedagógicas essenciais, sofrendo com o descaso e a negligência de todos.

"O problema é que a formação para uso das tecnologias não existe” (Ares), o que impossibilita o trabalho com os estudantes, que "veem a Química como um problema” (Atena). Em geral, as formações para professores não atingem os professores das escolas de nenhuma forma, quanto mais de modo específico no ensino de Química, aspecto que maximizado pela própria visão do estudante frente à disciplina. Assim, aproximar o ensino de Química dos estudantes por meio das tecnologias não é uma opção para os professores.

Além dos aspectos formativos, para os professores, os estudantes não apresentam competências e habilidades necessárias para o uso das tecnologias frente às situações de estudo específicas da disciplina de Química: "Os alunos não sabem usar em geral” (Hermes); "São poucos que tem habilidade em mexer no computador” (Eros); "Os alunos não querem nada com nada ultimamente” (Cronos).

As narrativas expõem o pouco interesse dos estudantes sentido pelos professores de Química. O professor Cronos comenta que tentou usar as tecnologias com os estudantes logo após retornar da formação em Portugal, porém se decepcionou com o resultado: "Experimenta pedir um trabalho para eles e deixar que pesquisem no Google livremente para ver o que vem... Experimente!” (Cronos). A experiência de Cronos, segundo ele, foi um desastre, uma vez que teve de ficar corrigindo trabalhos completamente copiados da internet e a maioria sem relação alguma com o que havia sido solicitado como atividade de estudo.

A situação vivida por Cronos também era praticada na escola de Hefesto quando os professores que usam as tecnologias junto aos estudantes em suas disciplinas: "iam ao laboratório de informática e copiavam as coisas da internet e era isso” (Hefesto). Há um consenso generalizado de descontentamento dos professores com relação às posturas dos estudantes. O professor Ares resume a situação toda em uma frase: "precisam de maior comprometimento com as coisas, estão muito desligados” (Ares).

Em meio à carência generalizada, seja em relação à formação dos professores ou à maturidade dos estudantes, há tentativas pontuais dos docentes em utilizar as tecnologias como recurso pedagógico junto aos estudantes. O professor Zeus relata o seguinte:

As tecnologias são importantes e os alunos gostavam quando eu fazia trabalhos que eles poderiam usar computadores, celulares, internet, todas essas coisas. Cada um tinha que fazer duas a três postagens [redes sociais] sobre o assunto na semana e ler as outras postagens e comentar de três a quatro por semana. Foi uma turma boa e isso foi uma forma de premiação. Foi uma forma de diminuir o trabalho [dos estudantes frente à época de avaliações], mas essa turma veio em peso na escola para fazer esse trabalho. Eles ajudaram muito na atividade, essa turma teve um resultado muito bom, eles gostaram muito (Zeus).

É interessante perceber na narrativa de Zeus que o uso das tecnologias, por ser do gosto dos estudantes, é uma forma de premiação. Há o uso das tecnologias quando é preciso conduzir o andamento da aula de forma mais tranquila que o habitual, podendo ser feito em outro ambiente, como na casa dos estudantes ou em grupos. Entretanto, nesse caso, Zeus reforça que houve planejamento para a execução da atividade e que os próprios alunos ajudaram a fiscalizar as ações. A situação de "premiação” no uso das tecnologias é algo de conhecimento comum dentro das escolas, inclusive ocasionando situações desagradáveis como no caso de Hefesto anteriormente, porém há o uso frequente dos computadores com os alunos. Por fim, talvez a narrativa de Hefesto sintetize como os professores acompanhados percebem a relação das tecnologias com os estudantes: "Os alunos usam [tecnologias], eles adoram o que há de mais tecnológico..., mesmo que não saibam usar” (Hefesto).

Domínio do Lá em Portugal

O domínio emerge de categorias prévias adotadas (nós) no QSR Nvivo PDPP e suas subcategorias pontos fortes e pontos fracos. Os nós estão vinculados aos professores de Química, principalmente a fatores como: i) a formação recebida em Portugal; ii) os pontos positivos e negativos da formação em Portugal. Assim, como nos outros dois domínios, construíram-se as médias frente às entrevistas formais dos professores de Química dos dois grupos de professores. Os nós aqui são referentes ao PDPP de maneira geral e seus pontos fortes e fracos, conforme exposto na Tabela 5.

Tabela 5
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química
Referências de codificações das entrevistas dos professores de
						Química

Diante dos resultados da codificação das narrativas dos professores acompanhados frente ao programa, percebe-se que, com o passar do tempo, o destaque geral são os pontos fracos do programa, consumindo, em média, 20% das narrativas dos professores, sendo a média geral da cobertura das entrevistas nesse domínio de 35,70%. É preciso registrar que as imersões no campo empírico nacional tiveram início após 18 meses do regresso ao Brasil dos professores cursistas e finalizaram após cerca de 25 meses. Esse domínio tem um aspecto que diverge dos outros domínios. Com base nas narrativas dos professores, é possível uma interpretação em duas frentes: i) o PDPP como oportunidade cultural para os professores brasileiros; e ii) os programas formativos em si mesmos. O primeiro envolve as questões que englobam os sonhos pessoais de cada um frente à oportunidade de viajar para outro país, realizar um aperfeiçoamento fora do Brasil, reconhecimento profissional, etc. Já o segundo apresenta relações diretas com as ações dos cursos, tanto da microdimensão Invicta quanto da Veneza Portuguesa.

Com relação ao primeiro ponto de interpretação, algumas das narrativas dos professores de Química a seguir ilustram o sentimento coletivo: "A formação [PDPP] foi ótima, gostei muito e de tudo. Aprendi muitas coisas que ainda quero desenvolver. Superou minhas expectativas. Foi muito bom” (Zeus); "A formação foi ótima, uma experiência incrível. Pude conhecer gente nova e fazer grandes amigos, pois acredito que as pessoas se tornam amigas de verdade. O contato foi muito intenso, o povo se apegou muito” (Cronos).

Os aspectos gerais do programa, por mais pessoais que pudessem ser, apresentam uma sintonia entre os professores, tanto da microdimensão Invicta quanto da Veneza Portuguesa. Acredita-se que os sentimentos expressos nas narrativas irão perdurar para sempre nos professores e serão relembrados toda vez que forem feitas menções à situação de Portugal. Entretanto, afastados mais de 18 meses do evento, aflorou nos professores um espírito mais crítico sobre os acontecimentos em Portugal.

Um dos objetivos do programa presentes no documento norteador (BRASIL, 2013) era que os professores cursistas compartilhassem as metodologias de ensino e de avaliação que fossem desenvolvidas em solo português. O modo como ocorreu essa situação está contido nas narrativas a seguir: "Quando voltei de Portugal, não tive abertura na escola. Conversei com colegas mais próximos aqui e ali, mas nada com muita profundidade” (Zeus); "Quando eu voltei, achei que a escola iria se interessar, mas não” (Hera); "Conversei um pouco com as pessoas, mas nada formalizado, como uma palestra ou algo do gênero” (Hefesto).

Percebe-se nas narrativas dos professores um resumo do que ocorreu com a maioria dos professores de Química ao retornar para suas escolas. Houve situações que fugiram a isso, na qual os professores foram entrevistados por jornais locais, foram convidados a falar em suas comunidades, e em suas escolas, todavia, não foi a regra. A maioria não teve o reconhecimento da comunidade escolar que se esperava frente à importância e à especificidade da formação da qual participaram.

Outro aspecto de caráter geral que gerou descontentamento entre os professores, independentemente da microdimensão formativa, foi a ausência de vivências referentes às escolas portuguesas, e de modo mais preciso sobre as nuances administrativas e pedagógicas. "Eu pensei que a gente fosse entender como eles [escola básica] trabalham, como que trabalham as disciplinas, como é a escola. Eu pensei que seria mais assim” (Hefesto), porém esse ponto não se confirmou, gerando a sensação entre os professores de que a formação de fato foi pensada com caráter mais técnico: "A impressão é que você não sabe nada, nós vamos te levar pra lá, você traz o conteúdo e explica” (Hefesto).

No extrato anterior, Hefesto critica o caráter aparentemente conteudista da formação da qual fez parte. Nesse ponto em diante, começam a aparecer as características de cada microdimensão da fase internacional nas narrativas dos professores. Assim, faz-se importante apresentar os pontos fortes e fracos de modo separado, visando respeitar os contextos de cada microdimensão. De tal modo, na Tabela 6, são apresentados os dados das codificações dos pontos fortes e fracos de acordo com os professores, particionados nas suas microdimensões correspondentes.

Tabela 6
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química de acordo com a microdimensão de formação
Referências de codificações das entrevistas dos professores de Química de
						acordo com a microdimensão de formação

Em relação à Tabela 6, percebe-se que os professores se empenharam em suas narrações formais mais em discorrer sobre os pontos fracos das respectivas microdimensões do que sobre os pontos fortes. Na microdimensão Veneza Portuguesa, a diferença entre os pontos fracos e fortes é brutal, com a média de cobertura das codificações nas entrevistas com relação aos pontos fracos ficando em cerca de 26%, contra apenas cerca de 5% de pontos positivos.

As críticas nas narrativas dos professores partem de um ponto mais amplo e vão se estreitando. Algumas delas ilustram alguns dos motivos mais generalizados de tamanha diferença: "Senti uma despreocupação da parte deles com o que nós faríamos com aquilo aqui” (Ares); "A formação do PDPP poderia ter melhor impacto sobre a nossa realidade” (Hera); "Nós precisamos ir daqui até lá para aprender o conteúdo da Química? Foi muito teórico e conteudista” (Hefesto).

Para os professores, faltaram informações prévias sobre a formação. A maioria relata que não sabia o que faria em Portugal, sabendo apenas que era uma formação da CAPES. Além disso, não houve relação direta com a realidade das escolas, sendo completamente focado na transmissão de conteúdos, independentemente dos contextos. Essas características reforçam as práticas já estabelecidas de sala de aula: o professor é o detentor do saber e o transmite de forma unilateral aos estudantes que não sabem. Para os professores cursistas, a sensação de que teriam ido lá para aprender é clara, aspecto que desagradou a todos.

Frente aos pontos específicos dos programas formativos apresentados pelas duas instituições parceiras, houve a divisão em dois: a parte das tecnologias e a parte das práticas laboratoriais em Química. A microdimensão Veneza Portuguesa apresentou falhas, segundo as narrativas dos professores cursistas, nas duas partes: "Poderíamos ter tido um contato maior com outras formas de uso das tecnologias para aplicar com os alunos” (Cronos). "Aquilo que foi visto lá, com aquele software [ArguQuest], não tenho como usar aqui e acho que dificilmente algum professor terá como usar. Pra mim, foi dado aquilo sem necessidade, não foi pensado na gente, na nossa realidade” (Ares).

Os professores Cronos e Ares sintetizam o pensamento coletivo frente à parte tecnológica da microdimensão Veneza Portuguesa. A sensação do grupo de professores cursistas com relação ao eixo de tecnologias é de que foi inútil, pois não há como aplicar nas escolas. O software ArguQuest usado para atividades de questionamento e argumentação, independentemente do assunto, não agradou a nenhum dos professores de Química brasileiros. Além disso, o aspecto de ser somente utilizado o ArguQuest na formação inteira foi considerado pelos professores cursistas como um problema grave na programação da formação.

As críticas dos professores da Veneza Portuguesa estendem-se à parte dos experimentos laboratoriais: "Aquela parte dos experimentos em laboratório, eu não gostei” (Cronos); "Poderíamos ter visto outras coisas bem mais interessantes e úteis” (Ares). Aqui o ponto de reclamação é que foi determinado muito tempo para práticas de laboratório que não se configuraram em novidades para os professores cursistas. Isso foi visto com maus olhos pelo grupo, pois se tratava de professores experientes na docência. A sensação diante das práticas laboratoriais apresentadas foi de "volta à graduação”, o que não agradou.

Outro ponto que gerou muitas reclamações nas narrativas frente aos pontos fracos da formação ao abrigo da microdimensão Veneza Portuguesa foram as condições de hospedagem e a alimentação oferecida aos professores cursistas:

Um ponto negativo para mim, que me marcou muito, foi a questão do refeitório. Acho que poderíamos ter tido um trato melhor quanto a isso. Claro que não tem como satisfazer todo mundo quanto a isso, mas isso poderia ter sido melhor. O alojamento também foi muito abaixo do esperado. Usar banheiro coletivo não estava nos meus planos. Isso não gostei mesmo. Ninguém gostou. Qualidade extremamente baixa. Não tínhamos água quente. Esses aspectos foram muito ruins (Hera).

O mês era fevereiro, pleno inverno na Europa, muitos professores do grupo eram oriundos de regiões de muito calor no Brasil e nunca haviam tido contato com o frio. Além disso, as refeições no refeitório da Universidade não agradaram ao paladar dos professores. A hospedagem e a alimentação foram os destaques negativos dessa microdimensão. Todos os professores fazem coro à narrativa de Hera.

As expectativas mais evidentes dos professores de Química estavam relacionadas a saber sobre o funcionamento das escolas portuguesas. Natural para qualquer professor querer conhecer as escolas em uma formação para professores. Na microdimensão Veneza Portuguesa, houve visitações em duas escolas portuguesas, uma de ensino secundário e outra de ensino primário. Entretanto, as visitas não fizeram parte do corpo da formação, elas funcionaram como uma espécie de "bonificação”, o que foi percebido pelo grupo: "Nós visitamos escolas de forma física. Senti falta do pedagógico” (Zeus); "Poderíamos ter conhecido uma escola na cidade. Eu fui lá e não conheci nenhuma escola ali na cidade! Como é isso? Eu conheci escolas em outras cidades, mas ali onde eu fiz a formação e vivi eu não conheci” (Cronos).

As narrativas de Zeus e Cronos ilustram bem a questão das visitações nas escolas: houve visitas físicas, conheceram-se instalações, laboratórios e salas de aula, porém com pouquíssima interação por parte da escola com os professores brasileiros frente às questões pedagógicas e administrativas. Além disso, as escolas visitadas eram de outros municípios, como é destacado por Cronos, o que não pareceu fazer muito sentido, sendo a região de Aveiro um centro estudantil reconhecido em Portugal. A maioria dos professores coloca a experiência das visitas como interessante e válida; entretanto, todos entendem que poderiam ter sido melhores aproveitadas.

Já entre os pontos fortes, apesar de ter cobertura média de codificação geral de 5%, foram destacadas as amizades construídas ao longo da jornada formativa. É notório que os pontos fortes elencados pelos professores cursistas foram baseados nas relações construídas ao longo das três semanas em que se conheceram. Esse aspecto não poderia ser diferente diante da situação toda, na qual cada professor não conhecia os outros. O convívio de forma intensa por meio do contato imersivo era um dos objetivos da CAPES, porém as trocas de experiências foi um aspecto de críticas entre os professores, pois foi tratada apenas nos contextos informais:

Outra coisa que ficou pendente lá foi nós nos conhecermos [grupo professores brasileiros]. Eu não sei o que a maioria dos colegas fazem nas suas escolas. Acho que a gente perdeu um momento rico. Isso acho que faltou, nós não conhecemos o trabalho uns dos outros [de modo formal] (Zeus).

Ainda diante dos resultados da codificação das narrativas dos professores frente ao programa, a Tabela 6, agora com relação aos cursistas da microdimensão Invicta, percebe-se que os pontos fracos do programa aparecem, em média, em 14% das narrativas. As narrativas dos professores cursistas da microdimensão Invicta apresentam os mesmos dois pontos de interpretação da microdimensão anterior: i) o PDPP como oportunidade cultural para os professores brasileiros; e ii) os programas formativos em si mesmos.

Com relação ao primeiro, algumas das narrativas dos professores de Química a seguir ilustram o sentimento coletivo: "Eu gostei de tudo. Superou minhas expectativas. Foi tudo ótimo. Experiência ótima” (Atena); "Adorei a cidade do Porto. Moraria lá tranquilamente. Adorei os professores, muito competentes” (Herácles); "Eu adorei tudo lá. Eu era muito pobre, então aquilo foi um sonho” (Eros); "Adoro viajar e a chance de fazer um curso para fazer um curso na Universidade do Porto não podia passar batido” (Hermes).

Percebe-se que os sentimentos iniciais desse grupo de professores são similares ao outro grupo de professores. Acredita-se que os sentimentos expressos nas narrativas também irão perdurar por longo tempo. Contudo, nesse grupo, também afloraram algumas críticas sobre os acontecimentos em Portugal.

Frente ao objetivo do compartilhamento, as metodologias de ensino e de avaliação foram desenvolvidas em solo português. O modo como ocorreu essa situação está contida nas narrativas a seguir: "Quando retornei da formação de Portugal não teve um momento para eu expor as minhas experiências. Conversei aqui, na sala dos professores com os mais próximos e deu, um pouco com os alunos do PIBID e foi isso” (Herácles); "Quando eu voltei, achei que iam divulgar, mas fui completamente ignorado” (Eros).

Percebe-se nas narrativas de Herácles e Eros reflexos das narrativas dos professores que estiveram na formação ocorrida na outra microdimensão. Esse aspecto comprova que o acompanhamento no retorno dos professores ao Brasil não foi julgado importante pelos responsáveis, sejam das escolas ou dos órgãos envolvidos, apesar de haver considerações a isso no documento norteador do programa (BRASIL, 2013). Assim, como ocorrido com os professores da microdimensão Veneza Portuguesa, houve casos em que foram concedidas entrevistas aos jornais locais e afins. A maioria deles, assim como Herácles e Eros, não teve o reconhecimento da comunidade escolar que se esperava devido à especificidade da formação no contexto nacional.

Além disso, entendeu-se em Portugal, por parte dos responsáveis pela formação, que o grupo de professores seria responsável por multiplicar em suas escolas as ações desenvolvidas durante a formação. No entanto, em nenhum caso de ambos os grupos de professores de Química, isso ocorreu em solo brasileiro.

Um ponto que chamou atenção entre os professores portugueses na formação do PDPP foi a situação de que havia muitos professores-cursistas sem o domínio básico dos recursos dos computadores, inclusive tendo cursistas que não levaram computadores para a formação: "Percebi que teve um pessoal que nem levou computador, não se preocuparam com isso. Como que você vai para uma formação sobre tecnologias e não leva computador? Eu levei. Comprei uma até para isso” (Atena).

Esse ponto chamou atenção de vários professores à época. Nos acompanhamentos com os professores, não foi diferente: "Dos colegas que estavam lá, tinha uns 60% que não tinham habilidade nenhuma com computador e pior ainda para utilizar as ferramentas” (Afrodite); "Lá em Portugal, eu percebi que tinham colegas que não sabiam usar as tecnologias” (Herácles).

Na microdimensão Invicta, houve uma grande diferença nas questões do trato sobre a condução dos módulos voltados à tecnologia. O caráter conteudista presente na formação da outra microdimensão não se fez presente aqui: "O pessoal todo foi muito atencioso com tudo. A formação foi mais humana. Foi como usar as coisas, mais pedagógica” (Eros).

Entretanto, como aparece nas narrativas dos professores da microdimensão Veneza Portuguesa, houve falhas de comunicação sobre como seria a formação: "Eu não sabia o que seria feito lá. Eu sabia o seguinte: é um curso de formação dado pela CAPES. Ponto” (Hermes); "Eu recebi a programação com os horários uns dias antes do embarque, mas não sabia exatamente o que seria feito e nem como seria” (Afrodite).

Para os professores não ter informações prévias foi um problema. Além disso, Afrodite destaca um aspecto importante para a formação de professores: conhecimento dos sujeitos que serão alvo da formação, ponto que, em sua opinião, deixou a desejar: "Como que você vai dar um curso para uma pessoa sem saber nada da pessoa? Pra mim ninguém perguntou nada. Eu só recebi a ementa e a programação. Em relação a saber como eu trabalho, ninguém perguntou nada” (Afrodite). A professora foi a única entre todos os professores de Química de ambas as microdimensões que tocou nesse ponto.

Mesmo sem a consulta direta aos professores selecionados para realização da formação, as aproximações com as realidades das escolas foram realizadas a gosto pela maior parte dos professores brasileiros. Houve uma situação que gerou desconforto entre o grupo de professores que está relacionada à questão de "transmissão de saber”: a reportagem no canal de televisão do Porto que trouxe como manchete Professores brasileiros vêm aprender na Universidade do Porto. Para os professores cursistas, a sensação de que teriam ido lá para aprender é clara, aspecto que desagradou a todos, porém a situação foi contornada com elegância pelo grupo responsável.

Diante dos pontos específicos dos módulos formativos de tecnologias, a microdimensão Invicta não apresentou problemas como na outra microdimensão. Pelo contrário, segundo os professores, foi o ponto alto da formação: "A primeira vez que fiz um curso na vida que foi pontual e que cumpriu o cronograma” (Atena); "Carga horária foi rigorosamente cumprida com qualidade” (Hermes); "Mas a parte das tecnologias, gostei muito, algumas coisas eu já havia visto uma vez que outra aqui mesmo, mas lá foi mais detalhado. Nas aulas, a professora foi ótima, gostei muito dela [professora]” (Herácles). O ponto forte para todos os professores cursistas dessa microdimensão da fase internacional foram a pontualidade das ações e a didática da professora responsável pelos módulos de tecnologias: "A didática dela muito boa, as aulas passavam rápido, eu aprendi bastante (Herácles)”.

As críticas do grupo de professores da Invicta ficam concentradas na parte correspondente ao segundo módulo, dedicado aos experimentos laboratoriais: "A parte experimental, achei um pouco desnecessária” (Herácles); "Pra mim, na formação, o que foi repetitiva, e talvez não precisasse foi a parte de laboratório” (Eros); "A temática do segundo módulo não tinha nada a ver. Aquelas práticas podem ser pegas na internet” (Afrodite); "O segundo módulo foi muito ruim... dava sono” (Hermes). O módulo que gerou desgosto generalizado no grupo de professores da Invicta foi ministrado por outro professor do departamento de Química da Universidade do Porto. De fato, nesse módulo, as ações foram menos pedagógicas e mais com a finalidade de avaliação dos professores frente ao transcorrer das atividades, o que gerou forte negativa do grupo de professores brasileiros.

Quanto ao ponto que gerou muitas reclamações por parte do outro grupo de professores brasileiros, as condições de hospedagem oferecida aos professores cursistas nesta microdimensão foram exaltadas por todos e aqui é resumida na narrativa de Eros: "A hospedagem estava excelente. Tudo ótimo” (Eros). De fato, a hospedagem foi um ponto forte da microdimensão. Os professores foram alocados em um dos melhores hotéis da cidade, próximo dos locais de formação. Além disso, o hotel serviu de ponto de encontro e convívio de todo o grupo de professores cursistas.

As expectativas desse grupo de professores de Química também estavam relacionadas a saber sobre o funcionamento das escolas portuguesas. Houve a visita em uma das escolas portuguesas mais tradicionais da cidade. Aqui o sentimento e o sentido não foram de "bonificação” aos professores, mas, sim, como integrante do processo de estadia em solo portuense. A infraestrutura da escola impressionou a todos. A professora Afrodite resume as impressões do grupo: "A estrutura física das escolas me impressionou. É estrutura de faculdade. Tudo muito perfeito. Fiquei muito impressionada. Qual aluno que não vai gostar de uma estrutura daquela?” (Afrodite).

Por fim, frente às imersões nacionais junto aos professores de Química cursistas do PDPP, nas microdimensões Invicta e Veneza Portuguesa, há de salientar-se que, apesar dos diversos problemas levantados pelo grupo de professores, todos comungam da narrativa do professor Ares de que "foi uma oportunidade que acho que nunca mais vai acontecer” (Ares). Todavia, há, de modo geral, o entendimento de que a formação não conseguiu atingir de forma direta os professores brasileiros de Química quanto às suas ações profissionais: "A minha maneira de trabalhar não sofreu influência de lá. Para mim, o que foi trabalhado lá não foi nenhuma novidade, eu esperava mais” (Hera).

Com a narrativa de Hera é possível perceber que o caráter de maior relevância do PDPP para os professores de Química foi o prêmio, o aspecto do curso de ser realizado fora do Brasil. De tal modo, com vistas aos resultados globais dos acompanhamentos em imersão na fase nacional desta pesquisa, sente-se a urgência da formulação de uma proposta formativa para professores de Química com vistas a atender às necessidades reais do professorado brasileiro frente às tecnologias digitais em ações de formação que porventura venham a ser executadas em regime de cooperação internacional ou, até mesmo, em regime de parcerias institucionais ou governamentais internas.

Considerações finais

As tecnologias e todo seu aparato entram nas escolas e ocupam lugares nas salas de aula sem sobreavisos, alterando as dinâmicas entre os atores. De tal modo, debruçar-se sobre questões que envolvem tecnologias e suas relações nos contextos escolares configura-se, cada vez mais, necessária na sociedade. Assim, o objeto de estudo desta pesquisa foi uma ação inédita e única, até o momento no cenário nacional, na formação de professores de Química frente à utilização das tecnologias digitais como mediadores de ações didático-pedagógicas: o Programa de Desenvolvimento Profissional para Professores em Portugal, ocorrido na Universidade do Porto e na Universidade de Aveiro, no ano de 2014.

Aprofundamentos teóricos e imersões empíricas foram realizados ao longo de cerca de 30 meses, contribuindo para a construção de uma gama de dados, informações e resultados acerca das relações (in)existentes entre as ações formativas do programa oferecido pelo Governo brasileiro em parceria com instituições portuguesas e seus reflexos nos contextos educacionais das escolas públicas brasileiras. Assim, com vistas a compreender os impactos que uma formação de professores em caráter de cooperação internacional retorna aos contextos formativos, pessoais e profissionais do professor de Química das instituições de ensino da rede pública de distintas regiões do Brasil, pode-se concluir:

i) diante das nuances formativas gerais do PDPP em Portugal e as ações formais da formação específica da área de Química, foi notório o sentimento de pertença dos professores tanto da microdimensão Invicta quanto da microdimensão Veneza Portuguesa. Esse sentimento contribuiu para a formação de uma atmosfera positiva para o (des)envolvimento das/nas atividades propostas. A existência de tais aspectos é compreensível diante da conjuntura formativa ofertada, uma vez que, até então, nenhum dos cinquenta professores de Química havia se envolvido em uma formação extra período letivo, de tamanha dimensão e fora do Brasil. A exposição dos contextos formativos, ao longo do trabalho, foi de suma importância, pois percebe-se que, durante as estadias nos períodos de formação em Portugal, um alto percentual dos professores de Química estava determinado a usar os recursos tecnológicos nas suas aulas, o que não se confirmou na prática quando de volta aos seus contextos particulares.

ii) diante do cenário pós-imersões, entende-se necessário tecer críticas que sejam construtivas às formações de professores no que tange às tecnologias digitais direcionadas a ações de ensino de Química. Nesse sentido, acredita-se que a contextualização com vistas ao mundo real das escolas brasileiras e a alfabetização tecnológica precária de cerca de 50% dos professores-cursistas foram fatores que deveriam ter sido considerados para além dos próprios objetivos da formação em questão;

iii) as categorias definitivas Aqui na escola, As pessoas aqui e Lá em Portugal expõem as divergências entre as esferas formativas, institucionais, narrativas e de ação presentes no enredo do PDPP em Portugal para a área de Química. Tanto as imersões no contexto internacional quanto no contexto nacional da pesquisa atestam as divergências.

É preciso destacar um dos aspectos salientes do PDPP: a renovação motivacional dos professores. Isso deriva da proposta de formação na justa medida em que não corresponde somente a uma percepção de incremento das expectativas que recaem sobre os professores da Educação Básica, mas que contribui antes para a legitimação política da sua ação, sendo, em si mesma, sinalização de valorização da profissão docente. Nesse sentido, pode-se afirmar que o programa teve completo êxito, pois deu novo ânimo aos professores. Inclusive, esse ponto foi enaltecido com as imersões realizadas durante a fase nacional desta pesquisa, uma vez que os professores se sentiram importantes diante de sua comunidade escolar.

Por fim, em termos de expansão projetada pelo programa, mesmo com os professores cursistas em destaque diante de seus pares na escola, não houve a transformação desses professores em multiplicadores de fato das ações desenvolvidas em Portugal. O acompanhamento a posteriori pela CAPES, na qualidade de órgão promotor, foi inexistente, o que confirma o caráter de descontinuidade do Programa. Assim, um ponto que precisa urgentemente ser revisto em formações de professores é o processo de retorno ao contexto profissional.

Agradecimentos

À CAPES, pela concessão de bolsa de estágio doutoral sanduíche ao primeiro autor. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro ao desenvolvimento da pesquisa (Projeto 458724/2014-9) e pela concessão da bolsa de Produtividade de Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora, ambos auxílios ao segundo autor.

Referências

AMADO, J. Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2013.

ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995.

ANDRÉ, M. E. D. A. Tendências atuais da pesquisa na escola. Cadernos CEDES, Campinas, v. 18, n. 43, p. 46-57, dez. 1997. DOI: 10.1590/s0101-32621997000200005

BARBIER, R. Escuta sensível na formação de profissionais de saúde. Conferência na Escola Superior de Ciências da Saúde - FEPECS - SES - GDF. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.barbier-rd.nom.fr/ESCUTASENSIVEL.PDF>. Acesso em: 20 mar. 2017.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BARRETO, R. G. "Que pobreza?!” Educação e tecnologias: leituras. Revista Contrapontos, Itajaí, v. 11, n. 3, p. 349-359, set./dez. 2011.

BARRETO, R. G.; MAGALHÃES, L. K. C. Tecnologia singular, sentidos plurais. Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 11-22, jul./dez. 2011.

BOOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1999.

BRASIL. Decreto Nº 3.927, de 19 de setembro de 2001. Promulga o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, celebrado em Porto Seguro em 22 de abril de 2000. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 set. 2001. Seção 1, n. 181. p. 4-7.

BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Edital Nº 074/2013, de 9 de outubro de 2013. Estabelece a realização de seleção para o PDPP - Programa de Desenvolvimento Profissional de Professores em Portugal. Disponível em: <https://www.capes.gov.br/images/stories/download/editais/Edital_074_2013_PDPP_Portugal.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretoria de Formação de Professores da Educação Básica - DEB, II (Resumo Executivo do Relatório de Gestão 2009-2014). 2014. Disponível em: <https://goo.gl/gar3eghgh>. Acesso em: 20 mar. 2016.

CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CLÍMACO, J. C. T. S.; NEVES, C. M. C.; LIMA, B. F. Z. Ações da Capes para a formação e a valorização dos professores da Educação Básica do Brasil e sua interação com a Pós-Graduação. Revista Brasileira de Pós-Graduação, Brasília, v. 9, n. 16, p. 181-209, abr. 2012. DOI: 10.21713/2358-2332.2012.v9.286

DAY, C. Desenvolvimento profissional de professores: os desafios da aprendizagem permanente. Porto: Porto Editora, 2001.

DOWBOR, L. Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação. Petrópolis: Vozes, 2001.

DUARTE, R. Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar em Revista, Curitiba, n. 24, p. 213-225, jul./dez. 2004. DOI: 10.1590/0104-4060.357

FIORENTINI, D.; CRECCI, V. Desenvolvimento profissional docente: um termo guarda-chuva ou um novo sentido à formação? Formação Docente, Belo Horizonte, v. 5, n. 8, p. 11-23, jun. 2013.

FRANCHINI, A. S.; SEGANFREDO, C. As 100 melhores histórias da mitologia: deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.

GABINI, W. S.; DINIZ, R. E. S. Os professores de Química e o uso do computador em sala de aula: discussão de um processo de formação continuada. Ciência & Educação, Bauru, v. 15, n. 2, p. 343-58, 2009. DOI: 10.1590/s1516-73132009000200007

GARCEZ, P. M.; BULLA, G. S.; LODER, L. L. Práticas de pesquisa microetnográfica: geração, segmentação e transcrição de dados audiovisuais como procedimentos analíticos plenos. DELTA, v. 30, n. 2, p. 257-288, 2014. DOI: 10.1590/0102-445078307364908145.

GARCÍA, C. M. Formação de professores: para uma mudança educativa. Porto: Porto Editora , 1999.

GRAY, D. Pesquisa no mundo real. Porto Alegre: Penso, 2012.

IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2004.

KAUFFMANN, J. A entrevista compreensiva: um guia para pesquisa de campo. Petrópolis, RJ: Vozes; Maceió, AL: Edufal, 2013.

LAGE, M. C. Utilização do software NVivo em pesquisa qualitativa: uma experiência em EAD. Educação Temática Digital, Campinas, v. 12, n. espec., p. 198-226, mar. 2011. DOI: 10.20396/etd.v12i0.1210

MAYRING, P. Qualitative Content Analysis: theoretical foundation, basic procedures and software solution. Klagenfurt: Gesis, 2014. Disponível em: <http://www.ssoar.info/ssoar/bitstream/handle/document/39517/ssoar-2014-mayring-Qualitative_content_analysis_theoretical_foundation.pdf?sequence=1>. Acesso em: 17 out. 2017.

NASCIMENTO, C. O. C. Formação continuada de professores: uma reflexão sobre campo, políticas e tendências. Educação & Linguagem, v. 10, n. 16, p.189-209, jul./dez. 2007. DOI: 10.15603/2176-1043/el.v10n16p189-209

NEVES, C. M. C. Educar com TICs: o caminho entre a excepcionalidade e a invisibilidade. Boletim Técnico SENAC, v. 35, n. 3, p. 17-26, 2009.

NEVES, C. M. C. A Capes e a formação de professores para a Educação Básica. Revista Brasileira de Pós-Graduação, Brasília, supl. 2, v. 8, n. 2, p. 353-373, 2012.

PAIVA, J. C. et al. Desenvolvimento profissional e cooperação internacional para professores de Química: avaliação da intenção de mudança pedagógica após formação continuada no Porto, Portugal. Química Nova, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 105-112, 2017. DOI: 10.21577/0100-4042.20160179

PORTO, T. M. E. As tecnologias de comunicação e informação na escola; relações possíveis... relações construídas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 31, p. 43-57, jan./abr. 2006. DOI: 10.1590/s1413-24782006000100005

ROSA, M. P. A.; EICHLER, M. L. O software QSR Nvivo: utilização em pesquisas no ensino de Química. Educação Química en Punto de Vista, v. 1, n. 1, p. 1-19, 2017.

ROSA, M. P. A.; EICHLER, M. L.; CATELLI, F. “Quem me salva de ti?”: Representações docentes sobre a tecnologia digital. Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 84-104, jan./abr. 2015. DOI: 10.1590/1983-211720175170104

SAVIANI, D. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 40, n. 14, p. 143-155, jan./abr. 2009. DOI: 10.1590/s1413-24782009000100012

TEIXEIRA, A. N.; BECKER, F. Novas possibilidades da pesquisa qualitativa via sistemas CAQDAS. Sociologias, Porto Alegre, ano 3, n. 5, p. 94-113, jan./jun. 2001. DOI: 10.1590/S1517-45222001000100006

UNESCO. Padrões de competências em TIC para professores: marco político. Genebra: UNESCO, 2009.

YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2015.

Notas

1 Corresponde ao título recebido pela cidade do Porto devido ao Cerco do Porto, durante a Guerra Civil de 1832-34. Desde então, a cidade é conhecida por tal alcunha, sendo motivo de extremo orgulho entre os portuenses.
2 Veneza Portuguesa é o modo como a cidade de Aveiro é carinhosamente chamada pelos portugueses. Seus canais aquáticos espalhados pela região urbana fazem menção à famosa cidade italiana. A comparação entre as cidades é, de fato, inevitável, assim como o charme dos coloridos barcos que deslizam suavemente ao lado dos carros no vai e vem do dia a dia.
3 Por questões de limitação de espaço, este artigo apresenta apenas os resultados dos dados na análise com o Nvivo. Informações mais extensas sobre a utilização do software na codificação dos dados da pesquisa podem ser encontradas em Rosa e Eichler (2017).
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por