Comentário
Comentários sobre o Código de Ética da AERA*
A publicação do Código de Ética da AERA, em Língua Portuguesa, constitui-se um marco importante para a discussão sobre ética na pesquisa no Brasil, em especial para a área de Educação. A publicação desse Código se dá no momento em que a ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) está desencadeando o debate sobre o tema, principalmente com a divulgação, em julho de 2017, do documento “Ética na pesquisa em Educação: documento preliminar”1.
Trata-se de um documento aprovado em 2011 e publicado na revista Educational Researcher (v. 40, n. 3, p. 145-156, 2011). O documento possui 12 páginas, dividido em 22 seções. O Código apresenta princípios e regras para cobrir situações profissionais encontradas pelos pesquisadores em educação. Tem como principal objetivo o bem-estar e a proteção dos indivíduos e grupos com os quais pesquisadores em educação trabalham. Ele é também um documento utilizado na formação dos futuros pesquisadores em educação e outros pesquisadores que se beneficiariam do entendimento dos princípios e padrões éticos que orientam os pesquisadores em educação em seu trabalho profissional.
O documento destaca que é de responsabilidade individual de cada pesquisador em educação aspirar aos “mais altos padrões de conduta possíveis em matéria de investigação, ensino, prática e serviço” (AERA, 2011, p. 146).
O documento define cinco princípios que devem orientar os pesquisadores em educação na determinação do curso de ações éticas em vários contextos, a saber: a) competência profissional; b) integridade; c) responsabilidade profissional, científica e do conhecimento; d) respeito aos diretos, à dignidade das pessoas e à diversidade; e e) responsabilidade social (AERA, 2011). Os padrões éticos abordam 22 itens, que abordam diversos aspectos, tais como: a) fabricação, falsificação e plágio; b) evitar danos; c) não discriminação; d) não exploração; e) assédio; f) conflitos de interesse; g) confidencialidade; h) o anonimato das fontes; i) consentimento livre e esclarecido; j) consentimento livre e esclarecido de estudantes e subordinados; k) consentimento livre e esclarecido com crianças; l) uso de fraude em pesquisa; m) oportunidades de pesquisa inesperadas; n) compartilhamento de dados; o) créditos de autoria; p) publicação duplicada de dados; q) responsabilidades dos editores; r) responsabilidades dos revisores; s) tratamento justo das partes em disputas éticas; t) cooperação com comitês de ética.
Nos Estados Unidos, bem como em países como Austrália, Alemanha e Escócia, entre outros2 , o código de ética ou um documento orientador com relação à ética na pesquisa é elaborado pelas associações nacionais específicas (Educação, Sociologia, Antropologia, Serviço Social, etc). No caso da área da educação, naqueles países, a avaliação ou revisão ética dos projetos de pesquisa são realizadas por comitês ou comissões de ética de cada instituição, a partir do documento da Associação. Esse sistema pode ser considerado como altamente descentralizado e que prioriza a reflexão sobre dilemas éticos e a discussão de questões éticas em disciplinas, nas sessões de orientação e de defesa. Geralmente, este processo de revisão é ágil e os pontos de dúvida são sanados por meio do diálogo do Comitê ou Comissão com os pesquisadores. Assume, assim, uma perspectiva reflexiva e formativa.
No Brasil, a regulamentação da ética na pesquisa é aprovada no âmbito da CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) e Ministério da Saúde. A atual Resolução CNS nº 466/2012 (que veio substituir a Res. CNS nº 196/96), apresenta princípios e orientações éticas uniformes para as pesquisas biomédicas e para as pesquisas de Ciências Humanas e Sociais (CHS). A centralização da definição da legislação em um órgão ligado à área da Saúde e a legislação uniforme (predominantemente baseada na área biomédica) têm sido objeto de extenso debate nas Associações de CHS3. Esse sistema acaba por enfatizar o preenchimento de um formulário, enquanto que a reflexão e a discussão sobre os dilemas e decisões éticas ficam secundarizadas. Sobottka (2015) destaca a inadequação do atual monitoramento do Sistema Cep/Conep e defende que “a centralidade da responsabilidade ético-profissional do pesquisador não pode ser substituída por procedimentos burocratizados e voluntaristas de controle externo” (p. 51).
Desde 2001, algumas associações de Ciências Humanas e Sociais (CHS), tal como a ABA (Associação Brasileira de Antropologia), vêm criticando a regulamentação centralizada e baseada no modelo biomédico, que acarreta sérias limitações para a revisão éticas dos protocolos de pesquisa da área de CHS. Em virtude dessas críticas, a Res. 466/2012 estabeleceu que “as especificidades éticas das pesquisas nas ciências sociais e humanas e de outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas serão contempladas em resolução complementar, dadas suas particularidades” (BRASIL, 2012, XIII.3).
Em agosto de 2013, a Conep convidou algumas associações de CHS para iniciar um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar a citada resolução complementar. Após inúmeras reuniões com os membros do GT, formando por representantes de diversas associações de CHS, foi aprovada a Res. CNS nº 510/2016, que dispõe sobre as normas éticas aplicáveis a pesquisas de CHS . No entanto, para a sua plena efetivação, é necessário que sejam feitas alterações na Plataforma Brasil, com a inclusão de um formulário próprio de CHS. Além disso, faz-se necessário aprovar, no âmbito da Conep, a resolução que trata de risco e tramitação de protocolos de acordo com o nível de risco. Embora aprovada há mais de um ano, até o presente, as alterações previstas pelo Grupo de Trabalho que elaborou a Res. CNS nº 510/2016, não foram implantadas. Em virtude disso, os efeitos dessa Resolução não tem sido observados. Diante desse quadro, as demandas dos pesquisadores da área de Ciências Humanas e Sociais continuam sem atendimento da Conep, apesar da luta que tem sido feita por diversos pesquisadores de CHS.
As normas e regulamentos continuam sendo elaborados pela Conep, que conta com poucos representantes das CHS. A luta para que a avaliação ética das pesquisas de CHS seja realizada fora da área da Saúde não é recente. Em 2004, Vilma Figueiredo, então vice-presidente da SBPC, já indicava a necessidade da criação de uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa vinculada ao CNPq. Segundo Figueiredo (2004),
Existe no país, instituído há relativamente pouco tempo com forte apoio da comunidade científica, um Conselho de Ciência e Tecnologia - CnC&T, presidido pelo presidente da República, integrado por membros de diferentes Ministérios e por representantes da sociedade civil, incluindo cientistas e industriais. A este Conselho deveria estar vinculada uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. O que não soa convincente é a existência de uma Comissão necessariamente multidisciplinar abrigada em um Conselho de área específica vinculado a um Ministério de competência tópica (p. 116).
Posteriormente, em 2013, em a ABA e a ANPOCS apresentaram oficialmente a proposta da criação de um sistema de avaliação ética no Ministério de Ciência e Tecnologia (DUARTE, 2017). Atualmente, o Fórum das Associações de CHS têm continuado a luta para que a avaliação ética seja realizada fora da área da saúde. Diante deste quadro, é imperioso que as diferentes áreas que compõem as CHS continuem avançando na compreensão dos limites do sistema atual de revisão ética e possam construir alternativas para esse sistema.
Quanto à literatura sobre ética na pesquisa em Educação (e em CHS em geral), a maior parte dos textos disponíveis aborda os fundamentos da ética na pesquisa e os problemas relacionados à regulamentação. Desse modo, há uma carência de textos que abordem as questões da ética na prática da pesquisa. Nesse sentido, ao lado da elaboração de textos, a publicação de traduções como este Código, é altamente relevante para ampliar os textos disponíveis, principalmente para serem utilizados no processo de formação de futuros pesquisadores.