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A perspetiva CTS e a formacao docente na visao de professores da educacao básica brasileira

La perspectiva CTS y la formación docente en la visión de profesores de educación primaria brasileña

The STS Perspective and Training of Brazilian Primary Education Teachers

João Paulo Fernandes
CEFET/RJ, Brasil
Guaracira Gouvêa
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

A perspetiva CTS e a formacao docente na visao de professores da educacao básica brasileira

Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 14, núm. 41, pp. 41-69, 2019

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Recepção: 25 Janeiro 2018

Aprovação: 25 Fevereiro 2018

Resumo: A investigação que aqui desenvolvemos tem interesse em aspectos sobre a formação docente no contexto do ensino de ciências brasileiro. A pesquisa está inserida no projeto “Articulações no ensino de ciências a partir da perspectiva CTS na educação básica: desempenho de estudantes, práticas educativas e materiais de ensino”. O objetivo dessa pesquisa é analisar as diferentes percepções e apropriações da perspectiva CTS que os professores construíram ao longo da participação no projeto. Apresentamos o relato de dois professores bolsistas e habilitados a lecionar disciplinas do ensino médio brasileiro. Optamos por uma abordagem interpretativa dos dados, baseada metodologicamente na análise de conteúdo. Foi possível observar, no discurso dos professores, prioritariamente, uma visão de CTS alinhada à perspectiva humanística, com a incorporação dos pensamentos do educador brasileiro Paulo Freire e também a abordagem de questões socialmente agudas. Os relatos dos professores foram positivos, tendo em vista que possibilitou, segundo suas falas, um momento de troca de experiências, reflexão da própria prática, trânsito em diferentes espaços de formação, contato com pesquisadores da área de educação em ciências e a possibilidade de explorar novos horizontes.

Palavras-chave: perspectiva CTS, ensino de ciências, formação docente.

Resumen: La investigación que aquí desarrollamos se centra en la formación docente en el contexto de la enseñanza de ciencias brasileña. El estudio forma parte del proyecto “Articulaciones en la enseñanza de ciencias desde la perspectiva CTS en la educación primaria: rendimiento de estudiantes, prácticas educativas y materiales de enseñanza”. El objetivo de esta investigación es analizar las diferentes percepciones y apropiaciones desde la perspectiva CTS que los profesores construyeron durante su participación en el proyecto. Presentamos el relato de dos profesores becados y capacitados para enseñar materias de la educación secundaria. Optamos por un enfoque interpretativo de los datos basado metodológicamente en el análisis de contenido. En el discurso de los profesores se pudo observar, en primer lugar, una visión de CTS alineada con la perspectiva humanística, con la incorporación de los pensamientos del educador brasileño Paulo Freire, y también el enfoque de cuestiones socialmente agudas. Los relatos de los profesores fueron positivos, teniendo en cuenta que con sus palabras posibilitaron un momento de intercambio de experiencias, reflexión sobre la propia práctica, tránsito en diferentes espacios de formación, contacto con investigadores del área de educación en ciencias y la posibilidad de explorar nuevos horizontes.

Palabras clave: perspectiva CTS, enseñanza de ciencias, formación docente.

Abstract: This research is centered on the elements of teacher education within the framework of Brazilian science teaching. It is part of the project “Key points from the STS perspective within primary education: student performance, educational practices and teaching material”. It aims at analyzing the different perceptions and appropriations from the STS perspective that teachers built during their participation in the project. We submit the accounts of two teachers trained to teach in secondary school. We chose an interpretive approach of the data, which was methodologically based on content analysis. In the teachers’ discourse, a vision of STS studies can be perceived as aligned with the humanistic perspective, with the incorporation of the philosophy of Brazilian educator Paulo Freire, and also with a focus on controversial social issues. The teachers’ accounts were positive: their words allowed for a space for the exchange of experiences, a reflection on correct practices, an interchange between different teaching spheres, a contact with researchers of the science teaching sphere and the possibility of exploring new horizons.

Keywords: STS perspective, teaching science, teacher education.

Introdução

A investigação que aqui desenvolvemos tem interesse em aspectos sobre a formação docente no contexto do ensino de ciências brasileiro, buscando a articulação entre a universidade e a escola de ensino básico com o enfoque na abordagem de aspectos sociais e as possíveis relações entre a ciência e a tecnologia. A pesquisa está inserida no projeto “Articulações no ensino de ciências a partir da perspectiva ciência-tecnologia-sociedade (CTS) na educação básica: desempenho de estudantes, práticas educativas e materiais de ensino”. As instituições de ensino superior Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade de Brasília (UnB) integram tal projeto que é financiado pela CAPES, no contexto do Observatório da Educação – Edital CAPES Nº 049/2012 (OBEDUC, 2012). Destacamos que cada instituição de ensino superior tinha autonomia, realizando diferentes formas de ação junto às escolas participantes.

Os professores convidados para participar da pesquisa atuam na rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro, em uma escola situada no município de Niterói, tendo como núcleo a UFRJ. Esses professores participaram de um conjunto de atividades que incluíam reuniões de estudos sobre a temática CTS, discussões sobre a prática docente e planejamento de atividades que foram desenvolvidas em sala de aula. Foi proposto, no contexto do projeto ao longo de 12 meses com os professores da educação básica, um trabalho participativo valorizando a interação entre a universidade e a escola. Foram realizadas oficinas de formação nas escolas de atuação dos professores e o desenvolvimento e acompanhamento de propostas didáticas nas aulas de ciências.

O objetivo central dessa pesquisa é analisar as diferentes percepções e apropriações da perspectiva CTS que os professores construíram ao longo de sua participação no projeto. Assim, pretendemos, ao final deste artigo, responder às seguintes questões de pesquisa: 1) quais são os significados atribuídos pelos professores em relação à abordagem CTS; e 2) como se materializou a apropriação das perspectivas teóricas no contexto do desenvolvimento de atividades em sala de aula.

Tendo como base a pesquisa qualitativa, optamos por uma abordagem Interpret ativa dos dados recolhidos. Utilizamos como método de construção de dados entrevistas semiestruturadas. A análise de conteúdo (AC), proposta por Laurence Bardin, em uma edição de seu livro publicada no ano de 2011, nos auxiliou no processo de análise, o que incluiu a organização no material recolhido, a interpretação e a inferência a partir das análises realizadas tendo como base a discussão teórica fundamentada nas perspectivas que adotamos no presente artigo.

Neste trabalho, apresentamos o relato da participação de dois professores bolsistas e habilitados a lecionar disciplinas do ensino médio brasileiro. Inicialmente, os professores foram apresentados a esta pesquisa e seus objetivos. Os professores tiveram acesso ao termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) que os informou sobre os aspectos da pesquisa, sua participação e resguardo de sua privacidade, atribuindo nomes fictícios aos participantes. Após a assinatura e autorização, os professores foram entrevistados e, posteriormente, as entrevistas foram transcritas, analisadas e interpretadas.

Iniciamos o presente artigo abordando os aspectos teóricos sobre a perspectiva CTS que embasaram nossa análise, apresentando algumas vertentes e abordagens no âmbito brasileiro e de outros países. Em um segundo momento, apresentamos a metodologia empregada na pesquisa e o caminho percorrido ao longo do seu desenvolvimento. Em um terceiro momento, analisamos e elaboramos inferências com base na discussão teórica e metodológica realizada anteriormente e, por último,apresentamos algumas conclusões e reflexões a partir das inferências realizadas.

1. A perspectiva CTS e o ensino de ciências

A perspectiva ciência-tecnologia-sociedade surgiu em meados da década de 1970 como um movimento de renovação curricular, tendo como principal foco promover a discussão dos objetivos da formação científica e tecnológica nas escolas, os processos que envolvem o ensino e aprendizagem de ciências, a formação dos professores e o desenvolvimento de políticas públicas educacionais (Aikenhead, 2003 e 2009).

Tendo como base discussões, no campo acadêmico, sobre questões da natureza da ciência, o movimento CTS foi se constituindo no ensino. É importante destacar também que a discussão dos problemas socioambientais, alertados pelos movimentos ambientalistas e sociais, assim como os trabalhos acadêmicos no campo da filosofia e da sociologia da ciência, constituem os pressupostos do ensino baseado na perspectiva CTS.

A perspectiva CTS tem merecido bastante atenção nos últimos anos no ensino de ciências, pois apresenta alta relevância social e cultural (Cachapuz et al., 2008). Devemos considerar também as crescentes tentativas do desenvolvimento deste tema em escolas e em práticas de ensino. Estas são incorporadas por meio de propostas curriculares, problematizando aspectos que antes não eram discutidos dentro do contexto da ciência e da tecnologia.

De acordo com Garcia et al. (1996), a perspectiva CTS apresenta-se em termos globais de duas formas distintas. A primeira a se considerar é a Norte-Americana, a qual apresenta como sua principal característica fazer uma abordagem das consequências sociais geradas por inovações tecnológicas, assim como suas influências sobre a forma de vida dos cidadãos e das instituições.

A segunda é a Linha CTS Europeia. Tal visão possui grande ênfase na dimensão social que antecede um determinado desenvolvimento científico ou tecnológico,evidenciando diversos fatores, dentre eles, econômicos, políticos, culturais e ambientais que participam do nascimento das teorias científicas que, por sua vez, contribuem para que seja desenvolvida uma nova tecnologia ou até mesmo para o seu aprimoramento (Garcia et al., 1996).

Dagnino (2008), em um amplo estudo sobre CTS e política científica e tecnológica na Ibero-América, indica uma terceira abordagem do tema, no caso, a abordagem baseada no pensamento Latino-Americano em ciência-tecnologia-sociedade (PLACTS), destacando que o PLACTS nasceu a partir dos pensamentos norteamericanos e europeus, sendo inserido dentro do contexto de cada país.

Não podemos desprezar a questão ambiental que está relacionada com o desenvolvimento científico e tecnológico e que, ao longo do tempo, vem ganhando força dentro da discussão em CTS. Pela sua importância e destaque, alguns autores (Vilches e Perez, 2011; Santos, 2011) passam a usar a sigla CTSA, com o objetivo de evidenciar os problemas socioambientais.

É importante destacar a preocupação de autores brasileiros no desenvolvimento de atividades pautadas na perspectiva CTS, com a articulação de questões morais e éticas nas discussões que envolvem aspectos da ciência e da tecnologia. Dentre essas abordagens, podemos citar a perspectiva freiriana de Auler e Delizoicov (2006) e a visão humanística, que também prioriza tais aspectos e que é desenvolvida por Santos (2007), ambas com o objetivo de promover uma formação voltada para a emancipação dos sujeitos.

Apontamos também, em uma discussão embasada na perspectiva CTS, a ênfase na abordagem de temas sociocientíficos no contexto do ensino de ciências (Santos e Mortimer, 2009; Reis, 2013; Reis, 2014). Tal abordagem envolve questões referentes à ciência e à tecnologia com grande impacto na sociedade.

Segundo Santos e Mortimer (2009), o desenvolvimento dos temas sociocientíficos no ensino de ciências apresenta, entre seus objetivos, o de estimular a tomada de atitudes e valores em uma perspectiva humanística. Nessa mesma perspectiva, podemos citar os trabalhos de Auler e Delizoicov (2001) e de Coelho e Marques (2007), que incorporam ao currículo as discussões de aspectos relacionados a valores e reflexões críticas, proporcionando uma educação em que os alunos possam refletir sobre sua condição no mundo frente aos desafios postos pela ciência e tecnologia.

Segundo Santos, Amaral e Maciel (2012), os aspectos sociocientíficos são abordados a partir da perspectiva ciência-tecnologia-sociedade (CTS) e, segundo os autores, a proposta curricular envolvendo as relações CTS corresponde, assim, a uma integração entre educação científica, tecnológica e social. Nessa integração, os conteúdos científicos e tecnológicos são estudados em conjunto, com a discussão de seus aspectos históricos, éticos, políticos e socioeconômicos.

Reis e Galvão (2005) abordam o aspecto das controvérsias sociocientíficas. Tal abordagem está relacionada à compreensão da natureza da ciência e da sua relação com a sociedade e a cultura. Além disso, podemos perceber que o referencial CTS é fortemente citado pelos autores, sendo utilizado, também, como referencial teóricometodológico. Simonneaux e Simonneaux (2012) se utilizam da expressão questions socialement vives. Segundo os autores, principalmente na literatura inglesa, a abordagem de QSC traz consigo a noção de questões socialmente agudas ou questões socialmente vivas, sendo afirmado que, talvez, essa noção seja mais proativa que a noção de QSC, considerando-a como uma noção francesa para a abordagem das QSC.

A abordagem de questões socialmente agudas (QSA) e a abordagem QSC possuem em comum o potencial para o desenvolvimento de perguntas abertas no contexto de problemas não estruturados e integram o conhecimento na área de ciências humanas. O ensino baseado em QSA tem por objetivo enfatizar o grau de “agudeza” de uma determina questão no mundo da pesquisa e/ou sociedade, contribui para o letramento científico e integra análises de risco, análise de padrões de política e governança econômica, tomada de decisão e ação no campo social (Simonneaux e Simonneaux, 2012).

Outro ponto relevante no ensino baseado em QSA é a integração da dimensão ambiental ao contexto do ensino de ciências e isso inclui a discussão de aspectos relacionados ao desenvolvimento econômico sustentável, conservação ambiental, poluição, entre outros. Essa abordagem se aproxima do conceito de CTS, revisitado por Hodson (2003), que integra a dimensão ambiental (A), surgindo, assim, a expressão ciência-tecnologia-sociedade-ambiente (CTSA). Segundo Simonneaux e Simonneaux (2011), tanto a abordagem de QSA quanto a CTSA possuem os mesmos objetivos.

São características de um tema sociocientífico: relacionar-se à ciência; envolver formação de opinião e escolhas; ter dimensão local, nacional ou global; envolver discussão de valores e ética; estar relacionado à vida; envolver discussão de benefícios, riscos e valores; entre outras (Ratcliffe e Grace, 2003). Assim, a abordagem de temas tem sido sugerida para vincular o conhecimento científico à tecnologia e às questões sociais e ambientais, buscando dar significado e relevância ao conteúdo científico (Mundin e Santos, 2012).

Ressaltamos que o enfoque CTS pretende promover uma formação para a cidadania e tomada de decisão, possibilitando, assim, a construção de conhecimentos e embasamento teórico, contribuindo para que o indivíduo possa estar apto a inferir sobre questões da ciência e da tecnologia que influenciam diretamente a sociedade e o ambiente onde vive, congregando uma diversidade de discussões teóricas sobre tais aspectos.

2. O método de Investigação

Nosso método de investigação é baseado na análise de conteúdo (AC) proposta por Laurence Bardin em uma edição de seu livro publicada no ano de 2011. Apresentaremos aqui três momentos que foram delineados no contexto de uma investigação qualitativa baseada na AC.

Podemos afirmar que a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações (Bardin, 2011). A análise de conteúdo surge no início do século XX, nos Estados Unidos, com o objetivo essencial de analisar materiais jornalísticos.

A escola de jornalismo de Columbia (EUA) dá o pontapé inicial, multiplicando, assim, os estudos quantitativos sobre jornais daquela época. Desencadeia-se um fascínio pela contagem e pela medida (superfície dos artigos, tamanho dos títulos, localização da página).

De maneira bem genérica, a análise de conteúdo, em sua metodologia, segundo Bardin (2011), está relacionada à superação da incerteza e consiste em analisar o que realmente está contido em uma determinada mensagem. Aspectos relacionados ao enriquecimento da leitura, analisar o verdadeiro propósito da mensagem e descrever os mecanismos e informações que, a princípio, com uma leitura superficial, não compreendemos, também estão entre os objetivos da AC.

Nosso corpus de pesquisa foi composto por entrevistas semiestruturadas realizadas com os professores bolsistas do projeto OBEDUC (2012), sendo que as mesmas foram gravadas em áudio, identificadas e nomeadas com data e local de realização. As entrevistas foram orientadas a partir de um grupo de questões abertas, com o objetivo de buscar uma maior fluidez e também com o intuito de responder aos questionamentos apresentados no início deste artigo.

Realizadas as entrevistas, as mesmas foram transcritas, buscando reproduzir, com fidelidade, tudo que foi dito, sem cortes nem acréscimos e respeitando as estruturas de transcrição adotadas na escrita acadêmica. Nesse sentido, as regras e critérios para a transcrição das entrevistas serão baseadas em manzini (2006).

As entrevistas foram devidamente transcritas e organizadas na forma de um quadro com três colunas, sendo que a primeira coluna representa a codificação do trecho da entrevista a ser analisada. A codificação foi realizada da seguinte maneira: nome fictício do sujeito da pesquisa, seguido do número da entrevista e o registro do tempo em que se iniciou.

Na segunda coluna, podemos observar a unidade de registro que representa a expressão definidora do trecho da entrevista a ser analisado, o que é definido por Bardin (2011) como o seguimento de conteúdo considerado como uma unidade base, podendo ser uma palavra, uma palavra-chave, frase ou tema, tendo em vista um conjunto de categorias. A unidade de registro é baseada num conjunto de categorias previamente definidas a partir dos estudos em CTS realizados. Essas categorias nos auxiliaram na identificação, no corpo do texto, das unidades de registro e, por sua vez, das unidades de contexto. Além disso, nos deram subsídios teóricos para inferir sobre o material selecionado para a análise.

A terceira coluna indica a unidade de contexto que corresponde ao seguimento da mensagem, cujas dimensões (superiores às da unidade de registro) são ótimas para que se possa compreender a significação exata da unidade de registro, sendo este considerado como toda a fala transcrita e selecionada para ser interpretada e analisada, escolhida com base na unidade de registro. Abaixo, podemos observar um exemplo de fala retirada da entrevista, devidamente organizado e codificado de acordo com a AC:

Exemplo de fala a ser analisada
Quadro 1
Exemplo de fala a ser analisada

Apresentamos aqui o conjunto de categorias de análises baseado no campo teórico da perspectiva CTS. Tais categorias nos auxiliaram a entender como foi estabelecido o processo de apropriação, tanto no campo teórico da discussão da perspectiva CTS, como na materialização de tais conceitos no desenvolvimento de atividades em sala de aula. Abaixo, apresentamos o conjunto de categorias de análise:

Categorias de análise Codificação Unidade de registro Unidade de contexto
Quadro 2
Categorias de análise Codificação Unidade de registro Unidade de contexto


Com o conjunto de categorias definidas e as entrevistas transcritas e organizadas de acordo com a análise de conteúdo proposta por Bardin (2011), iniciamos a próxima etapa, no caso, a realização da análise das entrevistas que está apresentada a seguir.

3. Resultados: a análise das entrevistas

Tendo em vista o objetivo dessa investigação e também com o intuito de responder nossas questões de pesquisa, subdividimos a análise em dois momentos. No primeiro, analisamos o processo de apropriação da perspectiva CTS tendo em vista a contribuição do projeto OBEDUC, apontando impressões, abordagens teóricas e metodológicas e os aspectos de maior relevância que foram possíveis de identificar na fala dos professores com o auxílio das categorias teóricas já definidas.

No segundo momento, analisamos os aspectos relevantes incorporados que contribuíram para o desenvolvimento das propostas em sala de aula no contexto temporal de sua participação no projeto e na sua prática cotidiana em sala de aula.

3.1. A apropriação da perspectiva CTS

Iniciamos as entrevistas com uma apresentação da pesquisa, expondo os objetivos e interesses. Enfatizamos também a importância da participação e reforçamos que todos os dados seriam utilizados exclusivamente para a pesquisa, além de ser assegurada a preservação da identidade de todos os participantes. Em seguida, foi pedido aos professores que fizessem uma breve exposição da sua formação acadêmica e atuação profissional.

Nesse primeiro momento, iniciaremos a análise apresentando os professores a partir de suas próprias falas, destacando o período de participação no projeto, sua formação acadêmica e a disciplina que leciona. Em seguida, realizamos as análises com base nas categorias.

3.1.1. O Professor Eduardo

O professor Eduardo, que atua com a disciplina de ciências, no contexto do segundo ciclo do ensino fundamental, e biologia, no contexto do ensino médio no ensino regular e de jovens e adultos, participou do projeto ao longo dos anos de 2014 e 2015 e já participou de uma série de projetos que articulam a universidade e a escola. É licenciado em Biologia e possui mestrado na área de ensino de biologia.

Iniciamos o conjunto de questões perguntando sobre as representações da tríade CTS, destacamos a seguinte fala:

Fala Eduardo
Quadro 3
Fala Eduardo

Neste primeiro momento, ao ser questionado sobre a abordagem CTS, foi possível identificar, em sua fala, como é importante uma abordagem que contribua para aspectos emancipatórios e de interesses, tanto individuais, quanto coletivos. Ao trazer a discussão teórica e apontar nossas categorias, é possível identificar uma articulação com os pensamentos de Santos (2007) e sua visão de CTS em uma perspectiva humanística também com a incorporação dos pensamentos de Paulo Freire em suas discussões.

Quando perguntado sobre o processo de planejamento de suas atividades no contexto de uma abordagem CTS, o professor Eduardo apresenta o seguinte argumento:

Fala Eduardo
Quadro 4
Fala Eduardo

O professor Eduardo, ao afirmar que os aspectos tecnológicos, científicos e sociais são indissociáveis, nos indica certa maturidade de apropriação desta teoria que possui como base essa tríade. O que poderia ser mais problematizado era justamente a forma como é possível essa articulação em sala de aula, porém, a escolha do tema a ser trabalhado e a metodologia de abordagem desse tema pode nos auxiliar a responder essa questão. O trecho a seguir nos indica alguns indícios dessa relação indissociável.

Fala Eduardo
Quadro 5
Fala Eduardo

Esse trecho reforça a visão do professor Eduardo de um movimento CTS numa perspectiva freiriana/humanística (Santos, 2007; Auler e Delizoivov, 2006), principalmente ao citar que a emancipação é o cerne do movimento CTS. Outro ponto destacado por Eduardo é a articulação de um conteúdo científico com questões de cunho social, reforçando a abordagem de aspectos que envolvem o meio ambiente, aproximando-se da discussão teórica de Vilches e Perez ( 2011) e Santos (2011).

Outro ponto de relevância é a integração dos temas trabalhados com outras disciplinas, o que auxilia na abordagem tendo em vista a complexidade dos temas que normalmente são bordados. Santos (2001) já enfatiza a importância do caráter interdisciplinar da abordagem CTS e o trecho abaixo nos remete a este ponto também:

Fala Eduardo
Quadro 6
Fala Eduardo

Podemos observar também uma nova referência ao termo emancipação, no sentido de uma formação que proporcione uma visão crítica do que está sendo apresentado, com o objetivo de questionar principalmente a sociedade onde vive e indo além do questionamento, com o intuito de modificá-la quando não atende aos interesses comuns.

Para se trabalhar o tema escolhido nas aulas, o professor Eduardo optou pela estratégia do debate simulado, apresentada pelo grupo e comumente utilizada na abordagem de temas controversos com o objetivo de estimular a discussão a partir de dois pontos de vista: grupos a favor dos alimentos transgênicos e grupos contra. Uma das críticas realizadas pelo próprio professor é que essa polarização não aconteceu da forma como ele esperava e ele mesmo atribui esta constatação devido a sua influência no posicionamento.

Quando perguntado sobre o seu entendimento do que é uma questão sociocientífica, podemos observar o seguinte trecho:

Fala Eduardo
Quadro 7
Fala Eduardo

O conceito de QSC apresentado pelo professor Eduardo se aproxima do próprio conceito que é trabalhado na relação teórica fundamental da perspectiva CTS, já que esta busca articular os conhecimentos científicos a uma temática de relevância social.

No texto que segue abaixo, é possível identificar uma citação explícita que se refere a “temas socialmente agudos”, fortemente presente nos estudos baseados nas QSC desenvolvidas por Simonneaux e Simonneaux (2012), que se utilizam da expressão questions socialment vives considerando esta como uma perspectiva francesa para a abordagem das QSC.

Segundo Simonneaux e Simonneaux (2012), principalmente na literatura inglesa, a abordagem de QSC traz consigo a noção de questões socialmente agudas ou questões socialmente vivas, sendo afirmado que talvez essa noção seja mais proativa que a noção de QSC.

Fala Eduardo
Quadro 8
Fala Eduardo

O professor Eduardo inicia esse trecho ao ser perguntado sobre os temas e como esses temas foram organizados. Assim, podemos observar que essa menção traz consigo uma relação com os pressupostos do educador brasileiro Paulo Freire, priorizando o caráter dialógico no contexto do planejamento das atividades que articulam aspectos científicos, tecnológicos e sociais.

Quando perguntado sobre o que seriam esses temas socialmente agudos e como eles surgem, o professor Eduardo responde:

Fala Eduardo
Quadro 9
Fala Eduardo

Nesse trecho, é possível observar a maturidade com relação ao tema que o professor Eduardo pretende trabalhar e que sua prioridade é discutir uma temática social articulada a aspectos científicos. É possível identificar a relação política, socioeconômica e ética, pontos de grande relevância nos referenciais com os quais trabalhamos nesta pesquisa. Quando pensamos na abordagem QSC, conceituada por Santos e Mortimer (2009), a abordagem de aspectos da natureza da ciência, éticos, culturais e políticos são de fundamental importância e, apesar de essas questões não serem observadas no trecho acima, estão presentes na fala do professor Eduardo ao longo da entrevista.

3.1.2. A professora Rita

A entrevista 2 foi realizada com a professora Rita, que atua na rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro, possuindo duas matrículas no estado, lotada em uma delas no município de Niterói e, na outra, no município de São Gonçalo, lecionando as disciplinas de língua portuguesa, produção textual e literatura há mais de 20 anos.

A sua formação básica foi feita na UFF (Universidade Federal Fluminense), em 1994, no curso de licenciatura em letras e é pós-graduada em mídias da educação, curso este dirigido a professores que queriam aperfeiçoar o domínio do uso das mídias e do uso de computação no contexto educacional. Em sua descrição, afirma que já realizou vários cursos de formação continuada oferecidos pelo Estado e também em outras instituições, participando do projeto entre os anos de 2014 e 2015. Iniciamos a entrevista da professora Rita perguntando sobre a perspectiva CTS, como ela poderia definir tal perspectiva e a importância que ela atribuía na relação entre a ciência-tecnologia-sociedade no contexto da disciplina que leciona, sendo enfatizado, pela professora Rita, aspectos relacionados ao planejamento das atividades, tais como atividades planejadas de forma coletiva, escolhas de temas a serem trabalhados em sala de aula, escolhas de matérias didáticos e questionamentos acerca do currículo mínimo do Estado do Rio de Janeiro.

Quando perguntada sobre o que seria a perspectiva CTS e uma abordagem de questões sociocientíficas no contexto da sua disciplina, a professora Rita foca sua resposta no desenvolvimento de atividades que promovam e desenvolvam uma escrita que articule aspectos relacionados à ciência e à sociedade. O trecho abaixo nos apresenta um indicativo dessa afirmação:

Fala Rita
Quadro 10
Fala Rita

A professora Rita aponta em sua resposta que a disciplina que leciona pode auxiliar na melhoria da escrita, no estímulo do debate em sala de aula e na promoção de discussões que possam enfatizar o cuidado tanto individual quanto coletivo. Aspectos relacionados ao meio ambiente também são citados pela professora.

Na tentativa de explorar um pouco mais esse assunto, foi perguntado à professora Rita como ela definiria uma questão sociocientífica, o que era para ela uma questão sociocientífica, e ela então respondeu:

Fala Rita
Quadro 11
Fala Rita

Quando perguntada sobre possíveis diferenças entre a abordagem teórica baseada na perspectiva CTS e na QSC, não foi possível identificar, na fala da professora Rita, aspectos relevantes que diferenciem as duas abordagens, sendo enfatizado, principalmente neste momento, a preocupação de como pensar em traduzir para a sala de aula os conhecimentos que são produzidos na universidade, tornar a ciência produzida na universidade como algo acessível para a sociedade.

Segundo a professora Rita, foram as leituras baseadas na perspectiva CTS que auxiliaram na escolha do tema e como este tema seria trabalhado nas aulas. O tema escolhido para ser trabalhado se intitulava “Consumo” e as leituras selecionadas ajudaram o grupo a focar na questão da sustentabilidade e no trabalho junto à comunidade. Num processo de reflexão de sua própria prática, Rita afirma que não trabalhou tanto como poderia ter trabalhado a questão do consumo e, na sua fala, pouco foi percebido acerca da participação da comunidade nas suas práticas, focando-se mais no trabalho de conscientização dos alunos de sua disciplina.

3.2. O desenvolvimento de propostas pedagógicas

Neste segundo momento, apresentamos os aspectos que estavam nos remetendo ao desenvolvimento das propostas pedagógicas no contexto da participação dos professores no projeto e no desenvolvimento da sua prática docente cotidiana. Pretendemos, com isso, identificar os reflexos além das demandas do próprio projeto ao questionar sobre atividades futuras que, por ventura, foram desenvolvidas tendo como base a perspectiva CTS. Para essas análises, utilizaremos o conjunto de categorias que foram apresentadas no Quadro 2.

3.2.1. O professor Eduardo

Começaremos a análise com a entrevista 1, realizada com o professor Eduardo que, em um primeiro momento, foi perguntado sobre os temas que foram trabalhados, com o intuito inicial de resgatar mentalmente essas informações. Este primeiro trecho pode ser observado abaixo:

Fala Eduardo
Quadro 12
Fala Eduardo

A escolha do tema “sociedade do consumo” já nos sugere uma abordagem considerando o contexto social. Outro ponto relevante é que a estruturação da atividade parte de um tema e não de um conteúdo científico.

Podemos observar o professor Eduardo enfatizando a promoção do processo negociado e, de forma dialógica, no planejamento que foi desenvolvido a partir da escolha do tema. Tal questão nos indica que essa foi uma escolha feita de forma democrática, surgindo não apenas tendo como partida os seus próprios interesses, mas a partir de uma decisão conjunta.

Pensar no currículo também se constitui como um momento de extrema relevância e isso é percebido quando Eduardo discorre sobre romper completamente com o currículo, indicando a sua insatisfação. Esse conflito foi negociado com o grupo e o professor foi orientado no sentido de que isso não seria tão positivo, tendo em vista o conjunto de avaliações externas baseadas no próprio currículo.

Esse exercício de problematização do currículo realizado pelo professor Eduardo e pelo grupo como um todo se constitui numa etapa fundamental para o planejamento das atividades propostas. Todo esse movimento nos remete à perspectiva CTS como um movimento de reformulação curricular, conforme afirmado por Aikenhead (1994).

Quando perguntado sobre a importância da abordagem da relação ciência e sociedade, como é feita essa articulação no contexto de suas aulas e no planejamento das mesmas, o professor Eduardo responde:

Fala Eduardo
Quadro 13
Fala Eduardo

Os pensamentos desenvolvidos pelo professor Eduardo certamente vão além dos aspectos teóricos estudados ao longo de sua participação no projeto. Sua experiência acadêmica, profissional e sua atuação no campo social também refletem no seu posicionamento e isso pode ser observado quando o professor faz a articulação com outros conceitos que provavelmente foram estudados em outros contextos de sua formação como, por exemplo, quando ele cita uma sociedade menos capitalista e mais socialista, buscado a igualdade social.

Esses pontos também se aproximam, principalmente quando, inicialmente, foi pensada a perspectiva CTS, o que também é reforçado por Auler (2003), afirmando que não há uma relação linear entre o desenvolvimento cientifico, tecnológico e social e que isso é gerado, pois os interesses econômicos sobrepõem os interesses sociais.

Continuando sua fala sobre a escolha do tema e analisando a relação com a perspectiva CTS e QSC, podemos observar o trecho a seguir, no qual o professor Eduardo fala como ele problematizou o tema escolhido para trabalhar com sua classe, uma turma do ensino médio da educação de jovens e adultos (EJA):

Fala Eduardo
Quadro 14
Fala Eduardo

O que podemos perceber nesse trecho é a tentativa de se abordar como o desenvolvimento de uma determinada tecnologia, a partir de estudos científicos, pode ser utilizado para o aumento de riquezas e monopólio de um bem muito precioso e fundamental para a população, no caso, a alimentação.

Uma abordagem clara de que nem sempre o avanço em C&T obrigatoriamente é revertido para os interesses da população e sim para interesses individuais e de corporações que irão deter o controle de produção de alimentos, regulando assim um conjunto de ações a partir de seus próprios interesses econômicos.

Outra pergunta realizada foi sobre os aspectos que ele considerou como positivos e negativos com relação à temática trabalhada, com relação à estrutura metodológica que foi proposta e também sobre a reação dos alunos, tendo em vista que não era uma proposta comum no cotidiano de suas aulas. Abaixo, observamos o trecho em que o professor Eduardo cita esses aspectos:

Fala Eduardo
Quadro 15
Fala Eduardo

O professor retoma a discussão sobre a importância da abordagem da conjuntura social no contexto dos temas científicos, considerando isso como um aspecto positivo na proposta desenvolvida nas suas aulas.

O professor Eduardo faz uma crítica à metodologia (debate simulado) por não ter alcançado os objetivos que desejava, afirmando que gostaria de que a discussão fosse mais polarizada no sentido da apresentação de argumentos positivos e negativos sobre o tema transgênico. O professor ainda afirma que os alunos consideram o alimento transgênico como algo estritamente ruim, não favorecendo assim a discussão da controvérsia científica.

O professor atribuiu essa falta de discussão controvérsia ao fato de não ter planejado o debate em sua plenitude, no sentido de deixar mais explícitas as regras e dividir os grupos de forma mais concisa e polarizada.

Podemos perceber um processo de reflexão da própria prática com a realização de uma autocrítica percebida em sua fala ao afirmar que ele mesmo influenciou no posicionamento dos seus alunos e que, na posição de mediador, emitia opiniões contra os transgênicos, o que fez com que os alunos se posicionassem contra aos transgênicos.

3.2.2. A professora Rita

Com a definição da abordagem do tema “Consumo”, a professora Rita então definiu a abordagem que seria trabalhada em suas aulas. Como o tema central era o “Consumo” ou a “Sociedade do consumo”, partindo dessa temática central, ela propôs trabalhar nas suas aulas a relação entre medicamentos alopáticos e homeopáticos e também a relação do consumo entre esses medicamentos.

O que podemos perceber com a fala de Rita é que a escolha do tema surge de uma curiosidade e demanda pessoal. Ela também relata sua dificuldade em articular principalmente os conteúdos científicos, tendo em vista que esta não é uma prática recorrente na sua atuação como docente. Abaixo, podemos observar o trecho que destaca esses aspectos:

Fala Rita
Quadro 16
Fala Rita

Ao falar sobre o processo de construção das atividades, a professora Rita relata que o planejamento se deu de forma coletiva. Em um primeiro momento, ela buscou identificar nos alunos os possíveis conhecimentos prévios sobre o tema e, depois, explorou textos de divulgação científica em sala, apresentando duas reportagens que falavam de medicamentos alopáticos e homeopáticos com o objetivo de promover a discussão da controvérsia científica que estava em questão.

O objetivo da atividade era promover a argumentação, tendo como ferramenta a leitura de textos de divulgação científica, levando em conta a própria demanda do currículo mínimo do Estado do Rio de Janeiro e, com isso, promover um debate em sala de aula. O objetivo do debate, segundo Rita, era:

Fala Rita
Quadro 17
Fala Rita

Tendo em vista o caráter controverso da abordagem proposta por Rita, podemos afirmar que sua proposta se alinha metodologicamente à abordagem de aspectos sociocientíficos (Santos e Mortimer, 2009) no sentido de priorizar principalmente os aspectos éticos, políticos e socioeconômicos. O debate como uma estratégia para estimular a argumentação e o respeito ao próximo no contexto da controvérsia científica também é discutido na abordagem de QSC e amplamente desenvolvido por Ratcliffe e Grace (2003) e Reis e Galvão (2008).

A professora se mostrou preocupada também com a desconstrução de uma visão, por parte dos alunos, com relação à compartimentalização dos conteúdos disciplinares, fato este que ficou mais evidente ao ser desenvolvida em sala de aula a sua proposta didática:

Fala Rita
Quadro 18
Fala Rita

Conclusões e reflexões

O presente artigo pretendeu investigar os impactos de um programa financiado pelo governo brasileiro, os quais foram gerados no contexto da formação de professores. Tal projeto, como ressaltado inicialmente, tinha por objetivo promover o desenvolvimento de práticas educativas que articulassem aspectos relacionados à perspectiva CTS no contexto do ensino médio brasileiro. Outro ponto de grande relevância no projeto foi a articulação entre a universidade e a escola e a troca de conhecimento produzido nestes dois espaços com seus diferentes atores sociais.

Retomando a nossa primeira questão de pesquisa (quais são os significados atribuídos pelos professores com relação à abordagem CTS), podemos perceber algumas visões acerca da perspectiva CTS (Aikenhead, 1994; Auler, 2003; Auler e Delizoivov, 2006; Santos, 2007; Reis e Galvão, 2008; Simonneaux e Simonneaux, 2012; Reis, 2013) apresentadas por Eduardo e Rita.

O professor Eduardo possui uma participação ativa em movimentos de preservação ambiental e militância em uma diversidade de ações sociais e isso foi possível constatar através do seu relato profissional e atividades que realiza e realizou ao longo de sua formação e sua carreira como professor. Essa experiência é percebida em seu discurso, no relato realizado sobre suas atividades como docente. É possível observar uma fluidez e articulação ao ser perguntado sobre a perspectiva CTS. Tendo como base sua fala, é possível apontar uma certa aproximação com os pensamentos de Santos (2007), alinhada à visão de CTS numa perspectiva humanística, com a incorporação dos pensamentos do educador brasileiro Paulo Freire em seus argumentos.

Destacamos, também, o momento em que o professor Eduardo aponta, em sua fala, os “temas socialmente agudos”, mesmo sem ser citado na entrevista e que teoricamente é uma perspectiva desenvolvida por Simonneaux e Simonneaux (2012). Esses autores se utilizam da expressão questions socialment vives com base teórica na abordagem de questões sociocientíficas. Essa menção nos faz inferir que tal estudo foi realizado ao longo de sua participação no projeto, tendo em vista que o professor Eduardo afirma que esses estudos não foram realizados anteriormente.

No desenvolvimento das atividades com base na perspectiva CTS, o professor Eduardo faz menção à escolha de um tema que pudesse gerar uma controvérsia entre os alunos que participaram da atividade, o que também indica sua apropriação.Uma das estratégias utilizadas, o debate simulado, nos faz concluir que o planejamento das atividades se deu de forma coerente com os estudos teóricos.

Assim como o professor Eduardo, a professora Rita também possui uma longa experiência na atuação como professora na rede pública de ensino e relata sua participação no projeto como uma possibilidade de renovação da própria carreira. E, assim como o professor Eduardo, também participou de uma série de atividades que incluíam estudos, discussões, planejamento de aulas, dentre outras atividades que compuseram o projeto OBEDUC.

A fala da professora Rita nos remete a uma abordagem alinhada à proposta de Reis (2013), que traz consigo uma visão de ativismo social para a abordagem de temas sociocientíficos, promovendo atividades que vão além do espaço escolar, envolvendo o entorno social em que o aluno se insere. Essa inferência foi possível devido à importância que a professora Rita demonstrou no desenvolvimento de práticas pedagógicas que leve os alunos a pensar em como intervir no meio em que vivem.

Tal como o professor Eduardo, mesmo sem ser perguntada, a professora Rita cita as questões socialmente agudas, nos remetendo novamente à abordagem de Simonneaux e Simonneaux (2012). É importante ressaltar que eles participaram do mesmo grupo de trabalho e compartilhavam os encontros para estudos e planejamento de atividades em conjunto com outros integrantes do projeto.

Com relação ao desenvolvimento de propostas alinhadas à perspectiva CTS e respondendo à nossa segunda questão (como se materializou a apropriação das perspectivas teóricas no contexto do desenvolvimento de atividades em sala de aula), destacamos, a partir da fala do professor Eduardo, a importância que ele atribuiu à conjuntura social no contexto dos temas científicos que foram trabalhados em sala de aula. Ele ainda afirma que este aspecto foi abordado com êxito, tendo em vista que ficou bem clara tal abordagem para ele e para os alunos.

Em um processo de reflexão da própria prática como docente, o professor Eduardo aponta a importância de se escutar as demandas dos alunos no processo de construção das atividades que serão trabalhadas, afirmando que isso não foi feito, tendo em vista que o próprio tema foi decidido em reuniões com o grupo que participava do projeto. No entanto, nessas reuniões, não houve representação discente, sendo que o professor afirma que, em discussões futuras, pretende promover essa articulação. No processo de construção das atividades nas aulas da professora Rita, os alunos também não foram escutados e nem participaram do planejamento das aulas que foram desenvolvidas, sendo este um ponto que pode ser mais bem explorado em atividades futuras.

Segundo Ratcliffe e Grace (2003), podemos afirmar que são características de um tema sociocientífico relacionar a ciência ao contexto da formação de opinião e escolhas, ter dimensão local, nacional ou global, discussão de valores e ética, estar relacionado à vida, envolver discussão de benefícios, riscos e valores, entre outras. Podemos observar, tanto na fala do professor Eduardo, quanto na fala da professora Rita, ao descreverem suas atividades didáticas, uma aproximação com as características alinhadas à abordagem de temas sociocientíficos.

Os relatos dos professores com relação à participação foram extremamente positivos, tendo em vista que possibilitaram, segundo suas próprias falas, um momento de troca de experiências, de reflexão da própria prática, de trânsito em diferentes espaços de formação, de contato com pesquisadores da área de educação em ciências e da possibilidade de explorar novos horizontes.

A pesquisa realizada aponta a contribuição gerada que vai além da formação do professor. Aspectos relacionados ao aumento da autoestima, a valorização docente, a ressignificação da sua própria prática, entre outros. Reforçamos ainda a importância da continuidade de politicas que possibilitem o processo contínuo da formação docente, tais como o projeto OBEDUC, que, no atual contexto político e econômico pelo qual o Brasil está passando, infelizmente estão ameaçados.

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