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Culturas de participacao em práticas educativas brasileiras fundamentadas pela educacao CTS
Culturas de participación en las prácticas educativas brasileñas basadas en la educación CTS
Cultures of participation in Brazilian educational practices based on STS education
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 16, núm. 47, pp. 71-94, 2021
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Artículos



Resumo: A busca por uma sociedade participativa em temas sociais de ciência-tecnologia constitui um dos objetivos e, também, um dos desafios da educação Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS). Apesar disso, diferentes estudos têm evidenciado poucos aprofundamentos sobre entendimentos referentes a processos democráticos e participativos, como alcançá-los e desenvolvê-los no contexto socioeducacional, em especial no âmbito escolar. Assim, como contribuição a essa perspectiva, a presente pesquisa propõe caracterizar como a participação tem sido trabalhada em práticas educativas brasileiras, por meio de uma análise da produção acadêmica da área de ensino de ciências. Trata-se de uma pesquisa fundamentada em Paulo Freire, referenciais CTS e do Pensamento Latino-Americano em CTS, tendo em vista que a constituição de uma cultura de participação é um pressuposto orientador deles. O corpus de análise é constituído de práticas educativas brasileiras e o recurso teórico-metodológico utilizado foi a Análise Textual Discursiva, da qual resultaram diferentes culturas de participação. Como encaminhamento, destacamos que há culturas que se aproximam de processos decisórios tecnocráticos e outras que possibilitam mecanismos ampliados de participação. Portanto, este trabalho sinaliza limitações e possibilidades para o alcance de processos democráticos participativos em ações educacionais CTS e um (re)pensar das proposições curriculares, já que esse é um propósito a ser construído.

Palavras-chave: CTS, Paulo Freire, PLACTS, culturas de participação, práticas educativas.

Resumen: La búsqueda de una sociedad participativa en temas sociales de ciencia-tecnología es uno de los objetivos y también uno de los desafíos de la educación Ciencia-Tecnología-Sociedad (CTS). A pesar de esto, diferentes estudios han mostrado poca profundidad sobre los entendimientos que se refieren a los procesos democráticos y participativos, como llegar y desarrollarlos en el contexto socioeducativo, especialmente en el contexto escolar. Así, como aporte a esta perspectiva, esta investigación se propone caracterizar como se ha trabajado la participación en las prácticas educativas brasileñas, através de un análisis de la producción académica en el área de la enseñanza de las ciencias. Esta es una investigación basada en Paulo Freire, referencias CTS y Pensamiento Latinoamericano en CTS, teniendo en cuenta que la constitución de una cultura de participación es un supuesto rector para ellos. El corpus de análisis consta de las prácticas educativas brasileñas y el recurso teórico y metodológico utilizado fué el análisis textual discursivo, que resultó en diferentes culturas de participación. Como guía, destacamos que existen culturas cercanas a los procesos tecnocráticos de toma de decisiones y otras que posibilitan ampliar los mecanismos de participación. Por lo tanto, este trabajo señala limitaciones y posibilidades para alcanzar procesos democráticos participativos en las acciones educativas de la CTS y un (re) pensamiento de las propuestas curriculares, ya que este es un propósito a construir.

Abstract: The search for a participatory society in social science-technology topics is one of the goals as well as one of the challenges of Science-Technology-Society (STS) education. Despite this, different studies have shown little depth about understandings regarding democratic and participatory processes, the way to reach and develop them in the socio-educational context, especially in the school context. Thus, as a contribution to this perspective, the following research aims to characterize how participation has been worked on in Brazilian educational practices, through an analysis of academic production in science teaching. This is a research based on Paulo Freire, STS references and Latin American Thought in STS, bearing in mind that the constitution of a culture of participation is a guiding assumption for them. The analysis corpus consists of Brazilian educational practices, being the theoretical and methodological resource used the discursive textual analysis, which resulted in different cultures of participation. As a guide, we highlight that there are cultures that are close to technocratic decision-making processes and others, which enable expanded participation mechanisms. Therefore, this research points out limitations and possibilities for reaching participatory democratic processes in STS educational actions and a (re) thinking of curricular propositions, since this is a purpose to be built.

Keywords: STS, Paulo Freire, PLACTS, cultures of participation, educational practices..

Introdução

O contexto de questionamento referente às inovações científico-tecnológicas e à degradação socioambiental, presente em parte da sociedade, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, fez em algumas instâncias, com que a ciência-tecnologia fosse deslocada do espaço da suposta neutralidade para o campo de debate político. Articulado a isso, se intensificaram os questionamentos sobre o modelo de gestão tecnocrática e a busca pela democratização das decisões envolvendo temas sociais de ciência-tecnologia (González-García, López-Cerezo e Luján, 1996).

Influenciados por essa demanda, vários estudiosos têm buscado compreender sentidos, potencialidades e desafios atribuídos à democratização da ciência-tecnologia. Desse universo de trabalhos, a título de exemplificação, destacamos Lopez-Cerezo (2007); Delgado (2010); Guivant e Macnaghten (2011); Samagaia (2016); Jasanoff (2019);Cuevas e Ureña (2019); Roso, Auler e Delizoicov (2020) e Bilañski (2020). Esses trabalhos, de um modo geral, defendem que a democratização pode estar associada a distintas formas de participação da sociedade em decisões sobre ciência-tecnologia, que dependem, dentre outros aspectos, das relações existentes entre tomadores de decisões, especialistas e cidadãos, e das especificidades dos contextos e de suas características histórico-culturais.

Particularmente no que diz respeito ao Brasil, pesquisas sobre percepção pública (CGEE, 2019) apontam que os brasileiros reconhecem a importância de haver um controle social sobre a ciência e a tecnologia, porém a maioria nunca ou raramente busca informações sobre esses temas. Outros estudos (a exemplo de Guivant e Macnaghten, 2011) também têm indicado que a sociedade brasileira não está interessada no debate em torno dos riscos e benefícios das tecnologias emergentes. Soma-se a isso, os poucos espaços de participação e, consequentemente, a pouca experiência democrática do Brasil na elaboração de políticas públicas em ciência-tecnologia (Dias, 2009).

Como defende Auler (2002), com base no educador Paulo Freire (Freire, 2005), a sociedade brasileira está alijada de qualquer processo de participação, o que reflete uma questão cultural e histórica. Assim, torna-se necessário o desenvolvimento de ações educativas que visem a superação da passividade e o reconhecimento dos sujeitos como seres transformadores da realidade com a qual se encontram. A participação social em ciência-tecnologia perpassa, portanto, pela superação da cultura do silêncio e, associado a isso, pela constituição de uma cultura de participação (Auler, 2002; Freire, 2005).

Para alcançar esse objetivo, nada trivial e repleto de desafios, há vários caminhos possíveis, associados à diversidade de entendimentos sobre elementos teórico-práticos, estratégias e experiências que potencializam processos participativos (Rosa, 2019). Com a intenção de contribuir para a sistematização destes caminhos, neste artigo, problematizamos: como a participação tem sido entendida e construída no âmbito de práticas educativas fundamentadas nos pressupostos da educação CTS desenvolvidas no Brasil?

Assim, o objetivo deste trabalho centra-se em uma investigação que busca caracterizar culturas de participação presentes em práticas educativas CTS brasileiras, sinalizando limitações e potencialidades para a construção de processos democráticos necessários à superação dos problemas socioambientais e estruturais que estamos enfrentando.

Este trabalho faz parte de um estudo mais amplo que vem sendo desenvolvido por um grupo de pesquisadores preocupados em contribuir para a democratização da ciência-tecnologia, por meio da constituição de processos participativos potencializados pela educação científica. Dentre os estudos do grupo, inserem-se os realizados por Santos e Mortimer (2001), Auler (2011), Strieder (2012), Strieder e Kawamura (2014), Rosa (2014, 2019), Santos (2016), Rosa e Araújo (2017) dentre outros. De modo geral, os estudos evidenciam que há ainda, lacunas quanto à compreensão, constituição e efetivação da participação nos contextos socioeducacionais. Assim, este trabalho, a medida que busca caracterizar culturas de participação presentes em práticas educativas CTS brasileiras, pretende contribuir para esse universo de pesquisas e, também, para a inserção dessas questões na educação científica

Contextualização teórica

Segundo González-García, López-Cerezo e Luján (1996), os questionamentos em torno do modelo de gestão tecnocrática da ciência-tecnologia e a defesa pela sua democratização, intensificados na década de sessenta e setenta do século passado, podem ser agrupados em um movimento único, denominado “movimento CTS”. Esse movimento abarca estudos e ações que ocorreram em diferentes locais e com distintas características. González-García, López-Cerezo e Luján (1996), destacam as tradições norte-americana e europeia como as duas principais vertentes que deram origem a esse movimento. A primeira, com preocupações centradas, principalmente, nas consequências sociambientais dos produtos tecnológicos, emergiu de movimentos de protestos sociais. A tradição europeia, por sua vez, tem na sua gênese uma dimensão de natureza mais acadêmica e esteve associada aos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia. Apesar das características próprias, as duas tradições objetivavam analisar criticamente as interações entre ciência, tecnologia e sociedade, problematizando visões mitificadas da ciência e da tecnologia, e defendendo a participação pública nas tomadas de decisões envolvendo ciência-tecnologia.

Além delas, há a vertente latino-americana, denomiada Pensamento Latino-Americano em CTS (PLACTS). Emergente também na década de sessenta, teve como pressuposto orientador a crítica à transferência tecnológica, de exploração de vantagens, e a busca por independência científico-tecnológica e por uma agenda de pesquisa e redimensionamentos da política dessa área, fazendo da ciência-tecnologia “um objeto de estudo público, um tópico ligado a estratégias de desenvolvimento social e econômico” (von Linsingen, 2007, p. 7). Portanto, essa tradição, se desenvolveu a partir de discussões sobre a política científico-tecnológica do contexto latino-americano e a construção de um novo modelo de sociedade, com horizonte para demandas efetivamente sociais.

Também, segundo González-García, López-Cerezo e Luján (1996), o movimento CTS repercutiu em diferentes contextos que podem ser organizados em três grandes campos: acadêmico, educacional e de políticas públicas. Nesse artigo em particular, daremos ênfase às repercussões desse movimento no campo educacional, que estão associadas, dentre outros aspectos, ao desenvolvimento de propostas educativas organizadas em torno de temas sociais de ciência-tecnologia que necessitam de um olhar interdisciplinar, que tem como objetivo central a busca por uma maior participação da sociedade em processos decisórios sobre os temas e problemas reais e contemporâneos condicionados pelo desenvolvimento científico-tecnológico (Auler, 2011; González-García, López-Cerezo e Luján 1996; Praia, Gil-Perez e Vilches, 2007).

A repercussão do movimento CTS no âmbito educacional brasileiro inicia-se no final da década de oitenta, mas é no início da década de noventa que pesquisas sobre CTS passaram a ocupar espaços nas universidades e nos programas de pós-graduação (Santos, 2008). Além disso, é nessa década que ocorre, também, a promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, a partir dela, a publicação de novos documentos oficias com orientações para a educação brasileira. Esses documentos apresentam indicativos de proximidade com os propósitos CTS, em especial os centrados na: formação e exercício de cidadania; implicações, usos e contribuições da ciência-tecnologia; e desenvolvimento de competências para gerar posicionamento crítico e atuação sobre esses temas (Strieder et al,. 2016). Apesar disso, eles possibilitam uma diversidade de interpretações que pode, a depender de fatores como formação de professores, concepção educacional, espaços e proposições curriculares em sintonia e abertos à educação CTS, se distanciar de propósitos e intervenções mais críticas. Nesse sentido, chamamos a atenção para os silenciamentos em torno da suposta neutralidade da ciência-tecnologia e uma ênfase para tomadas de decisão que abarcam, principalmente, uma avaliação na pós-produção, ou seja, uma restrição de participação social para os impactos da ciência-tecnologia na sociedade, aspectos que ignoram/limitam discussões sobre os direcionamentos e interesses que implicam nos avanços científico-tecnológicos. Concepções que podem sinalizar aproximações com os modelos tecnocráticos de decisão (Santos, 2016; Strieder et al., 2016).

Embora a educação CTS se fundamente por propósitos e objetivos centrais, conforme destacado, um conjunto de pesquisas na área tem caracterizado este campo, cada vez mais, como polissêmico, articulado a diferentes perspectivas, significados e uma série de diversidades (Aikenhead, 2003; Santos, 2011; Strieder, 2012). No que se refere ao contexto brasileiro, Strieder (2012, p. 49), em um levantamento de pesquisas CTS, chama atenção para o fato de que “não há um consenso no que diz respeito a intrumentos concretos para inserir discussões sobre CTS nos espaços escolares, ou seja, sobre como alcançar os objetivos propostos, quais elementos e estratégias precisam ser utilizados e/ou priorizados”. Em sua análise, alguns aspectos emergiram com maior evidência, como a interdisciplinaridade e a contextualização dos conceitos científicos. Porém, muitas vezes, eles estão inseridos no campo teórico e não efetivados nas intervenções curriculares.

Motivado por essas questões, Strieder (2012) realizou uma investigação com o intuito de compreender melhor esse campo polissêmico, visando definir estratégias de ação para práticas escolares. Como resultado desse processo, a autora evidenciou que a educação CTS, no contexto brasileiro, tem assumido diferentes propósitos educacionais, associados ao desenvolvimento de percepções, questionamentos e compromissos sociais. Em síntese, busca aproximar o conhecimento científico do cotidiano dos alunos, auxiliando o entendimento dos conceitos e processos da ciência e da tecnologia e permitindo a aquisição de informações sobre temáticas vinculadas à ciência-tecnologia. Também, visa a compreensão dos antecedentes e das implicações sociais da ciência e da tecnologia, contribuindo para compreensões sobre a utilização responsável dos recursos naturais e aparatos tecnológicos. Porém, mais do que isso e numa perspectiva crítica, visa contribuir para o desenvolvimento de competências necessárias para lidar com problemas relacionados ao desenvolvimento científico-tecnológico a partir de uma leitura crítica da realidade que, atualmente, está marcada por desequilíbrios sociais, políticos, éticos, culturais e ambientais.

Associado a esses propósitos, a autora destaca que há uma preocupação com a participação da sociedade nas decisões envolvendo ciência-tecnologia, sob diferentes perspectivas. Essa preocupação abarca a busca por contribuir para que os estudantes reconheçam a presença da ciência e da tecnologia na sociedade (no caso do desenvolvimento de percepções) e participem na definição dos rumos da CT via decisões individuais, coletivas, mecanismos de pressão (no caso do desenvolvimento de questionamentos) ou no âmbito das esferas políticas (no caso do desenvolvimento de compromissos sociais).

Não somente Strieder (2012) discute a questão da participação social no âmbito da educação CTS brasileira. Outros estudos, a exemplo de Santos e Mortimer (2001), Auler (2002, 2011), Rosa (2014, 2019), Auler e Delizoicov (2015) e Santos (2016), buscam compreensões sobre essa questão, contribuindo para ampliar e sinalizar encaminhamentos para a área.

Santos e Mortimer (2001), por exemplo, entendem que uma sociedade democrática implica a construção de debates públicos e soluções que visam o interesse coletivo. O cidadão, nessa perspectiva, precisa desenvolver a capacidade para julgar, crítica e politicamente, tomando decisões conscientes capazes de provocar mudanças sociais, com vista a uma melhor qualidade de vida para todos. No entanto, investigações realizadas no âmbito educacional CTS por Auler (2011), Rosa (2014) e Santos (2016) evidenciam que a participação tem sido enfatizada, principalmente, para a pós-produção, limitada a uma avaliação (positiva/negativa) dos impactos da ciência-tecnologia gerados na sociedade. A participação “pós” tem como função tirar apenas o melhor proveito do produto científico-tecnológico, sendo essa a única opção possível. Essa participação ignora/silencia a presença de questões valorativas na concepção e produção do desenvolvimento científico-tecnológico (Rosa e Auler, 2016), e pode implicar em redirecionamentos que estejam voltados, de fato, para o bem-estar coletivo e de justiça social, conforme anunciado por Santos e Mortimer (2001). A partir de aprofundamentos das aproximações dos referenciais Freire-CTS e PLACTS, Auler (2011) e Auler e Delizoicov (2015) destacam que a forma de democracia necessária para o contexto latino-americano, com demandas socioestruturais próprias, é a que se fundamenta nos propósitos da democracia participativa, promovendo a partir da educação em ciências, mecanismos ampliados de participação, logo, mecanismos para além da pós-produção.

Em outro estudo referente à investigação de práticas educativas CTS brasileiras, Rosa e Araújo (2017) identificam que os discursos sobre participação estão alinhados, em geral, à perspectiva de “dar voz” aos estudantes, a uma mudança de interação professor-estudante em sala de aula. Assim, o estudante sai de uma condição passiva, de não fala, para espaços de fala. O professor, a partir de aproximações dos conteúdos com o contexto vivenciado pelos estudantes, condiciona-os a atitudes mais ativas, ou seja, “concede voz”, indicando possibilidades para superar a educação bancária (Freire, 2005). Ênfase que se aproxima do desenvolvimento de percepções, caracterizado por Strieder (2012), como um dos propósitos da educação CTS no Brasil. De outra maneira, esse estudo de Rosa e Araújo (2017), indica que um menor número de práticas possibilitou processos ampliados de participação, como um despertar para a problematização e modificação de situações vivenciadas, aproximando-se dos propósitos de questionamento e compromisso social.

Essas preocupações em torno da participação social em ciência-tecnologia, não estão restritas ao campo educacional. Como mencionado, vários estudiosos têm buscado compreender sentidos, potencialidades e desafios atribuídos à participação em ciência-tecnologia. Desse universo de trabalhos, destacamos os realizados por Delgado (2010), Callon (1998) e Samagaia (2016), que têm como ênfase pensar processos democráticos em temas de ciência-tecnologia em uma esfera social ampla, que envolvem um repensar, inclusive, da política científico-tecnológica.

Delgado (2010), por exemplo, apresenta elementos que têm sido considerados como importantes para a construção de processos democráticos, que são: diálogo, reflexividade e abertura. O diálogo, visto como ação fundamental para o exercício de participação pública, é realizado e construído de maneira direta e aparece como forma de relação entre diferentes sujeitos, como especialistas, cidadãos e políticos. A reflexividade está associada a uma consciência crítica, capaz de gerar significados e criatividade nos processos decisórios. Já a abertura, associa-se a inclusão de pontos de vistas plurais, portanto não está restrita a visões reducionistas e hegemônicas. Assim, a depender da forma como esses elementos são concebidos, construídos e efetivados na esfera social, diferentes enfoques democráticos são possibilitados.

Complementar a proposição descrita, Callon (1998) e Samagaia (2016) também evidenciam estudos sobre estratégias democráticas sobre temas que envolvem aspectos sociais da ciência-tecnologia. Seus estudos aproximam-se, inclusive, das discussões sobre níveis de participação apontadas por Cuevas e Ureña (2019). Assim, como destaque, apresentamos três modelos teóricos que descrevem possibilidades de debates científicos e a participação de diferentes atores sociais (Callon, 1998; Samagaia, 2016), quais sejam: i) instrução pública; ii) depate público; e iii) coprodução de saberes.

O modelo da instrução pública é marcado por uma lógica de hierarquizações. De um lado os experts, únicos que são capazes de contribuírem e decidirem sobre os processos e produção da ciência, e do outro os demais sujeitos, receptores e usuários dos resultados e produtos obtidos. Os cientistas não aprendem ou dialogam com os outros sujeitos, pois o conhecimento é produzido com normas, valores e regras próprias, e só eles são capazes de reproduzir, de maneira eficiente e neutra, essas regras. Caracterísiticas que apresentam aspectos próximos ao modelo clássico da ciência (Cuevas e Ureña, 2019), de comunicação unilateral e cidadãos como público passivo, leigo e consumidor.

Já o modelo de debate público, do diálogo, busca uma maior interação entre atores e saberes. O conhecimento científico é considerado essencial para a sociedade, mas insuficiente na identificação e solução dos problemas reais vivenciados. A comunicação/diálogo tem como alicerce a compreensão gradativa do conhecimento do outro na sua leitura de mundo, bem como na busca por alternativas para as demandas sociais vivenciadas, seja no âmbito individual ou de um coletivo. Os cientistas são os únicos capazes de produzir o conhecimento, porém se diferencia do modelo anterior pelo fato de que a contribuição do pesquisador é limitada pelo seu campo de atuação, pois quando temas de outras naturezas são inseridos, o envolvimento de outras variáveis que ultrapassam a dimensão científica, são importantes. Logo, dar voz a outros sujeitos sociais é fundamental e pressuposto orientador desse modelo. Essas perspectivas se aproximam do modelo de ciência como instituição social (Cuevas e Ureña, 2019). A comunicação é interativa, ou seja, busca-se estabelecer diálogo entre ciência e sociedade, pois os cidadãos já são vistos como público crítico e que possuem outras formas de conhecimento.

Por fim, temos o último modelo, denominado de coprodução de saberes. Como nos anteriores, o conhecimento científico é considerado essencial no processo, no entanto almeja-se a produção conjunta por grupos heterogêneos, não restrito a especialistas, permitindo uma participação coletiva e ampliada. Dentre as principais diferenças com relação aos demais modelos, está o papel dado aos cidadãos. Enquanto que na instrução pública os sujeitos são beneficiários e recebedores dos produtos da ciência-tecnologia, no modelo do diálogo, é dado voz a eles, opinando quando necessário, pois possuem conhecimentos e habilidades que enriquecem e complementam a visão dos cientistas, e esses podem ou não ser convertidos em ação. Já na coprodução de saberes, os diversos atores sociais têm conhecimentos das circunstâncias vividas, porém possuem demandas para a construção organizada e sistematizada desses conhecimentos, por isso o diálogo e construção com os especialistas é essencial, ou seja, todos sujeitos passam a “ter voz”. E é nesse sentido que se encontra o processo de democratização ampliada, pois é a complementaridade e compartilhamento entre saberes e sujeitos que gera o processo de coprodução e intervenção sobre as demandas existentes. No entanto, de acordo com Samagaia (2016), este modelo ainda é recente na literatura, relativamente incipiente e menos convergente nas análises dos autores que o estudam. Certamente, isso está associado aos desafios e características presentes nesse modelo que, em geral, não são comuns nos espaços que possibilitam processos participativos, como a construção compartilhada e coletiva de conhecimentos, da diversidade de atores sociais envolvidos no processo e da inserção de suas demandas, além de poucas experiências participativas fundamentadas por esses pressupostos. Esta estratégia democrática apresenta aspectos próximos do modelo de ciência cidadã descrito por Cuevas e Ureña (2019). Nele, o conhecimento é coproduzido socialmente, portanto a comunicação é multidirecional, ou seja, há uma negociação da agenda científico-tecnológica, pois os cidadãos são considerados atores potenciais do sistema científico.

Porém, como pensar a constituição desses processos, em especial os que indicam perspectivas críticas de participação na esfera social, educacional e científico-tecnológica, em uma sociedade que viveu imersa por muito tempo em uma cultura do silêncio (Freire, 2005), fundamentada por decisões tecnocráticas (Auler, 2002; González-García, López-Cerezo e Luján, 1996) e orientada, principalmente, pela estratégia da instrução pública (Callon, 1998; Samagaia, 2016) e pelo modelo clássico da ciência (Cuevas e Ureña, 2019), como a sociedade latino-americana?

As ideias de Paulo Freire, educador brasileiro que lutou por uma sociedade justa e igualitária, indicam alguns encaminhamentos para essa pergunta. Freire (2005, 2016, 2018), a partir de suas denúncias sobre a estrutura social e econômica vivida neste contexto, marcado por silenciamentos de vozes, de injustiças, desigualdades e opressão, anuncia a importância da constituição de sujeitos capazes de lerem criticamente suas realidades, desvelando-as, para atuarem e transformarem-nas. Para essa busca, é necessário o enfrentamento da cultura do silêncio para a inserção de uma nova cultura, a participativa, que para Freire (2016), se dá a partir da constituição de uma ação cultural. Ou seja, por meio de um ato de conhecimento e transformação da realidade, pois a ação cultural é um ato de resistência à invasão cultural, de uma imposição das formas de ver e ser no mundo e que implicam e fortalecem a cultura do silêncio.

Logo, a construção da sociedade participativa que almejamos para a educação CTS, diante dos diversos desafios presentes, constitui-se de um processo de ação cultural pautado pela libertação e transformação, que tem como forma de ação a conscientização, uma consciência crítica, de ação-reflexão e intervenção no mundo (Freire, 1981, 2016). Dessa forma, balizados pelas aproximações dos referenciais CTS, do PLACTS e dos pressupostos teórico-filosóficos de Paulo Freire, e orientados pelas fundamentações dos autores anteriormente mencionados, defendemos a constituição de uma cultura de participação fundamentada pela análise sobre diferentes dimensões que envolvem ciência-tecnologia, pela busca de uma leitura crítica sobre os problemas/temas sociais vividos, pela ampliação dos atores sociais, atuação em busca de transformação desses problemas e reinvenção de modelos de sociedade, de ciência-tecnologia e educação.

A articulação desses referenciais sinaliza a constituição de uma participação ampliada e orientada por propósitos transformadores. No entanto, outras perspectivas existem, conforme apresentado anteriormente. Dessa forma, nosso interesse está em investigar como essas perspectivas de participação, denominadas por nós como culturas de participação, são situadas no contexto de práticas educativas CTS. Buscamos, nesse sentido, além de caracterizá-las, sinalizar limitações e potencialides que implicam o alcance de propósitos socioeducacionais transformadores, em especial os orientados pelos referenciais assumidos.

Metodologia

O trabalho constitui-se de uma pesquisa qualitativa e de cunho bibliográfico. Para alcançar o objetivo da pesquisa foram analisadas práticas educativas brasileiras publicadas no Seminário Ibero-Americano em CTS (SIACTS), no período de 2010 e 2016. Desse processo, foram selecionados quarenta e nove trabalhos (corpus de análise), sendo que vinte foram do ano de 2010, dez de 2012, quatro de 2014 e quinze de 2016. Em relação à caracterização do corpus, destacam-se: publicações oriundas de diferentes regiões geográficas do país; diferentes instituições; diferentes níveis de ensino (Educação Infantil, Fundamental, Médio, Profissionalizante e Educação de Jovens e Adultos); implementadas em escolas públicas e privadas e de diferentes áreas da ciência da natureza.

Referente ao caminho teórico-metodológico, os artigos passaram pelas etapas da Análise Textual Discursiva (ATD) (Moraes e Galiazzi, 2016), orientadas, principalmente, pelas articulações dos referenciais de Freire, CTS e PLACTS. A ATD constitui-se de um processo auto-organizado de três etapas: unitarização, categorização e comunicação. A primeira consiste no processo de desmontagem de textos, no sentido de “examinar os textos em seus detalhes, fragmentando-os no sentido de produzir unidades constituintes, enunciados referentes aos fenômenos estudados” (2016, p. 33). O processo de categorização busca unir os elementos semelhantes constituindo as categorias de análise, propiciando “descrições e interpretações que comporão o exercício de expressar as novas compreensões possibilitadas pela análise” (2016, p. 45). E, por último, a comunicação, ou seja, compreensão renovada do todo, crítica e validação da análise proposta.

Para realizar o processo de análise, nos apoiamos em um exercício teórico-prático balizado por elementos que emergiram na pesquisa como sinalizadores para a constituição de culturas de participação, que são: valor, conhecimento e engajamento social. Valor, porque está associado aos aspectos que influenciam e estão internalizados nas nossas ações, nos nossos interesses e da sociedade, implicando na forma como pensam, se posicionam e agem. O conhecimento e as racionalidades imbricadas na sua concepção e construção porque são considerados aspectos essenciais para gerar posicionamento crítico, direcionamento e mecanismos para resolver/enfrentar problemas/temas. E o engajamento social, devido a sua articulação com ações, atitudes e interações entre os sujeitos e deles com os temas/problemas investigados/trabalhados. Articulados entre si, os elementos, e as diferentes formas de conceber, entender e os considerar, constituem-se estratégias que implicam/influenciam a nossa forma de ver e intervir no mundo, sinalizando portanto, para a constituição de diferentes culturas de participação (Rosa, 2019). Nesse trabalho, daremos ênfase, principalmente, para a caracterização das culturas de participação identificadas na análise, apontando para os desafios existentes diante da busca por processos democráticos no âmbito das práticas educativas CTS.

Os resultados apresentados a seguir, que fazem parte de um trabalho mais amplo, visam evidenciar situações que ocorreram nas práticas educativas e que, no nosso entender, merecem ser problematizadas. O objetivo não está em qualificar ou não os trabalhos, pois para nós as propostas já apresentam a busca por mudanças no cenário educacional brasileiro. Assim, nosso intuito está em sinalizar caminhos que identifiquem potencialidades e limitações frente a construção de processos participativos. Entendemos que problematizar práticas educativas contribui para esse exercício, e, portanto, para o alcance de propósitos da educação CTS.

Resultados

Como resultado da análise, emergiram cinco culturas de participação: i) motivacional; ii) para avaliação de impactos; iii) situacional; iv) para amenização de riscos socioambientais; e v) para uma práxis social transformadora. É válido lembrarmos que a constituição dessas categorias resulta de um processo investigativo aprofundado e orientado por referenciais assumidos e adotados pelas autoras, como descrito anteriormente.

A cultura de participação motivacional manifesta-se, especialmente, de indicativos evidenciados em sete práticas que tinham como propósito articular ciência e tecnologia a questões sociais, ou seja, que centram-se em aproximar os estudantes de exemplos contextuais. No entanto, por não ter indícios de problematizações sobre percepções mitificadas da ciência-tecnologia, essas articulações estão fundamentadas, principalmente, por compreensões (ou silenciamentos delas) que se aproximam da suposta neutralidade científico-tecnológica, como a concepção do modelo tradicional de progresso (González-García, López-Cerezo e Luján, 1996). Dentre as preocupações está a compreensão dos conteúdos disciplinares e suas relações contextuais, buscando um despertar motivacional. Logo, nesta cultura, não há problematizações e conscientização referentes aos temas estudados, mas a promoção de um ensino que seja mais significativo para os estudantes, no sentido de gerar um maior gosto científico e saída de atitudes passivas, de não fala.

Dos núcleos de sentidos analisados destacamos, nesta categoria, uma prática educativa que discutiu o trem e o seu funcionamento por meio de levitação eletrodinâmica, apresentando como planejamento o desenvolvimento dos conteúdos específicos da Física e suas relações com aspectos ambientais. Como síntese dessa análise, apresentamos alguns trechos da prática, dos autores e de falas de estudantes que contribuem para pensarmos/problematizarmos esta cultura de participação, seus potenciais e limitações. Nesse sentido, destacamos a fala de um estudante: “Assim é mais fácil de entender, dá pra ver a física funcionando” (PE 01, p. 3, grifo dos autores). Além dessa, evidenciamos: “Os estudantes conseguiram identificar os fenômenos envolvidos e muitas vezes perceber suas variáveis. Alguns foram além, levantando argumentos quanto às formas de energia e suas transformações” (PE 01, p. 5). E ainda, para os autores a prática possibilitou “ver a física ‘falada’ acontecendo” (PE 01, p. 4, grifo do autor).

Observa-se pelas descrições acima, e outras presentes no trabalho, que a prática possibilitou gerar, principalmente, um estudo mais significativo de um fenômeno abordado em uma área disciplinar e sua relação com o cotidiano, aspecto potencializador frente a um ensino descontextual. No entanto, o que problematizamos é que, apesar da importância de estudos que promovam um ensino contextual, práticas que permeiam esse objetivo não potencializam, necessariamente, proposições questionadoras e transformadoras, de construção e enfrentamento de problemas reais, mas centralizam-se em aproximar o conhecimento científico com situações contextuais, provocando uma maior motivação frente ao tema estudado, sendo essa a finalidade, muitas vezes, última.

Entendemos que a motivação é essencial para a construção de processos democráticos. Porém, quando entendida como um fim em si mesmo, ela não viabiliza e mobiliza, em geral, esse último propósito. Ou seja, o sujeito está imerso na realidade, tem curiosidade sobre ela, mas não possui a capacidade de enxergá-la criticamente, como um problema de contradição social, de questioná-la e mudá-la. Portanto, limita a constituição de mecanismos ampliados de participação. Isso porque, as ações e experiências desenvolvidas não provocam, a partir das interações com temas sociais de ciência-tecnologia, desvelamento e criticização da realidade e de compreensões sobre ciência-tecnologia, mas um despertar motivacional, um maior gosto científico e atitudes que promovam “dar voz” aos estudantes, esses oriundos de uma aproximação das relações, geralmente, lineares, entre ciência, tecnologia e sociedade. Entendemos que as caracterizações descritas nesta cultura são importantes, em especial, para enfrentamento de práticas associadas, por exemplo, a educação bancária (Freire, 2005) e de um ensino descontextual. Porém, caso busquemos uma formação cidadã crítica, preocupadas com mudanças socioestruturais e ações democráticas ampliadas, é importante realizarmos outras discussões.

A cultura para avaliação de impactos[1] comparece em nove práticas educativas e busca promover a constituição de sujeitos preocupados em analisar, de modo positivo/negativo, os produtos da ciência-tecnologia sem problematizações profundas sobre questões neles internalizadas. As ações, que dão ênfase para os impactos pós-produção, buscam constituir sujeitos capazes de compreender e analisar cientificamente essas relações, evidenciando mais silenciamentos sobre a suposta neutralidade e valores outros imbricados na ciência-tecnologia do que problematizações sobre eles, e que possam agir de maneira responsável em busca de um bom uso dos produtos.

Para discutir esta cultura destacamos uma prática educativa que apresenta em seu módulo didático as seguintes problematizações: “Quais consequências o Aquecimento Global traz à nossa sociedade? Vocês lembram de alguma tragédia ocorrida atribuída ao Aquecimento Global? O que mudou com este acontecimento na cidade/região? Quais foram as consequências sociais e econômicas ocorridas na sociedade?” (PE 02, p. 5). E ainda:

“Vimos que a Ciência e a Tecnologia influenciam no Aquecimento Global e, como consequência disto, no aumento na intensidade dos furacões. O que deve causar menor número de furacões, mas o aumento dos estragos, ocasionando destruições consideráveis em moradias, plantações, comprometendo a agricultura e ocasionando assim problemas no comércio, na economia e na sociedade. Mas você saberia dizer por que o Aquecimento Global diminuiria o número de furacões, mas aumentaria a intensidade dos furacões?” (PE 02, p. 5).

Nas afirmações acima percebe-se que há uma ênfase para questões que abordam impactos e consequências ocasionados pelo desenvolvimento científico-tecnológico, sustentando, inclusive, compreensões próximas à lógica determinista e autônoma da ciência-tecnologia (Auler, 2002), pois não há problematizações referentes às influências valorativas que direcionam os avanços científico-tecnológicos e suas implicações socioambientais. Ou seja, é apenas a ciência-tecnologia que influencia esses contextos. Assim, nesta cultura, a preocupação está, principalmente, com os impactos oriundos dos usos dos produtos e direcionamentos da ciência-tecnologia, buscando promover, dessa maneira, compreensão científica dessas relações e responsabilização sobre os usos a partir de análises sobre benefícios e malefícios, aspectos positivos e negativos dos produtos da ciência-tecnologia. Assim, esta cultura se apoxima, também, da percepção instrumental (Dagnino, 2008), do bom uso, do uso da ética, porém deixa intactas problematizações sobre a concepção e condução dos direcionamentos científico-tecnológicos e de dimensões para além deles. Logo, limita processos democráticos ampliados e pode contribuir para a manutenção de problemas socioambientais, pois uma análise dual (positivo/negativo e bom/mau uso) não implica, necessariamente, em redirecionamentos e alternativas para esses problemas.

Portanto, esta cultura associa-se à constituição de responsabilização para o cidadão como, por exemplo, fazer uma boa apropriação e uso dos produtos oriundos, muitas vezes, de receituários gerais de ações individuais/coletivas, do “faça a sua parte” (não jogar lixo no chão, reciclagem, plantar árvores). Nesse sentido, destacamos a seguinte afirmação existente na prática educativa analisada: “os alunos se tornaram mais comprometidos com as tarefas diante da sociedade em que estão inseridos, partindo de ideias como, por exemplo, da prevenção da natureza que os rodeia, na escola, na sua casa, evitando a poluição e não jogando lixo” (PE 02, p. 8). Assim, nesta cultura, a sociedade, embora já atue em ações, principalmente, de análises avaliativas, de pós-produção, é desconsiderada de qualquer atuação e criticização mais amplas, como nos direcionamentos de decisões sobre concepção, condução e formas de uso e construção de conhecimento, isso porque, essas decisões estão restritas aos especialistas, à área científico-tecnológica, muitas vezes, sustentando compreensões mitificadas, portanto, possibilitando um reforço a processos tecnocráticos.

Já a cultura de participação situacional surge do exercício teórico-prático de quinze práticas educativas. Dentre as características que indicam a constituição desta cultura está a verbalização não neutra das imbricações entre ciência-tecnologia-sociedade e o reconhecimento de compreensões não mitificadas, aspectos que evidenciam avanços com relação às categorias anteriores. Busca-se nas ações educacionais, o desenvolvimento de competências e habilidades referentes aos temas de ciência-tecnologia para sua utilização em situações/realidades vivenciadas, ou seja, a compreensão e aplicabilidade sobre os problemas trabalhados. Em geral, nesta cultura, os temas são auto referenciados por pesquisadores/educadores, logo não são oriundos de investigação e vistos como contradições sociais[2]. Dessa forma, apesar do reconhecimento não neutro da ciência-tecnologia e do conhecimento como construção social, verifica-se que dimensões para além das científicas (valores, intenções, interesses, aspectos socioestruturais) não são consideradas, necessariamente, como elementos problematizadores frente à compreensão/enfrentamento dos problemas sociais de ciência-tecnologia. Assim, são as dimensões científicas que são utilizadas, principalmente, para identificar, explicar e atuar frente às situações vividas. Portanto, a racionalidade científica ainda é vista como condição necessária e suficiente para explicar/resolver/atuar sobre circunstâncias vividas, possibilitando recaídas para o status tecnocrático.

É válido destacar que não estamos questionando a importância e nem desconsiderando a área científico-tecnológica e o papel dos especialistas, mas problematizando o fato de que quando se aborda temas sociais em que ciência-tecnologia está presente, além da dimensão técnica há questões de diversas naturezas, como política, econômica, social e ética que precisam ser consideradas (Rosa e Auler, 2016). Essas dimensões, além de possibilitar problematizações sobre compreensões mitificadas referentes à ciência-tecnologia e a construção de conhecimentos para o enfrentamento de temas trabalhados, não restritos à racionalidade hegemônica, possibilitam a entrada de outros atores sociais, seus saberes e demandas, atuando e coproduzindo coletivamente aspectos basilares para a construção de processos democráticos ampliados, conforme anunciado por Samagaia (2016) e Cuevas e Ureña (2019).

Assim, dos núcleos de sentido analisados, destacamos a prática educativa que discutiu o tema “Ondas: uma questão de saúde”. De acordo com evidências do corpus de análise, foram abordadas discussões atreladas ao tema, a exemplo de leis e conceitos físicos, aspectos históricos, importância social, funcionamento de aparatos tecnológicos, situações vivenciadas e curiosidades. Oriundo das atividades desenvolvidas, inclusive com ações de investigação referente ao tema pela sociedade (aspecto potencializador da prática), os autores relatam atitudes importantes dos estudantes como, por exemplo, possibilidade de retorno e aplicabilidade social: “posso passar para outras pessoas as informações que aprendi” (PE 03, p. 6), e ainda, o contexto formativo implicou no fato dos estudantes poderem “ajudar a sociedade de um jeito diferente como, por exemplo, repassando todos os nossos conhecimentos às pessoas” (PE 03, p. 6). Além dessas, destacamos ainda: “aprendi muito sobre radiação ultravioleta e sobre o perigo que causa a saúde humana, pelo qual é formado o câncer de pele. Também aprendi como me proteger dos raios ultravioletas, os horários que podemos ficar expostos ao sol” (PE 03, p. 5) e “Esses trabalhos irão ajudar não só a mim, quanto a todos os colegas, mais adiante, pois serão muito úteis para a nossa formação e para o nosso dia-a-dia” (PE 03, p. 6).

Dessa maneira, as ações e as descrições revelam aspectos centrais para a constituição desta cultura de participação. Pois, se de um lado há o reconhecimento explícito da importância e da investigação do tema trabalhado, da sua apropriação, da verbalização de diferentes dimensões envolvidas nela e do reconhecimento de um problema social; de outro há manifestações e engajamento voltados para aspectos situacionais, como o fato de como o conhecimento científico adquirido poderia contribuir e ser aplicado no contexto vivido, e ainda para informar e alertar as pessoas para que elas também possam aplicá-lo em situações vivenciadas. Observa-se pelas afirmações, a verbalização de diferentes dimensões envolvidas no tema trabalhado, como a questão da saúde e de prevenção. No entanto, as manifestações estão voltadas, principalmente, para aspectos do reconhecimento da importância da temática estudada e como o conhecimento adquirido poderia ser útil e ser aplicado em situações experienciadas.

Problematizamos o fato de que as discussões proporcionadas, embora sejam de extrema importância, permaneceram no âmbito da compreensão de um problema social de ciência-tecnologia, que envolveu aspectos para além dos científicos, porém sem problematizações profundas. A constituição cultural está voltada, especialmente, para o reconhecimento da ciência-tecnologia na sociedade, de verbalizar imbricações valorativas articuladas a ela e da importância de ter/adquirir conhecimentos e como usá-lo e aplicá-lo. Ou seja, apesar dos avanços significativos desta cultura, em especial para a constiuição de sujeitos aptos a atuarem em situações vividas, ela apresenta limitações frente a contextos de contradições sociais e mecanismos ampliados de participação, pois preocupa-se, principalmente, com o desenvolvimento de competências para argumentar e atuar em circuntâncias gerais vividas; essas alicerçadas, principalmente, pela dimensão científica. Não implica, dessa maneira, em questionamentos profundos sobre diferentes mitificações, ampliação de atores sociais na construção de conhecimento e de potencialização para transformações sociais. Entendemos que para a constituição de mecanismos democráticas ampliados, em um repensar dos problemas reais vividos, faz-se necessário ir além do reconhecimento e busca de aplicabilidade e extensão do conhecimento, embora esses, também, sejam importantes. Logo, problematizar e inserir questões valorativas, presentes nos contextos de contradições sociais e que influenciam e estão interligadas nos direcionamentos científico-tecnológicos, além de outros aspectos já mencionados, são essenciais para a constiuição desse propósito.

A cultura para amenização de riscos socioambientais, presente em onze trabalhos, está alicerçada por questionamentos sobre os produtos da ciência-tecnologia na perspectiva de diminuir ou (re)direcionar os seus avanços evitando riscos socioambientais. Nesta cultura, problematizar dimensões além das científicas nos temas sociais de ciência-tecnologia é de extrema importância, pois são os diferentes valores, sujeitos e saberes que possibilitarão constituir ações sociopolíticas frente à redução/redirecionamento de riscos. Logo, os temas sociais de ciência-tecnologia precisam evidenciar/problematizar as contradições sociais vividas, em especial aquelas que se articulam aos problemas socioambientais, tendo em vista que inquietações e desvelamentos sobre eles precisam ser constituídos. Portanto, esta cultura preocupa-se em provocar ações que promovam pertencimento sobre as questões trabalhadas potencializando, dessa maneira, atuações de co-responsabilização sobre elas, visando enfrentamento/amenização de problemas socioambientais.

Das práticas educativas que fizeram emergir esta categoria, destacamos a proposta que esteve alicerçada pela temática lixo eletrônico com enfoque para o Programa Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Dentre as justificativas da proposta encontra-se a preocupação com o crescente consumo de aparelhos celulares, o descarte e as implicações ambientais. A prática propôs discussões sobre o PNRS, planos do governo sobre o destino do lixo urbano e relação entre a prática consumista (apelo comercial) e o aumento do lixo eletrônico (aspectos valorativos), trabalhando com: aprendizagem de conceitos de química envolvidos na temática; construção argumentativa sobre a situação-problema, sobretudo nos custos e benefícios da reciclagem de baterias e pilhas; enfrentamento para a situação-problema, como investigação sobre “pontos de coleta de resíduos eletrônicos, existentes nos arredores de suas residências e a fazer o descarte correto desses resíduos, uma vez que muitos tinham esses materiais guardados em casa” (PE 04, p. 3). Além disso, foi identificado na análise a constituição de ações sociopolíticas críticas na pós-produção, ou seja: “uma reflexão do grupo de que suas atitudes e comportamentos podem contribuir tanto para agravar quanto para amenizar o problema” (PE 04, p. 5); e ainda, os debates ocorridos “permitiram a reflexão sobre atitudes perante o consumismo, a influência da mídia na decisão dos consumidores e necessidade de se repensar a forma como lidamos com os resíduos gerados pela nossa sociedade” (PE 04, p. 5).

É válido problematizarmos que, muito embora a ênfase na prática descrita, em grande parte, esteve voltada para ações na pós-produção (como nas culturas anteriores), preocupadas com o descarte correto, os estudantes foram colocados em situações de questionamentos sobre, por exemplo: as influências valorativas presentes na ciência-tecnologia, como o consumo, a mídia, as políticas públicas; a construção de conhecimento para enfrentamento de problemas, como na situação em que envolvia a substituição dos lixões por aterros sanitários, as quais envolveram conhecimentos químicos, de reciclagem e ciclo de vida de produtos; além do engajamento na pós-produção para atuar sobre esse problema, mas com potencialidades de uma perspectiva crítico-reflexiva e de mudanças sociais sobre o problema socioambiental.

Portanto, destacamos que as práticas educativas desta categoria estiveram voltadas, principalmente, para o desvelamento e circunstâncias reais vividas e isso possibilitou, conforme descrito na prática, a constituição de uma motivação crítica, ou seja, aquela que move os sujeitos para análises, interesse, satisfação, problematização e atuação sobre os problemas identificados, aspectos fundamentais para a construção de processos democráticos ampliados. Dessa forma, a constituição desta cultura envolve ações que buscam desenvolver situações questionadoras, e não associadas apenas a um determinado conteúdo curricular, à análise avaliativa ou a situações gerais de aplicabilidade.

Além do exposto, a diferença desta cultura para as anteriores, em especial a cultura de participação para avaliação de impactos, está no fato de que nesta as atuações promovidas e construídas estão amparadas sobre concepções não mitificadas da ciência-tecnologia, associdas a “avaliar e fazer um bom uso”. Ou seja, estão alicerçadas sobre bases realizadas devido aos questionamentos propostos e que provocam inquietações e intervenções para modificar/amenizar/redirecionar problemas socioambientais, e isso a partir de problematizações que implicam em direcionamentos científico-tecnológicos. Logo, essas atuações são vistas como sociopolíticas críticas na pós-produção. Apesar das limitações da participação pós-produção, conforme já evidenciado, entendemos que essa forma de engajamento também é importante para os problemas vividos, em especial, para amenizar os riscos socioambientais, além de ter potencial para provocar mecanismos de pressão social em busca de redirecionamentos. Problematizamos quando a pós-produção limita-se apenas a avaliação “bom e mau uso”, “uso da ética” (Dagnino, 2008). Ou seja, quando ignora-se/silencia-se os direcionamentos valorativos que implicam a construção e o desenvolvimento científico-tecnológico pois isso contribui para endossar compreensões próximas da suposta neutralidade.

Por fim, a cultura de participação para uma práxis social transformadora, identificada em sete práticas educativas, tem como eixo central o desvelamento e a transformação de temas socioestruturais existentes. Para isso, as ações que internalizam valores e diferentes conhecimentos oriundos de contradições sociais, buscam potencializar processos de coprodução e coaprendizagens, além de promover novas formas de pensar, ler e agir no mundo. Portanto, nesta cultura busca-se uma práxis social frente aos temas socioestruturais que envolvem ciência-tecnologia.

Assim, além da problematização referente a não neutralidade nos produtos e direcionamentos da ciência-tecnologia, é essencial construir diálogos problematizadores sobre contradições sociais que internalizem, principalmente, demandas socioestruturais. Assim, nessa cultura, não bastam temáticas associadas aos problemas socioambientais, é preciso que elas incluam questões em geral silenciadas na sociedade e no âmbito educacional da área de ciências da natureza, como injustiças e desigualdades socioeconômicas, precariedade da saúde, das moradias e da mobilidade social, entre outras. Logo, problematizações das condições socioestruturais vividas, em especial do contexto latino-americano, são de extrema importância para a constituição desta cultura, tendo em vista que se busca transformá-las.

Dentre as práticas educativas que apresentam indicativos potencializadores para essa constituição, destacamos uma prática que também teve como ênfase de discussão o lixo eletrônico e contribuições para uma formação cidadã. Das preocupações evidenciadas, há aquelas associadas ao descarte inadequado dos resíduos e suas implicações socioambientais, como a contaminação dos lençóis freáticos e os problemas de saúde, dando ênfase para ações sociopolíticas voltadas para a amenização de riscos socioambientais, apresentando características próximas da cultura anterior. Porém, essa prática preocupou-se também em problematizar questões sobre: a influência midiática na construção de transformar quaisquer bens de consumo em necessidade; o modelo de desenvolvimento atual; a obsolescência planejada; as influências sociais nos direcionamentos da ciência-tecnologia; e as preferências por produtos de melhor qualidade. Portanto, compreendemos que essas questões apresentam indicativos que possibilitam discutir questões sociais, econômicas, políticas e éticas envolvidas nos direcionamentos científico-tecnológicos, além de propor questionamentos que implicaram um repensar sobre o modelo atual de sociedade (tema socioestrutural), marcado, hegemonicamente, pelos valores capitalistas/individuais.

O processo de conscientização na perspectiva freireana (Freire, 2016, 2018), conforme já exposto, associa-se ao desvelamento da realidade e transformação dela em uma unidade dinâmica e dialética. Compreendemos que a elucidação e problematização da realidade proposta pela prática, esteve em repensar os padrões de consumo da sociedade, que estão relacionados com o modelo de desenvolvimento hegemônico. Diante disso, ficar reduzido a ações e atitudes de receituários individuais, de engajamento apenas na pós-produção, contribui para a lógica da insustentabilidade. Isso porque, na “concepção liberal, políticas públicas e problematização de dimensões estruturais estão fora de cogitação. O consumismo desenfreado, dinamizador do capitalismo contemporâneo, é ignorado” (Auler, 2011, p. 74), sendo que na equação da atual dinâmica de desenvolvimento: “+ competição + marketing/propaganda + inovação científico-tecnológica + produção = + consumo” não há lógica sustentável (Auler, 2011, p. 93). Dessa forma, concordamos com Auler (2018) quando aponta para a necessidade de problematizar a lógica geradora de insustentabilidade, buscando caminhos para uma agenda de pesquisa e para currículos educacionais preocupados com a sustentabilidade, entendida como “o modelo de produção voltado para efetivas necessidades do conjunto de sociedade. Uma educação que potencialize o diálogo entre processos produtivos e educativos” (p. 75).

Portanto, como caminho de ação/transformação, as autoras do corpus analisado, que contribuiu para emergir esta categoria, destacam a procura de “meios para amenizar o problema, seja pelo controle no consumo destes equipamentos, seja pelo seu correto descarte. Também pensarmos no desenvolvimento de ações mais amplas, voltadas à participação no âmbito das políticas públicas de ciências e tecnologia” (PE 05, p. 1622). Ainda, mesmo diante de diferentes desafios, como falta de aprofundamentos necessários sobre determinadas questões, muitas vezes, associadas aos espaços/contextos educativos em que os educadores se encontram, as autoras ressaltam:

“[..] é preciso ampliar e aprofundar as discussões CTS, de forma que o aluno possa interpretar o mundo, questionar e participar de forma mais ativa e crítica das decisões associadas ao modelo de desenvolvimento atual. Enfim, entende-se que ainda há muito o que se realizar e, com a ajuda de propostas dessa natureza, a tendência de se instigar um amadurecimento visando à conscientização e reflexão dos alunos parece ser evidente” (PE 05, p. 1623).

A cultura de participação para uma práxis social transformadora busca propiciar caminhos e constituição de sujeitos preocupados com uma sociedade mais justa, solidária e compromissada. Características que, quando internalizadas e assumidas, implicam nos processos decisórios, ou seja, desde contextos que nos cercam individualmente até nas políticas públicas, como a política científico-tecnológica que defendemos como processo a ser construído e fortalecido pela democracia ampliada e, portanto, visto como caminho a ser alcançado. Assim, compreende-se que nos contextos educacionais, as ações buscam constituir pertencimento e autonomia dos sujeitos frente aos problemas socioestruturias, a constituição de ações sociopolíticas enquanto práxis e a condição ontológica por um ser mais (Freire, 2005); aspectos que se fortalecem com o processo de investigação de contradições sociais experienciadas. Logo, ações dialógicas, problematizadoras e colaborativas, que promovam exercícios de vozes, são essenciais. Dessa maneira, a preocupação não está apenas em propiciar motivação, utilidade ou questionamentos em torno de riscos e formas de atuação sobre os produtos, mas buscar, a partir de temas de contradições socioestruturais existentes, como o modelo de desenvolvimento social atual, desvelar essa realidade e promover, diante de processos de coprodução e ações sociopolíticas, conforme discutido por Samagaia (2016), Cuevas e Ureña (2019) e, também, destacado por Freire (2005), o enfrentamento e transformações delas.

Conclusões

Considerando que a busca por processos participativos em temas sociais de ciência-tecnologia constitui-se um dos objetivos da educação CTS discutimos, neste trabalho, como ele está sendo compreendido e construído no campo educacional, em especial no contexto de práticas educativas brasileiras. Esse objetivo constitui-se um desafio, mas também um tema, em geral, negligenciado no âmbito de pesquisas e de intervenção nos contextos socioeducacionais da área (Santos, 2016; Strieder, 2012; Rosa, 2014, 2019). Portanto, as discussões propostas visam, de alguma maneira, aprofundamentos e sinalizações para a sua constituição.

Como contribuição, apresentamos inicialmente estudiosos da educação em ciências que discutem, sob aspectos diversos, entendimentos e desafios referentes à temática. Evidenciamos, também, que processos democráticos e participativos constituem-se temas complexos, com diferentes significados e perspectivas. Diante disso, defendemos a constituição de uma participação fundamentada pelas articulações Freire-CTS e Freire-PLACTS, isso porque vivenciamos, no contexto latino-americano, uma realidade marcada por desigualdades e injustiças em diferentes esferas. Na perspectiva freireana, a efetiva participação se dá pelo desvelamento da realidade em busca de uma leitura crítica de mundo associada à sua transformação. Essa leitura em temas sociais de ciência-tecnologia, conforme aproximações Freire-CTS, se torna possível após a problematização de mitos que fortalecem atitudes passivas e de manutenção social, como os associados à suposta neutralidade da ciência-tecnologia que reforçam a cultura do silêncio e processos tecnocráticos (Auler, 2002).

Assim, a atitude a ser assumida em uma cultura ampliada de participação deve ser para além de “falar e ser ouvido”, de alguém que “concede voz”. Pautado pelos referenciais mencionados, defende-se uma atitude orientada pela perspectiva dialógica, problematizadora e colaborativa, de exercícios de vozes em busca de uma práxis social, ou seja, que os sujeitos, seus saberes e suas demandas tenham voz. Isso porque, na articulação Freire-PLACTS, a participação está associada ao desvelamento de contradições socioestruturais e à busca pela transformação delas via processos decisórios que envolvem os rumos e a concepção da ciência-tecnologia. Logo, implica repensar políticas de ciência-tecnologia, currículos e práticas educativas internalizando valores e demandas reais (Auler e Delizoicov, 2015; Rosa, 2019; Roso, 2017). Trata-se, portanto, da necessidade de superar visões limitadas sobre participação social em ciência-tecnologia, como a perspectiva tecnocrática, em que as decisões estão restritas aos especialistas e seus conhecimentos, suspostamente neutros, ou que estão centradas apenas na avaliação de impactos dos produtos da ciência-tecnologia, dando a ele um bom destino (pós-produção). Ou ainda, do modelo de instrução pública (Callon, 1998; Samagaia, 2016) e do modelo clássico da ciência (Cuevas e Ureña, 2019), que privilegiam uma comunicação unilateral entre especialistas e cidadãos e uma racionalidade hegemônica.

Assim, diante de uma pesquisa que teve como intuito sistematizar processos participativos, evidenciamos, a partir da análise de práticas educativas CTS brasileiras, a presença de diferentes culturas de participação. Buscando caracterizar essas culturas e sinalizar limitações e potencialidades frente a mecanismos ampliados de participação, cinco culturas de participação emergiram: motivacional, para avaliação de impactos, situacional, para amenização de riscos socioambientais e para uma praxis social transformadora.

Como síntese dos resultados, ressaltamos que mais da metade das práticas educativas analisadas apresentam características, com mais ou menos intensidade, próximas dos processos tecnocráticos e pertencem às três primeiras culturas. Nesse sentido, chamamos a atenção para o fato de que este modelo decisório pode ser associado à crença de eliminar/neutralizar ou ainda não potencializar/encorajar a sociedade na tomada de decisão sobre temas científico-tecnológicos, inclusive os sociais. A decisão é restrita ao especialista/técnico considerado único ator capaz de solucionar os problemas de um modo, eficiente e ideologicamente, neutro. Dessa forma, buscamos propor discussões visando à problematização de aspectos que podem promover recaídas/endosso para esse modelo.

Por exemplo, na cultura motivacional a preocupação está em aproximar ciência e tecnologia de aspectos sociais com o intuito principal de provocar um ensino mais contextualizador, de gerar uma maior representação significativa para os estudantes. No entanto, caso compreensões que endossam visões mitificadas sobre ciência-tecnologia sejam silenciadas/ignoradas, como a suposta neutralidade, a constituição de uma leitura crítica sobre esses temas passa a ser dificultada/limitada, distanciando-se, dessa maneira, de propósitos mais críticos da educação CTS.

A cultura de participação para avaliação de impactos, identificada em trabalhos anteriores como a mais presente em práticas educativas, têm suas ações orientadas, principalmente, para a constituição de análise sobre os impactos gerados oriundos dos usos dados. Essa cultura também apresenta limitações, pois permanece com ações voltadas apenas para uma boa apropriação dos produtos, silenciando aspectos valorativos presentes na concepção e origem do desenvolvimento científico-tecnológico. Ou seja, perspectiva que endossa a ideia de uma ciência-tecnologia “acabada”, autônoma e determinista (Dagnino, 2008), limitando a participação social. Para a sociedade, cabe apenas dar um bom destino ao produto, não tendo potencial para modificar a dinâmica do desenvolvimento científico-tecnológico (Rosa e Auler, 2016).

A cultura situacional, presente em maior número das práticas analisadas, verbaliza e reconhece as interações não neutras da ciência-tecnologia. Dentre as preocupações existentes, está a aplicação do conhecimento científico-tecnológico em situações vividas, mas que não são vistas, necessariamente, como contradições sociais. Embora, dimensões além das científicas sejam reconhecidas, elas não possuem papel problematizador e potencializador no processo de concepção e construção do conhecimento. Logo, esta cultura visa, em geral, uma maior aplicabilidade do conhecimento científico-tecnológico adquirido, de modo eficiente e eficaz, em situações, em geral, previsíveis e contextuais, constituindo um sujeito mais ativo e mais responsável diante das circunstâncias que o cercam. E ainda, quem define os fins, quais saberes, como usá-los e o que deve ser foco de discussão para a busca de atuação é, principalmente, os especialistas (cientistas, professores, gestores).

De outra maneira, referente ao período de 2016, os dados evidenciam que mais da metade das práticas educativas apresentam potenciais para processos democráticos, e estão associadas às duas últimas culturas. Logo, resultados de extrema relevância, pois sinalizam para a educação CTS o fato de que estão ocorrendo práticas e ações curriculares preocupadas com a constituição dos seus propósitos numa perspectiva ampliada.

Assim, referente à cultura para amenização de riscos socioambientais destacamos que apesar das suas atuações estarem preocupadas, em especial, com a pós-produção, a sua constituição é considerada uma perspectiva crítica. Isso porque as ações educativas desenvolvidas colocam os sujeitos em condições de questionamentos sobre os direcionamentos dos avanços científico-tecnológicos e suas relações com riscos socioambientais implicando, dessa maneira, nas diferentes formas de atuação. Em uma esfera mais ampla tem-se, por exemplo, o desenvolvimento de mecanismos de pressão que tem potencial de influenciar os direcionamentos da agenda científico-tecnológica. Já a cultura de participação para uma práxis social tem sua principal preocupação a busca por desvelamento e transformação da realidade, esses oriundos de contradições socioestruturais. Almeja-se nessa cultura, a constituição de processos de conscientização sobre ciência-tecnologia, sobre aspectos valorativos, educativos, conhecimento, sobre demandas e problemas sociais, sinalizando/indicando caminhos para um novo modelo social, como os balizados pelos pressupostos da tecnologia social, de interesses que são coletivos e, de fato, sociais (Roso, 2017).

É válido ressaltar ainda, conforme já anunciado por Strieder (2012), que muitas vezes o que acontece nas práticas educativas não reflete as concepções e compreensões dos pesquisadores/educadores sobre as relações e propósitos CTS, mas aquilo que foi possível desenvolver diante das circunstâncias reais do contexto escolar. Assim, nosso intuito esteve em analisar aspectos que foram realizados e dinamizados no contexto da prática, e não as percepções e compreensões dos autores, situando e problematizando elementos que contribuíssem para caracterizar as diferentes culturas de participação, evidenciando limitações e potencialidades frente à sua construção.

Por fim, a nossa análise revela que as práticas educativas no cenário brasileiro apresentam diferentes perspectivas de participação social em ciência-tecnologia. Como sinalização positiva, ressaltamos que há, nos últimos anos, um crescente de práticas que apresentam características que indicam potenciais para processos democráticos ampliados na educação CTS, porém há ainda muitos desafios e lacunas a serem enfrentados, demandas que este e outros trabalhos têm buscado analisar e situar. Portanto, como encaminhamento final, destacamos os potenciais de Freire e suas articulações com a educação CTS e PLACTS como pressupostos balizadores para pensar processos participativos ampliados em ações educacionais e proposições curriculares, tendo em vista que essa construção se constitui um desafio e um propósito para esses referenciais. Além disso, chamamos atenção também para referenciais não restritos à esfera educacional, como os citados neste trabalho, mas que possibilitam sinalizar caminhos frente à construção de processos democráticos em ciência-tecnologia, a partir de aprofundamentos e estratégias problematizadoras.

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