Resumo: En el contexto actual de pandemia, la tecnología adquiere una forma diferente, interpretada principalmente como un producto o una combinación inusual de procesos y basada en los supuestos de la ciencia con miras a superar los desafíos que fueron creados o añadidos a la vida humana. En el espacio rural brasileño, más allá de la incidencia negativa del coronavirus a nivel global, resalta la importancia que tiene el campo en su categoría social como productor de alimentos más saludables, en general, y sobre todo tecnológicamente innovadores. Ante esta problemática, este artículo se propone reflexionar sobre las formas de concepción tecnológica desarrolladas por la agricultura familiar que pueden llegar a configurar estrategias de desarrollo rural más sustentables y contextualizadas en tiempos pospandémicos. Para ello se basa metodológicamente en una investigación bibliográfica y documental realizada durante el segundo semestre de 2020, tiene como eje teórico las perspectivas de los sistemas tecnológicos y la construcción social de la tecnología, y contribuye a la generación de una agenda de investigación y movilización sociotécnica orientada a iniciativas contrahegemónicas de desarrollo rural.
Palavras-chave: construção social da tecnologia, sistemas tecnológicos, agricultura familiar, desenvolvimento rural, Covid-19.
Resumo: No contexto atual, no qual vivencia-se a propagação do novo coronavírus (Covid-19), a tecnologia ganha roupagem diferenciada, mormente, interpretada como produto ou combinação inusitada de processos, baseada nos pressupostos da ciência, com vistas à superação dos desafios que foram criados ou avultados à vida humana. No espaço rural brasileiro, se por um lado, a incidência viral em nível global afeta negativamente distintos sujeitos do campo, por outro lado, ela destaca a importância, para toda a sociedade, de uma categoria social produtora de alimentos, em geral, mais saudáveis, mas, sobretudo tecnologicamente inovadora. À luz dessa problemática, este ensaio se propõe a refletir sobre as formas de concepção tecnológica desenvolvidas pela agricultura familiar que podem vir a configurar estratégias de desenvolvimento rural mais sustentáveis e contextualizadas em tempos de (pós) pandemia. Para tanto, é metodologicamente pautado em pesquisas bibliográficas e documentais realizadas no segundo semestre de 2020 e tem como cerne teórico as perspectivas de sistemas tecnológicos e de construção social da tecnologia. Como principais alcances, contribui na composição de uma agenda de pesquisa e mobilização sociotécnica voltada a iniciativas contra-hegemônicas de desenvolvimento rural a serem constituídas no contexto de (pós) pandemia.
Palavras-chave: construção social da tecnologia, sistemas tecnológicos, agricultura familiar, desenvolvimento rural, Covid-19.
Abstract: In the present context, dominated by the Covid-19 pandemic, technology gains a new shape as a product or an unusual combination of processes oriented to overcome the challenges that were created or added to human life. In the Brazilian rural space, notwithstanding the global negative incidence of the pandemic, the importance of a social category that produces healthier and technologically innovative food for everyone is highlighted. This article proposes to reflect on the forms of technological conception developed by family farming that may come to configure more sustainable and contextualized strategies for rural development in these (post) pandemic times. The article is methodologically based on a bibliographic research carried out during the second half of 2020 and its theoretical core resides in the concepts of technological systems and the social construction of technology. It contributes to a research and socio-technical mobilization agenda aimed at constituting counter-hegemonic rural development initiatives.
Keywords: social construction of technology, technological systems, family farming, rural development, Covid-19.
Palabras clave: construcción social de tecnología, sistemas tecnológicos, agricultura familiar, desarrollo rural, Covid-19
Artículos
Tecnologías en tempos de (pós) pandemia: um ensaio focalizado ao mundo rural brasileiro
Tecnologías en tiempos de (pos) pandemia: un ensayo centrado en el mundo rural brasileño
Technologies in (Post) Pandemic Times: An Essay Focused on the Brazilian Rural World
Recepción: 27 Noviembre 2020
Aprobación: 04 Mayo 2021
As tecnologias desempenham um papel central nos processos de mudança social. Demarcam posições e condutas da sociedade; condicionam estruturas de distribuição social, custos de produção, acesso a bens e serviços, repartição de benefícios e custos; geram problemas sociais e ambientais e facilitam ou dificultam sua resolução (Thomas, 2009). Entretanto, inúmeras facetas delas ainda são desconhecidas por muitos ainda são desconhecidas por muitos. Apenas recentemente vem se destacando a ideia de que, para além de produtos ou processos produtivos, a dimensão tecnológica compreende distintas formas de instituições e organizações (Medeiros, 2017). As sociedades atuais são tecnologicamente configuradas exatamente da mesma maneira que as tecnologias são socialmente construídas e operacionalizadas. Não há uma relação sociedade-tecnologia que as possa manter dissociáveis. Dito de outra forma, “somos seres sócio-técnicos” (Thomas et al., 2008, p. 12).
Com intensidade crescente, a tecnologia vem conquistando um espaço notório no mundo contemporâneo. No contexto atual, no qual vivencia-se a propagação do Novo Coronavírus (Covid-19), a tecnologia ganha roupagem diferenciada, mormente, interpretada como surgimento de produtos e de combinações inusitadas baseadas nos pressupostos da ciência e seus conhecimentos, com vistas ao combate à pandemia e mesmo à superação dos desafios que, com a emergência do vírus, foram criados ou avultados nas mais distintas áreas da vida humana.
A caracterização da Covid-19 como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março desse ano (FAO, 2020), desencadeou alterações significativas para a população mundial, nos aspectos socioeconômico, ambiental, cultural e, sobretudo, tecnológico. Esse cenário pandêmico levou governantes de todas as regiões do planeta a adotarem medidas drásticas para a contenção da pandemia com massivos impactos na organização das economias. Durante alguns meses, o confinamento da população deixou centros comerciais vazios, paralisou os meios de transporte, parou setores inteiros da vida social e diminuiu fortemente um conjunto de atividades econômicas. Enquanto isso, sobretudo na China e na Europa, evidencia-se a recuperação significativa da qualidade do ar nas cidades mais poluídas. Sentiuse na pele, nesta experiência de dimensão global, a importância do convívio social para o equilíbrio psicológico individual e as limitações dos modelos tecnológicos e de desenvolvimento, como um todo, especialmente em relação à questão socioambiental. Pari passu ao crescimento da percepção do papel da tecnologia nas mazelas que afligem a sociedade, amplificou-se também o esperançar de que, por meio dela, possa-se construir sociedades mais humanas, empáticas e sustentáveis.
No Brasil, desde decretado o estado de calamidade pública, no dia 20 de março (Brasil, 2020), no espaço rural, especificamente para as agriculturas familiares, para as quais uma dinâmica cuja ordem sociocultural torna indissociáveis o trabalho, a família e a terra (Van der Ploeg, 2008), as mudanças atreladas às medidas de controle da pandemia vêm irradiando consequências para os distintos setores da vida. A adequação a protocolos de saúde, indicados pela OMS, também para a operacionalização do trabalho e, consequentemente, a suspensão e/ou a redução de mercados importantes, como as feiras-livres e as compras públicas de alimentos, levou à redução do ingresso de renda a essas famílias.
Todavia, se por um lado, a incidência viral em nível global afeta negativamente a vida de distintos agricultores familiares no campo, por outro lado, ela destaca a importância, para toda a sociedade, de uma categoria não somente produtora de alimentos destinados a distintas famílias, inclusive às localizadas nos grandes centros urbanos, mas garantidora de uma forte economia local. Notabiliza também a capacidade de resiliência e inovação desses agricultores que, ao construírem e ajustarem tecnologias de diferentes qualidades ao seu contexto, vêm conseguindo edificar rumos diferenciados de desenvolvimento na superação das crises que se constituem hoje e de um amanhã que se apresenta incerto.
O papel do consumidor nessa evidenciação da relevância da agricultura familiar para a sociedade vem se mostrando, cada vez mais, central. As mudanças de comportamento social no ato consumir, primordialmente, alimentos, as quais incluem uma reflexão crítica, ambientalmente responsável e focada na boa saúde, vêm fazendo com que novos valores e princípios façam parte do cotidiano dessa sociedade tecnológica que se reconstrói em face de tal pandemia. Justamente com a atenção direcionada a essa problemática, este ensaio se propõe a refletir sobre as formas de concepção tecnológica desenvolvidas pela agricultura familiar que podem vir a configurar estratégias de desenvolvimento rural mais sustentáveis e contextualizadas em tempos de (pós) pandemia. Para tanto, o texto é pautado em pesquisas bibliográficas e documentais realizadas no segundo semestre desse ano e tem como cerne teórico as perspectivas de sistemas tecnológicos e de construção social da tecnologia (Pinch e Bijker, 1987, 2008; Dagnino, Brandao e Novaes, 2004; Darré, 2002).
O texto está estruturado em cinco partes, para além dessa introdução. Na segunda parte, procurou-se entender a tecnologia enquanto fenômeno social, mostrando as relações entre evoluções sociais e tecnológicas, notadamente na agricultura. A terceira parte discute o (des)controle da evolução tecnológica pela sociedade, ou grupos sociais específicos. A quarta apresenta o período de gênese do modelo agroindustrial globalizado, objeto das críticas atuais, no seu contexto macroeconômico e as suas consequências em termos de desenvolvimento tecnológico agrícola. A quinta lança reflexões acerca de como analisar e robustecer a construção social de tecnologias voltadas a formas mais sustentáveis de desenvolvimento. A sexta parte coloca em perspectiva as discussões propostas no trabalho do ponto de vista de uma agenda de pesquisa e mobilização sociotécnica voltada a iniciativas contra-hegemônicas de desenvolvimento rural a serem constituídas no contexto de (pós) pandemia.
A técnica sempre foi um meio utilizado pelos humanos com o intuito de que determinados fins fossem alcançados. A racionalidade de fins é tanto expressão de processos técnicos, quanto o que os move (Brüseke, 2002). Produzir e viver tecnicamente se apresentam como capacidades intrínsecas do ser humano. Ainda que a habilidade técnica pareça acompanhar a existência humana desde seus primórdios, autores como Bunge (1985a) e Cupani (2013) distinguem a técnica pré-científica da técnica alicerçada na ciência.
Para além das circunstâncias que representam as manifestações das capacidades humanas de fazer coisas, o que parece articular formas antigas e modernas de técnica ou tecnologia é o fato de que toda a produção, técnica ou tecnológica, é a manifestação de um saber fazer (Cupani, 2013). Esse saber fazer difere de outras capacidades humanas como a de contemplar a realidade, agir, no sentido de adotar decisões responsáveis, experimentar sentimentos e exprimir-se, sobretudo, manifestando a própria identidade, as ideias e os anseios mediante uma linguagem articulada (Cupani, 2004). A capacidade de fazer expressa-se nas possibilidades de mobilizar recursos racionais nas condições do agir, ou seja, de conduzir a própria vida em vez de viver de modo unicamente instintivo. Ao fazer, o humano cria os artefatos, sejam eles “objetos ou processos artificiais” (Cupani, 2013, p. 13).
Dada sua possibilidade de atender interesses humanos, a tecnologia tornou-se um vasto campo de investigação e de planejamento, que utiliza conhecimentos científicos com a finalidade de controlar coisas ou processos naturais, de desenhar artefatos ou processos, ou de conceber operações de maneira racional (Bunge, 1985a). Ao considerar a quantidade de conhecimento científico de ponta utilizada pela tecnologia, Bunge (1985b) afirma que certos ramos representam, por oposição aos demais, o que se denomina high tech (alta tecnologia). Entretanto, para esse autor, se repararmos na economia de recursos escassos, no respeito ao ambiente e na facilidade de operacionalização, inclusive por pequenos grupos, certas tecnologias se sobressaem como soft (brandas), intermediárias ou apropriadas.
Ainda de acordo com os esclarecimentos de Bunge (1985b), conforme o artefato produzido e a classe de informação científica utilizada, é possível identificar as tecnologias clássicas, as tecnologias da informação e as sociotecnologias ou tecnologias sociais. As formas clássicas se dividem em físicas, que estão relacionadas a projetos vinculados a princípios específicos da engenharia, e biológicas, as quais são concebidas com o objetivo de controlar organismos, respectivamente, com a ajuda da biologia e da psicologia.
As tecnologias da informação1 compreendem a informática ou engenharia do conhecimento, em especial a “inteligência artificial”. Já as sociotecnologias ou tecnologias sociais são divididas por Bunge (1985b) em tecnologias específicas e gerais. As específicas como a administração, por exemplo, se ocupam de sociossistemas determinados, tais como unidades de produção, departamentos governamentais e organizações culturais. As gerais, também denominadas pelo autor de “engenharia social”, são direcionadas a enfrentar problemas sociais globais, como a escassez de recursos naturais, a superpopulação, a pobreza, o desemprego, a extrema desigualdade social, a opressão e dependência política e a depressão cultural.
A importância das tecnologias sociais e, mais precisamente, da engenharia social, está relacionada ao fato dela direcionar os recursos científicos disponíveis, principalmente os provenientes das ciências sociais, para a busca de melhorias de problemas sociais. Essas melhorias, embasadas também na construção e reconstrução de políticas sociais conduzidas pelo Estado, propõem tanto eliminar ou neutralizar eventos negativos, como a fome, quanto promover eventos positivos, como o desenvolvimento da ciência (Bunge, 1985b). Dessa forma, constitui-se uma relação direta entre o valor da engenharia social e o maior desenvolvimento social (Cupani, 2013).
Ainda que Bunge (1985b) estabeleça essas diferenciações analíticas entre os tipos de tecnologias existentes, devido ao fato dessas tecnologias significarem um aumento na probabilidade de transformação de valores individuais e sociais, visto que alteram as condições de escolhas humanas, elas articulam a todo momento distintos conhecimentos e interesses, o que faz com que, na prática, seja difícil distinguir uma tecnologia que não abarque um caráter de sociotecnologia ou uma sociotecnologia que não esteja articulada a uma tecnologia clássica ou de informação.
Em que pese significativos avanços tecnológicos que tenham possibilitado à sociedade novas escolhas de projetos de desenvolvimento, em geral, dificilmente reflete-se sobre as consequências dessas novas escolhas. Como resultado desses processos, a técnica que ajudava a situar o humano no seu mundo e no seu tempo foi sendo substituída por uma tecnologia que, muitas vezes, indica a desconexão do humano de seu mundo e de seu tempo (Brüseke, 2002). Ao desconectar os indivíduos do universo que lhes dava sentido, essa transformação gerou diversas inferências, dentre as quais se destaca o fato da tecnologia moderna deixar de ser simplesmente um meio. Verifica-se assim uma mudança no processo de concepção do conhecimento. Se, antes, a racionalidade era direcionada a criar algo para atender fins pré-concebidos, o que não deixa de existir, atualmente vem ganhando expressividade a tecnologia que concebe os meios que orientarão a criação dos fins. Dessa forma, a tecnologia moderna se configura como altamente contingente e influencia a sociedade moderna a buscar fins simplesmente por possuir um meio (Brüseke, 2002).
Conforme Brüseke (2002), a inclusão da tecnologia na percepção da contingência a revela como produto de escolhas ocasionais, impulsionadas por hábitos culturais, interesses econômicos ou irracionalidades de qualquer espécie. Ainda segundo esse autor, a interpretação da tecnologia como algo necessário assegura a inevitabilidade do seu desenvolvimento. Essa perspectiva, para alguns, encontra na história a garantia do sentido social da técnica e da tecnologia e de seus desdobramentos, ainda que sejam negativos. Entretanto, Bunge (1985a) afirma que, por mais que a atividade tecnológica e seus produtos tenham alcançado proporções vultosas e uma profunda complexidade, a tecnologia continua sendo um instrumento humano. Assim, os “maus” efeitos evidenciados ao longo da história, resultantes do uso incontrolado de tecnologias físicas e biológicas e do déficit de tecnologias sociais, poderiam ter sido evitados ou, no mínimo, reduzidos.
Essas percepções acerca da tecnologia moderna revelam não somente as limitações e resultados dos processos desencadeados através de sua operacionalização, também a existência de alternativas ainda não realizadas, ou pelo menos, não enfatizadas hegemonicamente, no que se refere ao desenvolvimento tecnológico (Muchinik e Ferré, 1993; Feenberg, 2003). Esses efeitos reforçam a necessidade de um agir diferente, desencadeado pela busca por um desenvolvimento tecnológico compatível com novos valores, pautados na diversidade cultural da sociedade (Brüseke, 2002).
Compreende-se que a origem de uma tecnologia está imbricada a um modo de vida, seja ele ditado por contextos e normas sociais ou em oposição e resistência a essas normas. Tal condição não é diferente no espaço rural. Quando articulada à agricultura, a tecnologia é guiada por determinados estilos de trabalho que são diretamente influenciados por perspectivas e projetos de desenvolvimento rural, no qual estão envolvidos interesses políticos e econômicos de determinados grupos sociais.
O desenvolvimento do meio rural, em especial da produção agrícola, vem seguindo um ritmo descompassado dos processos naturais. De forma cada vez mais intensiva, os processos produtivos vêm se tornando dependentes da introdução de instrumentos tecnológicos que, por mais que otimizem a produção, apresentam limitações e até mesmo mostram-se geradores de prejuízos nas esferas ambiental, cultural e socioeconômica.
Ao passo que a tecnologia é frequentemente empregada no espaço rural sem levar em consideração os contextos locais, consequências desastrosas, não somente para o campo, mas para a sociedade como um todo, vêm emergindo. Bunge (1985a) defende que essa situação não pode ser melhorada com a atribuição de culpa às tecnologias em si e a negação da utilização delas no cotidiano. De acordo com o autor, a combinação, a dosagem adequada e o controle de tecnologias podem ser úteis ao desenvolvimento da sociedade, contanto que sejam guiados por um sistema de valores diferente do qual vêm sendo direcionados.
Efetivamente, tecnólogos, produtores, consumidores e comerciantes possuem diferentes graus de responsabilidade pelas escolhas tecnológicas assumidas para o desenvolvimento do campo e pelas consequências desencadeadas por elas. O cerne do problema está muito mais relacionado aos valores construídos pela sociedade do que aos meios (Bunge, 1985a). Segundo Bunge (1985a) e Herrera (2010), os males do nosso tempo somente tem solução por via da ação social atrelada a tecnologias apropriadas aos contextos nos quais são aplicadas. Entretanto, para que essa ação social seja efetiva, é preciso que a sociedade tenha conhecimento e discernimento das tecnologias que mobiliza em seu cotidiano.
A maioria dos consumidores que percorre os corredores dos supermercados em busca de frutas, vegetais frescos e outros alimentos nem ao menos se dá conta de que os produtos da agricultura ali dispostos, antes de qualquer coisa, vinculam-se a um conjunto de artefatos tecnológicos, resultantes de décadas e séculos de pesquisa e desenvolvimento dedicados ao ajuste e adaptação das características das plantas ao ambiente, conforme os interesses sociais (Thompson, 2009).
Ainda que tal percepção não seja evidente para esses consumidores, tanto para cientistas envolvidos em pesquisas direcionadas a questões agrícolas quanto para agricultores e demais profissionais vinculados à área de produção de alimentos ela ganha distintas nuances. Esses peritos conhecem as características específicas das variedades e cultivares, com vistas a enfrentar as intempéries climáticas, adaptá-las a determinados tipos de solos e a distintos sistemas de exploração agrícola.
Para grande parte desses cientistas, agricultores e profissionais técnicos, dentre outros, a tecnologia está fortemente atrelada à ideia de introdução de técnicas novas no meio rural, seja vinculada a estratégias como a aplicação de determinados agrotóxicos e fertilizantes na lavoura, à mecanização intensiva das atividades, ou mesmo ao desenvolvimento de espécies transgênicas.2 Assim, mesmo para esses profissionais, há ainda uma significativa dificuldade de conceber a tecnologia como algo imerso em seu cotidiano há muito tempo, atrelada ao simples ato de lançar uma semente no solo (Thompson, 2009).
Entretanto, as práticas agrícolas que nascem do confronto entre introdução de novas tecnologias e conhecimentos técnicos acumulados correspondem somente a uma face dos diversos domínios de aplicação tecnológica referenciados pelo ofício da agricultura. Além de ferramentas agrícolas óbvias (como foices, tratores e colheitadeiras) e sistemas de cultivo e classificação, que estruturam desde grandes mercados de commodities até artefatos originados pelas seleções de agricultores e pela manipulação científica, a base tecnológica da agricultura inclui modos peculiares de organização de grupos de agricultores. Mais amplamente, agrega construtos tecnológicos administrados por agricultores e outros atores (Long, 2007), inclusive voltados à implementação de inovações tecnológicas, elementos geralmente não associados ao senso comum acerca da tecnologia (Muchnik e Ferré, 1993).
Devido justamente a essa complexidade de domínios e configuração tecnológica, é possível afirmar que a agricultura é uma atividade inerentemente ambígua (Thompson, 2009). Tal ambiguidade se dá na medida em que as escolhas que levam à adesão de determinados tipos de agricultura podem exercer influências, tanto positivas quanto negativas, para além do espaço rural. Essas escolhas estão atreladas diretamente a modelos de desenvolvimento que, quando operacionalizados, são capazes tanto de gerar altos custos, em termos de recursos humanos e materiais, como a economia desses recursos (Bunge, 1985a).
As transformações tecnológicas que constantemente vivenciamos estão atreladas diretamente a determinadas intenções humanas, visto que sua criação e adequação são resultados da influência de forças político-econômicas, militares e socioculturais em seu desenvolvimento. Tais mudanças não se referem simplesmente a alterações nas estruturas técnicas, mas sim nas estruturas sociais como um todo, que interrelacionam realidades materiais, simbólicas, cognitivas e institucionais.
Imbrincados a isso, os caminhos da ciência são frequentemente inspirados e influenciados pela tecnologia existente e emergente. Echeverría (2003) mostra que a vinculação estreita e institucional entre a ciência e os interesses econômicos, políticos e tecnológicos ganhou força durante a Segunda Guerra Mundial. Disso resultou o rápido desenvolvimento da indústria voltada à fabricação de armamentos bélicos cada vez mais sofisticados e à expansão dos meios de comunicação e de transporte. Além de marcar esse período, a articulação entre a ciência e tais interesses humanos impulsionou a realização de experiências semelhantes pelos países economicamente desenvolvidos, que se consolidaram em meados da década de 1980.
A maior contribuição das empresas privadas em pesquisas e a informatização das atividades científicas caracterizam a vinculação da ciência à tecnologia e, sobretudo, ao interesse humano pela obtenção de poder. Essa simbiose consiste na pesquisa realizada a serviço de projetos de finalidade prática voltados à indústria, à economia e à política (Brüseke, 2001). Segundo Queraltó (2002), nessa vinculação estreita, a tecnologia deixa de ser instrumento para se tornar uma mediação entre ciência e realidade. Nesse contexto, a dependência de meios tecnológicos para a comprovação de fatos científicos gera demanda para a criação de novas tecnologias, o que vem ocorrendo em um processo de expansão contínuo (Queraltó, 2002).
No intuito de produzir um novo medicamento ou uma nova arma, a competitividade de uma mercadoria ou a consolidação de uma política, o conhecimento passa a ser buscado não pelo seu valor intrínseco, ou seja, para um melhor entendimento do mundo, mas pelo seu valor instrumental, para o alcance da finalidade perseguida que demandará novos percursos tecnológicos (Cupani, 2014). Dessa maneira, a articulação entre ciência e tecnologia transcende os limites das comunidades científicas (Latour, 2001). Gera corporações tecnocientíficas sobrepostas às comunidades científicas preexistentes, o que vai modificando não somente a ciência em si, como também a atividade tecnológica, industrial, militar (Echeverría, 2003) e, com isso, as relações do ser humano com o ambiente no qual habita.
O fato da avaliação do conhecimento a ser produzido não responder a puros critérios epistêmicos, mas à urgência de resultados, à competitividade entre empresas e nações e ao lucro, induz ao risco de que o conhecimento resultante seja enviesado. Resultados provisórios impostos pela necessidade de cumprir prazos, dados epistemicamente duvidosos e teorias superadas interferem significativamente nas pesquisas realizadas (Cupani, 2014). Além disso, como o conhecimento gerado pela tecnociência é patenteado, encomendado e especializado, concomitantemente, o que ocorre é uma gradativa depreciação do conhecimento tácito, cuja essência está na prática e no experienciar de situações (Cassapo, 2004). Deságio que ocorre em prol do protagonismo cada vez maior do conhecimento perito3 dos tecnocientistas (Echeverría, 2003).
O acelerado progresso dessa tecnociência desencadeado no mundo, mais intensamente no século XX, vem ampliando a fragmentação e especialização do conhecimento. A ideia de que as transformações tecnológicas atreladas ao advento da modernidade pudessem eliminar o subdesenvolvimento e as desigualdades sociais no mundo conduziu a uma supervalorização da busca de uma identidade tecnológica ‘moderna’, sem uma perspectiva crítica no que diz respeito ao que se deseja construir e à forma com que se realiza essa construção. A modernidade foi sendo concebida como um valor em si, subtraída toda historicidade de suas especificidades (Almeida, 2009). Processo que vem irradiando consequências a todas as esferas de vida terrestre e que influenciam diretamente nas dinâmicas de trabalho na agricultura e de desenvolvimento rural.
Políticas públicas focando a industrialização geraram fortes intervenções no setor agrícola, em escala global, notadamente no período pós-Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento da agricultura foi subordinado às necessidades do setor industrial, com objetivos estritamente funcionais como, entre outros, fornecer produtos baratos, para alimentar a força de trabalho e abastecer a indústria em matéria prima, tornar-se um mercado para os produtos industriais (infraestruturas, insumos e máquinas), gerar um fluxo de moeda estrangeira pela exportação de produtos, facilitando a importação de insumos para o setor industrial. A industrialização da agricultura e a Revolução Verde se inscrevem neste contexto de intervenções públicas produtivistas.
No caso brasileiro, mais especificamente no espaço rural, o Estado adotou políticas e instrumentos capazes de assegurar o consumo crescente de bens industriais orientados para a produção agrícola. Com auxílio de recursos internacionais, buscou-se reproduzir no país um modelo de desenvolvimento urbano-industrial, que tinha como base a ‘capacitação do homem rural’, a fim de que este passasse a aceitar as mudanças intrínsecas ao modelo em questão. Desde então, a pesquisa e a extensão rural foram voltadas às relações de produção inerentes ao modo de produção predominante e motriz do modelo de desenvolvimento. Ambas estavam fundamentadas na ideia de que a mudança social se daria, como almejado, a partir da introdução de inovações tecnológicas na sociedade (Caporal e Costabeber, 2004).
Os pacotes tecnológicos difundidos no processo de modernização da agricultura foram formulados em centros de pesquisa que priorizaram os interesses de grandes corporações ligadas ao setor agroindustrial. A “modernização conservadora” da agricultura foi acelerada no regime militar, através de créditos altamente subsidiados e concentrados nas elites rurais e na agricultura de exportação, e a construção de infraestruturas de transporte (Baer, 1996, p. 322).
As instituições de extensão rural foram reorganizadas para realizar transferências de tecnologia, ou seja, divulgar tecnologias de origem industrial da forma mais abrangente possível. As alternativas tecnológicas difundidas buscavam o aumento da produção e da produtividade agrícola por meio do uso crescente de insumos modernos, com destaque para variedades vegetais e raças de animais de alta produtividade, fertilizantes químicos derivados do petróleo (como os nitrogenados) e agrotóxicos, além da intensificação da mecanização (Graziano da Silva, 1982; Almeida, 2009).
Junto a esse contexto, nos anos 1980, o Complexo Agroindustrial Brasileiro (CAI), definido por Müller (1993) como um conjunto formado pela sucessão de atividades vinculadas à produção e transformação de produtos agropecuários e florestais, se consolidou. Assim, movimentou-se todo um circuito de produtos, que vai desde os insumos (equipamentos e matrizes) até o processamento e comercialização. A especificidade dessa integração deu-se ao processo de produção ser organizado industrialmente, de forma que os produtores integrados recebiam insumos ou orientações técnicas de profissionais relacionados a uma grande agroindústria, com o objetivo de produção de matéria-prima e, em contrapartida, deviam destinar sua produção para a referida empresa.
Em algumas regiões do país, como o Noroeste Gaúcho, por exemplo, os complexos agroindustriais foram se constituindo uma alternativa de comercialização para a produção leiteira e, em muitos casos, para o acesso ao crédito voltado à aquisição de insumos e aumentar a escala de produção. Se, por uma perspectiva, essa realidade, que ainda se mostra fortemente atual, tem certo caráter estratégico, principalmente, acerca da inserção de alguns agricultores no mercado, outras perspectivas evidenciam limitações e consequências importantes em sua operacionalização. Tendo em vista que a integração nesses complexos exige dos agricultores padrões de produção específicos e a adaptação a pacotes tecnológicos precisos, essa estratégia desfavorece aqueles com características produtivas que não se adequam a tais pacotes. Ademais, gera transformações significativas não somente no modo de vida das populações rurais como também na paisagem como um todo (Haas et al., 2010).
No outro extremo do país, no estado do Pará, recentemente, verificou-se relações entre esses processos de integração indústria e agropecuária, envolvendo, por exemplo, a intensificação da produção de óleo de palma, produto do dendê, e desmatamentos de áreas significativas de floresta amazônica, insegurança alimentar das famílias e a diminuição de sua autonomia nas unidades de produção (Da Mota, Ribeiro e Schmitz, 2019). Corroborando tais reflexões, as pesquisas de Donato de Araujo, Matricardi e Navegantes-Alves (2020), direcionadas ao Nordeste Paraense, revelam que o aumento da produção de dendê nessa região está intrinsicamente ligado ao processo de supressão da vegetação nativa, depredação da biodiversidade e transformação da paisagem. O conjunto dessas experiências coloca em evidência as limitações da industrialização intensiva da agricultura e a sua desconexão dos contextos sociais locais e da ecologia (Van der Ploeg, 1994).
Sobretudo em tempos de pandemia, escancaram-se as insuficiências das escolhas tecnológicas que desconsideram a “natureza sistêmica do nosso mundo: a saúde humana, animal e ecológica” (Nicholls e Altieri, 2020, p.1). Especialistas já mencionam a correlação intrínseca entre aumento exponencial das áreas de monocultivo extensivo no mundo e da utilização de altas doses de agrotóxicos e antibióticos e a geração de mutações em agentes patogênicos, que se adaptam e acometem diretamente os humanos (Scannavino, 2020). A Amazônia, que perdeu cerca de 800 mil km2 de cobertura florestal em 50 anos tornou-se, em sua porção sul e leste, uma paisagem degradada (Marques, 2020).
A Amazônia, que perdeu cerca de 800 mil km2 de cobertura florestal em 50 anos tornou-se, em sua porção sul e leste, uma paisagem degradada (Marques, 2020). Entre janeiro e abril desse ano pandêmico, pouco mais de 1200 km2 de floresta foram destruídos. Um aumento de 55% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo dados divulgados em maio de 2020 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nesse cenário amazônico, criam-se condições propícias para um hotspot de futuras epidemias e mesmo pandemias (Marques, 2020).
Entretanto, se a incidência viral em nível global apresenta as consequências problemáticas dessas escolhas, acaba também por trazer à tona novas possibilidades tecnológicas para a construção de caminhos distintos daqueles que vinham se configurando até então. O aperfeiçoamento significativo do uso das geotecnologias, por exemplo, vem auxiliando no planejamento de atividades de campo, no desenvolvimento de sistemas de monitoramento da paisagem e no planejamento de estratégias de conservação e preservação dos recursos naturais, sobretudo no cenário amazônico. Ainda concernente a esse tipo de tecnologia, por meio da mobilização de uma “Agricultura 5.0”, intensiva em uso de ferramentas de inteligência artificial, vem sendo possível acumular dados e realizar diagnósticos mais assertivos, desde a forma de plantio à estimativa da produtividade, avaliação nutricional das plantas, detecção de pragas e doenças e com isso reduzir gastos, mas, sobretudo, os prejuízos ao ambiente (Mendes et al., 2020, p. 310).
Em meio a um cenário pandêmico, as tecnologias vão sendo diferenciadas e transformadas a depender dos contextos e interesses vinculadas aos quais emergem. E, de forma expressiva, vêm também ganhando as manchetes de jornais estratégias como: “Agricultores familiares recorrem à tecnologia para garantir vendas durante pandemia”;4 “Tecnologia ajuda agricultura familiar a manter as vendas”;5 “Com entregas, pequenos agricultores orgânicos driblam crise e veem até aumento de vendas na pandemia”;6 “Delivery de cestas de produtos orgânicos e agroecológicos cresce 136% durante pandemia”;7 “Cestas da agricultura familiar geram renda e alimentação segura”.8
No âmbito específico das tecnologias de informação e comunicação (TIC), distintas iniciativas vêm sendo desenvolvidas estrategicamente pelos agricultores e agricultoras familiares para a superação de adversidades em face da Covid-19. As pesquisas de Zuñiga, Zuñiga e Montilla (2020), que possuem como foco a América do Sul, destacam a utilização, assimilação, compreensão e transformação de plataformas digitais por esses agricultores — como as redes sociais —, de modo a adaptá-las e reinventar seus significados, de acordo às necessidades de comunicação com atores de diferente natureza e de comercialização de seus produtos. Ainda de acordo com essas autoras, as plataformas digitais criam ou fortalecendo redes de cooperação e difusão de informações e conhecimentos. As experiências que embasam as reflexões suscitadas no referido artigo envolvem o uso do Youtube para divulgação de experiências e promoção de produtos da agricultura familiar em Chipaque, Colômbia; a mobilização do Instagram para publicidade de produtos da agricultura familiar da macrorregião dos Picos, Estado do Piauí, Brasil; a aplicação do WhatsApp para o comércio eletrônico no Estado do Sergipe, Brasil; a utilização do sítio web para facilitar a comunicação entre pequenos produtores e consumidores no Chile; e o emprego do site web como loja virtual para a comercialização de produtos da agricultura familiar no Rio Grande do Sul, Brasil.
Ainda que esse tipo de tecnologia esteja facilitando a troca de informações e aprendizados (também por meio das lives, webinários, dentre outros), enfatiza-se aqui sua influência significativa nas iniciativas de comercialização que envolvem sujeitos dos mais variados contextos. Vale mencionar o potencial caráter de retroalimentação que essas experiências de comercialização possuem na configuração de outras tecnologias de cunho produtivo e organizativo pelos agricultores familiares. A procura e o consumo de alimentos frescos, mais saudáveis, estimula a constituição de sistemas produtivos mais sustentáveis, os quais, majoritariamente, estão conectados a formas organizativas mais territorializadas e economicamente mais justas (Medeiros, 2017).
Todavia faz-se importante ressaltar que o uso de tais tecnologias tem respondido em parte à necessidade de encontrar novas formas de comunicação e comercialização que envolvem distintos agricultores familiares. As necessidades desses agricultores são tão complexas quanto suas práticas e lógicas e, assim, as tecnologias de informação e da comunicação podem se tornar um tipo dentre outros tantos tipos de tecnologias necessárias para superá-las, como, por exemplo, as tecnologias de engenharia social, ou seja, as políticas públicas, considerando as características e particularidades de cada território e sistema de produção (Zuñiga, Zuñiga e Montilla, 2020)
Ademais, é preciso ponderar que o acesso a tecnologias como a de informação e comunicação ainda é bastante limitado no contexto brasileiro, em especial no rural. De acordo com as pesquisas do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação — Cetic (2019), até o ano de realização de seus levantamentos, 20 milhões de domicílios brasileiros não possuíam Internet. Não surpreende que os percentis mais expressivos quanto à falta de acesso à Internet (50%) concentram-se nas classes sociais D-E. Especificamente sobre o espaço rural do país, aproximadamente, 50% dos domicílios ainda não apresentavam acesso à Internet, devido a diversos motivos, dentre os quais se destacam: o valor pago para se ter acesso aos serviços; a falta de conhecimento para o acesso; e a indisponibilidade de Internet na região do domicílio. Ou seja, embora o acesso a esse tipo de tecnologia se mostre potencialmente inovador, ele ainda é bastante restrito a determinados grupos sociais do campo.
A reflexão por parte da sociedade acerca das consequências geradas pela transferência e adoção de tecnologias é fator elementar para que as contradições cedam lugar à construção de processos de desenvolvimento sustentáveis no tempo e favoráveis às verdadeiras necessidades locais (Bunge, 1985a; Winner, 1995). Para que tais processos sejam de fato operacionalizados, ressalta-se que, apesar de as experiências exógenas poderem inspirar a incorporação de inovações pontuais nas sociedades rurais, é extremamente importante que as localidades (re)construam suas próprias tecnologias com base em uma perspectiva crítica. Essa é uma condição sine qua non para a adequação das tecnologias aos objetivos vinculados a contextos sociais específicos e, consequentemente, para o surgimento de processos criativos autênticos e governados (Herrera, 1978).
Nesse sentido, a mobilização do conceito, cunhado por Thomas et al. (2008 [1987], p.101), de “sistemas tecnológicos”, se mostra profícua tanto para a compreensão da operacionalização de tecnologias quanto para prospecção de sua construção social. Para esses autores, tais sistemas abarcam componentes destinados a resolver problemas mesclados, complexos. E, para além de tecnologias materiais, incorporam componentes usualmente catalogados como científicos, tais como livros, artigos, o sistema de ensino e programas de pesquisa universitários, artefatos legislativos, tais como leis reguladoras.
Igualmente amparada no intuito de aprofundamento reflexivo acerca da complexidade da construção e operacionalização das tecnologias, a perspectiva da construção social da tecnologia (CST) é aqui reconhecida como instrumento analítico focada aos sistemas tecnológicos. Essa perspectiva foi inspirada na sociologia do conhecimento científico, que realiza uma crítica à sociologia da ciência institucional. A crítica se fundamenta no fato da sociologia da ciência institucional não fazer distinção entre o contexto social e o contexto institucional da produção científica, o que restringe a transformação dos conteúdos da ciência em objeto de análise da sociologia (Bruun e Hukkinen, 2008).
Com o intuito de propor um modelo multidirecional, a CST tem como cerne a compreensão de que esses processos não são estritamente sociais ou puramente tecnológicos, mas sociotécnicos, em sua própria essência, sociais e tecnológicos, simultaneamente (Serafim e Dias, 2010). A abordagem de Pinch e Bijker (1987) assume que a mudança tecnológica se encontra determinada por processos sociais mais do que por qualquer “lógica tecnológica” interna. Os autores argumentam que os critérios da funcionalidade tecnológica possuem uma origem social e, desse modo, colocam em questionamento as explicações “ingênuas” do êxito dos artefatos técnicos. Ou seja, aquelas que afirmam que o critério de escolha pela adoção de novos artefatos técnicos se deve exclusivamente a um melhor desempenho funcional. As análises do desenvolvimento de inovações tecnológicas apontam o papel decisivo de grupos de atores diretamente interessados.
Contudo, Bruun e Hukkinen (2008) acreditam que, para além de uma crítica às explicações comuns sobre o êxito de algumas tecnologias, essa perspectiva também constitui uma teoria acerca da mudança tecnológica. Tal afirmação se baseia no fato dos autores Pinch e Bijker (2008) evidenciarem os processos que estão articulados com as constituições de problemas pela sociedade e as escolhas tecnológicas para a mudança e melhoria de situações problemáticas. Segundo Pinch e Bijker (2008), um problema é definido como tal somente quando há um “grupo social relevante” para o qual um fato se constitui em um problema. Essa perspectiva compreende como grupos sociais relevantes as instituições e organizações, assim como grupos de indivíduos organizados ou não. Ainda de acordo com esses autores, para que um grupo social relevante seja assim identificado, todos os seus membros devem compartilhar o conjunto de significados vinculados a um artefato específico.
Medeiros (2017), ao mobilizar tal instrumental teórico à sua análise acerca do contexto do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, identifica a constituição de um novo conjunto articulado de tecnologias, o qual, ainda que apresentando limitações, desencadeia formas de desenvolvimento mais sustentáveis, ancoradas na construção coletiva de conhecimentos. Por meio da investigação, a autora evidencia que, com foco na problemática ambiental, na valorização do conhecimento local e na melhoria da renda dos agricultores familiares vinculados a distintos grupos sociais relevantes, no qual se destaca a Cooperativa Mista de Agricultores Familiares de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas (COOMAFITT), um novo código sociotécnico foi se constituindo por meio de um misto de técnicas tradicionais, guiadas pelo saber-fazer, e tecnologias respaldadas por pesquisas científicas desenvolvidas na região.
Aqui, vale destacar que esse novo código sociotécnico, que poderia ser lido como um sistema tecnológico construído socialmente, é indicado como um agrupamento organizado de tecnologias produtivas que inter-relacionam a aplicação de caldas para controle de pragas e doenças; o preparo de compostos orgânicos para o enriquecimento da fertilidade do solo e a implantação de sistemas agroflorestais (SAF) que combinam espécies arbóreas, frutíferas e madeireiras com cultivos agrícolas e/ ou criação de animais, homeopatia, dentre outros. E tecnologias organizacionais, as quais envolvem desde a reconfiguração de uma política pública de desenvolvimento rural, que é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), até a formalização de uma cooperativa de agricultores familiares e de um organismo participativo de avaliação da conformidade orgânica (OPAC).
Assim como esse instrumental foi mobilizado para a análise de construções tecnológicas contra-hegemônicas prévias à pandemia, ele se mostra factível de ser utilizado para a compreensão e visibilização de iniciativas inovadoras que estejam emergindo neste momento de pandemia, como, por exemplo, as experiências relacionadas ao uso das geotecnologias ou das TIC mencionadas no item precedente a este. Ou ainda, no entendimento analítico mais aprofundado de episódios que se assemelham àquele vivenciado recentemente no Brasil, entre os meses de agosto e setembro de 2020, que se referiu ao risco de desabastecimento do arroz no mercado interno brasileiro. Nessa circunstância, um grupo social relevante, configurado por produtores deste grão, vinculados a uma (tecno)lógica produtiva do agronegócio, estimulados pela alta do dólar e, consecutivamente, pelos preços inéditos alcançados por essa commodity no cenário internacional, optaram pela destinação total de sua produção ao exterior.9 Enquanto isso, outro grupo social relevante, conformado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), garantiu a doação de 500 toneladas de alimentos em diversas regiões do País, estando entre os itens doados o arroz produzido em sistemas biodiversos por camponeses e camponesas (Wedig; Ramos, 2020).10 As interpretações distintas por parte desses grupos acerca do artefato agricultura, bem como as consequências das escolhas desencadeadas por essas interpretações, se transformaria em tema central de reflexão da perspectiva de construção social da tecnologia, justamente por tal abordagem possibilitar considerar nesses diferenciados sistemas tecnológicos em torno da produção do arroz os variados interesses, conhecimentos, ideologias e ambiguidades.
Não obstante, para além do âmbito de pesquisa dessas experiências, o corroborar das edificações tecnológicas que nos aproximam da configuração de uma sociedade mais empática e sustentável está diretamente correlacionado a nossas escolhas políticas e críticas enquanto sujeitos dessa sociedade. Quer seja no papel de consumidores, mais conscientes e responsáveis, ou de mediadores na facilitação do acesso por parte dos agricultores familiares a, por exemplo, formas inclusivas de assistência técnica e extensão rural, ao mercado institucional de alimentos e mesmo a políticas públicas de transferência de renda.
No quesito da assistência técnica e extensão rural, o apoio à busca coativa de soluções merece destaque como uma das possibilidades de maior integração de propostas teóricas e de ação com foco na simetria dialógica entre agricultores e técnicos-extensionistas (Darré, 2006).
Relativo à facilitação no acesso dos agricultores familiares ao mercado institucional de alimentos, as reflexões de Da Silva et al. (2020) auxiliam a robustecer a relevância da mediação social nos processos de divulgação e operacionalização de políticas públicas de desenvolvimento rural a esses agricultores. O texto evidencia a construção de estratégias tecnológicas organizacionais por agricultores familiares, apoiados por nutricionistas, extensionistas rurais, gestores públicos e consumidores, no acesso ao PNAE durante a pandemia. Ademais, coloca em destaque a potencialidade de expansão das compras públicas de alimentos produzidos localmente e, sobretudo, a necessidade de traçar estratégias de desenvolvimento, que possibilitem a famílias em vulnerabilidade socioeconômica o acesso à alimentação de qualidade, por um lado, e a consolidação de mercados construídos socialmente, com e pelas agriculturas familiares amazônicas.
Nos estudos de Amorim, Ribeiro Junior e Bandoni (2020), atreladas diretamente a essa política pública, aparecem aquelas relativas à transferência de renda, com destaque ao auxílio emergencial. Desde a criação da Renda Básica Emergencial (RBE) — Lei nº. 13.982, de 2 de abril de 2020 (Brasil, 2020b) — que prevê a operacionalização desse benefício, este vem se apresentando significativamente importante à manutenção socioeconômica de distintos agricultores familiares em face da pandemia. Segundo pesquisas realizadas por Barbosa e Prates (2020), os resultados do acesso a este auxílio sobre a renda domiciliar per capita vêm indicando que a queda teria sido drástica sem a presença da RBE. O benefício da RBE no valor de R$ 600,00 garante essa renda em todos os cenários de desemprego. Ademais, os autores salientam a relevância de considerar-se que, de um ponto de vista epidemiológico, a RBE tem também um caráter preventivo ao incentivar as pessoas a cumprirem medidas de distanciamento social, evitando, por exemplo, que saiam para trabalhar (no caso de contas-própria) ou buscar emprego. Não obstante a transferência de uma quantia monetária, por um curto período pré-definido (e de recessão), não seja capaz de modificar, de maneira sistêmica, outras formas de privação que incidem particularmente sobre os mais pobres, de um ponto de vista contrafactual, essa engenharia social mostra-se extremamente importante no combate aos agravamentos das crises existentes, sobretudo no contexto rural (Barbosa e Prates, 2020).
À luz do compilado apresentado, é possível reiterar que a mobilização de conceitos e perspectivas complexas, como, respectivamente, o de sistemas tecnológicos e a de Construção Social de Tecnologias, é efetiva na compreensão multifocal de iniciativas emergentes nesse cenário de (pós) pandemia. Para além, tais instrumentais mostramse operacionais, inclusive, no pautar de ajustes e melhorias na edificação de tecnologias, quer sejam materiais (como as vinculadas diretamente aos sistemas produtivos) ou imateriais (no âmbito organizacional ou de políticas públicas). Entretanto, insiste-se que a visibilização e consolidação de tais contratendências tecnológicas vinculam-se, não somente a esforços analíticos, mas ao devir de cada um de nós como sujeitos críticos e empáticos.
Este ensaio teórico se propôs a refletir sobre as formas de concepção tecnológica que podem vir a configurar estratégias inovadoras de desenvolvimento rural mais sustentáveis e territorializadas em tempos de (pós) pandemia. Para tanto, apresentou elementos teóricos que abarcaram a concepção da tecnologia de forma não reducionista, mas como complexo de componentes destinados a resolver problemas mesclados, que incorporam, para além das tecnologias materiais, as imateriais.
Dessa forma, salientou-se a importância de compreender como tecnologia, tanto uma estratégia produtiva, como a mecanização das atividades agrícolas, quanto a reconfiguração de uma política pública ou a formalização de uma cooperativa de agricultores familiares. E, ademais, como, inter-relacionadas, essas tecnologias podem configurar sistemas tecnológicos atrelados a múltiplos modos de proceder e interesses que perfazem uma ambiguidade ostensiva, acompanhada de alguma valoração, positiva ou negativa constituída por determinada sociedade.
Referindo-se especificamente ao mundo rural, as reflexões do artigo partem da crítica acerca da estandardização da ciência e tecnologia, resultante do avanço dos processos de modernização, e das desconexões da agricultura aos contextos sociais locais, à ecologia, à conformação de tempo e espaço, à elaboração de produtos de qualidades locais específicas e à família como princípio de organização social. Todavia, apontam que não obstante esse processo de desconexão da agricultura como prática sociocultural tenha predominado na sociedade, nem todos os grupos sociais se mantiveram acríticos aos seus efeitos. Distintos agricultores resistiram de distintas maneiras a esse processo e, ao invés de o vivenciarem como uma desintegração dos seus mundos de vida, transformaram os sistemas tecnológicos que lhes estava sendo posto. Conforme suas necessidades cotidianas e interesses, interrelacionaram conhecimentos, informações e materialidades, elementos que têm se evidenciado imprescindíveis na edificação de formas de desenvolvimento rural mais sustentáveis e territorializadas, sobretudo, em face das crises avultadas, atualmente, pela pandemia, e de um porvir, ou um pós-pandemia, repleto de indefinições.
Com o propósito de traçar caminhos sugestivos de análise de tais estratégias tecnológicas inovadoras, o esforço desse texto também recaiu sobre a apresentação de um instrumento analítico compreendido aqui como profícuo na apreensão das mudanças tecnológicas. A exemplificação da mobilização da perspectiva da construção social da tecnologia na análise de um contexto empírico do Litoral Norte do Rio Grande do Sul procurou mostrar a relevância da visibilização dessas estratégias por meio de pesquisas mais atentas à complexidade desses sistemas tecnológicos que desviam do modelo hegemônico de desenvolvimento puramente economicista.
Diretamente atreladas à potencialidade dessa perspectiva teórica foram apontados a importância do consumo responsável e consciente, bem como da acessibilidade dos agricultores familiares a formas inclusivas de assistência técnica e extensão rural, ao mercado institucional de alimentos e mesmo a políticas públicas de transferência de renda no corroborar dessas edificações.
Outrossim, esse ensaio indica novas janelas de oportunidade para estudos focados a outras distintas experiências em emergência. Tais janelas exibem horizontes ainda a serem reconhecidos minuciosamente e que se traduzem nas seguintes questões: quem são os grupos sociais relevantes dessas novas edificações tecnológicas que se configuram no rural como desviantes das hegemônicas nesse contexto pandêmico? Quais os atributos lhes são necessários para desempenhar a habilidade de gerar mudanças em relação a um estado de coisas ou curso de eventos pré-existentes? O que leva alguns casos terem sucesso nessa configuração tecnológica e outros não? Que experiências vinculadas à pesquisa-desenvolvimento se mostram catalisadoras desses processos? Como tornar a arquitetura desses sistemas tecnológicos emergentes mais inclusiva?
À das reflexões aqui suscitadas e também das indagações apresentadas, esperase poder contribuir com a conformação de uma agenda de pesquisa e de mobilização social focada à consolidação de sociedades mais empáticas e sustentáveis, especialmente, no contexto de um amanhã, pós-pandemia, que se delineia apreensivo, mas igualmente esperançoso.
Agradecimentos especiais à Philippe J. L. Sablayrolles, que colaborou significativamente para a construção das reflexões aqui contidas.
A realização deste artigo se deu vinculada ao projeto “Tecnologia e Inovação Social na Amazônia Oriental: articulando produção e sustentabilidade na consolidação da agricultura familiar quilombola”, financiado por CNPq/MCTIC/MDS, por meio da Chamada 36/2018 - Tecnologia Social.