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Prostituição e o COVID-19: repercução na vida dos profissionais do sexo

Prostitución y COVID-19: repercusiones en la vida de las trabajadoras sexuales

Prostitution and COVID-19: Repercussions for the Lives of Sex Workers

Cindy Carolina Benedetti Costa
UNIFESP, Brasil

Prostituição e o COVID-19: repercução na vida dos profissionais do sexo

Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 17, núm. 49, pp. 159-177, 2022

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Resumo: A profissão dita como a mais antiga do mundo, vive ainda, grandes estigmas, preconceitos e desigualdades, fazendo-se necessárias análises mais profundas sobre essa situação. Este artigo tem como objetivo problematizar a realidade da prostituição, assim como, as vivências estabelecidas nesse contexto, como: a inserção na prostituição, identidade e representação social, família, saúde, relação com cliente, aspectos pessoais acerca da profissão, regulamentação da profissão e violências sofridas. Para, além disso, temos o recorte dessa análise para os percalços ocorridos às mulheres inseridas nessa categoria profissional na pandemia do COVID-19. Como metodologia, utilizamos de entrevistas semi-estruturadas para coleta de dados no bairro Jardim Itatinga, Campinas/São Paulo – Brasil, posteriormente, como análise dos dados os categorizamos para maior aprofundamento, e por fim, através de boletins, notícias e documentos online ampliamos a discussão da execução do trabalho sexual durante a crise sanitária.

Palavras-chave: COVID-19, gênero, pandemia, prostituição, violencia.

Resumen: Considerada la profesión más antigua del mundo, la prostitución sigue viviendo grandes estigmas, prejuicios y desigualdades, por lo que es necesario un análisis más profundo de su situación. Este artículo tiene como objetivo discutir la realidad de la prostitución, así como experiencias establecidas en este contexto como: inserción en la prostitución, identidad y representación social, familia, salud, relación con el cliente, aspectos personales de la profesión, regulación del profesión y violencia sufrida. El análisis está enfocado en los percances sufridos por prostitutas durante la pandemia del COVID-19. Como metodología, fueron realizadas entrevistas semiestructuradas para la recolección de datos en el barrio Jardim Itatinga, Campinas/San Pablo, Brasil. Luego de categorizar la información reunida, ampliamos la discusión sobre la ejecución del trabajo sexual durante la pandemia a través de boletines, noticias y documentos en línea.

Palabras clave: COVID-19, género, pandemia, prostitución, violencia.

Abstract: Considered the oldest profession in the world, prostitution is still experiencing great stigmas, prejudices and inequalities. This article aims to discuss its reality, as well as the experiences established in this context, such as: insertion in prostitution, social identity and representation, family, health, relationship with the client, personal aspects about the profession, regulation and violence suffered. The analysis is focused on the mishaps that occurred to female prostitutes during the COVID-19 pandemic. We conducted semi-structured interviews for data collection in Jardim Itatinga, Campinas/São Paulo, Brazil. After the information was categorized to allow a deeper analysis, the discussion about prostitution during the pandemic was expanded with the help of bulletins, news and online documents.

Keywords: COVID-19, gender, pandemic, prostitution, violence.

1. A prostituição feminina no Brasil

A prostituição feminina está presente em grandes e pequenas metrópoles e em cada época as trajetórias, motivos e contexto social se diferenciam. Nucci (2015) traz como significado da prostituição,

“O comércio sexual do próprio corpo, geralmente desenvolvido com habitualidade, objetivando o sustento. Mas não se pode considerar tal atividade de maneira tão simples quanto incompleta. Prostituição, de um ponto de vista etimológico, significa colocar adiante (de prostituere), ou colocar à venda” (Nucci, 2015, p. 71).

Segundo Ribeiro (1995), apud Cavour (2011), a prostituição tem suas raízes no país desde quando os primeiros homens vieram para colonizar o Brasil. Mulheres escravas, além de servirem sexualmente aos seus senhores, através da exploração sexual, também prostituiam-se a fim de complementar a renda, onde essa ação era vista como caminho à sobrevivência, diante a pobreza existente (Ferreira, 2004).

No século XVIII, houve uma preocupação dos médicos higienistas, para manter a integridade e a moral da família, dando início à utilização de diversas formas para repreensão desse “mal” (Gois e Lima, 2013), tinham por objetivo, tornar a prostituição disciplinada, impedindo que as profissionais do sexo manifestassem de forma aberrante seu comportamento sexual e que cumprissem os designíos profissionais, sem prazer e sem afeição às ações executadas (Rago, 1997, apud Cavour, 2011). Assim como as tentativas de controle que se basearam na satanização, isto é, a instituição religiosa tentando exercer o controle, de forma que perpassava os códigos civis com a sua proibição (Guimarães e Merchán-Hamann, 2005).

Na continuidade do processo histórico da prostituição, no século XIX o desemprego era grande e como a mulher desde muito tempo se encontra socialmente excluída, nesse período não foi diferente. Então para sua sobrevivência, tornar-se profissional do sexo era uma ótima opção, pois havia maior expressividade de ganhos (Cavour, 2011; Engel, 1989), de forma a influenciar o aumento das casas de prostituição, por exemplo, em São Paulo, que teve seu início em meados do século XVIII. Mas, não muito diferente de outros locais, tornou-se uma perturbação da ordem social, gerando uma punição, na qual, era o isolamento social.

No final do século XIX e início do Século XX a prostituição ganha espaço na sociedade brasileira, tendo então seu apogeu tornando-se uma figura pública, já que comercializavam o corpo, mantendo longe os sentimentos de afeição e prazer (Rago, 2008, apud Cavour, 2011). Dessa forma, daqueles períodos até os dias de hoje, a prostituição sempre teve suas representações sociais, possuindo uma dicotomia: exercício dessa profissão como qualquer outra, com direito à escolha e aos direitos humanos, como também a liberdade do seu corpo; por outro lado a visão da prostituição como uma forma de vitimização, onde a mulher está em uma violência social que acarretou à essa determinação (Rodrigues, 2010; Engel, 1989).

Sendo assim, a ação de se prostituir não é crime, segundo o código penal (Art. 230), a ação configurada como crime, é acerca daqueles que lucram sobre a prostituição alheia. Como mencionado anteriormente, a prostituição teve suas modificações históricas e sociais, porém, apenas em 1997 houve a primeira tentativa da regulamentação da prostituição como profissão, mas, todos os projetos expostos até o momento não alcançaram o fim do entrave burocrático gerado pelo Poder Legislativo, unicamente por falta de interesse dos parlamentares. Onde mesmo obtendo a legalização dessa atividade, ainda seria vista como um comportamento imoral e que foge das condutas éticas criadas pela sociedade, reproduzindo um pensamento ultraconservador.

Dessa forma, o próprio Legislativo cria resistência para a criação dessas normas (Feijó e Pereira, 2014), “preferem fechar os olhos à realidade, agem como se as pessoas que se prostituem não existissem, como se essa questão não merecesse atenção” (Santos, 2016, p. 7). O autor continua apresentando sua indignação, afirmando a covardia que o congresso demonstra, além do desinteresse com esse grupo, de forma que ignoram a viabilidade de atenção as pautas que buscam a efetivação de direitos às profissionais do sexo.

A primeira tentativa de regulamentação da profissão foi através do ex deputado Wigberto Tartuce com o Projeto de Lei 3436/97, que “dispõe sobre a 20 regulamentação das atividades exercidas por pessoas que praticam a prostituição em desacordo com os costumes morais e atentatórios ao pudor” (Projeto De Lei n° 3436, 1997, p.1). A proposta do Projeto de Lei 3436 (1997) considerava profissional do sexo aquele que pessoalmente e mediante remuneração ou vantagem, utilizando-se do próprio corpo, exerce o comércio sexual, sendo proibido para menores de 18 anos, de forma que os profissionais poderiam ser segurados pela Previdência Social na qualidade de autônomos, porém, eram obrigados estar cadastrados em Unidades de Saúde bem como realizar exames mensais para a prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST, também utilizando do Código Penal proibindo todo incentivo ou exploração por essa atividade. Santos (2016) crítica essa iniciativa dizendo que não se percebe uma proposta pensada na melhoria de vida das trabalhadoras, mas sim que havia apenas uma motivação sanitarista, onde essa regulamentação protegeria apenas a sociedade em uma ordem moral. Após dois anos o Projeto de Lei foi recusado no congresso.

Outra iniciativa foi gerada em 2003, através do ex-deputado Fernando Gabeira, que contou com a parceria dos Movimentos das Prostitutas, onde com apenas três artigos o PL determinava o pagamento por serviços prestados sexualmente, de forma que a exigibilidade do pagamento só poderia ser feito pela pessoa que prestou o serviço (Projeto de Lei 98-A, 2003), levando à anulação os artigos já citados nesse trabalhado do Código Penal, “descriminalizando assim a exploração sexual e a figura do proxeneta, bem como a existência de casas de prostituição, e da promoção da entrada de estrangeiros no país para fins de prostituição” (Santos, 2016, p. 8). Assim como o PL anterior, sua justificativa era apenas pautada na ordem sanitarista e política urbana, para assim prevenir os efeitos indesejáveis.

A terceira proposta de Lei foi do ex-deputado Eduardo Valverde, com o PL 4244/2004, que possuía como ementa “Institui a profissão de trabalhadores da sexualidade e dá outras providências” (Projeto de Lei 4244, 2004, p. 1), através da análise do PL é possível verificar que os termos utilizados foram abordados de forma confusa e sem aplicação na realidade, sem contar a citação de diversificadas áreas para situar os “trabalhadores da sexualidade” que não estão necessariamente ligadas ao ato da prostituição, assim como os garçons e dançarinas (os). Há a contradição entre o CP, o qual não foi levantado nenhuma mudança, apesar de ser proposto que a atividade fosse realizada de forma subordinada em proveito de terceiros.

A proposta mais recente apresentada ao Poder Legislativo visando a regulamentação da prostituição como profissão foi levantada pelo Deputado Jean Wyllys, onde o Projeto de Lei número 4.211/2012 é conhecido pelo nome “Gabriela Leite”, que foi intitulada em homenagem a profissional do sexo que possui esse nome. Santos (2016) afirma que esta PL possui um texto mais sofisticado que os anteriores, onde apresenta um aperfeiçoamento das outras propostas. Feijó e Pereira (2014, p. 39) afirmam que esse projeto “regulamenta o trabalho das/dos profissionais do sexo e o distingue do crime de exploração sexual” onde é apresentado como objeto principal do PL, não só a desmarginalização da profissão, mas também a permissão de que as profissionais do sexo tenham principalmente à dignidade humana sem interferência de terceiros, bem como acesso à saúde, ao direito do trabalho e segurança pública, buscando o ativo combate à exploração sexual.

Analisando esse PL, podemos observar que através da regulamentação profissional haverá inclusão social desses profissionais, assim como uma oportunidade da diminuição dessa marginalização. Como também, haverá uma fiscalização do ambiente de trabalho dessas profissionais, sendo possível analisar as condições nas quais elas estão inseridas, podendo ser evitado casos de violência e também, como o próprio Projeto descreve, de exploração sexual. Assim como Feijó e Pereira (2014) afirmam “a preocupação com o tráfico de pessoas, a exploração e o turismo sexual são grandes. A regulamentação da lei é uma alternativa para combatê-los” (p. 14). Mas não podemos confundir a ação da prostituição com a exploração sexual, pois como dito, essa sim é uma preocupação e devemos então lutar para que ela seja combatida e anulada da sociedade.

Feijó e Pereira (2014) também observam o Projeto de Lei com uma “ausência de normas que legalize a prostituição como profissão deixa tais profissionais à margem, abandonados à própria sorte” (p. 39), onde podemos gerar uma indagação, será que os mais beneficiados diante o proposto no PL não seriam os cafetões e os empresários do sexo? Na análise de Nucci (2015) outros pontos contrários são levantados acerca da regularização, tais como alguns movimentos feministas alegam que a prostituição aumentaria as desigualdades de gênero, pois o domínio dos homens sobre as mulheres aumentaria, vendo que eles são os maiores consumidores dessa profissão, sendo então um repudio a esses movimentos por ser algo incompatível com a igualdade. Dessa forma, se faz necessário lembrar que num contexto de prostituição feminina “serve para atender o prazer masculino, uma vez que em nossa cultura o sexo não é desonra para o homem” (Vieira, 2014, p.4).

Em 2016 realizamos uma pesquisa estritamente para fins acadêmicos, sendo possível verificar que, muitas das profissionais do sexo do Itatinga – Campinas, não têm conhecimento dos Projetos de Lei, principalmente o último que se intitula Gabriela Leite e que elas não aceitam essa regulamentação, pois veem como algo que não irá beneficia-las. Resultados obtidos com entrevistas à 10 profissionais do sexo, apresentam que 70% das profissionais do sexo não possuem conhecimento dos Projetos de Lei e os outros 30% possuem um raso conhecimento.

Através das entrevistas, pudemos verificar que segundo o relato das 70% das mulheres, elas veem a Regulamentação da profissão como algo que banalizaria a profissão, onde Estado reteria muito dinheiro (o que hoje elas possuem de forma livre, sem declaração de rendimentos) e também não gostariam de ter sua Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS - assinada como profissionais do sexo, pois a maioria sonha em sair dessa profissão, então não querem ter a sua carteira marcada por um passado no qual elas querem abandonar. Porém, não apontam os benefícios previamente descritos no Projeto de Lei.

Mesmo não sendo uma profissão regulamentada, temo-la inserida no Código Brasileiro de Ocupações n° 5198-05, através da Portaria n. 397 de 9 de outubro de 2002, do Ministério do Trabalho inserida no subgrupo 5198-05, sendo prestador de serviço o/a profissional do sexo, o qual apresenta como descrição para essa ação aquelas pessoas que buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidades da profissão (Brasil, 2002). Apresentam-se também algumas condições gerais para o serviço tais como: trabalhar por conta própria, na rua, em bares, hotéis, rodovias e em garimpos. “Com a regulamentação do Ministério do Trabalho os/as profissionais do sexo podem se aposentar como trabalhador autônomo” (Feijó e Pereira, 2014, p. 42).

1.1. Comércio sexual em Campinas/São Paulo

O bairro Jardim Itatinga, situado no município de Campinas/São Paulo – Brasil, teve sua criação em 1967, estrategicamente realizado pelo poder público, com objetivo de concentrar todas as atividades ligadas a prostituição da cidade em um único espaço, garantindo seu zoneamento fora do espaço urbano consolidado na época (Helene, 2015).

Depois de muito planejamento da prefeitura com os corretores dos loteamentos mais afastados do perímetro urbano, através de muita luta e resistência das profissionais do sexo, em 1967 foi inaugurado o Jardim Itatinga, onde em 1968 já possuía vinte bordeis funcionando e em dois anos já haviam realocado toda a prostituição da cidade no novo território (Helene, 2015).

Esse acontecimento se intitulava “Operação Limpeza”, que visada a eliminação da prostituição presente no município até o momento. Essa ação se deu de utilizando-se força policial que foram extremamente violentos, bem como todo um planejamento urbano foi realizado e o consenso de opinião pública, a qual sabemos que eram das pessoas que se incomodavam com as ações das profissionais do sexo e que acreditava que essas mulheres não faziam parte do contexto da classe média que eram comuns nos bairros localizados.

Helene (2015) relata sobre a atualidade do município, pois, ainda hoje existem outros pontos de prostituição em Campinas, porém, a maior parte das profissionais do sexo se encontra no bairro citado, que é considerado a maior zona de prostituição da América Latina. Além da atividade nas calçadas, existem dezenas de boates, casas de show erótico, rua apenas para travestis, pequenos motéis e bares. Dados do Centro de Saúde do território, no ano de 2018, indicou que trabalhavam cerca de duas mil profissionais do sexo no local, distribuídas em cerca de duzentas casas de prostituição.

A qualquer hora, diferentes dias da semana - sábados, domingos e feriados - o bairro está em funcionamento. O movimento é maior após o horário comercial, às sextas-feiras (quando a maioria dos trabalhadores recebem seus “vales” nas empresas) e no verão. Domingo de manhã, em geral, é o período de menor incidência de clientes (não por acaso, este é o horário reservado tradicionalmente aos almoços de família), e, por essa razão, tempo de descanso das meninas (Helene, 2015, p. 7).

Após cinquenta e um anos de existência o bairro se tornou um “mundo paralelo”, pois é prestado todo tipo de serviço no território, desde os básicos e comuns como supermercado, farmácias, bares, etc. Outro serviço que possui de grande quantidade são os salões de beleza, lojas de roupas e lingeries e entre outras que possuem como função o melhor exercício profissional das profissionais do sexo. Porém, por encontrarem os serviços no bairro, muitas vezes essas mulheres não se relacionam com a diversidade urbana encontrada em outros pontos da cidade, “seu direito à cidade é constantemente violado, impedindo-as de se apropriarem da cidade como cidadãs, sendo confinadas a circular, morar e trabalhar em uma área isolada” (Helene, 2015, p. 9).

2. Prostituição e trabalho

Temos como primícias o exercício da prostituição como trabalho, pois, é uma profissão que se dá na base da troca, de favores sexuais por dinheiro. É de um moralismo superficial causador de injustiças à negação de direitos aos profissionais cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena.

O cenário da prostituição é baseado em múltiplas expressões da violência a exemplo da ausência de liberdade de escolha quanto a seus clientes, utilização de seu corpo de forma não desejada, tentativas dos clientes de desrespeitarem as regras presentes no consumo do sexo, dentre outras violações. Corroborando que, as trabalhadoras não estão expostas apenas às violências físicas, mas estão suscetíveis a todo tipo de expressões da violência, principalmente a psicológica e financeira. Onde o Estado, cafetões e consumidores da prostituição legitimam as violações, justificadas como consequências do trabalho. Também apontam que, há uma marginalização que advém da falta de legalização da profissão a qual expõe as trabalhadoras em riscos e impede o acesso a direitos básicos de forma integral.

A violência de gênero também está presente na atuação profissional, pois, conforme já conceituado, violência de gênero engloba todos os atos diante dos quais se discrimina, ignora, submete e/ou subordina as mulheres nos diferentes aspectos do seu cotidiano. Sendo este, um acometimento material ou simbólico que afeta sua liberdade, segurança, intimidade e integridade moral e/ou física (Lisboa, 2014).

Sendo assim, torna-se necessário a discussão das relações de gênero dentro desse contexto, entendendo que “essa desigualdade e hierarquização entre os sexos são, em geral, justificadas por aspectos biológicos, isto é, pelo fato de homens e mulheres nascerem com algumas características especificas” (Pátaro e Mezzomo, 2014, p. 11), o autor continua afirmando que a base dessa hierarquização se dá por conta do androcentrismo, o qual é um pensamento que considera o homem como centro do universo, de forma a serem os únicos capazes e aptos a governar, redigir leis, estabelecendo justiça e único com poder de pensar racionalmente. Ou seja, a questão de gênero está relacionada às relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres, que obtém como resultado, a diferenciação dos papeis sociais a partir das diferenças sexuais (Pátaro e Mezzomo, 2014).

A sexualidade feminina está relacionada com a reprodução e não ao prazer, o que foge disso é visto como pecaminoso, sujo e vergonhoso. Já os homens, ao contrário das mulheres que é algo reprimido e negado, a sua sexualidade está intimamente ligada ao prazer e totalmente incentivado desde a infância. A diferença também está posta no âmbito da reprodução, o que somente a mulher pode realizar, de forma que esse acontecimento a priva de ser colocada no campo do trabalho formal. De forma que o seu espaço de trabalho se torna o lar, o que além de não ser algo reconhecido, a limita ao acesso de informações e execução da sua autonomia (Cabral e Diaz, 1998).

Afirma Barreto (2008) que, a desvalorização do corpo era associada em relação ao pecado nas sociedades tradicionais, mas na sociedade atual, além disso, está relacionado à condição trabalhista, pois “negar a indivíduos sua condição de trabalhadores implica a redução de suas possibilidades de inserção na sociedade como sujeitos plenos de direitos” (p. 80), dessa forma muitas vezes é negada à profissional do sexo a condição de trabalhadora por uma dominação do corpo, seja pelo sexo masculino, como a própria associação ao pecado e ao que é sujo/sem valor. Essas reflexões se tornam então pertinentes para análise da prostituição “inserida nas dimensões dos símbolos culturais materializados nas representações socialmente construídas” (Diniz e Queiroz, 2008, p. 7).

2.1. Movimentos feministas e a prostituição

A narrativa histórica demonstra a identidade social da mulher profissional do sexo, sendo construída e estruturada socialmente, como fonte de uma condição transgressora de regras e normas estipuladas pela sociedade para o exercício da feminilidade (Guimarães e Merchán-Hamann, 2005). De forma que, a prostituição é observada de maneira negativa e carregada de preconceito. Mas, é ignorado que, que o cotidiano dessas mulheres é perpassado pela violência, negligência de direitos e estigmatizações, que muitas vezes não possuem um fato para se pautar (Gois e Lima, 2013). Na qual a igreja, a sociedade e a família possuem grandes responsabilidades diante isso. Pois seja em qualquer uma dessas Instituições, existem dimensões e opiniões diferentes sobre esse fator social (Lagenest, 1975).

Como aborda Rodrigues (2010), há grupos que fazem a defesa do exercício dessa profissão como qualquer outra, com direito à escolha, cidadania e aos direitos humanos, também como a liberdade do seu corpo sendo respeitada; bem como, por outro lado, há um grupo que compreende a prostituição como uma forma de vitimização, onde a mulher está em uma vulnerabilidade social, sendo este o motivo que a impulsiona à entrada na prostituição.

Para o feminismo radical essa atividade profissional é marcada pela opressão masculina, de forma que a profissional do sexo se torna uma vítima, aumentando então muito mais as desigualdades que já se fazem presentes, ou seja, “se torna uma forma de naturalizar a situação e reafirmar o domínio do homem sobre a mulher, enfatizando que os corpos femininos sempre estiveram à disposição dos seus consumidores” (Vieira, 2014). Já para o feminismo liberal, as profissionais do sexo são consideradas livres e não pertencentes aos homens, onde a prostituição se torna “um ato de autodeterminação sexual, sendo um trabalho como outro qualquer” (Macedo e Amaral, 2005, apud Barreto, 2008, p. 82), mas não anulando a desigualdade, pois quando essa profissão é executada por um homem não existe a repreensão.

Sabemos que as profissionais do sexo podem realizar a escolha de atuação na profissão ou participarem dela por uma determinação social, mas, seja qual for o motivo que a inseriu na profissão, a mesma vivência as diversas desigualdades sociais, econômicas e políticas, ou seja, os resquícios gerados pela relação de tensão entre capital e trabalho.

A ação de se prostituir não é um problema, mas sim a exclusão que foi ou é gerada, assim como toda falta de reconhecimento e desamparo legal às profissionais, bem como, as consequências e a convivência social, o que também acarreta e gera as desigualdades por elas presenciadas (Nucci, 2015).

Apesar de ainda ser correlacionada à marginalização, se faz presente também a reivindicação dos direitos das profissionais do sexo para o exercício laboral de forma digna, com a efetivação e reconhecimento de sua cidadania (Guimarães; Merchán-Hamann, 2005). No imaginário coletivo, ainda se encontram pensamentos conservadores acerca dessa profissão e em grande parte são associados aos julgamentos morais gerando sentimentos de aversão, exclusão e violência (Gois e Lima, 2013).

É evidente que o grupo profissional mencionado necessita de um olhar mais profundo para a efetivação de seus direitos, onde há importância da qualidade de vida e busca por uma vida igualitária. Mas, isso não anula a atenção necessária para as possíveis violências também podem ser perpetradas pela regulamentação da profissão, pois pode aumentar e potencializar as explorações citadas acima, as quais devem ser banidas da sociedade, “para que todos pudessem ter livre arbítrio sexual e condições dignas de vida social” (Figueiredo e Peixoto, 2010, p. 200). seja por qual escolha ou motivo que a levou na inserção da profissão.

3. Metodologia da pesquisa

Foi realizada pesquisa exploratória que adotou a metodologia de pesquisa qualitativa, compreendendo que “a pesquisa qualitativa ocupa um reconhecido lugar entre as várias possibilidades de se estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos e suas intrincadas relações sociais, estabelecidas em diversos ambientes” (Godoy, 1995, p.21), dessa forma, tivemos como objetivo investigar as motivações, trajetórias de vida e social, problematizando sua inserção e representação no contexto social bem como a regulamentação da profissão e possíveis violências vividas no cotidiano. As entrevistas foram realizadas no formado de semi-estruturada, através da formulação de tópicos básicos, que se encontram em anexo, de forma que no decorrer da entrevista pudessem surgir informações de forma livre.

Para Triviños (1987) a entrevista semi-estruturada tem como fundamento questionamentos básicos pautados em teorias que se relacionam ao tema da pesquisa. O autor completa afirmando que esse tipo de entrevista favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações. Dessa forma, fica justificada a razão pelo fato desta pesquisa não recorrer a um número significativamente alto de participantes.

A pesquisa foi aplicada no bairro Jardim Itatinga, localizado na cidade de Campinas, São Paulo. As entrevistas foram com as profissionais do sexo que possuem o território como ambiente de trabalho. Onde o estudo foi realizado por meio dos discursos obtidos em encontros, conforme a dinâmica narrativa de cada um dos participantes. As entrevistas foram gravadas e transcritas, todas com a devida autorização através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que se encontra em anexo.

Dada à natureza de nosso instrumento de pesquisa, não visamos somente a descrição dos fenômenos sociais, mas também, a possível compreensão da totalidade, o número de entrevistados foram dois sujeitos, sendo ambos, indicado por um técnico profissional de uma Instituição Social – ONG, do território.

Para tanto, a pesquisadora solicitou que os sujeitos da pesquisa fossem do sexo feminino, atuantes como profissionais do sexo no mínimo há três meses, com idade superior a dezoito anos, mas sem distinção de raça, etnia ou condições sociais.

Fin da etapa inicial de coleta de informações, com entrevistas gravadas e transcritas na integra, foi realizado a análise dos dados coletados através do método de análise por categoria, onde as mesmas são empregadas para se estabelecer classificações. Foram construídas a partir da coleta de dados, de forma que, após a sua formulação, demos inicio a análise e à articulação com o resultado obtido do referencial teórico (Gomes, 1994).

4. Resultados

Como supracitado, a análise dos dados foi realizada através do método de análise de categoria, onde selecionamos duas mulheres profissionais do sexo atuantes no território do Jardim Itatinga – Campinas/SP. Denominadas nesse trabalho de Bruna e Gisele.

Os nomes acima são fictícios, resguardando então, a privacidade de cada depoente. As duas profissionais do sexo entrevistadas são mulheres que vivem realidades totalmente diferentes, porém, ambas vieram de outro município com a indicação de uma amiga. Uma se encontra há vinte e sete anos na profissão e outra há aproximadamente um ano e meio no Itatinga, apesar de vivenciado essa realidade anteriormente, porém em momentos esporádicos de vida.

Ao realizarmos a pesquisa de referencial teórico, já pudemos verificar que as supostas hipóteses não se enquadrariam em cem por centro das profissionais do sexo. Que, assim como muitas são inseridas na profissão por uma determinação social, muitas também podem escolher estar nessa profissão. Isso se concretizou quando realizamos as entrevistas com as depoentes, pois cada uma apresenta uma faceta desse contexto. Assim, se concretiza o que diz Rodrigues (2010), a prostituição possui diversas facetas de representações sociais, porém, em grande parte se faz real em sua dicotomia: o reconhecimento da profissão como qualquer outra, onde a mulher se empodera, escolhe entrar e permanecer dentro dessa profissão; e por outro lado a prostituição como aquela que vitimiza a mulher, onde sua inserção e permanência na profissão se dá através de uma determinação social, que muitas vezes acarreta à violência.

Gois e Lima (2003) também apresentam que, independentemente dessas escolhas/ motivações, o cotidiano das profissionais do sexo está perpassado pela violência, não só as que geram marcas, mas sim pelos estigmas contidos no senso comum, bem como a negligência dos direitos, tanto trabalhistas como de ser um indivíduo que possui suas escolhas respeitadas. A colocação desses autores se faz presente em nossa conclusão, pois pudemos ver que ambas as entrevistas, seja em maior escala ou não, sofrem a estigmatização da profissão.

Apesar de ambas estarem na profissão por uma determinação social, o antagonismo entre as depoentes se faz real quando, principalmente, apresentam a maneira que se reconhecem e os motivos que as mantém dentro da profissão. Em uma podemos ver que, apesar de chegar à cidade de Campinas muito nova, veio sem o intuito de trabalhar no comércio sexual, sua motivação era de gerar oportunidades para uma vida melhor aos pais, porém, hoje com vinte e sete anos de profissão, se reconhece como profissional do sexo e está inserida nas lutas por essa categoria. Toda sua família possui o conhecimento de sua profissão e por onde caminha deixa bem claro que “sou puta mesmo” (Bruna). Dessa forma, podemos reconhecê-la de forma tão empoderada que não paralisa nos estigmas e violências pronunciados a ela, mas pelo contrário, encontra impulso para lutar contra isso.

Por outro lado, temos Gisele, que também não migrou para Campinas com a intenção de se tornar profissional do sexo novamente, mas sim em busca de uma colocação no mercado de trabalho em outra área. Mas, sofreu os estigmas gerados pela sociedade capitalista, onde não encontrando emprego, achou na prostituição uma forma de ganhos financeiros. Podemos relembrar do que Nucci (2015, p. 133) disse “é certo que com menos pobreza haveria menos prostituição”, pois se tivesse encontrado oportunidade como manicure, a própria entrevistada verbaliza que não iria se inserir na atual profissão. Hoje sua motivação são os filhos, que diferente de Bruna, não possui o conhecimento do trabalho da genitora. Anterior a ascensão de ganhos, sua família esteve totalmente imersa às expressões da questão social, então por medo do ocorrido, continua na profissão.

Na primeira entrevista, podemos verificar que, as expressões da questão social vivenciada por elas estão relacionadas aos seus direitos que não são reconhecidos, Ferreira e Pereira (s/d) afirmam que todos os trabalhadores vivem nessa questão de desigualdade, sem os direitos que lhe são devidos realmente efetivo, porém ”contudo, as vulnerabilidades nas quais as profissionais do sexo estão inseridas permanecem durante e após sua atividade” (p. 6). Como dito, mesmo que por opção ao trabalho, a mesma vive as expressões da questão social em seu cotidiano, que mesmo sendo conhecida como a profissão mais antiga, ainda é rejeitada o status profissional a esta atividade (Serafim et al., 2002).

No segundo caso, as expressões da questão social já se faziam presentes em seu cotidiano antes mesmo de ingressar nessa atividade laboral. Rodrigues (2010) afirma que a miséria material é a grande responsável pela iniciação de mulheres à essa atividade, tornando-se um meio de sobrevivência. Não que neste caso anula a ausência de efetivação de direitos após a inserção na profissão, a diferença se dá, pois o individuo já estava vivendo essas expressões.

Além das questões trabalhistas as profissionais sofrem a estigmatização estruturada na sociedade brasileira. Onde muitas vezes só se é visto pelo mundo de fora da prostituição, a qual se refere pelo governo moral e estabelecido socialmente, esquecendo-se do mundo de dentro, que são valores e expressões internas, que muitas vezes se tornam antagônicos ou incompatíveis com os de fora (Castro, 1993, apud Gois e Lima, 2013). Assim, a prostituição é julgada através das ações morais da sociedade, não vendo e nem reconhecendo a mesma como um ser humano, que merece respeito e ter seus direitos diante as suas escolhas.

O feminismo radical alega que a prostituição aumenta as desigualdades de gênero, pois eleva o domínio dos homens sobre as mulheres, vendo que eles são os maiores consumidores dessa profissão, sendo então um repudio a esses movimentos por ser algo incompatível com a igualdade (Nucci, 2015). Dessa forma, se faz necessário lembrar que num contexto de prostituição feminina “serve para atender o prazer masculino, uma vez que em nossa cultura o sexo não é desonra para o homem” (p. 4). De forma que é marcada pela opressão masculina, onde a prostituta se torna uma vitima, aumentando então muito mais as desigualdades que já se fazem presentes, ou seja, “se torna uma forma de naturalizar a situação e reafirmar o domínio do homem sobre a mulher”, enfatizando que os corpos femininos sempre estiveram à disposição dos seus consumidores (Vieira, 2014).

Já para o feminismo liberal, é marcado pela atuação dos movimentos organizados das profissionais do sexo, são consideradas livres e não pertencentes aos homens, onde a prostituição se torna “um ato de autodeterminação sexual, sendo um trabalho como outro qualquer”, mas não anulando a desigualdade, pois quando essa profissão é executada por um homem, não existe a repreensão e estigmatização quanto à prostituição feminina (Macedo e Amaral, 2005, apud Barreto, 2008, p. 82).

Com isso, reforçamos mais uma vez a dicotomia entre as entrevistadas, para Bruna o cliente a vê apenas como uma prestadora de serviços, onde ele procura a profissional para a tal prestação. Afirmando também que as relações entre os clientes e ela se dá em respeito, de forma que, para melhor atende-los a mesma explica as condições e o que lhe é permitido durante o programa.

Como já apresentado, grupos a favor da regulamentação da profissão e que lutam pelos direitos das trabalhadoras sexuais, reconhece que o estigma existente socialmente é algo falso, de forma que a prostituição empodera a mulher, onde ela pode ser livre com todas as ações e autonomia sobre o seu corpo. Podendo escolher quando começar ou parar um programa, quando entra, fica ou sai da profissão, em contrapartida existem os que são contras, não partindo apenas do contexto moralista, pois acreditam ser uma ação de degradação da mulher, sendo uma ação que não empodera, mas escraviza e tornando-a um objeto de consumo, retirando sua condição humana, com a imagem de estar à venda, aumentando a opressão de gênero, pois torna a prostituta um objeto de dominação masculina (Rodrigues, 2010). Dessa forma, a relevância em saber como a prostituta se vê diante disso é muito grande, além de saber sobre a sua realidade em questão da violência ou empoderamento.

Bruna diz que nunca sofreu nenhum tipo de violência antes da profissão, o único relato de uma violência sofrida foi quando já estava dentro da profissão. Quando realizou aborto e precisou retirar o feto, informou que o médico a molestou, tocando-a de forma diferente. Ao questioná-lo acerca disso, ele a tratou com desprezo afirmando que ela já estava acostumada a receber este toque e que se ela quisesse denunciá-lo tudo bem, pois ela seria a mais errada por ter cometido o aborto. Apesar da afirmação do médico e de todo senso crítico que a entrevistada possui, ela não reconhece que esta violência, pode ter sido perpetrada pelo fato de ser uma mulher negra, pertencente à classe trabalhadora e para, além disso, uma mulher que está inserida no comércio sexual.

Diferentemente, a segunda entrevistada já possui um ciclo de violência que se iniciou desde que morava com sua mãe em sua cidade natal. Gisele foi estuprada por seu padrasto e sua mãe foi negligente quanto a isso, além do abuso financeiro que sofria de sua genitora, que após o rompimento com seu primeiro marido, voltou a morar com a mãe, que exigia todo o valor recebido da pensão alimentícia, porém, não considerava isso o suficiente, potencializando então esse abuso, pedindo com mais frequência uma quantia monetária maior. Sendo este também, um dos motivos que a fez se inserir dentro da profissão, ainda em Avaré. Por seus clientes, a mesma relata que nunca sofreu nenhuma violência, a única violência vivida atualmente como prostituta é a que já foi citada, que é a violência doméstica cometida por seu companheiro, que apesar de tê-la conhecido em um programa, como prostituta, hoje por ela continuar na profissão, o mesmo a trata com desprezo, inferiorizando-a e agredindo-a fisicamente.

Porém, assim como Bruna, se ela percebe que houve ausência de respeito em algum momento do programa, se posiciona e exige um tratamento como de ser humano. Dessa forma, podemos ver que, em questão do empoderamento dentro da profissão as duas entrevistas possui, pois independente de como elas próprias se vem exige respeito diante do seu trabalho.

Através do apresentado, podemos observar que, ter consciência das facetas existentes dentro da prostituição é de extrema importância. Onde não é possível estabelecer qual interpretação está correto ou não, ou qual é melhor escolha para a profissional do sexo, pois cada uma possui uma vida singular, não sendo possível se equiparar a nenhuma outra.

É preciso ter a compreensão que ambas são sujeitas. Tanto aquela que opta por se inserir e se manter na profissão, como aquela que está sendo vítima e que deseja estar fora desse contexto, qualquer profissional do sexo é um sujeito! Sendo ele um sujeito de direito, que precisa ser totalmente respeitado pelas suas escolhas e ajudado, caso necessite e queira uma submersão a algo novo.

Assim, compreendemos que, ambos os lados da faceta são vítimas de uma sociedade perversa, que acredita ter uma verdade absoluta, porém não reconhece que algo está errado. Que quer impor tais concepções sobre o outro, sem dar espaço e autonomia para suas escolhas, que fecha os olhos para aquilo que considera sujo, coloca suas mãos para trás para aquele que muitas vezes, desesperado, pede por socorro. Não podemos esquecer então, de forma alguma, que: a profissional do sexo é um ser biopsicosocial, um ser de direitos que necessita de respeito e compreensão

5. Discussão: profissionais do sexo e o COVID-19

A pandemia ocasionada pelo vírus COVID-19, foi extremamente inesperada, porém, a mesma também nos levou a iniciarmos debates mais profundos e críticos. “Alguns autores afirmam que, o fim da pandemia inaugurará uma sucessão de mudanças radicais no sistema capitalista, outros antecipam um hipercontrole totalitário pela vigilância digital de nossas ações” (Caponi, 2020).

“Mesmo que governadores de diferentes estados de Brasil tenham tentado adotar medidas de isolamento, a falta de coordenação do governo federal, a falta de diretrizes comuns, o jogo de informações cruzadas e contraditórias serviram de estímulo para desistir do isolamento e restringiram as possibilidades de controle. Existem imensas dificuldades que devemos enfrentar hoje, particularmente no Brasil, para construir uma política de gestão da pandemia que respeite os direitos humanos aceitando as necessárias restrições impostas pelo isolamento” (Caponi, 2020, p. 210).

Até o dia 15 de fevereiro de 2021, o número de pessoas contaminadas no Brasil pelo vírus SARS-CoV-2 (COVID-19) chegaram a 9.834.513.1 Em uma reflexão ampla, a pandemia tem causado efeitos significativos na vida da população brasileira. Assim, como mencionado por Caponi (2020), não temos um presidente que compreende a necessidade de olhar o novo modelo de sociedade em que nos encontramos. Nos próximos anos, o resgate do processo histórico acerca da pandemia de COVID-19, vai ser lembrado por ceifar mais de dois milhões de vidas em todo o mundo, além de que, no Brasil, também será recordada por levar centenas de milhões de pessoas para a miséria e a pobreza. Afetou a renda de diversas pessoas do país e o recorte mais vulnerável são as mulheres, pobres, pretas e periféricas, que na grande maioria são mães-solos e chefes de família.

As profissionais do sexo, não estão excluídas desses impactos, pois ou elas já estavam inseridas nessa profissão ou se inseriram, neste momento de desgoverno no país.

Acerca da pandemia, essas mulheres precisam manter a sua subsistência e de sua família, porém, mesmo com as medidas de proteção colocadas pelo Conselho Nacional de Saúde,2 essas mulheres, continuaram seu trabalho. Além do grande risco de contaminação do vírus, a renda dessas mulheres teve uma queda, pois o número de clientes diminuiu, tendo em vista que, a execução do trabalho, não se dá de outra forma, sem ter o contato com o outro. E nos casos que se colocam à risco, os valores pelo trabalho sexual é extremamente baixo e precário.3

Além de que, caso essas trabalhadoras sejam contaminadas, em muitos casos, devido a rotina de trabalho e o medo do estigma e violência estrutural, essa população se distancia dos serviços de saúde. Sendo a falta de acesso aos cuidados, uma expressão da violência contra essas trabalhadoras. Que além de toda repercussão gerado pelo trabalho, ainda sofrem pela invisibilidade na sociedade, então, como meio de sobrevivência, a omissão da profissão é muito presente neste contexto. Porém, me questiono, a mesma profissão que me coloca em risco é a profissão que eu tenho que omitir, pois se não, mais uma violência pra essa trajetória?

Dessa forma, é de suma importância problematizar como a profissional do sexo se vê no contexto social atual e quais as suas motivações e trajetórias que as inseriram e as mantém na profissão, tendo em vista as violências que perpassam seu cotidiano. Mas também, torna-se válida a compreensão no recorte da saúde dessas trabalhadoras, tendo em vista, as ações, cuidados executados e as consequências ocasionadas durante a pandemia causada pelo COVID-19.

Por recomendação da Organização Mundial de Saúde - OMS, as melhores medidas para a prevenção do contagio do vírus, são o uso de máscara e o distanciamento social. Porém, sabemos que no exercício profissional da prostituição, torna-se impossível utilizar-se de tais medidas. Como supracitado, as trabalhadoras sexuais possuem o regime informal de trabalho, onde seu ganho se baseia na quantidade de clientes atendimentos mensalmente. Dessa forma, acatar as medidas indicadas e ficar em casa, ocasiona a perda de renda, ocasionando então, uma maior vulnerabilidade e violação de direitos destas mulheres. Que muitas vezes, são mães solo ou chefes de família. Mais uma vez, podemos observar a invisibilidade destes trabalhadores, pois, sabendo de toda repercussão advinda da pandemia, quais as ações o Estado brasileiro adotou para a sobrevivência dessas mulheres? Claro que, este olhar não deve ser apenas para as profissionais do sexo, mas assim como todos os outros trabalhadores autônomos.

No Brasil, desde o ano de 2020, foi criado o auxílio emergencial, para instaurar medidas de proteção social e atenuar a crise econômica decorrente aos efeitos causados pelo COVID-19 na Pandemia de COVID-19 no Brasil. Porém, os valores não correspondem aos ganhos anteriores destes trabalhadores, o valor máximo repassado pelo benefício, foi de R$ 1.200,00 no ano de 2020, porém, em 2021 o teto do benefício se encontra em R$ 375,00. Isso ocasiona diversas reflexões e críticas, como um governo entende a possibilidade de subsistência, com este valor? Torna-se impossível, tendo em vista a grande crise em que o Brasil se encontra, não apenas financeira, mas também, social.

Como alternativa, uma parcela pequena de profissionais do sexo, aderiram a estratégia do sexo online/virtual. Porém, os ganhos não correspondem ao trabalho presencial, sendo necessário mais horas de trabalho para minimamente se manter. Mas sabemos, que a possibilidade de sexo online não é abrangente a todas as pessoas, devido aos recursos tecnológicos. Diante desse cenário, estariam potencialmente mais vulneráveis as trabalhadoras sexuais idosas e aquelas que exercem a prostituição em zonas de rua, como é o caso do bairro Itatinga.

Diante da estrutura da sociedade capitalista presente no século XXI, a prostituição é perpassada diversas expressões da questão social. Conforme Gois e Lima (2013) que afirmam, a mesma é vista de modo negativo, que não se trata apenas de uma situação pontual e isolada, pois não podemos nos esquecer do cotidiano que levam, que é totalmente atravessado pela violência. Faltam-lhes acesso aos direitos fundamentais, são estigmatizadas e raramente são abordadas com preocupação mínima como um cidadão comum e isso se potencializou durante da pandemia da COVID-19.

Defende-se aqui um contexto de saúde pública que reconheça a natureza emergente e mutável do trabalho sexual frente a desastres e contextos de crise, o que significa programas e políticas apropriadas para esse grupo populacional. Futuras estratégias para a promoção da saúde podem levar em consideração os códigos vigentes nos anúncios para abordagens relacionadas à realidade do mercado sexual. As iniciativas de saúde pública devem refletir e incorporar esse conhecimento.

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Notas

1. Mais informação: https://covid.saude.gov.br/.
2. Mais informação: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1132-recomendacao-n-027-de-22-deabril-de-2020.
3. Mais informação: https://www.agenciamural.org.br/especiais/pretas-e-pobres-prostitutas-se-arriscam-emmeio-a-pandemia
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