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A tríade ensino-pesquisa-extensão nas universidades públicas brasileiras sob o olhar CTS. A perspectiva de Renato Dagnino sobre a relação universidade-sociedad
La triada enseñanza-investigación-extensión en las universidades públicas brasileras bajo la mirada CTS. La perspectiva de Renato Dagnino en la relación universidad-sociedad
The Teaching-Research-Extension Triad in Brazilian Public Universities under the STS perspective. The view of Renato Dagnino on the Relationship between University and Society Andréia Pereira de Araújo Matos e Luís Fernando Soares Zuin *
A tríade ensino-pesquisa-extensão nas universidades públicas brasileiras sob o olhar CTS. A perspectiva de Renato Dagnino sobre a relação universidade-sociedad
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 17, núm. 50, pp. 65-83, 2022
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
Recepción: 01 Enero 2021
Aprobación: 07 Abril 2021
Resumo: O presente artigo pretende fazer uma breve síntese de algumas reflexões do pesquisador brasileiro Renato Dagnino acerca da relação universidade-sociedade, com foco na crítica à atuação do ensino, pesquisa e extensão das universidades públicas brasileiras, sob a perspectiva do campo CTS. A proposta é revisitar e sintetizar as principais ideias de Dagnino, trazendo sua análise sobre os problemas da atual agenda científico-tecnológica brasileira e apresentando possíveis direcionamentos para a mudança do cenário atual nesse campo. Espera-se obter uma ampla visão sobre o pensamento de Dagnino acerca dos problemas, desafios e possibilidades de atuação da universidade pública brasileira no presente contexto, contribuindo para a abertura de caminhos para se pensar e se fazer uma universidade transformadora, dialógica e solidária em países periféricos como o Brasil.
Resümee: Este artículo sintetiza las reflexiones del investigador brasilero Renato Dagnino acerca de la relación universidad-sociedad, especialmente aquellas sobre el rol de las universidades brasileras en los campos de la enseñanza, la investigación y la extensión, todo ello bajo la perspectiva de los estudios CTS. Se propone revisar las ideas principales de Dagnino, acercar su análisis de los problemas de la agenda científico-tecnológica actual en Brasil y presentar posibles orientaciones que permitan pensar un cambio en ese campo, con el propósito de obtener una postura amplia sobre su pensamiento acerca de los problemas, los desafíos y las posibilidades de actuación de la universidad pública brasilera en su contexto, contribuyendo a generar caminos y alternativas para alcanzar una universidad transformadora, dialógica y solidaria en países periféricos como Brasil.
Breve introdução
De acordo com um relatório do ano de 2017, que trouxe informações sobre o panorama da produção científica no Brasil no período de 2011-2016, desenvolvido e publicado pela Clarivate Analytics em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), as universidades públicas eram responsáveis, até aquele momento, por cerca de 95% da pesquisa científica desenvolvida no Brasil. Esse estudo trouxe dados detalhados sobre o contexto da produção científica no nosso país, mostrando a boa colocação das instituições públicas de ensino superior brasileiras nos rankings que avaliam a produção científica mundial.
O bom desempenho das universidades públicas brasileiras nas avaliações globais de produção científica possui forte contraste com a atual situação de desmonte vivenciada por estas instituições. Podemos citar, a critério de exemplos, algumas das principais ofensivas contra a universidade pública brasileira na atualidade: bloqueios drásticos de verbas, que vem prejudicando o funcionamento básico das universidades; corte crescentes de bolsas de pesquisa para os cursos de mestrado e doutorado; desmonte de instituições como a Capes e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e o desrespeito à autonomia universitária, com nomeações arbitrárias de reitores não eleitos por suas respectivas comunidades acadêmicas. O Ministério da Educação (MEC) vem sofrendo importantes cortes ao longo dos últimos anos. Em 2019, o MEC sofreu um contingenciamento de R$ 5,8 bilhões de suas despesas discricionárias, que são os gastos não obrigatórios, como a verba para investimentos em melhorias diversas, pagamento de despesas básicas como água e luz, entre outras necessidades. O maior impacto ocorreu nas universidades federais, que tiveram 30% de seu orçamento discricionário bloqueado (Escobar, 2019; Heringer, 2021).
A pandemia da COVID-19 vem piorando ainda mais o cenário. Para os próximos anos, é previsto um aumento significativo nas demandas das universidades, como a necessidade cada vez maior de conexão rápida e estável de internet por toda a comunidade acadêmica. Além disso, haverá a necessidade de uma reestruturação dos serviços prestados em função da situação gerada após a pandemia, como a adequação de suas atividades às exigências dos protocolos sanitários que ainda poderão estar vigentes no curto e médio prazo. Portanto, é imprescindível que sejam garantidos recursos para as políticas de assistência e permanência estudantil nas universidades públicas, que representam hoje os principais esforços rumo à democratização do acesso ao ensino superior no país. Outro ponto a se considerar é a necessidade de investimento em pesquisas relacionadas à pandemia e suas consequências. E já que as universidades públicas são, inegavelmente, as principais instituições produtoras de pesquisa científica no Brasil, os recursos públicos que possibilitam o desenvolvimento e ampliação dessa produção, incluindo insumos para laboratórios e bolsas acadêmicas, precisam ser garantidos (Heringer, 2021).
No presente projeto político do Brasil, o que se observa é uma intensa propaganda de desmoralização das instituições públicas de ensino e pesquisa, além do movimento de negacionismo científico. O mais grave neste contexto é que o forte discurso contra evidências cientificas e até mesmo contra os cientistas está sendo fortalecido durante a pandemia da COVID-19 e sendo promovido, principalmente, por entidades governamentais. Este cenário, envolto na disseminação em massa de informações enganosas a respeito das vacinas, da necessidade de distanciamento social e do uso de máscaras de proteção, traz graves riscos à saúde da população e ao controle da situação pandêmica, especialmente em países situados na periferia do capitalismo, como o Brasil.
O combate às informações falsas é um complexo desafio que os tempos atuais nos impõem, mas existem algumas ações que podem reduzir o impacto da “pandemia de fake news”. Uma delas é o fortalecimento da relação entre a universidade e a sociedade. É possível promover o combate ao obscurantismo a partir do diálogo aberto e contínuo das universidades com a população geral, realizando um contraponto ao perigoso cenário negacionista em que vivemos, através de um processo constante de reflexão e troca de saberes entre a universidade e a comunidade a respeito do conhecimento científico e não-científico, suas metodologias, limitações e desafios. É necessário pensar em alternativas que reduzam o poder do negacionismo científico e reafirmem a credibilidade de cientistas e de instituições de pesquisa, discutindo a relação universidade-sociedade, a partir de reflexões oriundas das diferentes áreas do conhecimento, especialmente no campo de estudos CTS, que é justamente o lugar de se pensar as relações entre ciência, tecnologia e sociedade.
Nos estudos que vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos, o pesquisador brasileiro Renato Dagnino faz uma crítica contundente às agendas de pesquisa, ensino e extensão praticadas pelas universidades públicas brasileiras, refletindo sobre a parcela de culpa da própria universidade na sua crise de identidade e de desconfiança perante a sociedade. O caráter ainda elitista e distante dos problemas sociais brasileiros silencia o sentido verdadeiramente público da universidade e a deixa vulnerável a interesses de mercados e de governos. Dagnino traz estratégias que podem mudar o cenário de desgaste da universidade, a partir de uma tríade ensino-pesquisa-extensão transformadora e em diálogo constante com a comunidade, articulando conhecimentos acadêmicos e não acadêmicos em parceria a movimentos sociais e outras entidades na busca por soluções para os problemas concretos da população brasileira, renovando e oxigenando a própria razão de ser da universidade pública no país.
Este texto se encaminhará com uma breve contextualização da trajetória do estudos CTS e logo depois discorrerá acerca das reflexões trazidas por Dagnino (2008, 2009, 2011, 2014, 2016, 2017, 2019), sobre os equívocos da universidade pública brasileira, seus desafios e as potencialidades de transformação de suas agendas científico-tecnológicas.
1. Ciência, tecnologia e sociedade (CTS): uma breve contextualização
No âmbito da discussão proposta pelo campo CTS, vemos que a abordagem clássica da ciência, tecnologia e sociedade, que foi predominante até meados dos anos 50 do século XX, era baseada na crença de que a ciência era um conhecimento livre de suspeitas e praticamente inquestionável. Essa concepção tradicional e essencialista reconhecia a ciência como uma verdade imune a enganos e tinha como algumas de suas bases fundamentais a neutralidade, o mito do benefício infinito e o mito da fronteira sem fim (Palacios, 1994, 2003).
A suposta neutralidade do conhecimento científico era baseada na ideia de que a ciência e a tecnologia não se relacionavam diretamente ao contexto em que eram geradas e que a “boa ciência” deveria prezar por se manter isolada e livre de influências políticas e sociais. O mito do benefício infinito era o entendimento de que a ciência e a tecnologia conduziriam para a melhoria do bem estar social, em qualquer situação. A trajetória da ciência e tecnologia era vista como linear e caminharia, sempre, em direção ao máximo desenvolvimento do conhecimento humano (Palacios, 1994). Já o mito da investigação sem limites defendia que o conhecimento científico é autônomo, independente e desvinculado das possíveis consequências práticas que ele pode gerar na natureza e na sociedade (Palacios, 2003). Esse pensamento traz a ideia de que as mudanças científico-tecnológicas são “inocentes” em relação aos efeitos ambientais, econômicos, sociais e culturais que geram nas diferentes sociedades e no planeta.
No entanto, a partir do início dos anos 1960, com a queda do otimismo pós Segunda Guerra e o fortalecimento de movimentos sociais e políticos, a visão essencialista da ciência começa a mudar. Velho (2011), ao fazer uma contextualização sobre a evolução dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, afirma que os movimentos de trabalhadores que perdiam seus empregos por conta da novas tecnologias, a crescente deterioração do meio ambiente, a concentração de renda e a desigualdade social eram indicativos de que a ciência não estava isolada da sociedade e que seu desenvolvimento deveria ser questionado, avaliado e controlado. Surgem, então, diferentes percepções sobre a autonomia da ciência e seus impactos negativos na sociedade, além de discussões sobre o quanto a ciência e a tecnologia poderiam estar impregnadas de valores sociais, ideologias e interesses de determinados grupos.
O contexto político e social em que se encontrava a sociedade norte-americana nos anos de 1960 e 1970 fez com que os estudos CTS ganhassem cada vez mais a atenção de pesquisadores dedicados à sociologia da ciência. Esses estudos enumeraram argumentos para a defesa da participação do público, como a ideia de que as decisões técnico-científicas não são neutras, já que surgem a partir de interesses de diferentes atores sociais, havendo, portanto, influências de governos e grandes corporações nas escolhas envolvendo o desenvolvimento científico (Palacios, 1994, 2003; Velho, 2011).
A ideia colocada no campos CTS era a de que as transformações científico-tecnológicas afetariam diretamente a vida de todos e, por isso, todos deveriam conhecer abertamente os aspectos que envolvem as descobertas científicas e participar ativamente das decisões técnicas sobre tais descobertas. Essas abordagens estavam preocupadas com a democratização das decisões em torno dos avanços em ciência e tecnologia, visando combater a ideia defendida, especialmente por algumas elites e comunidades científicas de países desenvolvidos, de que o público atrapalharia o avanço linear da ciência, que deveria ser autônoma e objetiva (Palacios, 1994, 2003).
Alguns dos trabalhos de pensadores que formaram a base para a teorias sobre a sociologia da ciência, nos décadas de 1960 e 1970, foram Thomas Kuhn (2013) e David Bloor (2009), que trouxeram a ideia de que era preciso investigar não apenas os instrumentos e mecanismos científicos, mas também o próprio 'conteúdo' da ciência. Para eles, a atividade científica deveria ser pensada como a resultante de práticas sociais e não como um campo neutro e livre de influências culturais. A ciência, portanto, poderia estar sujeita a uma análise a partir da sociologia.
A partir desses estudos iniciais, surgem várias teorias e correntes de pensamento no campo CTS, como as teses forte e fraca da não-neutralidade da ciência, o determinismo tecnológico, o construtivismo social e a teoria crítica da tecnologia. As diversas correntes do campo CTS buscam, sob diferentes ângulos, refletir acerca dos aspectos culturais, as consequências ambientais e as necessidades dos diversos atores sociais envolvidos no desenvolvimento de uma nova tecnologia, além das diferenças de recursos humanos e financeiros de cada agrupamento social, para que sejam definidas políticas científicas e tecnológicas adequadas a cada local (Velho, 2011):
“A nova concepção de ciência que está sendo delineada admite que existem muitas formas diferentes de conhecimento e que estas se relacionam de forma variável e assimétrica. Isto não quer dizer que não exista qualquer forma de autoridade epistêmica, mas esta será sempre o resultado de uma produção coletiva, com os seus momentos de conflito, que permitirá determinar, de maneira situada, a hierarquia dos saberes e da respectiva autoridade em função da situação, dos problemas, das prioridades e das consequências esperadas de intervenções associadas a esses saberes” (Velho, 2011, p. 145).
Outro importante pensador, Bruno Latour (1994, 2012), em seus estudos sobre os modos de existência e a teoria Ator-Rede, defende a influência de múltiplos atores em todos os setores da vida humana, associados em variadas redes. Para Latour, todos os fatos, teorias, crenças, conhecimentos e instituições só existem dentro de redes, onde diferentes atores humanos e não-humanos interagem e se influenciam mutuamente. Esta perspectiva de interdependência e influência entre os seres coloca a obra de Latour em uma dimensão ontológica, e não epistemológica, além de abrir um debate político, ambiental e até religioso, pois defende que tudo o que acontece se dá nas associações, nas redes e nas interações entre seres humanos e não-humanos (Lemos, 2015).
Para Dagnino (2008), Latour, ao conceituar a “rede de atores”, reforça a ideia de um olhar conjunto para a ciência e a tecnologia. A ciência não se definiria por simples teoria, nem a tecnologia se resumiria apenas em aplicação do conhecimento, mas ambas seriam componentes de redes, das quais também fazem parte outros atores, como seres e objetos importantes à determinada atividade humana. As teorias, que são o resultado da atividade científica, não poderiam ser isoladas dos artefatos, que são as tecnologias. Para o autor, se conseguirmos romper esses limites entre ciência, tecnologia e sociedade, seria possível mudar o olhar da agenda de pesquisa
de países periféricos, como o Brasil, para a busca de soluções para os problemas da nossa realidade social baseadas em valores de solidariedade, justiça social e respeito ao meio ambiente, contribuindo para alavancar um modelo alternativo de desenvolvimento (Dagnino, 2008), ou seja, “aquele que aspire a uma sociedade diferente teria que estar disposto a imaginar uma maneira de fazer ciência distinta da atual” (Dagnino, 2014, p. 78).
2. A crítica de Dagnino sobre universidade pública, pesquisa e extensão
Ao longo de seus estudos, Dagnino (2008, 2009, 2011, 2014, 2016, 2017, 2019), critica o determinismo da tecnociência. Tal determinismo entende que o avanço científico e tecnológico seria, invariavelmente, a solução para os problemas econômicos e sociais do mundo. Dagnino percebe que esta corrente acabou contribuindo, e ainda contribui, para a crença numa suposta neutralidade da ciência e a ideia de que a tecnologia traria, necessariamente, o fortalecimento dos trabalhadores, o que levaria ao enfraquecimento do capitalismo e, inevitavelmente, ao desenvolvimento e inclusão social. Para os crentes no determinismo tecnológico, o avanço em ciência e tecnologia conduziria a dinâmica social e econômica e sua evolução:
“Ao entender o ambiente de produção científico-tecnológico como separado do contexto social, político e econômico, [o determinismo tecnológico] torna impossível a percepção de que os interesses dos atores sociais de alguma forma envolvidos com o desenvolvimento da C&T possam determinar sua trajetória. Essa ideia leva à impossibilidade de desenvolvimentos alternativos da C&T que coabitem em um mesmo ambiente. Ou seja, só existe uma única C&T ‘verdadeira’. As diferenças contextuais geográficas, culturais, éticas, entre outras, ficariam em um plano secundário, subsumidas numa preocupação marginal com a ‘adaptação’” (Dagnino, 2008, p. 22).
Como vemos em Dagnino (2014), muitas instituições ainda colaboram para a visão determinista da ciência e da tecnologia. Uma dessas instituições é a universidade. Para o autor, a visão da ciência como um objeto socialmente construído, não é, ainda, completamente acolhida pela comunidade universitária:
“A grande maioria dos professores da universidade, sejam de direita ou de esquerda, entende a ciência como livre de valores, como algo neutro e intrinsecamente positivo. Isso, em parte, se deve ao fato de que foi o marxismo um dos responsáveis pela fundação da ideia do determinismo tecnológico, que é exatamente oposta à ideia de que é o contexto social, econômico e político que determina o tipo de conhecimento científico e tecnológico gerado. Em sua versão mais ortodoxa, tradicional, aquela que de alguma forma orientou as experiências do socialismo real, considerava o desenvolvimento da tecnologia (das ‘forças produtivas’) algo inexorável, contínuo e linear” (Dagnino, 2014, p. 26).
Dagnino parece concordar com o pensador Boaventura de Sousa Santos que, em 2008, já falava sobre a crise de identidade e de hegemonia que a universidade pública viria a passar nas últimas e nas próximas décadas. Para Santos, o desinvestimento dos Estados na universidade pública e um direcionamento crescente para a sua mercantilização podem ser considerados os pilares de um projeto global destinado a transformar a universidade pública em um campo destinado ao capitalismo educacional (Santos, 2008). O autor, em grande proximidade com os argumentos de Dagnino, aponta que, somando-se às forças externas hostis à permanência da universidade pública, a atuação da própria universidade contribuiu enormemente para a crise dos últimos tempos:
“Não podemos ocultar ou minimizar o papel do ‘inimigo interno’, o fato de as universidades terem se isolado socialmente [...] pela insensibilidade e arrogância que revelaram na defesa de privilégios e de interesses corporativos socialmente injustos; pela ineficiência aberrante no uso dos meios disponíveis, tornando-se presa fácil de burocracias rígidas, insensatas e incompreensíveis; pela falta de democracia interna e a sujeição a interesses e projetos partidários que, apesar de minoritários no seio da comunidade universitária, se impuseram pela força organizativa que souberam mobilizar; e, finalmente, pela apatia, o cinismo e o individualismo com que muitos docentes passaram ao lado destas realidades como se elas e a instituição que as vivia não lhe dissessem respeito” (Santos, 2008, p. 22).
No mesmo direcionamento, Santos continua:
“O conhecimento universitário [...] foi, ao longo do século XX, um conhecimento predominantemente disciplinar cuja autonomia impôs um processo de produção relativamente descontextualizado em relação às premências do quotidiano das sociedades. Segundo a lógica deste processo, são os investigadores que determinam os problemas científicos a resolver, definem a sua relevância e estabelecem as metodologias e os ritmos de pesquisa” (Santos, 2008, p. 40).
Na mesma linha de pensamento de Santos está Dagnino, já que ambos acreditam que a defesa da universidade pública só fará sentido se for acompanhada de uma profunda reforma institucional, na qual a universidade não tenha uma prática apenas visando atender as demandas de mercado, mas sim as demandas sociais. Dagnino (2009) acredita que as universidades públicas brasileiras e suas agendas de pesquisa e ensino, que baseiam seus trabalhos em critérios de qualidade de países avançados, acabam não avaliando com clareza a relevância de suas pesquisas para o contexto do Brasil. Para o autor, é possível afirmar que as políticas de ciência e tecnologia brasileiras atendem basicamente aos interesses da própria comunidade acadêmica. O modelo dessas políticas, baseado na ideia de que existiria uma relação linear entre ciência, tecnologia e desenvolvimento social, não permite que a comunidade de pesquisa perceba seu papel na construção de uma proposta de transformação social.
Para que esse panorama seja mudado, é necessário que a prática de se pensar, fazer e difundir o conhecimento científico e tecnológico no Brasil seja alterada.
A universidade brasileira, para Dagnino (2014), se conduz por um suposto caminho linear de evolução, que tem início na pesquisa básica, se encaminha para a pesquisa aplicada, que gera o avanço tecnológico e que, por fim, traz o desenvolvimento socioeconômico, num caminho reto e sem desvios, que nos levaria, automaticamente, ao bem-estar da sociedade. A comunidade de pesquisa ainda vê, de certa forma, como sua única obrigação a produção de conhecimento, o que traria uma certa indiferença às consequências da aplicação desse conhecimento para a comunidade como um todo. Essa cultura, bastante presente na universidade pública ainda nos dias de hoje, não vê que é obrigação da universidade produzir um conhecimento que melhore, de fato, as condições de vida da sociedade brasileira, já que é a própria sociedade que mantém e justifica a existência da instituição universitária (Dagnino, 2014):
”Condicionada pelos problemas estruturais de nossa condição periférica, e focalizada na qualidade, na pesquisa de ponta realizada nos países centrais, a universidade busca emular um padrão de fazer ciência que pouco tem a ver com nossa realidade. E tenta legitimar-se não com nossa sociedade, com nossas unidades produtivas, com nossa floresta, com nossos minérios [...]. Ao contrário, busca identificar-se, legitimar-se, com seus pares no exterior. Quanto mais publicar nos journals da moda, reconhecidos pelo Science Citation Index, e conformar-se ao mainstreamda pesquisa dos países avançados, melhor para nossa comunidade de pesquisa” (Dagnino 2014, p. 30).
Ainda na forte crítica ao modo de se fazer ciência no Brasil, ele retrata com clareza o cotidiano do professor e pesquisador que faz sua carreira nas instituições de ensino e pesquisas brasileiras:
“O professor pesquisa, pesquisa, pesquisa, orienta, orienta, orienta, publica, publica, publica e, a partir de um determinado momento, em função do prestígio acadêmico que granjeou, passa a ser um chefe de departamento, um diretor de unidade, um reitor etc. Esse mecanismo de acumulação de poder, baseado no prestígio, não tem nada a ver com algo racional, com uma capacidade técnica para decidir sobre qual tipo de atividade de pesquisa e docência é mais adequada para a sociedade” (Dagnino, 2014, p. 31).
Com essa prática, a universidade confirma e fortalece, de forma aparentemente sutil e naturalizada, o mito da neutralidade da ciência, o que para o autor traz uma consequência grave: “nossa universidade é disfuncional, ela não serve nem para a classe dominante nem para a classe dominada, é uma universidade que está no limbo” (Dagnino, 2014, p. 33). Esse panorama contribui para a enorme perda de legitimidade da universidade pública perante o público, devido ao baixo impacto que gera na vida de pessoas das classes sociais mais baixas e a relevância questionável da pesquisa que desenvolve, tanto para a sociedade em geral, como para as grandes empresas.
Algumas correntes dentro do tema “P&D na América Lática” consideram que os países latino-americanos deveriam contemplar como estratégia de desenvolvimento científico-tecnológico e fortalecimento de suas pesquisas, o caminho trilhado pelos países desenvolvidos, “para evitar que se viesse a utilizar tecnologias inadequadas às nossas condições socioeconômicas e possibilidades” (Dagnino, 2011, p. 9). O autor diverge desta ideia e acredita que a geração de uma dinâmica de conhecimento científico e tecnológico alternativa à dos países centrais e suas multinacionais é uma condição necessária para que os países da América Latina sejam capazes de fazer frente às demandas econômicas e sociais de sua região (Dagnino, 2011, 2017, 2019). Para ele, a solução não é entrar na cadeia de desenvolvimento dos países centrais, mas criar nossa própria cadeia, de acordo com nossas características de região periférica.
Dagnino (2016), ao realizar uma reflexão sobre o desenvolvimento da política científico-tecnológica brasileira, traz o discurso do ministro da ciência e tecnologia empossado em 2012, o pesquisador Marco Antônio Raupp. Pertencente à elite científica nacional, o ministro acompanhava de perto, naquela época, a elaboração da política científico-tecnológica brasileira, inclusive como ocupante de cargos e posições de liderança em comunidades de pesquisa. Suas propostas acerca da pesquisa realizada na universidade pública explicitavam um desejo de alinhamento desta com as empresas privadas. O ministro possuía, claramente, uma agenda bastante distante do projeto político da esquerda e do direcionamento progressista que vinha sendo imprimido pelo governo em outros setores:
“Logo após sua posse, o novo ministro deu uma entrevista reproduzida em várias publicações em que ressaltava a ‘necessidade aumentar a colaboração entre a geração de conhecimento no meio científico e o desenvolvimento de pesquisa nas empresas privadas’. Nas suas palavras: ‘Uma das necessidades que se impõem é a construção de um modelo que faça a aliança entre o conhecimento científico e a economia’” (Dagnino, 2016, p. 49).
O ministro considerava que existia um desvio na função da universidade pública: ela não oferecia o conhecimento que a empresa brasileira estaria a demandar. “Respondendo à provocação de um entrevistador expressa na pergunta “Falta pesquisador no Brasil?”, o ministro responde “Sim. Nossa pós graduação se concentrou em formar pessoas para as próprias universidades” enquanto “precisamos de gente para trabalhar nas empresas” (Dagnino, 2016, p. 50). Para Dagnino, o ministro parecia desconhecer o fato de que nossos pesquisadores já estão, e muito, alinhados com os desejos das grandes empresas privadas do Brasil e do mundo. Em outro trecho da entrevista diz o ministro: “estabelecer uma parceria com o setor produtivo” e “mostrar às universidades que elas têm grandes vantagens em entrar na problemática do desenvolvimento do país com as empresas [...] ‘dará consistência à pesquisa tecnológica no país’” (Dagnino, 2016, p. 50).
Tal fala do ministro de ciência e tecnologia deixa claro o viés mercadológico que se pretendia inserir no ensino e na pesquisa feita pela universidade pública brasileira. Para Dagnino (2016), as posições defendidas por lideranças governamentais acerca do desenvolvimento em ciência e tecnologia no Brasil já demonstram, sem necessidade de maiores argumentos, o tamanho da anomalia da política de P&D brasileira, em que caberia à universidade pública a tarefa de realizar um ensino e pesquisa voltados à obtenção de resultados úteis para a empresa privada.
Desse contexto não fazem parte apenas o ensino e a pesquisa, mas também a extensão universitária. A Constituição Federal de 1988, através do artigo 207, instituiu que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (Brasil, 1988, art. 7). A indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão significa que esses três pilares devem dialogar entre si e trabalharem juntos para que se cumpra a função social da universidade. No entanto, acompanhando de perto o cotidiano destas instituições, percebe-se que são áreas ainda distantes e pouco dialógicas entre si. O que se vê são departamentos separados que pouco interagem (Botomé, 1996).
De acordo com a definição proposta pela Política Nacional de Extensão Universitária, elaborada pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras (FORPROEX), em 2012, a “extensão universitária, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre a universidade e outros setores da sociedade” (FORPROEX, 2012, p. 15). Vemos, na própria definição de extensão, que ela tem a função de promover um diálogo transformador entre universidade e sociedade, o que parece ser o principal meio de se concretizar o papel social da universidade. No entanto, para Dagnino (2014), a extensão, tal como é hoje, traz uma ideia que se assemelha à prática da caridade, do assistencialismo e da filantropia e acaba se transformando em mera prestação de serviço às atividades empresariais. O ator social “universidade” estende um conhecimento que ele produz a um determinado grupo, que é composto por outros atores sociais, sem a participação destes, ou sem mesmo ter a preocupação de saber que espécie de conhecimento estes atores querem e precisam. Essa lógica traz a ideia de que o simples processo de “oferta e demanda” seria suficiente para dar conta do contexto em que a atividade de extensão se insere.
Botomé (1996) tem uma crítica alinhada com a de Dagnino a respeito dos problemas da tríade ensino-pesquisa-extensão. Para o autor, é preciso reorientar as potencialidades do “tripé” ensino-pesquisa-extensão para uma efetiva transformação social ou, pelos menos, para “uma mudança que não seja apenas cosmética ou que mantenha a base e a natureza das relações de dominação e de desequilíbrio nas relações de poder na sociedade” (Botomé, 1996, p. 82). Para ele, é preciso redimensionar o papel da pesquisa cientifica e do ensino superior, as relações deles entre si e com a comunidade. Assim como Dagnino, Botomé acredita que o conceito de extensão poderia ser melhor definido como parte integrante da pesquisa e do ensino, não uma parte isolada e desconectada:
“O acesso ao conhecimento que a universidade produz e domina deve ser o aspecto mais importante para orientar os trabalhos que possam ser feitos sob o rótulo da “extensão”. Tal acesso deve ser considerado uma característica do ensino (para o ensino ser um meio de acesso ao conhecimento ele próprio precisa ser acessível a todos) e uma etapa inerente ao próprio processo de produção do conhecimento (pesquisar)” (Botomé, 1996, p. 181).
Esse panorama parece ser explicado pelo fato de que, apesar de suas boas intenções, a universidade e seus pesquisadores não têm observado de modo atento para o fato de que a ciência e a tecnologia são socialmente construídas, ideia amplamente debatida, desde as décadas de 1960 e 1970, pelos estudiosos do campo CTS. A universidade deve assumir o fato de que suas pesquisas “são o resultado de uma contínua “negociação sociotécnica” entre diferentes atores sociais e seus projetos políticos frequentemente antagônicos” (Dagnino, 2014, p. 301). Portanto, elas reproduzem e estão impregnadas pelos valores e interesses dominantes e são muito mais do que apenas resultados da aplicação de metodologias científicas. Ainda no mesmo raciocínio, Dagnino (2014) diz que, devido a sua formação tradicionalmente pautada na crença da neutralidade e determinismo da tecnologia e da ciência, esses atores não entendem que os critérios tecnocientíficos não são imparciais e são determinados socialmente pelas características do ambiente em que são produzidos.
Por terem sido criados dentro desse panorama, é possível compreender porque esses atores não conseguem perceber o quanto estão distantes da realidade brasileira e, em consequência, não buscam alterá-la. Esses profissionais (professores, pesquisadores, gestores) são ensinados a manipular a ciência e tecnologia de uma forma que “naturaliza sua dinâmica, obscurece os interesses que a presidem ou aceita suas implicações deletérias em nome de um pretenso “avanço” científico” (Dagnino, 2014, p. 301). Como consequência, esses atores contribuem para manter e reforçar, no escopo do ensino, pesquisa e extensão, uma concepção de tecnociência socialmente neutra, contribuindo para a manutenção da atual superestrutura ideológica de nossa sociedade. O autor defende que a preocupação que a academia deveria ter é com o desenvolvimento social no Brasil, pois o país permanece na lista dos mais desiguais do mundo. Esse panorama, por si só, já demanda ações diretamente voltadas à melhoria da nossa condição social.
Para Dagnino (2017), se entendermos que desenvolvimento é diferente de crescimento econômico, poderemos concentrar as agendas de pesquisa nos interesses da população brasileira. O autor nos ajuda a diferenciar os dois conceitos: crescimento econômico é o deseja do mercado e das empresas privadas, pois é o que gera lucro para estas; desenvolvimento significa algo maior, requer uma vontade coletiva, é o processo de elevação do bem-estar de todo o conjunto da sociedade, e não apenas dos grandes empresários. Desenvolvimento requer preocupação com as gerações futuras, com as questões ambientais envolvidas, portanto não faz sentido aceitar a ideia de que o conhecimento que a universidade pública deve produzir seja aquele que proporciona o sucesso empresarial. A universidade pública, em sua mais pura razão de ser, deve estar mais preocupada com o desenvolvimento do que com crescimento econômico. A universidade, como bem público sustentada por impostor pagos pela população, deve, ao invés de se esforçar para servir às elites, orientar-se para um “potencial tecnocientífico para a formação de profissionais e a realização de pesquisa concernentes ao componente cognitivo associado às demandas materiais e culturais da maioria da população” (Dagnino, 2017, p. 39).
A principal crítica do pensador à ciência produzida na universidade pública brasileira é a de que a nossa produção e difusão de conhecimento científico e tecnológico atuais não tem capacidade para elaborar um estilo de desenvolvimento alternativo e sustentável que corresponda à realidade brasileira e às necessidades de seu povo. As agendas de pesquisa e extensão no Brasil não proporcionam, ainda, equilíbrio econômico, tão pouco ameniza as consequências da desigualdade social e da degradação ambiental. Então, como mudar esse cenário? Dagnino propõe alguns caminhos.
3. Possíveis soluções propostas por Dagnino
A estratégia para redefinir as prioridades da ciência e tecnologia brasileira e elaborar um novo modelo de atuação passa por dois pontos importantes: o entendimento da comunidade de pesquisa (professores, alunos e demais membros da comunidade acadêmica) em relação à necessidade de se produzir e disseminar conhecimento para a inclusão social e dar voz aos diferentes atores sociais que buscam um novo modelo de compreensão da ciência e tecnologia e seus impactos na sociedade (Dagnino, 2009). Para o autor, o cientista deveria ser formado para ser capaz de atuar junto a movimentos sociais através de ações de docência, pesquisa e extensão, com a solução de problemas habitacionais, saneamento básico, violência urbana, saúde pública e das inúmeras consequências da desigualdade e concentração de renda.
O conhecimento técnico-científico pode e deve ser utilizado como forma de enfrentar esses problemas. No entanto, a pesquisa, o ensino e a extensão, da maneira como têm sido produzidos e disseminados, parecem não ser o mais adequado para tanto. Por isso, Dagnino (2009, 2019) sugere uma educação CTS no ensino básico e superior, tanto para o corpo discente como o docente, para o entendimento, por parte de alunos e professores, das questões sociais envolvidas no desenvolvimento em ciência e tecnologia. Essa educação deve ser voltada para discussão e criação de tecnologias e formas alternativas de desenvolvimento e renda, como as tecnologias sociais, a economia solidária e tecnociência solidária.
Nesse aspecto, Dagnino (2009, 2014) define as tecnologias sociais como produtos, métodos ou processo criados para solucionar algum problema específico, atendendo critérios de baixo custo, processo simplificado, fácil aplicação e com relevante nível de impacto social. Essas tecnologias são projetadas em conjunto aos saberes locais da comunidade que as utilizarão, para que a própria comunidade possa fazer a gestão dessas tecnologias, de forma independente, e solucionar seus próprios problemas de maneira sustentável, contribuindo para o desenvolvimento de populações vulnerabilizadas e marginalizadas. As tecnologias sociais, atuando junto à economia solidária, trariam algum nível de solução às inúmeras questões que envolvem a relação Estado-sociedade e as políticas públicas nacionais. E para iniciar esse trabalho, deve-se começar pela conscientização da comunidade científica e dos gestores públicos para a promoção de uma nova “cara” para institutos de pesquisa e universidades brasileiros (Dagnino, 2009).
Como exemplo de projetos bem sucedidos no quesito tecnologia social e economia solidária, que vêm sendo desenvolvidos na América Latina na área de extensão universitária, Dagnino (2014) traz o caso das incubadoras tecnológicas de cooperativas populares e os bancos comunitários. Essas iniciativas, que fazem parte de organizações como a Rede de Tecnologia Social, as Redes de Economia Solidária, entre outras, agregam movimentos sociais, setores do governo, ONGs, entidades privadas e universidades públicas. Essa rede que liga as universidades e centros de pesquisa aos movimentos sociais e outras organizações que trabalham pelo direitos de cidadania das classes excluídas, muitas vezes compartilham com a descrença na capacidade da ciência e da tecnologia em lidar com os impactos sociais e desequilíbrios ambientais que o próprio avanço científico tem provocado (Dagnino, 2014). Para o autor, esses empreendimentos solidários tem capacidade de:
“Orientar diretamente as receitas provenientes de sua operação para a remuneração de trabalhadores, sem a necessidade de remunerar a propriedade do capital, e por serem estes os excluídos da economia formal, tenderão a promover o desenvolvimento social de forma eficiente e eficaz, por estarem mais próximos dos problemas enfrentados pela sociedade e que devem ser equacionados com elevado grau de adequabilidade. E também efetiva, por possibilitarem, aos hoje excluídos, as oportunidades de geração de trabalho e renda que permitirão o desenvolvimento social” (Dagnino, 2014, p. 294).
As propostas de inclusão social elaboradas por Dagnino supõem a geração de conhecimentos que sejam coerentes com os valores e necessidades reais dos grupos excluídos pela superestrutura do capitalismo, conhecimentos imprescindíveis para alavancar processos sustentáveis, autônomos e autogeridos, capazes de romper com o ciclo da desigualdade social. Conhecimento que só será relevante se for uma construção coletiva, reunindo diferentes atores, especialmente movimentos sociais e comunidades de pesquisa, além de ONG e órgãos governamentais, que já têm percebido a urgência de uma nova forma de construção e aplicação do conhecimento científico.
Um desenvolvimento social constante requer a criação de condições sustentáveis e autônomas para que atividades de produção de bens e serviços, predominantemente empreendidas por médias e grandes empresas possam ser realizadas por empreendimentos solidários. Para isso, será fundamental o fortalecimento de cadeias produtivas do setor informal e sua transformação em economia solidária (Dagnino, 2014, 2017). Mas, para que isso ocorra de fato, é também necessário que esses setores excluídos, representados por diferentes movimentos sociais, possam se envolver e contribuir ativamente com a produção e aplicação do conhecimento, levando-se em conta seus valores, interesses e saber popular. A mobilização de grupos produtivos vulnerabilizados, como cooperativas, associações, pequenos produtores rurais, pequenas fábricas e outros empreendimentos solidários em sinergia com movimentos sociais e universidades é o que irá gerar uma política de enfrentamento ao sistema econômico vigente (Dagnino, 2014).
Na sua mais recente obra, “Tecnociência Solidária: um manual estratégico”, Dagnino (2019) elenca os conceitos e práticas da economia solidária e da tecnociência solidária como estratégias essenciais para um desenvolvimento humanamente mais justo e ambientalmente sustentável na América Latina e no Brasil. Ao conceituar tecnociência solidária, Dagnino diz:
“Tecnociência solidária é a decorrência cognitiva da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de tipo voluntária e participativa), provoca uma modificação no produto gerado cujo ganho material pode ser apropriado segundo a decisão do coletivo (empreendimento solidário)” (Dagnino, 2019, p. 19).
Para Dagnino (2019), a tecnociência solidária vem como um importante conceito que pode fortalecer a tecnologia social e a economia solidária, visando satisfazer uma demanda cognitiva que, no contexto atual brasileiro, apenas gestores, docentes e discentes de escolas e universidades públicas seriam capazes de realizar. A profundidade da transformação que esses grupos terão que iniciar em suas instituições faz com que ela não possa ser realizada através da atual forma de se fazer ciência. Os pilares básicos da universidade pública terão que ser modificados para fazer frente ao tamanho e complexidade do desafio colocado. Na visão de Dagnino (2014), esse processo terá que estar atento à atividade de extensão, e não apenas ao ensino e à pesquisa.
Dagnino (2019) vê na extensão universitária um dos caminhos possíveis para que a tecnociência solidária seja praticada e traga uma ciência mais humana e dialógica, através de ações conjuntas entre universidade e sociedade. Segundo o autor, a universidade pública tem o dever de identificar demandas sociais e promover atividades de extensão que possam usar todo o potencial científico e tecnológico existente na própria universidade. Para isso, é imprescindível que os membros dessas instituições estejam conscientes de que precisam direcionar suas pesquisas para a solução de problemas locais e urgentes.
Algumas mudanças nesse sentido já vêm sendo colocadas em prática. No ano de 2018, foi criada uma normativa em torno da extensão universitária, a Resolução nº 7, de 18 de dezembro de 2018, que estabelece as diretrizes para a extensão nas universidades brasileiras. Tal resolução traz em seu artigo 4º: “as atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação, as quais deverão fazer parte da matriz curricular dos cursos” (Brasil, 2018, art.4). Essa necessidade de adequação dos cursos de graduação para introduzir a atividade de extensão universitária em suas matrizes curriculares de forma mais evidente tem o objetivo de valorizar e fortalecer a extensão no cotidiano das universidades e aprimorar a relação ensino-extensão e consequentemente, o diálogo entre a universidade e a comunidade externa.
Retomando as ideias descritas até aqui, a seguir apresentam-se alguns dos caminhos propostos por Dagnino, ao longo de seus estudos, para alterar o cenário atual são:
1. Incluir disciplinas voltadas para o campo CTS nas escolas de ensino básico e nas universidades, tanto para alunos quanto para professores;
2. Desenvolver pesquisas e atividades de extensão sobre a temática da inovação e desenvolvimento para inclusão social nas universidades;
3. Realizar ações de qualificação de pessoal, por meio de treinamentos e cursos de extensão para pesquisadores, membros de movimentos sociais, de entidades privadas e de ONGs, sobre temas relacionados à tecnologia social, economia solidária e tecnociência solidária;
4. Garantir que o conhecimento gerado alcance, de fato, a sociedade. Para isso, deve-se utilizar e aperfeiçoar metodologias de trabalho coletivo e difundir o conhecimento através de seminários, publicação de documentos, artigos e livros e projetos de extensão participativos.
Dagnino acredita que a mudança no cenário começará a ocorrer “à medida que os interesses (políticos, econômicos) e valores (ambientais, morais, étnicos, de gênero) dos movimentos sociais possam se expressar com maior clareza e força” (Dagnino, 2009, p. 146) e serem comunicados às universidades brasileiras. Essa comunicação precisa ser melhor desenvolvida e as demandas sociais absorvidas pelas políticas públicas de ciência e tecnologia no Brasil.
Considerações finais
O presente texto explorou as ideias do pesquisador Renato Dagnino a respeito da problemática do papel social da universidade pública brasileira e suas agendas de pesquisa, ensino e extensão das últimas décadas. Como foi observado no decorrer do artigo, Dagnino defende que existe uma crise de identidade e legitimidade da universidade perante a sociedade e que isso é causado pelo distanciamento entre o trabalho realizado pelas universidades e os problemas concretos da população. Existe, ainda hoje, uma visão elitista da universidade pública, que produz ciência centrada nos interesses de grandes corporações e de países desenvolvidos.
Para Dagnino, a universidade pública brasileira e seu corpo acadêmico precisam superar a crença no determinismo tecnológico e na neutralidade da ciência, crenças ainda vigentes, ainda que estejam presentes de uma forma sutil e naturalizada no ambiente universitário. A universidade deve olhar além de seus muros e modificar suas agendas de pesquisa, atuando de forma eficiente junto a grupos excluídos econômica e socialmente, que são populações invisíveis e silenciadas por diversos setores da sociedade. Visto que a universidade pública é um bem comum de todos os brasileiros, ela precisa refletir e contribuir, de maneira efetiva, para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, através de um diálogo e troca de saberes constantes com os diferentes grupos populacionais.
Dagnino vê na extensão universitária um dos possíveis caminhos para que a universidade pública mude sua trajetória e sua cultura de pesquisa. O alinhamento dos currículos universitários, incorporando as recentes legislações acerca da extensão brasileira, e a atualização da agenda de pesquisa em torno de um maior olhar sobre os problemas concretos da realidade brasileira são passos importantes para alavancar o desenvolvimento do Brasil, além de recuperar a legitimidade social da universidade pública e para que os investimentos de recursos públicos concedidos a essa instituição façam sentido para a sociedade como um todo, mas principalmente para a população que se encontra à margem do capitalismo.
Como vimos com Dagnino (2014, 2019), a gama temática de pesquisas científicas precisaria ser ampliada e a maneira de se realizar as pesquisas deveria incluir o diálogo e a interação com os atores sociais que seriam impactados com seus resultados. Um bom nível de sustentabilidade econômica e ambiental de empreendimentos solidários necessita de modelos de produção de bens e serviços diferentes das que têm predominado. Essas demandas precisarão ser elaboradas pelas universidades e institutos de pesquisa junto aos atores sociais que podem protagonizar essas mudanças. O movimento de conscientização da necessidade de se viabilizar a interação entre a universidade e os movimentos sociais, para que juntos realizem ações de desenvolvimento social, é uma demanda urgente. E, segundo o próprio Dagnino, esse movimento precisa ser realizado o mais urgente possível, para que a universidade fortaleça seu papel transformador, através de um conjunto ensino-pesquisa-extensão socialmente relevantes.
Considerando-se a integração universidade-sociedade um importante desafio do campos CTS, a extensão universitária e conceitos como tecnologia social, economia solidária e tecnociência solidária surgem como uma possibilidade de transformação social através do conhecimento produzido na universidade. Essa transformação social pode ocorrer através de práticas voltadas para problemas reais da população, com a sinergia entre diferentes conhecimentos: acadêmicos, não acadêmicos, saberes populares e saberes locais. É possível observar como um dos grandes desafios da universidade pública brasileira conseguir, de fato, que a ciência e tecnologia produzida em seu ambiente se aproxime da vida real das pessoas.
Além disso, a extensão universitária pode contribuir para amenizar as dificuldades de grupos em vulnerabilidade social em situações extremas, como de uma pandemia, através de um envolvimento e diálogo constantes para se conhecer e refletir sobre as necessidades específicas dessas populações e traçar estratégias para compartilhar o conhecimento produzido na universidade e, junto aos saberes desses grupos, alcançar possíveis soluções para os diferentes problemas existentes. A universidade tem a oportunidade de colaborar para atenuar as graves consequências desse momento atual e pôr em prática seus fundamentos. Algumas iniciativas nesse sentido estão sendo praticadas por diferentes universidades brasileiras, mas ainda pode-se dizer que são projetos isolados. Essas práticas precisam se fortalecer e se multiplicar. Será que as universidades brasileiras vão conseguir vencer esse desafio?
Bibliografía
Arendt, H. (2002). La vida del Espíritu. Buenos Aires: Paidós.
Bernal, J. D. (1964). Historia Social de la Ciencia. La Ciencia en la Historia. Barcelona: Ediciones Península.
Haldane, J. B. S. (1923). Daedalus or Science and the Future. A paper read to the Heretics. Nueva York: Cambridge University.
Shapin, S. (2000). La Revolución Científica. Una interpretación alternativa. Barcelona: Paidós.