Dossier-La mirada iberoamericana
Educação CTS/CTSA ainda é tema para discussão?
¿Sigue siendo un tema de discusión la educación CTS/CTSA?
Is STS/STSE Education still a Topic for Discussion?
Educação CTS/CTSA ainda é tema para discussão?
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 17, núm. 50, pp. 123-129, 2022
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
Contextualizando
Estamos em maio de 2022, um período histórico cujo desfecho não sabemos ainda como irá terminar. A invasão da Ucrânia pela Rússia, sem uma razão objetiva e justa, criou uma onda de solidariedade em, praticamente, todos os países do ocidente e levanta questões nas crianças e jovens às quais os pais, professores e sociedade em geral tem dificuldade em responder. Será admissível manter um conflito armado e sacrificar tantas pessoas inocentes, património natural e edificado, à custa de tecnologia bélica cada vez mais sofisticada? A tecnologia serve para destruir ou para criar novo conhecimento e contribuir para o bem e progresso da humanidade? No dia em que termino este texto completam-se 90 dias de atrocidades em terras da Ucrânia, um país do leste da Europa, tão perto daquele onde nasci, vivo e trabalho, Portugal.
Mas se este acontecimento mobiliza alguns países, outro acontecimento afeta todos: a pandemia COVID-19 é de cariz mundial e está ainda ativa, apesar de passarem mais de dois anos sobre o seu aparecimento e das campanhas de vacinação alargada. O impacto da pandemia na educação está a ser objeto de estudo em todo o mundo. Discute-se o papel da escola, dos professores, das metodologias de ensino, dos recursos didáticos e da socialização no desenvolvimento cognitivo, emocional, social e cultural dos estudantes e, ainda, do tempo de recuperação das aprendizagens que ficaram por fazer. Constata-se já a afetação da saúde mental de estudantes e professores resultante de períodos longos de confinamento e do recurso a tecnologias de ensino a distância. Nas palavras de muitos responsáveis políticos assume-se que poderemos estar perante uma geração comprometida, em aprendizagens e competências básicas, que os sucessivos confinamentos não permitiram alcançar, acentuando diferenças enormes entre setores sociais. Antes da pandemia havia 250 milhões de crianças fora da escola. Com a pandemia esse número subiu sendo, no entanto, ainda impossível dizer quanto.
Mas este mês de maio faz-nos lembrar outro mês de maio, Maio de 1968, um ícone das lutas estudantis em França que se tornou um movimento político com repercussões em muitos países, ao nível da renovação de ideais e valores e de uma cultura jovem, valorizando as artes e a filosofia, lutando por um ensino mais justo, pela abolição de desigualdades sociais de todo o tipo e repudiando a guerra e os regimes autoritários e totalitários, a favor da democracia, com repercussão em outros setores da sociedade. Foi também na década de sessenta do século XX que a difusão da pílula anticoncecional introduziu uma revolução profunda no reconhecimento dos direitos das mulheres ao seu próprio corpo. Passados mais de 50 anos sobre estas grandes manifestações sociais, vivemos atualmente uma situação dramática a nível sanitário, climático e também bélico, para além das desigualdades sempre existentes, a nível mundial, no acesso a alimentos, à saúde e à educação.
O desenvolvimento científico, tecnológico e social nos últimos 50 anos foi de tal modo acentuado, que os jovens de hoje pouco conhecem sobre como era o modo de vida quando os seus pais e os seus professores nasceram e, muito menos ainda, o dos seus avós. Terão sido, sobretudo estes, que assistiram à transmissão da chegada, com sucesso, da Apollo 11 à Lua, em julho de 1969. Tratou-se, na época, de um prodígio tecnológico que fez, praticamente, esquecer todos os outros onze astronautas que lá chegaram depois de Neil Armstrong, nas missões seguintes, desenvolvidas até dezembro de 1972, ou daqueles que habitam a Estação Espacial Internacional, desde o ano 2000, revezando-se periodicamente para manter em funcionamento esse importante laboratório espacial.
Apesar do desenvolvimento das sociedades, questionado por pensadores e académicos como tal, as atrocidades existem e o Planeta finito e cada vez mais frágil torna-se, a passos largos, inabitável para muitas espécies animais e vegetais levando à sua extinção. Cumprir os Acordos de Paris, iniciados em dezembro de 2015, sobre as alterações climáticas e a resolução das Nações Unidas sobre a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável são propósitos que devem guiar políticas e práticas educativas, apesar de muitos considerarem tais metas estarem a ser, cada vez mais, propósitos inatingíveis.
Ciência como bem público
O conhecimento está entre os bens públicos mais poderosos, pois tem sido a inspiração, o estímulo e o agente sobre o qual se tem construído o progresso material e social da humanidade.
A ciência como um bem público mundial, posição assumida por muitos pensadores e investigadores de diversos domínios, é, também, a posição do Internacional Science Council (ISC), explicitada num documento próprio publicado em novembro 2021. A palavra “ciência” é utilizada pelo ISC para referir a organização sistemática do conhecimento que pode ser explicado racionalmente, refutado contra a realidade e escrutinado pelos pares. Inclui as ciências naturais, as ciências sociais, as humanidades, a medicina, a saúde, a informática e as ciências da engenharia.
A ciência lida com a dúvida e o conhecimento científico é, por natureza, provisório. A investigação científica apenas reduz a incerteza, mas não a elimina. Sendo a ciência um bem público, a sociedade global é sua benificiária. Questiona-se, por vezes, as implicações do conhecimento científico. No entanto, a maioria das descobertas científicas são eticamente neutras. A natureza do seu uso é que pode colocar problemas éticos. Quase todas as descobertas científicas podem conter riscos e benefícios. Exemplos atuais destas situações colocam-se sobre aplicações da inteligência artificial, tecnologias de sistemas de vigilância ou uso de materiais e artefactos em bioterrorismo. Há uma tendência em considerar como investigação útil aquela que é impulsionada pela resposta a problemas atuais e, por isso, suscetível de ser financiada. Embora tal perspetiva seja relevante, importa não esquecer que a investigação alimentada pela curiosidade, a chamada ciência fundamental, é imprescindível para reforçar a reserva de conhecimento necessária à compreensão de problemas da humanidade. Recorde-se a investigação que esteve na base da criação da vacina mRNA contra a infeção sintomática por SARS-CoV-2.
O conhecimento da ciência, articulado com outros saberes, permite compreender a natureza e a forma do empreendimento científico e tecnológico da humanidade, o qual torna cada época distinta de épocas anteriores, naquilo que se faz e, sobretudo, na forma como se pensa cada situação singular e as múltiplas inter-relações existentes entre vários domínios. É neste contexto que tem lugar a afirmação de que a ciência faz parte do património das mais importantes aquisições intelectuais da Humanidade e, por isso, faz parte da cultura em sentido lato. Mais, a ciência é muito mais do que um corpo estruturado de conhecimentos validados e (re)construídos ao longo dos tempos, é uma forma de pensar e de compreender. Reconheçamos, também, que a ciência é feita de tentativas de falsificação. Não é feita de certezas.
O movimento Ciência Aberta é a manifestação contemporânea da evolução progressiva da própria ciência, tornando acessível a toda a sociedade os resultados e conhecimentos alcançados. Foi isso o que aconteceu com a resposta científica mundial à pandemia COVID-19, na cooperação internacional para a criação das vacinas.
Relevando a importância fundamental das ciências básicas (biologia, química, física, geologia, matemática) para alcançar a Agenda 2030 e os seus 17 ODS, foi declarado 2022 o Ano Internacional das Ciências Básicas para o Desenvolvimento Sustentável (IYBSSD-2022), com o objetivo de aumentar a consciencialização sobre a importância das ciências básicas para o desenvolvimento sustentável. A conferência inaugural terá lugar na sede da UNESCO, em Paris, no próximo mês de julho. As Isabel P. Martins 126 Revista CTS, vol. 17, nº 50, julio de 2022 (123-129) comemorações decorrerão até 30 junho 2023. Esta grande iniciativa é apoiada por muitas organizações científicas (iybssd2022.org). Defende-se maior acesso à informação, mais educação em ciências básicas, financiamento das ciências básicas e generalização da Ciência Aberta. As ciências básicas devem ser fonte de diálogo internacional e de paz, de modo a ciência poder ser vista como um bem público global.
Educação em ciências e ensino CTS/CTSA
Pensar a educação numa perspetiva comparativa com o passado ou pensar a educação de hoje numa visão prospetiva são posições bem distintas, ambas importantes para quem se dedica à educação, seja no domínio da investigação, seja no domínio da docência. Aliás, as duas visões estão, ou deveriam estar, profundamente interligadas: conhecer o que foi feito e saber projetar o futuro.
A visão retrospetiva da educação em ciências está amplamente retratada em muitos estudos académicos e em relatórios de organismos nacionais e internacionais publicados. A orientação CTS/CTSA tem sido, pelo menos ao nível de políticas educativas, um marco que procura afirmar-se, embora se discuta quão distantes estão ainda os resultados práticos das orientações preconizadas. Hoje, neste texto, não iremos por aí. Interessa mais prospetivar a educação em ciências, embora tal exercício seja profundamente condicionado pela visão das sociedades de hoje e a nossa própria visão do conhecimento.
Os Relatórios da UNESCO, periódicos e prospetivos sobre a educação, elaborados pela Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação, constituída de novo para cada relatório, são considerados documentos centrais para investigadores, políticos e professores, dado a educação ser um dos direitos básicos e um dos pilares para a paz e o desenvolvimento sustentável. O último relatório, publicado em novembro 2021, Reimaginar nossos futuros juntos – um novo contrato social para a educação, coordenado por H. E. Sahle-Work Zewde e António Nóvoa, assenta no reconhecimento das profundas desigualdades existentes, quer nos padrões de vida de setores distintos da sociedade, quer no direito de todos a usufruir de sistemas democráticos justos. Também neste relatório se considera que a educação é a ferramenta que nos permite alcançar maior justiça e equidade, mas para que tal possa, de facto, conduzir as sociedades, a própria educação deve ser reformulada. Fortalecer a educação como um esforço público e um bem comum é fundamental. Um novo contrato social para a educação terá de unir esforços de modo a tornar possível a articulação entre conhecimento e inovação e, naturalmente, relevar o papel dos professores nesse empreendimento.
Relatórios anteriores da UNESCO foram documentos marcantes nas épocas que se seguiram, no plano das orientações de políticas educativas.
O primeiro, Aprender a Ser: o mundo da educação hoje e amanhã (1972), coordenado por Edgar Faure, alertou para o risco das desigualdades, privações e sofrimentos da humanidade e enfatizou a necessidade da aprendizagem ao longo da vida. Este terá sido um dos primeiros relatórios, há 50 anos, a chamar
aprender é um projeto inacabado e não deve estar confinado, apenas, à educação formal de obtenção de diplomas e graus académicos.
O segundo, A Educação: um tesouro a descobrir (1996), coordenado por Jacques Delors, apresenta e defende uma visão integrada da educação, apoiada em quatro grandes pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Só abarcando estas quatro dimensões, a educação poderá preparar as gerações que, no futuro, terão de resolver problemas ainda não conhecidos. Estava-se, na altura, próximo do fim do século e antevia-se a revolução social criada por novas formas e sistemas de comunicação, mas enfatizava-se a importância de não considerar a educação apenas como o conhecimento de saberes canónicos.
Mais recentemente, em 2015, Repensando a Educação: rumo a um bem comum global? co-coordenador por Amina J. Mohammed e W. John Morgan, é o primeiro relatório do século XXI, baseado na consciencialização de que o mundo atual é caraterizado por novos níveis de complexidade e de contradição. A educação especialmente orientada deverá ser a base para se alcançarem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), recolocando cada pessoa no seu lugar em relação aos outros e à natureza.
A educação em ciências, um dos domínios da educação generalista de todos na maioria dos países e, para muitos, uma componente de formação especializada, deve ter isso em consideração. Economias verdes e descarbonização do planeta devem ser dimensões a ter em conta na formação científica dos estudantes e desde muito cedo, naturalmente de forma adequada ao nível etário e de escolaridade. Estes temas devem ser considerados nos planos curriculares, enquanto princípios, nos programas disciplinares e interdisciplinares, como temas, e nas práticas letivas enquanto orientadoras de aprendizagens a alcançar. Aprender ciências vai muito além de conhecer conteúdos canónicos. Orientar a educação em ciências numa perspetiva de cultura científica, permitindo a compreensão das grandes questões de cada época e de épocas anteriores, bem como muitos dos desafios e preocupações que se projetam para o futuro, é um propósito da educação CTS/CTSA.
Se hoje falar, defender ou praticar a educação em ciências com orientação CTS/CTSA é, para alguns, uma visão do passado, pois outras ‘orientações’ surgiram, estamos longe de concordar com tal. Praticar um ensino de ciências deste tipo exige que, em cada momento, se tenham em consideração problemas atuais, sejam eles locais, nacionais e/ou globais, e compreender os desafios que eles trazem de novo, em relação aos do passado e, sobretudo, como devem ser articulados os conceitos das várias áreas científicas para lhes dar uma resposta clara, adequada ao nível etário, e desprovida de preconceitos ou de falsas interpretações.
Há 20 anos escrevíamos sobre a insatisfação causada pelo modo como o ensino das ciências era praticado, não acrescentando nos estudantes uma visão humanista do conhecimento científico. Referíamo-nos, na época, a um ensino de ciência canónica, desprovido de uma dimensão cultural e social. Terá havido uma mudança substancial em sala de aula, apesar do crescimento enorme de estudos de investigação? Não havendo números globais, mesmo regionais, não é, no entanto, descabido afirmar que a situação não está resolvida, dada a proliferação de recursos didáticos refletindo visões de ensino e de aprendizagem das ciências não consentâneas com um quadro de orientação CTS/CTSA.
A relação ciência, tecnologia e sociedade está presente na discussão que se desenvolve à volta de muitos fenómenos, permitindo também estabelecer a diferença entre conhecimento científico e conhecimento comum, bem como a diferença entre linguagem científica e linguagem do dia-a-dia. Mas, para que isso aconteça, também através da escola, é necessário aumentar o interesse dos alunos pela ciência, desenvolver a literacia científica numa perspetiva de envolvimento público com a ciência. Desenvolver formas de pensamento que permitam alcançar competências de análise, de síntese, de pensamento crítico sobre questões socio-científicas veiculadas constantemente, nem sempre corretamente, pela comunicação social e amplamente difundidas pelas redes sociais, tem de ser um propósito da educação em ciências. Tomar como objeto de estudo as múltiplas relações entre conhecimento científico e aplicações tecnológicas de base científica, tendo em conta as implicações possíveis, deve ser, também, um propósito claro da educação científica.
Falar de educação em ciências CTS/CTSA é falar de uma escola viva no seu tempo, fazendo com que os estudantes reconheçam o valor do conhecimento acrescentado para a compreensão do mundo e antevendo, também, os efeitos, no futuro, de ações que ficaram por fazer no presente. É, também, falar de currículo, de programas disciplinares ou de espaços de formação que não se limitam uns aos outros, que interagem, que se complementam numa visão interdisciplinar. Os problemas e as situações não são definidos por disciplinas. As interpretações é que, muitas vezes, o são, sem que exista preocupação de ajudar o estudante a compreender por que razão assim o é.
É consensual, na educação CTS/CTSA, a necessidade de mudar currículos estáticos, assentes em cascatas de conceitos e factos, reforçadas cada dia com novos conhecimentos, para currículos que desafiem a imaginação, colocando problemas aos alunos. No entanto, a mudança não é isenta de questões. Se importa apostar no desenvolvimento de competências é necessário saber justificar que competências deverão ser privilegiadas e quais os conteúdos centrais que devem ser contemplados. Mas que competências são essenciais? Como podem ser desenvolvidas? Que tipo de ensino requer o desenvolvimento dessas competências? Como podem ser avaliadas?
Esta posição não significa que estamos a advogar a ausência de aprendizagens conceituais, mas tão-só a defender a necessidade de reorganização curricular mais consentânea com princípios e valores de educação CTS e de educação para desenvolvimento sustentável.
Compreender que nenhum povo ou geração tem o direito de gastar todos os recursos do planeta ou colocá-los a níveis de insustentabilidade deveria ser uma orientação para todos os poderes políticos. Por exemplo, é dramático e assustador constatar que o carbono aprisionado no interior do planeta durante milhares de milhões de anos está a ser libertado para a atmosfera, por intervenção humana, em poucas centenas de anos.
Que orientações devem ser seguidas, nas sociedades atuais, para o ensino das ciências e tecnologias? A resposta não poderá, nem deverá ser, única, pois o projeto de sociedade varia com o local e a época de que estamos a falar. No entanto, ter como meta um ideal de sociedade mais justa, mais habilitada a desenvolver-se e mais ambiciosa nos valores a atingir, deve ser preocupação de todos. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em particular o ODS 4, convocam-nos a todos para investir mais em educação e a Agenda 2030 deve constituir uma orientação, a médio prazo, para políticas públicas no domínio da educação.
Aprender ciências desde cedo, em contextos sociais, e compreender as inter-relações CTS/CTSA, será uma via para rejeitar superstições, irracionalidades e formas primitivas de credulidade. As finalidades da educação CTS, as orientações de ensino que advoga e as aprendizagens a alcançar por essa via serão, em si mesmo, um contributo para uma educação de qualidade, considerada fundamental para promover desenvolvimento humano, social e económico. Compreender a sociedade atual e o papel da ciência e da tecnologia exige que se tome como objeto de estudo as próprias inter-relações CTS. Construir estratégias didáticas que concretizem esse propósito é um desafio de futuro.