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Posicionar a divulgação científica em prol da equidade de gênero
Positioning Science Communication towards Gender Equity
Posicionar la divulgación científica a favor de la equidad de género
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 17, núm. 50, pp. 181-185, 2022
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Dossier-La mirada iberoamericana



O campo da divulgação científica vem sendo atravessado pelo debate e a urgência de mudança a partir de uma perspectiva feminista interseccional e em prol de práticas que levem em conta princípios de equidade e de justiça social, em meio ao levante feminista vivenciado em múltiplos espaços na última década – nas ruas, nas mídias, nas artes, nos museus, nas escolas e nas universidades. Vemos, por exemplo, a emergência de perfis nas redes sociais de pesquisadoras negras, trans, indígenas, de periferias, de distintas regionalidades e de diferentes áreas de conhecimento. A visibilidade dessas identidades pode auxiliar a desmistificar o estereótipo clássico do cientista como homem branco, heterossexual, de meia idade, de jaleco branco e isolado em seu laboratório, comumente associado à percepção de quem faz ciência e de quem é autorizado a falar sobre ciência.

Ainda que haja maior representatividade, ser mulher – e pertencer a grupos não dominantes de raça/etnia, sexualidade, classe e território – na produção como divulgadoras científicas pode ser, em muitos casos, uma tarefa árdua de resistência a um sistema patriarcal sexista, que desqualifica, deslegitima e dificulta a construção de um senso de pertencimento à esfera da ciência e da divulgação científica. Preconceitos e discriminações de gênero na divulgação científica aparecem desde comentários hostis, de natureza sexual e/ou relacionados com a aparência, associando as mulheres a posições de objetificação e subalternização e na invisibilidade de mulheres como referências científicas até a percepção de que as situações de abuso e assédio modificam comportamentos e práticas de divulgadoras, como na necessidade de enfatizar sua legitimidade e na escolha de vestimenta.

No âmbito da inclusão social em centros e museus de ciências brasileiros, a divulgação científica se encontra compromissada com questões como a participação cidadã e o engajamento público. Neste contexto, a inclusão social pode ser mais do que apenas ampliar o acesso e diversificar a audiência, proporcionando uma renegociação das relações estabelecidas entre as instituições e seus/suas profissionais, que se engajem no compartilhamento de poder, recursos e conhecimentos. Por exemplo, no debate em prol dos direitos das pessoas com deficiência de ter uma acessibilidade plena, discute-se ir além de aspectos físicos e de infraestrutura, de modo a incorporar aspectos comunicacionais, atitudinais, cognitivos e sociais, e conduzir ações a partir das perspectivas dos grupos que vivenciam esses desafios.

A necessidade de uma abordagem feminista na divulgação científica surge à medida que a área se desenvolve enquanto campo de prática e de pesquisa a fim de visibilizar as questões de equidade, diversidade e inclusão, incluindo os marcadores de raça, poder, classe e gênero. A contribuição de uma perspectiva feminista interseccional estimula a importância de se posicionar enquanto pesquisadoras/es, comunicadoras/ es e educadoras/es. Quando explicitamos nossas perspectivas, demarcando o lugar pelo qual falamos, permitimos que se visibilize as perspectivas dominantes (e não dominantes) que moldam os discursos em torno da ciência.

As relações de gênero atravessam toda a sociedade e são um dos eixos centrais que organizam as nossas experiências. Não se restringem apenas às mulheres, mas às relações de poder, de privilégio e de desigualdades referentes às posições que as pessoas ocupam na sociedade. Assim como não podemos nos referir a mulher como substantivo singular, igualmente os feminismos são formados por concepções plurais e diversas. Como ponto de convergência, podemos destacar o objetivo político de transformar a situação de opressão e subordinação das mulheres, não se abstendo da discussão acerca de quais mulheres são contempladas quando se fala de feminismo e quais mulheres seguem marginalizadas neste debate.

O debate sobre os múltiplos marcadores sociais da diferença – particularmente gênero, raça e classe – adquiriram centralidade no debate feminista na década de 1990, a partir da teoria da interseccionalidade. Com origem no feminismo negro e na teoria crítica da raça, o termo interseccionalidade foi cunhado pela jurista afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw, em 1989, e, ainda que tenha ganhado força nas últimas décadas, a articulação das categorias de raça e gênero – questionando a categoria mulher como universal – já estava presente no discurso “E eu não sou uma mulher?” em 1851, que se tornou referência por conta de seu pioneirismo, proferido pela abolicionista e ex-escravizada Sojourner Truth, na Convenção dos Direitos das Mulheres, em Ohio, nos Estados Unidos. Em seu discurso, ela posicionou o debate tanto como negra quanto como mulher, desarticulando, rompendo e decentrando questões supostamente universais do feminismo branco. Um ponto central da interssecionalidade enquanto ferramenta analítica seria decentrar o sujeito normativo dentro da teoria feminista. A partir de um enfoque integrado, a interseccionalidade é um conceito que busca dar conta da complexidade das identidades e das desigualdades sociais.

A crítica feminista à ciência partiu de um campo multidisciplinar de pesquisadoras de diversas áreas de conhecimento – como filosofia, história, biologia e antropologia –para questionar, de forma contundente, a própria produção de conhecimento científico e os ideais de objetividade, universalidade e neutralidade que fundaram os pilares da ciência moderna. Uma das importantes contribuições das epistemólogas feministas da ciência foi a proposição de uma metodologia que promovesse um outro tipo de objetividade para reduzir a incorporação de preconceitos sexistas e vieses androcêntricos nas pesquisas, a partir da teoria do ponto de vista. Nesta proposta de objetividade, a produção científica não partiria de um ideal abstrato, mas se iniciaria do reconhecimento de contextos e práticas a partir do olhar dos grupos oprimidos. Para Harding (2019), o principal problema da suposta neutralidade da ciência nas práticas convencionais seria a homogeneidade das comunidades científicas, compostas majoritariamente pela presença masculina, e treinadas a partir de técnicas específicas de cada disciplina: “tais comunidades atraem e admitem apenas cidadãos de um conjunto específico de valores e interesses sociais da elite e os treina para práticas de pesquisa que levam adiante tais valores e interesses específicos” (Harding, 2019, p. 146), de modo que é preciso considerar novas histórias e geografias da distribuição do conhecimento.

Na perspectiva dos sujeitos que produzem conteúdo sobre ciência, há uma necessidade urgente de desenvolver práticas mais equitativas e significativamente inclusivas dentro da comunicação pública da ciência. Finlay et al. (2021) trouxeram exemplos da divulgação científica realizada pelas Organizações de Saúde Controladas pela Comunidade Aborígene (ACCHOs), na Austrália, no âmbito da pandemia de Covid-19, e, durante a crise de ebola na região da África ocidental. No estudo, descreveram como comunicadores da ciência fizeram parceria com músicos populares e Griots, de modo a comunicar informações científicas e de saúde pública por meio da música. Ao dialogarem com as comunidades em suas próprias línguas locais, reforçaram o poder emancipador e a relevância de comunicar ciência em seus próprios termos, junto ao legado cultural de conhecimentos indígenas. De forma similar, a capacidade das ACCHOs de falar com seu público decorreu de um profundo entendimento por ser uma associação de dentro da comunidade, administrada por e para a população local. As autoras argumentaram que a comunicação da ciência branca, ocidental, europeia e anglófona deveria aprender com práticas, conhecimentos e valores exercidos por grupos minoritários e marginalizados: “aprender com diversos setores da prática de comunicação é fundamental, mas nossos exemplos mostram que não pode ser apropriado ou uma repetição vazia de práticas sem o contexto pleno e os valores compartilhados que as acompanham” (Finlay et al., 2021, p. 7, tradução nossa).

Para os canais de divulgação científica dominantes, seria importante estimular ativamente a discussão sobre diversidade, reconhecendo que o padrão dominante exclui demais conhecimentos não hegemônicos. A divulgação científica poderia desempenhar um papel importante em mostrar como a ciência pode ser feita de forma diversa – como, por exemplo, por mulheres, pessoas negras e pessoas do sul global –, cujas experiências afetam e moldam a maneira como se situam no mundo: “esses corpos e experiências que são marginais à ciência normal ou hegemônica também estão ansiosos para incorporar outro ethos da ciência, especialmente por causa de suas experiências marginais” (Pérez-Bustos, 2019, p. 2, tradução nossa).

Pérez-Bustos (2019) argumenta que a presença de mulheres cientistas transgênero na mídia e em espaços de poder – como a publicidade dada a bióloga Brigitte Baptiste, ex-diretora do Instituto Nacional de Biodiversidade Alexander von Humboldt e reitora da Universidade Ean, na Colômbia – contribui para desestabilizar imaginários sociais acerca das mulheres trans e para questionar a própria ideia do que é ciência e de quem a produz. No contexto brasileiro, um exemplo é a divulgação científica feita pela Rita von Hunty, criadora da página do Youtube “Tempero Drag”, que aborda diferentes aspectos das normas sociais e culturais de gênero na sociedade, e tem o quadro “Mulheres foda”, no qual traz biografias de importantes personagens da história a partir de um olhar feminista interseccional.

Nesta perspectiva, a pesquisa e a prática em divulgação científica devem ser mais críticas sobre as vozes que são ouvidas, sobre por que e quais públicos estão envolvidos, tendo em mente em como a heteronormatividade contribui para as desigualdades de gênero e para as relações de poder no campo acadêmico.

O desafio de incorporar a equidade e justiça social na pesquisa e na prática da divulgação científica é de cada vez mais olhar para jovens de grupos não dominantes “como quem elas são” e não “como elas deveriam ser” baseadas em padrões dominantes acerca de quais sujeitos são autorizados a falar e a produzir conhecimento no campo científico. Se divulgação científica não colocar no cerne do debate a equidade e inclusão em suas práticas, continuará a operar a partir de condições estruturantes desiguais e excludentes, de modo que as políticas de cultura científica não podem ser elaboradas sem se relacionarem às políticas de inclusão social.

Tomando como referência os estudos feministas da ciência, propomos que o campo da divulgação científica (em sua vertente acadêmica e prática, que devem estar intimamente associadas) se posicione em prol dos valores, conhecimentos e experiências de grupos não dominantes, sobre a importância da abertura para saberes parciais e contextualizados e discutindo criticamente a pretensa objetividade, neutralidade e universalidade do conhecimento científico. Que ciência queremos produzir? A quem ela atende? De que forma a ciência permeia a sociedade e os diferentes setores se apropriam dela? De que forma a face da ciência se expressa na divulgação científica? Não é apenas sobre inclusão, mas é sobre a transformação da cultura científica, que leve em conta, por exemplo, epistemologias indígenas e quilombolas como saberes legítimos, que seja orientada por princípios de equidade e justiça social e leve em conta como o racismo e o sexismo estruturaram a cultura científica.

Como citar este artigo

Reznik, G. y Massarani, L. (2022). Posicionar a divulgação científica em prol da equidade de gênero. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad —CTS, 17(50), 181-185. Dísponivel em: [inserte URL]

Referências bibliográficas

Finlay, S. M., Raman, S., Rasekoala, E., Mignan, V., Dawson, E., Neeley, L. e Orthia, L. A. (2021). From the margins to the mainstream: deconstructing science communication as a white, Western paradigm. Journal of Science Communication, 20(1), C02.

Harding, S. (2019). Objetividade mais forte para ciências exercidas a partir de baixo. Construção: arquivos de epistemologia histórica e estudos de ciência, (5).

Pérez-Bustos, T. (2019). Questioning the feminization in science communication. Journal of Science Communication, 18(4), C04.



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