Dossier-Artículos
Resumo: São incertos e cada vez mais voláteis os desafios sociais, económicos e científico-tecnológicos que se têm de enfrentar. São múltiplas e cada vez mais complexas as interações ciência, tecnologia e sociedade (CTS). Como corolário, tem sido enfatizada e reiterada, progressivament, a relevância do pensamento crítico e também do criativo (PCC) para que cada um possa compreender e ajudar a minimizar os problemas deste presente-futuro, contribuindo, como cidadão, para que todos tenham qualidade de vida e realizar-se enquanto pessoa. Importa, por isso, que a educação e, particularmente, os currículos escolares, a formação de professores e as práticas didático-pedagógicas contemplem o desenvolvimento do potencial de PCC dos alunos, e, por conseguinte, concorram para que realizem aprendizagens uteis e utilizáveis nas diferentes esferas da vida. Neste quadro, a partir da investigação e formação que se tem realizado, relevando o enfoque na formação de professores, pretende-se neste artigo, avançar com um quadro de referência operativo para a promoção intencional e explícita do PCC de todos para uma educação CTS desde os primeiros anos de escolaridade. Com efeito, e conforme evidencia resultante de estudos realizados, a formação de professores no respeitante ao PCC é um aspeto basilar chave para que, enquanto professor, desenvolva práticas didático-pedagógicas que promovam explícita e intencionalmente estes dois tipos de pensamento. Neste campo, outro eixo fundamental radica no tipo de formação e oportunidades formativas dos professores, sendo determinante a sua fundamentação em referenciais operativos acerca do PCC.
Palavras-chave: pensamento crítico e criativo, CTS, educação em ciências.
Resumen: Los retos sociales, económicos y científico-tecnológicos son inciertos y cada vez más volátiles. Las interacciones entre ciencia, tecnología y sociedad (CTS) son múltiples y cada vez más complejas. Como corolario, progresivamente se ha enfatizado y reiterado la relevancia del pensamiento crítico y creativo (PCC) para que todos puedan comprender y ayudar a minimizar los problemas de este presente-futuro, y contribuir a que todos tengan calidad de vida y puedan realizarse como personas. Por lo tanto, es importante que los currículos escolares, la formación de profesores y las prácticas didáctico-pedagógicas consideren el desarrollo del potencial PCC de los estudiantes y contribuyan a que sus aprendizajes sean útiles y utilizables en diferentes esferas de la vida. Enfatizando el enfoque en la formación docente, este artículo pretende avanzar con un marco de referencia operativo para la promoción intencional y explícita del PCC en la educación CTS desde los primeros años de escolaridad. La formación docente en torno al PCC es un aspecto clave para que los maestros desarrollen prácticas didáctico-pedagógicas que promuevan de manera explícita e intencional estos dos tipos de pensamiento. Otro eje fundamental radica en el tipo de formación y las oportunidades de formación de los docentes, siendo crucial su fundamentación en referencias operativas sobre el PCC.
Abstract: The social, economic, and scientific-technological challenges that humanity faces are uncertain and increasingly volatile. Science, technology and society (STS) interactions are multiple and increasingly complex. As a corollary, the relevance of critical and creative thinking (CCT) has been progressively emphasized and reiterated so that everyone can help to minimize the problems of this present-future, achieve quality of life and fulfill themselves as persons. It is important that school curricula, teacher education and didactic-pedagogical practices consider the development of students’ CCT potential, and, therefore, contribute to make their learning useful and usable in different spheres of life. Emphasizing its focus on teacher education, this article aims at advancing towards an operative frame of reference for the intentional and explicit promotion of CCT and STS education from the first years of schooling. Indeed, and as evidenced by many studies, teacher training is a key aspect to develop didactic-pedagogical practices that explicitly and intentionally promote these two types of thinking. Another fundamental axis lies in the type of training and training opportunities for teachers, a crucial foundation in operational references on CCT.
Keywords: critical and creative thinking, STS, science education.
Introdução
É, hoje, inegável a presença marcante dos produtos da ciência e da tecnologia na sociedade, bem como o cariz de globalidade, imprevisibilidade e complexidade crescentes das situações com que cada um se confronta nas diversas esferas da vida. Para atender a estes contextos societais, diversas organizações e organismos internacionais, como as Nações Unidas (2018), têm sido responsáveis por diversas iniciativas e documentos. Disso é exemplo, a Agenda 2030, constituída por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), nas suas várias dimensões (sócio, económico e ambiental), como o Objetivo 4 – Educação de Qualidade, mais especificamente na promoção de uma cidadania colaborativa e responsável.
Também, os esforços, muitas vezes, de emergência sanitária, política ou até económica, têm requerido e conduzido a propostas educativas variadas e a resultados diversos, nem sempre animadores. Neste âmbito, um claro exemplo reporta à recente situação pandémica associada ao novo coronavírus, e consequentes implicações, nomeadamente em termos de tecnologias digitais e modos de operacionalizar o ensino online e a distância.
Ressalta, pois, que, na senda de ritmos acelerados de ciclos de vida atuais, os sistemas educativos têm procurado dar resposta a necessidades e desafios. Tais respostas têm salientado e reiterado percursos de formação capazes de ajudar cada um a ter uma vida produtiva, a gozar de qualidade de vida e a dar o seu contributo para o desenvolvimento sustentável a nível local, nacional e internacional.
Neste quadro, pese embora conotações ideológicas e afiliações, mais ou menos explícitas ou vinculadas a paradigmas mais ou menos sustentáveis de vida no Planeta, uma das vias de operacionalização de resposta educativa tem-se centrado na necessidade de promover (multi)literacia(s) para todos, como a científica e a tecnológica. Na sua globalidade, tal tem abarcado movimentos como a orientação ciência, tecnologia, sociedade (CTS); a orientação CTS associada, explicita e fundamentadamente, ao pensamento crítico e criativo (CTS/PCC) e uma perspetiva de operacionalização em torno de cinco elementos-chave (5C): pensamento crítico, pensamento criativo, comunicação, colaboração e cidadania.
Na educação, em geral, e na área das ciências experimentais, em particular, tais perspetivas, de forma mais ou menos holística, têm vindo a ser incorporadas e integradas nos curricula em diversos países, especialmente da Europa e da América do Norte. Em Portugal, na esteira de documentos curriculares precedentes, os atualmente em vigor, designadamente a “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” (Direção Geral de Educação, 2017), “Aprendizagens essenciais” de disciplinas de ciências experimentais (Direção Geral de Educação, 2017) e o Perfil do luno no Final da Escolaridade Obrigatória (PASEO) (Martins et al., 2017), salientam a formação de cidadãos capazes de viver numa sociedade altamente tecnológica, de participar ativa e racionalmente nas escolhas sociais e políticas, contribuindo para a construção de uma sociedade mais humanista e um Planeta sustentável.
Centrando a atenção no caso transversal do PASEO, este inclui áreas de competência a desenvolver por todos os alunos ao longo da sua escolaridade obrigatória, sendo que, para tal, devem concorrer todas as disciplinas. Uma das dez áreas de competência do PASEO, as quais envolvem conhecimentos, atitudes e valores e capacidades, reporta ao PCC. Conforme consta neste documento de orientação curricular, o desenvolvimento da área de competência associada ao PCC implica que os alunos sejam capazes de: i) pensar de modo abrangente e em profundidade, observando e analisando informação, experiências ou ideias, argumentando com recurso a critérios implícitos ou explícitos, com vista à tomada de posição fundamentada; ii) convocar diferentes conhecimentos, de matriz científica e humanística, utilizando diferentes metodologias e ferramentas para pensarem criticamente; iii) prever e avaliar o impacto das suas decisões; e iv) desenvolver ideias e soluções, de forma imaginativa e inovadora, como resultado da interação com outros e/ou da reflexão pessoal, aplicando-as a diferentes contextos e áres de aprendizagem.
Nesta linha, agarrar o papel de formar cidadãos críticos e criativos, impõe que os professores desenvolvam práticas didático-pedagógicas orientadas para o PCC. Porém, para as desencadear e propiciar, é forçoso que a formação de professores, do ensino superior e não superior, tenha uma orientação inequívoca para o PCC, operacionalizando oportunidades e respostas formativas alicerçadas em estudos de investigação. Nesse sentido, no presente artigo apresenta-se e discute-se um quadro de referência operativo para a formação de professores promotores do pensamento crítico e criativo (PCC) para uma educação CTS desde os primeiros anos de escolaridade. Assim, começa-se por apresentar uma breve resenha com foco numa educação CTS/PCC para depois se salientar as articulações e a investigação que tem sido realizada, com destaque para o quadro concetual operativo a transpor para a formação de professores. Nas considerações finais procura-se fazer uma sistematização e implicações futuras para a investigação, formação e inovação em torno do CTS/PCC.
Orientação ciência-tecnologia-sociedade e pensamento crítico e criativo: que formação de professores?
A orientação ciência, tecnologia e sociedade (CTS), na educação em geral, e em particular na educação em ciências, tem sido reconhecida como facilitadora de percursos formativos para uma cidadania mais democrática e sustentável. Pois que contribui para ajudar cada um, por um lado, a lidar com contextos sociais atuais, caracterizados por transformações voláteis, incertas e inéditas, complexas e ambíguas e, ainda, fortemente imersos em tecnologia(s) (Martins, 2020; Vieira e Tenreiro- Vieira, 2016; Tenreiro-Vieira e Vieira, 2020); por outro, a enfrentar o ressurgimento de movimentos autoritários e fascistas (Galamba e Mattews, 2021). Isto, decorrente de atributos e enfoques de uma educação em ciências com orientação CTS, de que são exemplo distintivo: i) desenvolver currículos que enfatuem grandes ideias-chave e explicações da Ciência, abarcando temas de atualidade científica e tecnológica e com relevância social, incluindo questões controversas. Neste quadro, o princípio norteador pode ser enunciado como “menos Ciência e Tecnologia e com mais profundidade, em vez de uma extensa lista de conteúdos e uma abordagem superficial”; ii) privilegiar abordagens mais holísticas, compreensivas e integradoras, operacionalizando perspetivas de integração curricular, que relevem as interações ciência, tecnologia e sociedade, problematizando a ciência e a tecnologia enquanto atividades humanas, socialmente contextualizadas, que se influenciam mutuamente; iii) proporcionar explicita e intencionalmente múltiplas oportunidades para a (re)construção de conhecimento, o desenvolvimento e mobilização de capacidades e a clarificação de atitudes/valores; iv) diversificar estratégias, atividades e recursos, incluindo ferramentas digitais, orientados para potenciar, fundamentada e explicitamente, a mobilização de saberes na ação pessoal, profissional e social responsável; e v) focar questões e situações- problema, de relevância pessoal, local e global, capazes de suscitar a curiosidade, o interesse e o envolvimento dos estudantes, e da comunidade, em geral, na resolução de problemas, na discussão de questões societais controversas e na tomada de decisão responsável.
Decorrente de tais atributos, emerge a conexão com formas de pensar que abarcam o pensamento crítico e criativo (PCC). Com efeito, conforme investigação realizada (Tenreiro-Vieira e Vieira, 2010, 2011, 2019, 2020, 2021), o PCC está estreitamente ligado à utilização eficaz e racional do conhecimento científico e tecnológico e em diferentes situações e contextos, no quadro de práticas democráticas, a propósito de problemas que afetam a humanidade e nas quais todos devem ter oportunidade de, nomeadamente, avaliar a validade da evidência e a credibilidade de fontes usadas. Deste modo, potencia-se o criar de condições para que tais aprendizagens se tornem úteis e utilizáveis no dia-a-dia, não numa perspetiva meramente declarativa ou instrumental, mas sim numa perspetiva de ação, tendo em consideração preocupações atuais de desenvolvimento sustentável e de uma cidadania esclarecida e atuante e com preocupações e contributos para a melhoria da qualidade de vida de todos. É, pois, um imperativo desocultar e multiplicar, de forma continuada, sistemática e intencional, oportunidades de desenvolvimento e mobilização do PCC no contexto, por exemplo, da discussão de questões societais controversas ou da procura de solução para resolver, ou pelo menos minorar, problemas socialmente relevantes que envolvem a ciência e a tecnologia.
Fazê-lo exige investimentos concertados nas diferentes dimensões que podem concorrer para uma efetiva educação com orientação CTS/PCC, capaz de sustentar e fomentar a formação de cidadãos que a complexidade e imprevisibilidade do presente-futuro exige. Uma delas, que configura um elemento-chave, corresponde à formação de professores, seja inicial ou continuada, quer envolva professores do ensino não superior, quer do ensino superior. Se se pretende, de facto, promover o PCC dos estudantes, é imperioso intervir a nível da formação de professores; os envolvidos, mais direta ou indiretamente, em atividades de formação de professores não podem abdicar da sua responsabilidade em facilitar e estimular o potencial de PCC dos estudantes, de forma explícita, intencional, sistemática, mas gradual, desde os primeiros anos de escolaridade. O papel dos professores e outros educadores continua a ser central para promover o pensamento crítico e criativo, em vez da conformidade irrefletida (UNESCO, 2015). Por isso, as instituições de formação de professores devem construir e fornecer respostas formativas alicerçadas na investigação, em termos de formação inicial, bem como de formação continuada em resposta à procura, por parte de professores ou futuros professores, de oportunidades de formação. De realçar que, situando no contexto do ensino superior, a formação continuada de professores revela-se útil, desde logo, para que os professores possam ter oportunidades de aprendizagem e de desenvolvimento de competências que lhes permitam tornar-se mais intencionais e eficientes nas suas práticas didático- pedagógicas (Leite e Ramos, 2012).
À luz de estudos realizados, no campo da formação de professores, formação inicial (Seabra e Vieira, 2021; Vieira e Tenreiro-Vieira, 2003), formação continuada (Vieira, 2003; Sousa e Vieira, 2021; Tenreiro-Vieira e Vieira, 2005) e na formação de professores do ensino superior (Franco e Vieira, 2019; Vieira, Tenreiro-Vieira e Franco, 2020), centrados na importância da promoção do PCC, em geral, e/ou num contexto CTS, em particular, a formação de professores deve acolher um conjunto de elementos, a transpor para a sala de aula. Em primeiro, deve compreender, enquanto pilar da formação, a (re)construção de conceções e práticas, fomentando a apropriação de referenciais alicerçados na investigação, acerca do PCC, num contexto CTS, em suporte do desenvolvimento de práticas didático-pedagógicas com orientação CTS/ PCC.
Em conjugação com o elemento basilar supra explicitado, a formação de professores deve integrar a promoção explícita, intencional e sistemática do PCC, fazendo uso de estratégias com essa orientação deliberada. Congruentemente, um terceiro elemento reporta à construção de recursos e à operacionalização de atividades e cenários de aprendizagem de cariz CTS, incitativos do PCC. Neste quadro, importa considerar a diferenciação e diversificação e maximizar o potencial de diferentes tipos de atividades e de recursos, incluindo ferramentas digitais e ambientes virtuais de ensino e de aprendizagem. Isto, por forma a viabilizar que os futuros professores ou professores em formação possam ganhar confiança e rentabilizar as melhorias digitais e virtuais que estão hoje disponíveis. Deste modo, poder-se-á apoiar e incitar à sua transposição para as salas de aula, não apenas para desafiar os alunos e estimular o seu envolvimento ativo, também para atender às suas características e necessidades tecnológicas.
A operacionalização destes três elementos, que se considera como pilares ou eixo norteadores de uma formação com orientação CTS/PCC, deve colocar os professores ou futuros professores num ambiente colaborativo, incitativo do PCC. Um ambiente marcado pela abertura de espírito, pela honestidade intelectual, onde todos possam colaborar e comunicar, argumentando, contra-argumentando e construindo consensos em direção à resolução de problemas e tomada de decisão para um objetivo/bem comum e significativo.
Foca-se e discute-se, em seguida, com particular acuidade o elemento relativo aos referenciais acerca do PCC. Isto, não só pela relevância da questão em si, mas também porque enquadra, fundamenta e orienta a operacionalização dos outros elementos.
É comum, em diferentes contextos, formais e informais, escritos ou orais, o uso de expressões como “ser crítico”, “ter espírito crítico”, “ser criativo”, “promover o pensamento crítico”, “promover o pensamento criativo” e “fomentar a criatividade”. É também comum (talvez, ainda mais comum) que, subjacente ao uso de tais expressões estejam ideias difusas, ambíguas até, sobre o significado de cada uma delas, o que implicam e envolvem, o que as aproxima e as distingue. Tal faz sobressair a importância de oportunidades para a (re)construção de conceções e para o desenvolvimento de uma compreensão sobre o que se entende por PCC, fazendo emergir a necessidade de conhecer, compreensivamente, referenciais teóricos acerca do PCC. Como evidenciado por investigação realizada, os esforços encetados para levar os professores a promover o pensamento crítico dos alunos são potenciados se os mesmos tiverem oportunidade para compreender o que se entende por pensamento crítico (Tenreiro-Vieira, 1999; Vieira, 2003, 2018).
Neste campo, têm sido disseminados, na literatura da especialidade, referenciais acerca do pensamento crítico, bem como acerca do pensamento criativo; no entanto, escasseiam os referenciais focados no PCC, fazendo, inclusive, sobressair pontos de confluência entre ambos os tipos de pensamento. São exemplos ilustrativos de teorizações e concetualizações acerca do pensamento crítico as desenvolvidas por Ennis (1987, 1996), um dos pioneiros nesta área e em cujo trabalho têm sido ancoradas diferentes investigações; outros exemplos ilustrativos radicam nos trabalhos de Paul e Helder (2006) e de Halpern (1996). Em relação ao pensamento criativo destacam-se como referenciais concetuais os trabalhos de Torrance (1979), de Lipman (1982) e de de Bono (1985).
Os percursos desenvolvidos pelos autores (Tenreiro-Vieira e Vieira, 2021; Vieira e Tenreiro-Vieira, 2021), em termos de investigação, inovação e formação, em contextos diversificados, sustentam e fundamentam a proposta de referencial para o PCC, conforme esquematização a seguir apresentada e, depois, discutida, com reporte, em particular, a um contexto CTS

O referencial releva a interdependência de dimensões que consubstanciam e operacionalizam o PCC. Tais dimensões abarcam: i) capacidades de pensamento, crítico e criativo; ii) disposições de pensamento, crítico e criativo; iii) normas, no sentido de critérios de qualidade; e iv) conhecimentos, relacionados com o PCC, mas também com as áreas científicas e as questões em apreço. Relevando que, o pensar critica e criativamente é uma atividade pratica, reflexiva, tais elementos devem ser mobilizados de forma intrincada no contexto da interação com os outros, na resolução de problemas e na tomada de decisão, pessoal, profissional ou sobre questões públicas, designadamente questões que envolvem a ciência e a tecnologia.
Decidir racionalmente o que fazer implica a mobilização de capacidades de pensamento, sendo que, subjacente a tal está o uso de disposições para o fazer, ou seja, para atuar de forma crítica e criativa. A este respeito, é de salientar que enquanto as capacidades de pensamento estão mais ligadas a aspetos cognitivos do PCC, as disposições reportam a aspetos mais afetivos. Focando a atenção nesta última dimensão, Norris e Ennis (1989) clarificam que o termo “disposições” encerra e sintetiza o entendimento de atitudes, comprometimento e tendência para agir criticamente. O conjunto de disposições definem o “espírito crítico”, que é o que motiva ou impulsiona o pensador crítico a aplicar capacidades de pensamento crítico ao seu próprio processo de pensamento crítico e ao dos outros e a impor que o seu processo de pensamento atenda e vá ao encontro de normas referentes ao pensar criticamente.
A permear estas duas dimensões do PCC encontram-se, pois, normas e critérios tendentes a assegurar a qualidade do processo de pensamento, designadamente em contextos e domínios específicos de ciência e tecnologia regidos, eles próprios, também, por critérios. Tais normas ou critérios comuns incluem: a precisão, a clareza, o rigor tendo em conta a situação no seu todo, a consistência, a credibilidade das fontes, o controlo de variáveis e a validade das inferências.
A par disso, e tendo presente que não se pensa racionalmente no vazio, pensar crítica e criativamente requer conhecimentos, desde logo sobre o assunto em apreço, mas também sobre aspetos inerentes à natureza destes dois tipos de pensamento.
Assim, por um lado, é crucial desenvolver os conhecimentos inerentes ao próprio PCC, como os relativos, por exemplo, à distinção entre factos e opiniões e ao que se entende por inferências, falácias, assunções, dados, resultados, conclusões e generalizações. Por outro, a qualidade do pensamento que uma pessoa é capaz de desenvolver sobre determinado assunto, questão ou problema é, em grande parte, determinado pelo conhecimento que se possui, ou se é capaz de gerar, sobre o mesmo. O conhecimento base na área é também um determinante importante para a qualidade do pensamento, sendo central para fazer juízos racionais. Como salienta Ennis (1987), não se pode esperar que alguém que seja ignorante num dado campo seja bom a fazer juízos de valor ou a fazer boas inferências explicativas. Até porque, o contexto em que ocorre o pensamento crítico desempenha um papel importante na determinação do que conta como aplicação racional de normas.
O conhecimento científico e tecnológico é basilar para cada um se poder envolver ou responder a questão(ões) ou problema(s) de ciência e de tecnologia. Relativamente a esta dimensão do PCC, num contexto CTS sobressai uma ênfase em “grandes ideias” e não tanto em factos isolados, bem como um enfoque nas conexões em temos de ideias e conceitos nucleares da mesma área (ciências ou tecnologia), entre estas e entre estas e o mundo real. Dentro desta perspetiva, salienta-se a contextualização histórica e social do conhecimento científico e tecnológico, procurando romper com uma visão da ciência e da tecnologia como atividades desligadas de valores éticos e morais e de interesses e influências sociais e políticas.
Um exemplo ilustrativo acerca da natureza intrincada das dimensões envolvidos no PCC reporta à capacidade de argumentação, que é central na tomada de decisão (Jiménez Aleixandre, 2002; Patronis, Potari e Spiliotopoulou, 1999; Saiz, 2018). As decisões em situações do quotidiano são escolhas racionais construídas com base em critérios desenvolvidos em interação com a avaliação de alternativas geradas, identificadas ou disponíveis. Tal avaliação é, muitas vezes, baseada em valores; mas, apesar dos valores serem uma base importante para fazer juízos de valor, o uso de conhecimento conceptual relevante é necessário de forma a pesar as vantagens e desvantagens de opções disponíveis (Jiménez-Aleixandre, 2002).
Outro exemplo radica nas situações com que cada um é, amiúde, confrontado e que envolvem desinformação, seja em termos de informação falsa, informação intencionalmente criada e disseminada com o propósito de causar dano, seja de informação fabricada ou má informação. Neste contexto, o PCC afigura-se fundamental para cada um analisar as situações, ajuizar e decidir da razoabilidade da informação, identificando informação falsa ou com incorreções. Nesse sentido, afigura-se particularmente relevante o uso conjugado de disposições, tais como, procurar estar informado, considerar a situação no seu todo e procurar não se desviar do cerne da questão, e de capacidades, de que são exemplo, analisar argumentos, identificar e reagir a falácias, resumir de forma clara um problema ou questão e avaliar a credibilidade de fontes, usando normas ou critérios como, por exemplo, acordo entre as fontes e reputação das fontes. Na análise e avaliação de informação divulgada, usando diferentes meios de comunicação atualmente disponíveis, importa ainda ter presente conhecimento relativo à natureza do próprio pensar critica e criativamente. De um modo mais específico e a título ilustrativo, destrinçar factos de opiniões alerta para situações de desinformação em que são apresentadas conclusões baseadas em opiniões, ao invés de serem baseadas em evidência científica. Em suma, decorrente da mobilização do PCC cada cidadão poderá lidar mais eficazmente com situações de notícias falsas ou incorretas, seja como utilizador, seja como potencial disseminador de informação, nomeadamente através das redes sociais.
De sublinhar que, um envolvimento racional e esclarecido com questões ou problemas globais que envolvem a ciência e a tecnologia requer conhecimento de suporte e enquadramento das questões-problema em articulação com o uso de capacidades, normas e disposições de PCC. Exemplo disso são as capacidades de pensamento avaliar a credibilidades das fontes; avaliar a evidência disponível e ir além do seu imediato e aparente valor adotando uma perspetiva questionadora; analisar e avaliar argumentos; identificar e reagir a falácias e assunções subjacentes a uma dada posição; produzir muitas alternativas e não usuais, considerar, comparar e pesar alternativas e elaborar a partir de uma alternativa. No mesmo sentido, configuram-se como disposições de relevo, procurar estar bem informado, respeito pelo uso da evidência, ceticismo na avaliação de asserções, honestidade intelectual e abertura de espírito. Tomar posição fundamentada e sustentada sobre questões e problemas de ciência e tecnologia, implica pensar critica e criativamente de modo a detetar, por exemplo, incongruências na argumentação ou no sentido de suspender a tomada de decisão no caso de haver evidência insuficiente para traçar e sustentar uma conclusão.
O referencial exposto, num contexto de formação, configura uma resposta, alicerçada na investigação (Tenreiro-Vieira e Vieira, 2021; Vieira e Tenreiro-Vieira, 2021), em direção à clarificação de conceções e práticas e à construção de uma visão coerente, consistente e compreensiva acerca do PCC, suporte de ações deliberadas e fundamentadas para a promoção do PCC. Nesse sentido, na abordagem do referencial e na exploração das diferentes dimensões relativas ao PCC, importa usar e explicitar estratégias de ensino e de aprendizagem que, quando orientadas para a promoção do Pensamento Crítico, se têm revelado particularmente eficazes (Vieira, Moreira e Tenreiro-Vieira, 2016; Vieira e Tenreiro-Vieira, 2016).
Dentro da mesma perspetiva, a par de estratégias orientadas para o PCC, os futuros professores ou os professores em formação devem ser envolvidos em atividades que apelem, explicitamente, ao PCC. Tais atividades configuram oportunidade de complementar espaços de discussão, partilha e colaboração entre os professores (Lopes, 2012) de modo a “favorecer a partilha e (re)construção de conceções e práticas para a resolução de problemas ou preocupações e dificuldades comuns” (Vieira, 2018, p. 23). Nesse sentido, e com o objetivo de incitar os professores participantes ou futuros professores a desenvolverem o seu potencial de PCC, podem e devem ser criadas comunidades de prática e de aprendizagem. Por esta vida, podem ser desmultiplicadas oportunidades para fomentar disposições como, por exemplo, procurar estar bem informado, procurar razões e ter abertura de espírito, bem como capacidades como argumentar e contra-argumentar. Fazê-lo assume relevância acrescida, porquanto permite vivenciar situações incitativas do PCC passíveis de serem transferidas para a sala de aula. Acresce a relevância de cada um agir mobilizando o seu potencial de PCC, pois que, como salientam diferentes autores (Tenreiro-Vieira, 1999; Sousa e Vieira, 2021), as oportunidades para estimular e promover o PCC dos estudantes podem ser comprometidas se o professor não usar ele próprio o seu potencial de PCC. De facto, é pouco verosímil e, no mínimo, contraditório, por parte do professor, exigir aos alunos o uso de capacidades de pensamento crítico se ele próprio não o fizer. Como destacam alguns autores, os alunos detetam a inconsistência entre o que o professor verbaliza como comportamento ideal e aqueles que demonstra (Costa e Lowery, 1989).
Com base nesta concetualização e dos contributos da investigação que tem sido realizada pelos mesmos investigadores e outros que têm integrado a sua equipa, por exemplo em projetos de pós-Doutoramento, incluindo de várias outros países, como o Brasil, salientam-se os atributos necessários para a promoção do PCC, nomeadamente em contexto CTS, que Vieira (2018) resume com base no acrónimo PIGES: principiar, o mais cedo possível; intencionalmente, adotando para tal uma concetualização como a acima proposta; gradualmente e de acordo com o potencial e contextos dos aprendentes; explicitamente, identificando as dimensões a promover; e sistematicamente, desde os primeiros anos de escolaridade e ao longo da vida.
Considerações finas
Os contextos educativos atuais e que se afiguram no futuro próximo continuam (talvez como nunca antes em face da evolução vertiginosa da ciência e da tecnologia) complexos e voláteis, mas também desafiantes. Um deles prende-se com a evidência que a proposta concetual para uma orientação CTS/PCC, que aqui se apresenta e discute, em termos de abordagem e exploração num contexto de formação de professores. Isto, relevando a sua importância para o desenvolvimento de práticas didático-pedagógicas promotoras do PCC dos estudantes, que se tem verificado possível e assumido como desejável, desde os primeiros anos de escolaridade. Nesse sentido, importa ampliar a investigação em termos de estratégias, atividades e recursos, incluindo digitais, onde se incluem as comunidades de aprendizagem e prática (CAP), designadamente online.
A finalizar, uma educação CTS/PCC, capaz de sustentar a formação de cidadãos de adequada e eficazmente mobilizar saberes em ação a favor da construção de sociedades mais plurais, humanistas e sustentáveis, implica, por parte de toda a comunidade educativa, comunicação, colaboração, uma abertura de espírito e o respeito, no qual todos têm o direito de, com civilidade, questionarem e exigirem razões. Subjacentemente, a humildade e honestidade intelectuais são cruciais, por um lado, para reconhecer a falibilidade de posições pessoais e o ser propenso a suspender juízos na ausência de evidência lógica de suporte a determinadas decisões e, por outro, o tentar convencer os outros, incluindo os alunos, da plausibilidade de uma posição, em vez de insistir para que a aceitem com base no apelo à tradição e/ ou à autoridade.
Financiamento
Este trabalho é financiado por Fundos Portugueses através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00194/2020.
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