Apresentacao
Por uma ciencia cidada aberta e plurilingüe
Ana Paula Laborinho *
* Diretora-Geral de Bilinguismo e diretora do Escritório em Portugal da Organização de Estados Ibero-americanos (OEI). Professora da Universidade de Lisboa.
“Nunca el conocimiento había sido tan importante y a la vez tan sospechoso; nunca lo habíamos necesitado tanto y desconfiado al mimo tiempo de él; nunca habíamos depositado tantas esperanzas en el conocimiento como solución mientras se convertía él mismo en un problema.” Daniel Innerarity, La sociedad del desconocimiento (2022)
Este número da Revista Ibero-americana de Ciência, Tecnologia e Sociedade apresenta tantos artigos em espanhol como em português. Trata-se de uma forma de destacar a relevância, cada vez maior, de uma ciência plurilingue, em particular no contexto ibero-americano.
Parece uma inevitabilidade a crescente produção e difusão científicas em inglês. De tal forma se tornou prática corrente que deixámos de interrogar as consequências para o conhecimento desta tendência monolingue que parece alastrar sem retorno. Michael Gordin, professor de história da ciência na Universidade de Princeton nos Estados Unidos, em obra publicada em 2015, Scientific Babel: How science was done before and after global English, mostra a variação das línguas dominantes na ciência ao longo dos tempos: da predominância do grego e do latim, passando pelo árabe e depois pelo italiano, francês e alemão, até chegar ao inglês. Se Erasmus de Roterdão (1466-1536), na linha do primeiro humanismo, defendeu acerrimamente o uso do latim como meio de comunicação comum, o dealbar das nações modernas foi acompanhado por um movimento de afirmação das línguas vernáculas, que paulatinamente substituíram o latim também na ciência. e, também, de que forma apaga os contributos científicos daqueles que não dominam ou não têm meios para produzir ciência na língua indiscutivelmente mais usada no presente: o inglês.
A pandemia trouxe a ciência para os nossos quotidianos, expectantes que estivemos dos avanços das vacinas, a análise de novas variantes ou a complexa questão da imunidade. Também deixou claro que não somos todos iguais e os países com mais desenvolvimento científico conseguiram respostas que outros tiveram de aguardar até lhes chegar. Existe, pois, uma enorme diferença entre ricos e pobres no acesso ao conhecimento e à tecnologia, brecha que poderá aumentar se não considerarmos a ciência e a tecnologia como domínios estratégicos para o desenvolvimento.
No final de 2021, a UNESCO aprovou uma recomendação sobre ciência aberta, sublinhando que os complexos desafios ambientais, sociais e económicos carecem de uma nova abordagem da ciência, tecnologia e inovação (CTI). Importa que essa nova abordagem permita, antes do mais, encontrar soluções para reduzir as desigualdades, desde logo através da partilha do conhecimento, dados e informações científicas, mas também garantindo práticas científicas mais abertas, transparentes, colaborativas e inclusivas, o que contempla um conhecimento mais acessível e verificável, sujeito a escrutínio e crítica, o que é decisivo para a construção de uma ciência cidadã.
No seu mais recente livro, La Sociedad del desconocimiento (2022), o filósofo Daniel Innerarity reflete sobre o estranho antagonismo contemporâneo entre o reconhecimento dos enormes avanços da ciência e as manifestações de desconfiança que, no limite, levam ao negacionismo. Não se trata de ignorância, mas antes um fenómeno de rejeição de um conhecimento entendido como manipulação e atribuído ao pensamento dominante que, em última instância, aparece como resultado dos malefícios da democracia.
Já em La democracia del conocimiento (2011), Innerarity tratara o tema da ciência, partindo da premissa de que o conhecimento, mais do que um meio para saber, é um instrumento para conviver. Na sua ideia de sociedade inteligente, considera que os principais problemas das democracias não dependem tanto da vontade política como de um melhor conhecimento da complexidade que carateriza as sociedades contemporâneas. Há mais de uma década, Innerarity acreditava que o conhecimento era um meio essencial para melhorar os instrumentos de governo e as democracias. Nesta sua mais recente reflexão, muito marcada pela ideia de incerteza, recentra a definição de sociedade do conhecimento enquanto consciência do não-saber e a capacidade para gerir o desconhecimento nas suas diversas manifestações. Segundo ele, está em causa um novo paradigma de racionalidade em que conhecimento e desconhecimento formam uma unidade: cada vez estamos mais sábios e mais ignorantes. Será determinante, para cada um e para a nossa vida coletiva, o que faremos com o desconhecido e a capacidade que conseguirmos desenvolver para colocar as perguntas certas que permitam avançar na contínua construção de um bem comum.
Reconhecendo a importância do conhecimento na construção do futuro, a ciência aberta considera a importância de uma ciência plurilingue.
Pelas caraterísticas da região ibero-americana, a OEI tem vindo a promover o espanhol e o português como línguas de ciência, apoiando igualmente iniciativas relativas às línguas indígenas. Recentemente, a OEI em colaboração com o Real Instituto Elcano promoveram um estudo que envolveu a consulta a diferentes atores no domínio da produção e difusão científicas nos dois idiomas, de que resultou a publicação O português e o espanhol na ciência: notas para um conhecimento diverso e acessível (2021) da autoria de Angel Badillo. O autor parte da análise das publicações em repositórios de referência, cruzando língua de publicação e origem dos investigadores para concluir, sem surpresa, pelo aumento exponencial da utilização do inglês. Ao mesmo tempo, mostra a relação quase perversa entre a progressão na carreira de investigador ou docente universitário e a publicação em revistas indexadas na Web of Science (WoS) ou SCOPUS. Muitos prémios científicos restringem ab initio a sua atribuição a publicações indexadas nessas duas bases de dados bibliográficos afastando outros contributos relevantes. Mais do que a questão das línguas, a “ditadura do impacto”, como lhe chama Angel Badillo, tem conduzido a um mercado global de difusão científica que impõe as suas regras, embora beneficie (e muito) do investimento público. Além disso – e talvez ainda mais importante – a predominância e a tendência para a exclusividade de uma única língua de ciência determinam relações de poder, incluindo as áreas de investigação prioritárias. Acresce que a escolha de uma língua de produção científica, sobretudo em determinadas áreas do conhecimento, condiciona os paradigmas culturais de aproximação ao problema.
Importa ressalvar que Scopus e WoS não se limitam ao inglês, encontrando-se indexados artigos em várias línguas, entre as quais o espanhol e o português. Aliás, os dois idiomas, em conjunto, são a segunda língua de publicação na WoS (Gradim et al., 2019).
A escolha da língua de publicação decorre, assim, de uma perceção generalizada de que é imperativo produzir ciência em inglês, com implicações que importa assinalar. Angel Badillo conclui o seu estudo com um conjunto de interrogações que nos obrigam a ponderar: os novos investigadores continuarão a pensar ciência em espanhol e português e, sobretudo, a ciência continuará a fazer perguntas nestas línguas? Sabemos que não é igual pensar numa língua ou outra, além de que esta segregação, se não for revertida, conduzirá a uma ciência acessível apenas para alguns.
Considerando que espanhol e português são dois idiomas próximos e de fácil compreensão mútua, formando uma comunidade de 850 milhões de falantes em quatro continentes, a resposta às questões colocadas por Angel Badillo determinam políticas públicas de promoção do espanhol e do português como línguas de ciência, desde logo, através de uma representação positiva da capacidade destas línguas comunicarem ciência. Por outro lado, o desenvolvimento das tecnologias da linguagem, nomeadamente a tradução automática, torna cada vez mais possível que a produção científica se faça numa língua e a sua difusão em várias. Contudo, como sabemos, quanto mais dados científicos houver numa língua, melhor será a capacidade de tradução automática. Importa, pois, continuar a produzir e publicar em espanhol e português.
Uma ciência aberta e plurilingue é um fator de inclusão e desenvolvimento. A implementação de uma ciência aberta será geradora de múltiplas oportunidades de inovação, permitindo impulsionar o desenvolvimento de novos produtos, serviços, negócios e empresas. Os desafios ambientais tal como a pandemia são uma eloquente expressão do mundo global e da absoluta necessidade de não deixar ninguém para trás e garantir que o conhecimento (mesmo o que é produzido num lugar recôndito) possa servir a comunidade global a que pertencemos.
O objetivo último de uma ciência cidadã, que envolve a sociedade no processo de criação e fruição do conhecimento, permitirá mais transparência, mais literacia científica e mais confiança dos cidadãos. Esse um desafio ao nosso alcance com consequências em todos os domínios, incluindo o bem-estar e o progresso dos nossos povos.