Resumo: A Enactus é um programa voltado à formação de universitários para o empreendedorismo social relativamente bem difundido no Brasil. Por algumas de suas características principais – público majoritário da engenharia; atuação junto a grupos marginalizados; busca por se superarem mazelas socioambientais –, ela pode ser enquadrada como um tipo de engenharia engajada. Neste artigo, uma vez tendo apresentado a Enactus, buscaremos evidenciar onde ela se encontra no amplo espectro das engenharias engajadas, analisando-a criticamente com respeito a quatro aspectos principais: visão de tecnologia e engenharia que desposa; impacto pretendido com sua atuação; metodologias de intervenção; e visão de mundo. A partir dessas análises, sustentamos que, de forma geral, a atuação dos times Enactus está vinculada a algo que definimos como engenharia para o empreendedorismo social, caracterizada por uma visão de neutralidade da tecnologia, uma perspectiva liberal de inclusão por meio do mercado e metodologias que partem de uma perspectiva de transferência de conhecimento.
Palavras-chave: Enactus, engenharia engajada, empreendedorismo social, CTS.
Resumen: Enactus Brasil es un programa destinado a la formación de estudiantes universitarios para el emprendimiento social con una relativa difusión en su país de origen. Por algunas de sus características principales –público mayoritario de ingenieros; actuación junto a grupos marginados; misión de superar las dolencias socioambientales–, puede ser encuadrado como un tipo de ingeniería comprometida. En este artículo, una vez presentado el programa, buscaremos evidenciar dónde se encuentra Enactus en el amplio espectro de las ingenierías comprometidas, analizándolo críticamente respecto a cuatro aspectos principales: visión de tecnología e ingeniería; impacto pretendido con su actuación; metodologías de intervención; y visión de mundo. Argumentamos que, de forma general, la actuación de Enactus está vinculada a algo que definimos como ingeniería para el emprendimiento social, caracterizada por una visión de neutralidad de la tecnología, una perspectiva liberal de inclusión por medio del mercado y con metodologías que parten de una perspectiva de transferencia de conocimiento.
Palabras clave: Enactus, ingeniería comprometida, emprendimiento social, CTS.
Abstract: Enactus is a program aimed at training university students in social entrepreneurship that is relatively widespread in Brazil. Due to some of its main characteristics -attendees mostly from engineering; assistance to marginalized groups; search for overcoming social-environmental problems-, Enactus can be considered a type of engaged engineering. In this paper, once Enactus is presented, we will seek to show where it is located in the wide specter of engaged engineering and to analyze it critically concerning four main aspects: understanding of technology and engineering; intended impact of its actions; intervention methodologies; and worldview. Based on such analysis, we understand that Enactus' general action is linked to what we define as engineering for social entrepreneurship, characterized by comprehending technology as neutral, fostering liberal inclusion through market, and using methodologies based on knowledge transfer.
Keywords: Enactus, engaged engineering, social entrepreneurship, STS.
Artículos
Engenharias engajadas: o caso da Enactus Brasil
Ingenierías comprometidas: el caso de Enactus Brasil
Engaged Engineering: The Case of Enactus Brazil
Recepción: 09 Junio 2021
Aprobación: 27 Agosto 2021
A Enactus é uma organização internacional que tem como objetivo promover o empreendedorismo social entre jovens universitários. Segundo a própria organização, atualmente ela se encontra em 37 países, com representação em 1730 campiuniversitários, envolvendo 72.000 estudantes e tendo impactado a vida de 1.300.000 pessoas (Enactus, 2019a).
A Enactus foi fundada em 1975, nos Estados Unidos, com o nome SIFE (Students in Free Enterprise). Em 2012, porém, ela foi rebatizada com o atual nome, que é uma sigla para Entrepreneurial Action Us. Em cada país no qual a organização se faz presente, há um escritório local dela, que tem como funções principais: difundir a prática pelas universidades do país; organizar a competição nacional anual; e conseguir financiamento e apoio corporativo de diversas ordens, para bancar e promover suas atividades.
O coração da Enactus está na atuação dos seus núcleos locais.1. No Brasil, essas equipes devem ter ao menos dez estudantes vinculados a uma universidade, podendo existir apenas um time Enactus por instituição ou campus. Além dos estudantes, cada time deve contar com pelo menos um professor conselheiro da universidade, encarregado de atividades que vão desde motivar o time a aconselhar seus membros sobre o rumo de suas carreiras 2. Ademais, é recomendável que cada time tenha um conselho consultivo de negócios, incumbido de fornecer mentoria, sugestão de projetos e oportunidades de financiamento, o qual se sugere que seja formado por gerentes e diretores de empresas, organizações educacionais ou membros da imprensa (Enactus, 2019b).
O grande motivador ou incentivo que a Enactus oferece para o trabalho dos times está na competição nacional e nos editais de financiamento ou outros tipos de apoio que as empresas parceiras lançam (Enactus, 2019b). Vitórias nesses dois âmbitos asseguram não apenas apoio para a continuação das intervenções desenvolvidas pelos times, como reconhecimento e contatos (ou networking) com pessoas importantes do mundo corporativo. Com isso, essas disputas ajudam, por um lado, na consolidação ou internalização dos critérios de excelência adotados nas avaliações que são feitas, conformando uma prática de intervenção em alguma medida uniforme para todos os times, e que os singularizam, em certo grau, como “times Enactus”. Por outro lado, além disso, elas facultam aos enactors contatos e (con)formação (de soft e hard skills, bem como de valores e visões de mundo) que podem se mostrar importantes para a futura inserção profissional deles e para sua formação mais ampla como cidadãos.
Pelos impactos pretendidos sobre os estudantes – a maioria dos quais, de engenharia (cf. abaixo) – e junto aos grupos vulneráveis ou excluídos socialmente, que são os principais beneficiários da intervenção dos times, a atuação da Enactus seria um tipo daquilo que tem sido chamado de engenharia engajada (EE) (Kleba, 2017). Outros tipos de EE praticadas no Brasil seriam, por exemplo, a engenharia popular (Fraga et al., 2020) e a engenharia humanitária (Alvear et al., 2022)..
Ainda, porém, que possam ser agrupadas sob um mesmo conceito e, com isso, que partilhem elementos em comum (como o fato de envolverem estudantes em atuação voluntária e terem como foco de intervenção grupos vulneráveis ou marginalizados), essas práticas podem ser bastante distintas, quando analisadas segundo algumas lentes ou questões específicas.
Neste artigo, buscaremos analisar criticamente a Enactus Brasil a partir de quatro questões ou temas principais: visão de tecnologia e engenharia que ela sustenta; impacto que ela busca produzir; metodologias de intervenção por ela adotadas; e visão de mundo subjacente a essa prática. Com isso, será possível situá-la melhor nesse amplo espectro da engenharia engajada, identificando-se: o ideal de mundo, de intervenção técnica e de profissional que ela busca.
De modo a podermos estruturar tal análise, o artigo está dividido em cinco partes principais, além desta introdução. Na próxima, será apresentada a metodologia segundo a qual a pesquisa que fundamenta este trabalho foi realizada. Na parte três, descreveremos em mais detalhes a Enactus Brasil e os quatro times que estudamos mais pormenorizadamente, sistematizando, além disso, as respostas às quatro questões norteadoras desta pesquisa. Na parte quatro, esboçamos os fundamentos teóricos de onde partimos para, na parte cinco, analisarmos criticamente a atuação e o ideário da Enactus. Por fim, na parte seis, encerraremos com algumas observações gerais e uma síntese dos pontos fracos e fortes da prática da Enactus no Brasil.
Metodologicamente, esta pesquisa conjugou, de uma parte, análise de documentos oficiais da Enactus Brasil, entrevistas com atores-chave dela, leitura de artigos produzidos pelos times Enactus estudados e análise dos anais das quatro edições do Simpósio Nacional de Empreendedorismo Social Enactus Brasil até 2019 (2016-2019). De outra parte, procedemos a uma breve revisão bibliográfica sobre os estudos sociais da ciência e da tecnologia e sobre as engenharias engajadas, que suplementaram o acúmulo do grupo com respeito à reflexão sobre tecnologia e a prática da engenharia.
A revisão bibliográfica foi a primeira etapa do processo de pesquisa. Parte dos resultados dela se encontra sistematizado no item “Acúmulo teórico”. No que tange aos documentos estudados, são eles: Manual dos Times (2017, 2019b); Apresentação de dados gerais (Enactus, 2019a); Manual da competição (Enactus, 2019c); documentos de apoio para os times (2017); e os relatórios dos times analisados (disponibilizados no site da Enactus Brasil).
Para as entrevistas, que foram realizadas entre fevereiro e abril de 2020, iniciamos com a presidenta da Enactus Brasil, Joana Rudiger. Foi a partir da conversa com ela, e das sugestões dadas sobre times particularmente fortes, que selecionamos as equipes que iríamos analisar: UFPA (vencedor da competição nacional em 2019 e 2020); IFCE-Iguatu (vencedor das competições de nacionais de 2017 e 2018); Instituto Mauá (como um time forte na região metropolitana de São Paulo); UFRJ (por conta de ser da mesma universidade em que está sediado este projeto de pesquisa).No caso do time UFPA, a entrevista foi feita com Noel Orlet, membro mais antigo da equipe e ex-presidente dela. Para o IFCE-Iguatu, a entrevista foi realizada sobretudo com Kevin Brasil da Silva (membro mais antigo e ex-presidente do time), mas contou com a presença também de Túlio Araújo (diretoria de RH) e Rute (vice-líder de projeto). Pelo time Mauá, a conversa foi com a presidenta de então, Yasmin Enomoto. Na conversa com o time UFRJ, estavam presentes sete lideranças, além de sua presidenta, Isadora Fortuna. De todo modo, nas citações e referências, usaremos apenas o nome ou sigla da instituição ou campus (Iguatu, Mauá, UFPA e UFRJ).
Foi a partir da análise dessas entrevistas que se chegou às quatro questões que analisamos neste artigo, e que nortearam, daí em diante, nossa investigação sobre a Enactus: 1) Qual visão de tecnologia/engenharia a Enactus tem? 2) Qual impacto a Enactus quer produzir no mundo? 3) Qual metodologia os times adotam em sua intervenção? 4) Qual é a visão de mundo subjacente à atuação da Enactus?
De modo a fundamentar melhor as respostas a essas questões da parte dos times, decidimos analisar alguns dos artigos que cada um tinha publicado nos anais do Simpósio Nacional. No total, revisamos 28 dessas publicações .. Elas foram selecionadas, priorizando-se as edições mais recentes do Simpósio. A escolha delas se deu a partir da leitura, pelos autores do artigo, dos resumos das opções disponíveis para cada um dos quatro times estudados (68 artigos da UFPA, 45 do IFCE, 6 da UFRJ e 1 do Instituto Mauá de Tecnologia). Por meio dela, pudemos identificar as publicações que poderiam tratar mais diretamente dessas quatro questões que tínhamos em mente analisar.
Além dessa análise de alguns artigos em particular, fizemos uma análise bibliométrica do conjunto total deles, em número de 341 para as quatro primeiras edições do Simpósio (2016-2019).
A Enactus iniciou suas atividades no Brasil em 1998, vindo, entretanto, a expandir sua relevância nacional somente a partir de 2011 (Rudiger, 2020). São, ao todo, 120 times atuantes no país, contando com 2.800 estudantes e 210 projetos ativos, distribuídos entre universidades públicas e privadas.
O ENEB, Evento Nacional Enactus Brasil, é o maior evento promovido pela Enactus no país, reunindo anualmente membros, professores e empresários. Nele, acontece a competição nacional na Liga Principal, que premia o melhor time do país, que será também aquele que disputará a World Cup junto aos demais campeões nacionais, além da Liga Rookie, disputada por times que ainda não competiram anteriormente.
O pré-requisito para que os times participem da competição é que os projetos passem por uma pré-auditoria e sejam aprovados. Contudo, o número de vagas para a competição é determinado, podendo ou não ser limitado, de acordo com a resolução prevista no Manual da Competição (Enactus, 2019c). Aptos e inscritos, cada time tem 17 minutos para apresentar as atividades que desenvolveu durante o último ciclo aos juízes (que, na liga principal, são empresários e executivos das empresas parceiras da Enactus Brasil), que julgarão quais times passarão para as etapas seguintes da competição, até se chegar ao campeão nacional.
A premiação, de todo modo, não se restringe ao time campeão, estendendo-se às categorias “Time Revelação”, “Universitário do Ano”, “Professor Universitário do Ano”, “Alumni Enactus do ano”, “Alumni Mentor do Ano”, “Prêmio Alimentação em Foco”, “Prêmio de Ética e Integridade”, “Prêmio Inovação Social” e o “Prêmio ODS”, que premia 17 projetos contempladores de cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.5.
Essas competições se configuram como elemento central da dinâmica da Enactus. É a partir delas que, de acordo com Rudiger (2020), os estudantes desenvolvem certa familiaridade com a dinâmica empresarial.
Quanto à formação dos membros da rede, de acordo com dados da Enactus Brasil (2019a), metade dos 2.800 enactors no país era da área das engenharias, seguida por negócios (24%), pelas ciências médicas e biológicas (11%) e por direito e ciência da computação/informação (5%). A prevalência de estudantes de engenharia nos times pode ser encontrada igualmente na análise bibliométrica dos anais, que dá conta de que, dentre os 987 autores dos 341 artigos apresentados nos ENEBs, 427 (43%) são das engenharias.
Analisando-se a presença e atuação da Enactus por regiões geográficas, o Sudeste concentra 50% dos projetos desenvolvidos no país, seguido pelo Nordeste (29%) e Norte (11%) (ENACTUS, 2019a). No que tange, porém, ao volume de publicações, essa ordem se modifica, com o Nordeste concentrando 47% delas, seguido do Norte (23%) e do Sudeste (22%).2.1.
O time do IFCE-Iguatu foi fundado em 2015, contando, em julho de 2020, com 23 membros, dos quais oito eram do curso de química, 10 de geografia, três de serviço social e dois de tecnologia em irrigação e drenagem. Quanto aos projetos desenvolvidos pelo time, são eles:

O time Mauá foi criado em 2014, contanto, em julho de 2020, com 48 membros, sendo 45 dos cursos de engenharia e três do de design. Os projetos atualmente desenvolvidos pelo time são:

O time UFPA foi criado em 2014, contando, em julho de 2020, com 47 membros, dos quais 11 eram provenientes das engenharias, oito de arquitetura e urbanismo, sete de direito, nove de outros cursos de humanas, sete de outros cursos de exatas, três de biológicas e dois de artes. Seus projetos atuais são:

O time UFRJ foi criado em 2012, contando, em julho de 2020, com 31 membros, dos quais, 22 eram estudantes de engenharia, e os outros nove divididos nos cursos de economia (2), ciências sociais (2), educação física (1), serviço social (1), química (1) e administração (1). Seus projetos atuais são:

Como o evidenciam os dados da Enactus Brasil (2019a) e dos quatro times entrevistados, existe uma forte participação de estudantes de engenharia na Enactus. Pode-se depreender daí que muito da prática desses times envolva conhecimentos trabalhados na formação em engenharia e/ou o desenvolvimento de soluções tecnológicas, que é, classicamente, a principal atuação usualmente atribuída a engenheiros. Nesta primeira seção de apresentação do ideário e da prática da Enactus, buscaremos lidar com duas questões centrais: 1) como a prática da engenharia e a formação superior na área são vistas na Enactus? 2) o que se entende por tecnologia, qual tipo de produção tecnológica os times acreditam produzir e o que se busca com elas?
Como o explicita de forma direta a presidenta da Enactus, a compreensão mais geral da prática de engenheiros é como solucionadores de problemas: “o ethos da engenharia é isso, eu tenho problemas no mundo, complexos, como eu consigo ajudar a solucioná-los?” (Rudiger, 2020). Isso é assumido também, de forma explícita ou não, em todos os times entrevistados.
As soluções a serem construídas, além disso, requerem, de uma parte, a aplicação dos conhecimentos adquiridos em sala de aula (Iguatu, 2020; UFPA, 2020). De outra parte, a atuação no time alarga ou aprofunda a formação técnica em engenharia (UFPA, 2020).
Esse alargamento da formação é entendido pelos times em dois sentidos principais: o conhecimento de realidades de exclusão no mundo e a capacitação para colaborar com a transformação delas – que seria o principal atrativo para os estudantes que se vinculam aos times; e uma melhor capacitação para se atuar no mercado de trabalho, por meio do desenvolvimento das assim chamadas soft skills – que seria o objetivo principal de uma minoria, ainda que seja um resultado alcançado por todo enactor(UFPA, 2020; Iguatu, 2020; Mauá, 2020; UFRJ, 2020).
Em termos nacionais, além disso, a Enactus tem buscado se consolidar como caminho de formação universitária complementar à formação já oferecida pelas universidades, e que poderia ser enquadrada nos 10% de carga horária mínima para atividades de extensão curricular. Tal alternativa, além dos impactos pretendidos na formação dos enactors, seria atraente para as universidades também porque não significaria custos para elas (Rudiger, 2020).
Seja como for, as entrevistas e a quase totalidade dos artigos analisados não apresentam qualquer problematização mais elaborada da formação que as escolas de engenharia têm oferecido no país. No geral, a atuação na Enactus parece apenas somar com a formação provida, ampliando-a, sem questioná-la ou desafiá-la a se modificar de maneira mais estrutural. Uma única exceção que encontramos está em um artigo de 2019 de membros do time da UFPA, que advoga por mudanças mais substanciais na formação universitária em geral, de modo a que ela dê conta de formar empreendedores. Tais mudanças estariam relacionadas à introdução de disciplinas específicas sobre empreendedorismo e à abordagem empreendedora em disciplinas teóricas já existentes, que precisariam ser complementadas por práticas extensionistas condizentes (como os times Enactus) (Bordalo et al., 2019).
Quanto ao que compreendem por tecnologia e, em função disso, a entender se desenvolvem ou não tecnologia, três dos quatro times entrevistados divergem da compreensão da Enactus Brasil. Para esta, com efeito, o desenvolvimento de tecnologia está relacionado fundamentalmente à invenção de artefatos, de tecnologias digitais ou de substâncias novas (e à viabilização comercial disso) (Rudiger, 2020). Esse entendimento é compartilhado pelo time Mauá, que sustenta que só chega perto de desenvolver tecnologia de fato no projeto AMET, identificada com o tijolo orgânico. De sua parte, entretanto, os times de Iguatu, UFPA e UFRJ entendem que desenvolvem tecnologia, ainda que não em todos os seus projetos (Iguatu, 2020; UFPA, 2020; UFRJ, 2020).
Em um ponto, contudo, Enactus Brasil e os times que entendem que desenvolvem tecnologia estão parcialmente de acordo: a tecnologia desenvolvida aqui é, via de regra, adaptação de tecnologias já existentes, de modo a torná-las economicamente mais acessíveis aos grupos com os quais esses times trabalham e, por vezes, mais adequadas à realidade destes (Rudiger, 2020; Iguatu, 2020; UFPA, 2020; UFRJ, 2020).
As soluções tecnológicas desenvolvidas pelos times Enactus, além disso, têm geralmente como horizonte a constituição de um negócio social, seja para o time, seja para o grupo assistido. Neste segundo caso, trata-se fundamentalmente do tipo de empoderamento que a Enactus de maneira geral busca produzir, o empoderamento econômico dos grupos assistidos.
Quanto a projetos se tornarem negócios sustentáveis para o time que o concebeu, o exemplo mais exitoso disso no Brasil é o do Amana Katu, do time UFPA (Brito et al., 2019). O time Iguatu, de sua parte, tem uma busca clara nessa direção, já desenvolvendo estratégias de financiamento de suas atividades por meio de outras fontes, que os editais da Enactus e as premiações que recebem (Iguatu, 2020). Já os times de Mauá e da UFRJ, ainda que mencionem o interesse de parte de seus membros em atuar profissionalmente no campo do empreendedorismo social, por meio, por exemplo, de negócios sociais, não parecem estar muito avançados na construção disso.
Tal perspectiva de viabilização econômica das soluções técnicas construídas (de modo a torná-las escaláveis e acessíveis a outros grupos que aqueles com os quais o time atuou inicialmente) e de constituição de um negócio social a partir disso é algo buscado e encorajado pela Enactus Brasil (Rudiger, 2020), e que tem, na opinião de alguns, peso desproporcionalmente alto nas competições (Iguatu, 2020).
Em suma, subjaz, implícita ou explicitamente, às falas das pessoas entrevistadas e aos artigos analisados uma dupla compreensão sobre a tecnologia: 1) as soluções técnicas devem ser escaláveis, de modo a tornarem viável um negócio (social) com a venda delas; e 2) para além da maior acessibilidade (em termos econômicos e da realidade dos grupos assistidos), nenhuma outra grande mudança, com respeito à tecnologia convencional disponível, precisa ser buscada.2.3.
2.3.Impacto da Enactus em sua atuação
Na perspectiva dos times entrevistados, o maior impacto da atuação deles, ou o impacto principal que parece motivar a maioria dos enactors, é a transformação da realidade, ainda que de uma realidade bem local (de uma comunidade ou um grupo de pessoas).
De longe, por aquilo que se observa nas entrevistas, nos projetos dos times analisados e nos artigos, o grande impacto perseguido é o impacto econômico, a geração de renda
para grupos de pessoas carentes ou pobres, por meio, idealmente, da construção de negócios sociais a serem tocados por elas. “A nossa busca é em transformar e entregar um empreendimento para as pessoas que vivem nessas condições [de pobreza ou vulnerabilidade social]” (UFRJ, 2020).
Para tanto, parte central do trabalho dos times consiste em atividades de capacitação, cujo fim pretendido é, basicamente, o de tornar as pessoas assistidas empreendedoras elas mesmas, isto é, capacitadas a tocar criativamente os negócios construídos com a assessoria dos times. Disso decorre – ou se espera que decorra – não apenas o empoderamento econômico de tais pessoas, como um crescimento em autoestima e em confiança em si mesmas, e a capacidade de realizar seus próprios sonhos.
“A gente tem vídeo de agricultor dizendo “meu filho só comia banana, mas hoje eu consigo comprar uva, consigo comprar maçã, consigo comprar goiaba”. [...] Uma pessoa não tinha uma mochila, e o pai conseguiu comprar uma mochila. [...] Um quarto que é construído em uma casa que tinha dois cômodos. [...] É realização de sonhos” (Iguatu, 2020).
Além deste, ao menos outros três aspectos estão presentes – e são buscados como impactos do time no mundo – em ao menos parte dos projetos de todos os times analisados: superação de vulnerabilidades sociais; sustentabilidade; e empoderamento feminino.
Ainda que questionem, por vezes e pontualmente, a ausência de políticas públicas para segmentos marginalizados da população (Brito et al., 2019) e de “políticas econômicas que respeitem os menos favorecidos” (Medeiros, 2019, p. 897), ou vislumbrem uma parceria com o poder público no futuro (UFPA, 2020; UFRJ, 2020), a atuação dos times não tem assumido o diálogo com o poder público e a disputa por essas políticas como uma atuação que se tenha buscado desenvolver de fato até agora.
Não obstante essa clara compreensão dos times com respeito àquilo que, para eles, parece ser o principal impacto de sua prática no mundo, o entendimento da Enactus Brasil (sobre qual é esse impacto principal) é a formação dos jovens universitários na perspectiva do empreendedorismo:
“A gente tem lá os dados de quantas vidas impactadas etc. [...], mas você sabe qual é o maior impacto? É na formação dos jovens. [...] eles vão ser os multiplicadores dessa consciência ambiental e social, até a mentalidade da integridade [...] Eu estou formando a próxima geração de profissionais [...] [que tem] esse olhar para o mundo, para a ação para a solução dos problemas” (Rudiger, 2020).
2.4. Metodologia de intervenção dos times
Nas entrevistas, quando perguntados, todos os times deram como primeira resposta à questão sobre quais metodologias adotam em suas intervenções o design thinking. Isso não significa que eles não adotem, na verdade, um pool de ferramentas metodológicas ou técnicas diferentes. De fato, o time da UFRJ, por exemplo, afirma estar aberto a diferentes metodologias, lançando mão também, por exemplo, de human-centered design (Barbosa et al., 2019). Contudo, nos termos do time da UFPA, que também faz uso de diferentes instrumentos metodológicos, “a metodologia que unifica [todos os projetos] é o design thinking” (UFPA, 2020).
Seja como for, só conseguimos encontrar indícios de uma reflexão metodológica mais desenvolvida nos relatos (entrevistas e artigos analisados) dos times da UFRJ e UFPA. O nosso ponto aqui é menos o de buscar apontar quais são os métodos adotados ao longo dos projetos de intervenção dos times, e mais o de identificar, a partir deles, o lugar que é dado ao grupo assistido nesses projetos.
Nesse sentido, pode-se dizer, como uma primeira observação, que existe em todos os times uma preocupação em se escutar a comunidade ou grupo assistido. Não é apenas, porém, o modo com que essa escuta é feita que varia de time para time. Também varia aquilo que parece que se objetiva com ela. Assim, se o time da UFRJ parece buscar que a comunidade tanto aponte suas demandas quanto participe da construção das soluções destas (UFRJ, 2020), o de Iguatu já aborda as comunidades com uma proposta pré-definida (como no projeto Mudas), que é, quando necessário, adaptada às especificidades de cada grupo (Iguatu, 2020).
Entretanto, mesmo quando se assume que o grupo assistido deva participar da construção da solução para as demandas que eles próprios apontaram (como no caso do time da UFRJ), essa participação parece se dar de uma forma mais reativa do que propositiva, isto é, validando ou não as propostas de solução do time, em lugar de co-construindo com este tal solução (UFRJ, 2020).
Além disso, a compreensão de co-criação (ou co-construção) que ao menos o time da UFRJ desposa enfatiza um diálogo com projetos desenvolvidos por outras equipes técnicas, em outros lugares, em vez de um diálogo com o grupo assistido.
“E a ideia de um projeto Enactus é a co-criação. Então, o que a gente busca fazer com a co-criação é puxar ideias de outros lugares e fazer com que elas se apliquem para a realidade, para as necessidades sentidas” (UFRJ, 2020).
Em todos os times, não obstante, reconhece-se que a adesão do grupo ao projeto e a apropriação deste pelo grupo é fundamental para que a intervenção tenha sucesso. Tal sucesso demandará, via de regra, além disso, algum tipo de capacitação do grupo assistido, que o ajude, seja a construir e/ou operar as soluções técnicas que serão entregues, seja a gerir o empreendimento coletivo ou individual que se está tentando construir ou aprimorar.
De maneira geral, pode-se dizer que, nos times analisados, os grupos assistidos são olhados com empatia e com desejo sincero de colaborar com o empoderamento deles ou a mitigação das vulnerabilidades a que estão sujeitos. Há, além disso, um senso de responsabilidade e de justiça, segundo o qual os times se reconhecem privilegiados (geralmente, pela oportunidade de acesso ao conhecimento e/ou à educação superior gratuita e de qualidade) e, por conta disso, responsáveis por ajudar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades ou condições de melhorarem suas vidas (Iguatu, 2020; UFPA, 2020; UFRJ, 2020). Uma forma clássica, nesses times, para se proceder a isso é partilhar, de algum modo, o conhecimento a que os membros do time tiveram acesso na faculdade.
Nesse processo, os times não tematizam qualquer consideração sobre os saberes desses grupos em vulnerabilidade e suas visões de mundo específicas, nem desenvolvem qualquer análise crítica do conhecimento que obtiveram em suas universidades. E, por conta disso, nada (ou apenas muito pouco) desses pontos pode ser incorporado ao modo como os times atuam nas realidades locais, ou às soluções que acabam sendo construídas.
2.5. Visão de mundo subjacente à prática da Enactus
Como não poderia ser diferente, os times analisados e a Enactus Brasil entendem que um caminho poderoso – senão o caminho por excelência – para a transformação da realidade é o empreendedorismo social. A partir dele, pode-se alcançar a inclusão e a emancipação social, construindo-se “um espaço dentro das relações sociais mais digno e justo para grupos em vulnerabilidade socioeconômica” (Angelotti et al., 2019, p. 652 [UFRJ]). Com isso, é possível fazer-se frente a “um cenário marcado pela exclusão e marginalização de um segmento de indivíduos” (idem), aproximando-nos, como sociedade, da “equidade, harmonia e justiça social” (idem).
Os problemas a serem superados são, em alguns casos, entendidos como resultantes de um conjunto interligado de fatores, não como apenas falta fortuita de oportunidade, conhecimento e/ou competência. Atesta essa visão, por exemplo, a questão do empoderamento feminino (Brito et al., 2019, p. 112 [UFPA]), que é uma preocupação central nos quatro times analisados. Pode-se questionar, porém, se esse nível de análise se faz presente nas outras atuações dos times e/ou se ele, estando presente, ajuda a formular atuações mais efetivas para a superação das mazelas socioambientais identificadas.
De modo a subsidiar o empreendedorismo social, aposta-se ou se busca a parceria com a iniciativa privada. No âmbito da Enactus, como já dito, são as empresas que financiam o trabalho dos times, por meio de editais específicos e das premiações nas competições. É nesse sentido, então, que a Enactus Brasil defende algo como:
“Gostaria que o mundo empresarial brasileiro de modo geral [...] entende[sse] que se ele não ajudar o jovem profissional [universitário] a ser mais íntegro, mais ligado [...] à sociedade, talvez a sociedade não vá mudar. Eu tenho certeza que esse empresário também quer que a sociedade mude” (Rudiger, 2020).
De outra parte, os times tendem a reconhecer a necessidade – ou a pertinência – de parcerias também com o poder público, de modo a obter recursos para suas ações ou a contribuir, por exemplo, com a formação ambiental de setores da população (Iguatu, 2020; UFPA, 2020; UFRJ, 2020). Mas isso não quer dizer que não haja desconfianças com respeito à política institucional ou que o Estado não seja identificado mais como causa dos problemas do que como meio possível para superá-los. Assim, porque desconfiam da política institucional, não acreditam no Estado ou porque reconhecem a necessidade de parcerias com o poder público, independentemente de qual partido esteja no poder, os times Enactus, em suas palavras, pretendem ser “apolíticos” enquanto times.
A política acaba sendo deixada de lado na atuação e formação dos times, por ser entendida como desligada do empreendedorismo social em si - “eu não estou conseguindo nem fazer o empreendedorismo social [ainda] [para, então, poder trabalhar a politização]” (Rudiger, 2020) -, ou como se vinculando a ele apenas perifericamente, por meio da obtenção de financiamentos ou da regulamentação desse tipo de prática empreendedora, por exemplo..
Chegados a este ponto e de modo a apresentar os fundamentos da crítica que, na próxima parte, faremos à prática da Enactus Brasil, cumpre-nos apresentar, de forma sucinta (por conta do espaço que nos resta), os elementos centrais do acúmulo na reflexão sobre a tecnologia e a prática da engenharia.
Desde pelo menos a década de 1980, campos como o CTS (ciência, tecnologia e sociedade) entendem que toda solução tecnológica, seja material (como ferramentas, máquinas, edifícios e os sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica) ou imaterial (como algoritmos, procedimentos e metodologias), precisam ser disputadas politicamente (Feenberg, 1999, 2019b) Isso porque, por um lado, as soluções que são escolhidas para serem implementadas legislam sobre como nos organizamos coletivamente e como construímos nossa subjetividade (Boer, 2020). Com efeito, viadutos propositadamente baixos podem produzir um apartheid sem polícia (Winner, 2017), assim como algoritmos adequadamente montados encorajam fake news,6. do mesmo modo que podem reforçar estereótipos, conformar sonhos/projetos de vida e trajetórias existenciais (Benjamin, 2019).
Por outro lado, essas soluções são sempre uma escolha dentre várias outras soluções que seriam possíveis para um mesmo desafio técnico (Feenberg, 2019a;Cruz et al., 2020). Para essa escolha, são insuficientes critérios puramente “técnicos” (ou, de forma mais precisa, instrumentais) como eficiência, robustez ou durabilidade. Eles precisam ser suplementados por outros critérios, de cunho ético-político, como sustentabilidade ambiental, valor da vida humana e ideal de organização da vida social (Feenberg, 2019a).
Ou seja, a tecnologia que desenvolvemos é, ao mesmo tempo, resultado (em parte) dos valores ético-políticos que são considerados em seu processo projetivo, e força que conforma o mundo da vida. Disso decorre que toda solução técnica é, na verdade, uma solução sociotécnica (tanto por seu projeto/construção quanto por seus impactos) (Dagnino et al., 2004). E, como tal, ela 1) é democratizável, no sentido de que essa disputa política em torno do seu projeto/desenvolvimento não a desvirtua (contaminando-a com valores ético-políticos que lhe seriam supostamente estranhos); e 2) precisa ser democratizada, se quisermos ter alguma autonomia e impacto efetivos na estruturação das nossas vidas em comum e individuais.
No campo das engenharias, entretanto, o mais comum é que estas se coloquem como uma ciência-prática neutra de valores, desenvolvendo conhecimentos e tecnologias que podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal, dependendo de quem as usa (Marques, 2005). Por conta disso, as engenharias têm em geral uma visão instrumental da ciência e da tecnologia, assumindo-as como instrumentos neutros, que estão à nossa disposição para serem usados como quisermos (e na construção de qualquer ordem sociotécnica que desejemos) (Bazzo, 2015). Sendo assim, não faria sentido pensar em outras perspectivas de engenharia, já que a mera atuação padrão dela, assumida como a única que seria correta, geraria progresso e desenvolvimento para toda a sociedade.
Na verdade, entretanto, essa prática acrítica da engenharia, como já o denunciava Marx, em O Capital, põe os engenheiros a serviço da burguesia e de seu projeto de mundo, algo que permanece grandemente inalterado até os dias de hoje (Dagnino e Novaes, 2008). Isso é reforçado pelo fato de grande parte da engenharia ter suas pesquisas financiadas pela grande indústria e pelo setor militar, sendo direcionada, nelas, pelos interesses de seus contratantes (Latour, 2000, pp. 276-284).
Que esse quadro permaneça inalterado não significa dizer que ele represente uma prática monolítica. Com efeito, no Brasil, desde pelo menos o final da década de 1970, existem três vertentes principais para a prática da engenharia: uma que poderia ser chamada de neoliberal, que prega a modernização do país por meio da importação/ transferência de tecnologia estrangeira; outra, desenvolvimentista, que defende o desenvolvimento de tecnologia nacional, mas em conformidade com o ideário capitalista prevalecente; e uma, a menor das três, que defende uma engenharia a serviço das classes populares (Kawamura, 1979). É dessa última vertente que emergirá a tecnologia social (Dagnino et al., 2004), que se pretende libertadora e co-construtora de outros mundos ou outras ordens sociotécnicas possíveis.
As práticas de engenharia engajada talvez possam ser classificadas segundo essas três vertentes, em função do ideário de fundo que elas desposam e da realidade sociotécnica que ajudam a construir: “neoliberalismo global”; “capitalismo nacional”; ou outro mundo popular (ou do povo) possível. O ponto, contudo, é que nem sempre tais práticas se dão conta de tal filiação, pretendendo ou pressupondo um poder transformador de suas ações que elas talvez não tenham. Esse parece ser o caso da Enactus em vários quesitos. É a essa análise que nos voltamos, por fim, agora.4.
Nesta última parte, trataremos de problematizar a atuação da Enactus. Isso se dará em torno de três questões principais, que estão profundamente interconectadas: visão de tecnologia e engenharia; análises sistêmicas, disputas pelo Estado e transformação do mundo; diálogo de saberes e co-construção.
Um ponto importante para entender a análise que se construirá é que existe uma grande distância entre o que a Enactus Brasil propõe e a atuação e reflexão efetivas de cada time. Percebemos muitas vezes visões pouco refletidas, ingênuas ou acríticas dos membros dos times sobre suas ações, muito comum em alunos das engenharias que vêm de formações extremamente tecnicistas. Dessa forma, preferimos fazer uma análise das perspectivas a partir da atuação e reflexão dos times, sem lançar mão de uma crítica teórica a partir da literatura sobre empreendedorismo e/ou inovação social, até porque essa literatura é pouco utilizada pelos times, que, ademais, parecem ter pouca preocupação conceitual em suas ações.
4.1. Visão de tecnologia e engenharia
Parece inteiramente ausente da fundamentação da prática dos times e do ideário da Enactus Brasil toda essa reflexão sobre a tecnologia e a prática da engenharia desenvolvida na parte anterior, que data já de pelo menos 40 anos. Por conta dessa lacuna, é bastante improvável que os times consigam caminhar para a construção de um mundo mais justo, menos desigual e mais sustentável, como o que eles buscam, já que, na base das soluções sociotécnicas desenvolvidas, estão tecnologias cujo uso canônico produz ou reforça essa mesma ordem que se busca superar.
Pensemos, por exemplo, nas técnicas de gestão e de condução de empreendimentos. O mundo buscado pela Enactus parece requerer o desenvolvimento de competências ou virtudes como o cuidado e a solidariedade. São elas, com efeito, que possibilitarão que pessoas e o meio ambiente não sejam vistos como meras externalidades em face da atividade produtiva em questão. Ora, empreendimentos sociais governados pelas mesmas técnicas de gestão que governam o mundo corporativo e o empreendedorismo não social podem dar outros frutos que a não solidariedade (como outros seres humanos) e o descuidado (com humanos e não humanos) que empresas e empreendimentos atualmente produzem (e desde sempre produziram)?
O ponto aqui não é o de se conceber um mundo ideal e buscar construí-lo sem negociar as condições para tanto. O mundo real, claro, pressupõe negociações e fazer-se o possível a partir daquilo que está posto. Contudo, se quisermos avançar, pouco que seja, em qualquer direção, não basta apenas ter claro qual direção seja ela (e.g., justiça social e sustentabilidade), mas também de que modo as tecnologias convencionais disponíveis impedem que caminhemos nessa direção e quais outras tecnologias precisam ser construídas, para conseguirmos (ou buscarmos) dar os passos que queremos.
Essas tecnologias, dependendo do quão disruptivas pretendermos que elas sejam com respeito ao ordenamento social que quisermos que elas emulem ou sustentem, precisarão de engenheiros com competências e habilidades complementares, usualmente não trabalhadas nos cursos de engenharia (Cruz, 2019; Cruz et al., 2021; Fraga et al., 2011). É por isso que lutar por outra realidade e por outra tecnologia (que sustente essa outra realidade) requer que se lute, de alguma forma, por outra engenharia. Nesse sentido, que essa pauta esteja inteiramente ausente dos relatos dos times, exceto no que concerne à formação para o empreendedorismo social, só confirma esse ponto cego na reflexão crítica dos enactors.
De uma parte, a questão das análises sistêmicas dos problemas dialoga diretamente com o papel da tecnologia – e de engenheiros – na construção desses mesmos problemas. Se essas análises não englobam também as tecnologias, elas são insuficientes; se elas não ajudam a conformar as soluções que serão construídas, elas são em grande medida inócuas para a superação do problema que se tinha em mente resolver.
De outra parte, mesmo que se assuma uma perspectiva libertária com relação ao papel do Estado, desconsiderar que parte do problema – e da solução – é de responsabilidade do Estado – e só pode ser conseguida por meio dele – é uma limitação tanto da análise feita quanto, a partir disso, dos resultados que podem ser obtidos a partir de uma intervenção balizada por ela.
Como, contudo, pautar as transformações do Estado (assegurando-se, por exemplo, políticas públicas, conselhos consultivos etc.), sem se aproximar da política – e sem descriminalizá-la? Insistir em um certo entendimento de “apolítica”,7. como a Enactus Brasil e o time de Iguatu defendem, que encoraja uma despolitização, é, assim, um indício adicional de que não se compreende o papel político, legislador, das tecnologias e/ou de que as análises realizadas para embasar a transformação do mundo tenderão a produzir uma intervenção bem menos potente (ou transformadora) do que aquela que seria possível.
4.3. Diálogo de saberes e co-construção
É inegável que as atuações exitosas dos times Enactus podem propiciar ganho financeiro, aumento de autoestima, empoderamento (de gênero) e afins. Do modo, contudo, como é feita, ela também acaba produzindo aquilo que Paulo Freire chama de “invasão cultural” (Freire, 1987). No mesmo bojo dos estudos que mostram a não neutralidade da tecnologia, existem vários outros que mostram o mesmo para as diversas ciências (da natureza, sociais e humanas) (Lacey, 2014; Santos, 2016). O que eles apontam de relevante para a presente discussão é que, por meio de uma educação (formal ou não) não cuidadosa, pode-se impor aos educandos uma visão de mundo única, que costuma ser apesentada como universal ou, ao menos, a mais elevada, a melhor de todas. Trata-se, no caso dos conhecimentos acadêmicos convencionais, da visão colonizadora (que é capaz de subsidiar bem uma ordem que submeta as mulheres, os negros e a natureza). Essa é a invasão cultural de Freire. A construção de uma ordem mais justa, menos preconceituosa e mais sustentável requer o alargamento desses conhecimentos acadêmicos (Lacey, 2014, 2015; Santos, 2016).
Ora, a interação construída com os grupos assistidos pelos times Enactus tem fundamentalmente duas finalidades: 1) verificar interesses e demandas do grupo ou validar a pertinência, para este, das soluções ou ideias pensadas pelos times; e 2) capacitar os grupos locais, no sentido de entregar a eles conhecimento (de fundo acadêmico ou empreendedor) de que eles não dispõem. Em nenhum momento, nesse sentido, a interação parece permitir que o grupo exponha sua visão de mundo e seus saberes, ou, se o permite, não incorpora nada disso à solução que será construída ou ao processo de construção dela. Com isso, o que os times parecem produzir é uma inclusão social – no mercado e na visão de mundo colonial que o sustenta e é sustentada por ele –, que, nesse sentido, é profundamente desempoderadora desses grupos, porque os impede de construir um ordenamento social mais de acordo com suas próprias visões de mundo.
Já o empoderamento ou emancipação decolonial, que Paulo Freire e a filosofia latino-americana chamam de libertação (Freire, 1987;Dussel, 1996), só pode ser construído sobre uma base dialógica e profundamente respeitosa. É isso, aliás, que a educação popular de Freire (1983, 1987) busca produzir e que abordagens como a engenharia popular traduziram em caminhos metodológicos para a intervenção (ou assistência) técnica (Araujo et al., 2019), que pressupõem outros perfis profissionais, “engenheiros educadores” (Fraga et al., 2011).
Essa invasão cultural colonizadora produzida pelas intervenções dos times Enactus é mais uma prova da fragilidade das análises (conjunturais) feitas – quando o são – pelos times e do entendimento limitado destes sobre tecnologia e a atuação dos engenheiros. Trata-se, deve-se salientar, de limites às transformações que os próprios times, como se viu, parecem pretender ou almejar produzir em vários casos. Enquanto esses limites não forem superados, porém, a atuação dos times será certamente menos potente do que poderia ser.
A partir de todas essas análises, podemos definir de forma geral a atuação dos times Enactus dentro de uma vertente das engenharias engajadas que denominamos aqui como engenharia para o empreendedorismo social. Essa vertente teria como elementos centrais: 1) visão de neutralidade da tecnologia; 2) perspectiva liberal de inclusão pelo mercado (por meio do empreendedorismo dos próprios grupos vulneráveis assessorados); e 3) metodologias que partem de uma perspectiva de transferência de conhecimento dos engenheiros sabedores (do conhecimento verdadeiro ou melhor) para o povo ignorante (cuja miséria, exclusão ou vulnerabilidade decorre também da falta desse conhecimento).
A perspectiva de formação e atuação da Enactus Brasil filia-se claramente ao ideário capitalista neoliberal hegemônico, pretendendo ser uma forma de, a partir de um livre empreendimento comprometido com certos valores de responsabilidade social e sustentabilidade ambiental, reduzir mazelas que, em última análise, são produzidas por esse mesmo capitalismo. Ou seja, a Enactus aposta no instrumental e no ideário hegemônicos do capitalismo (que estão na origem da exclusão) como modo de incluir alguns atores deixados historicamente à margem desse mundo.
Ela, nesse sentido do ideário capitalista, é bastante coerente, tanto com respeito aos termos (“empreendedorismo social”) e instrumentos formativos (competições) de que lança mão, quanto àquilo que mais profundamente busca (formar a próxima geração de empreendedores) e ao modo como pretende alcançá-lo (pela cooptação ainda maior da universidade para a formação para o empreendedorismo).8.
Assim, o fato de a Enactus Brasil não dar conta de incorporar à sua ação boa parte da crítica já consolidada com respeito à tecnologia e à prática da engenharia é resultado do posicionamento ideológico dela (vinculado ao pensamento capitalista hegemônico), que a torna ignorante de tal crítica, impede-a de compreendê-la ou a leva a julgá-la irrelevante ou equivocada. A perspectiva capitalista hegemônica, para a Enactus Brasil, é o modo como as coisas são. Modo que cumpre ensinar para as próximas gerações, cuidando, porém, para que estas sejam capazes de superar sequelas socioambientais não mais aceitáveis, seja porque põem em perigo a continuidade da vida, ou do “nosso modo de vida” (o modo de vida capitalista) neste planeta, seja porque indicam limites que deveriam ser superáveis pelo capitalismo (superação de vulnerabilidades) ou cuja superação pretensamente seria o próximo passo a ser dado na direção do bem-estar geral que apenas o capitalismo pode produzir.
Quando, porém, olhamos para a atuação dos times e a reflexão que eles fazem sobre ela, essa perfeita sintonia com o ordenamento e o ideário capitalista dominantes ainda não parece presente. É com relação aos times, assim, que toda a crítica que fizemos nas duas últimas partes deste texto faz sentido. O mundo que alguns deles, ou que alguns de seus membros parecem buscar construir não parece (inteiramente) alcançável pelo receituário hegemônico do empreendedorismo que a Enactus oferece.
Nesse sentido, parte do que a presente pesquisa aponta é que, para vários desses enactors, o que falta para uma compreensão mais crítica sobre a realidade e, a partir disso, uma prática mais assertiva (ou coerente) para tentar mudá-la (segundo perspectivas contra-hegemônicas) é justamente ter contato com essas críticas e/ou com iniciativas que buscam construir tais transformações, por meio da engenharia e/ou de soluções sociotécnicas, segundo ideários críticos (como a engenharia popular ou a engineering for social justice and peace,9. por exemplo).
Seja como for, analisada de uma forma geral, a Enactus, na condição de uma prática engajada da engenharia (ainda que uma prática não crítica), apresenta alguns importantes pontos fortes: potencial de atração de estudantes sob a forma de voluntariado; potencial de formação para o empreendedorismo (social); potencial de produzir espaços de atuação profissional desses estudantes após formados; acesso dos times a recursos captados junto à iniciativa privada pela Enactus Brasil (os editais); grande difusão no país; diversidade de atuações com relação tanto a grupos assistidos e tipos de empreendimentos construídos, quanto ao modo como a intervenção é construída. No âmbito das engenharias engajadas críticas, alguns desses pontos constituem as principais fragilidades de várias delas (Kleba e Cruz, 2020). Apenas por tais fortalezas, assim, conhecer melhor a Enactus e buscar trocas e eventuais parcerias com seus times pode trazer bons frutos para essas práticas críticas e os impactos que elas buscam produzir no mundo.
Com respeito às fragilidades da Enactus, elas podem ser resumidas em: pouca reflexão crítica e (mais) sistêmica; redução do escopo de atuação a grupos locais, ausência de pretensão de se pautarem politicamente transformações do Estado que assegurem uma maior abrangência dessa atuação; empoderamento restrito à inclusão à ordem estabelecida, sem buscar transformá-la. Aqui, se as práticas engajadas críticas conseguirem construir um bom diálogo com times Enactus, elas podem talvez ajudá-los a darem passos com relação aos impactos que possam querer produzir, mas que, com o instrumental que a Enactus Brasil oferece, ficam impossibilitados de fazê-lo.
Celso Alexandre Sousa de Alvear, C. A., Cruz, C. C., Silva, M. e Paschoal, A. (2022). Engenharias engajadas: o caso da Enactus Brasil. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad —CTS, 17(especial: “Fronteras CTS en Argentina y Brasil”), 98-123. Disponível em: [inserte URL]



