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Controversias sobre seguranca na mineracao: efeitos dos rompimentos de barragens em documentos e debates em Brasil
Gabriela Blanco; Jalcione Almeida
Gabriela Blanco; Jalcione Almeida
Controversias sobre seguranca na mineracao: efeitos dos rompimentos de barragens em documentos e debates em Brasil
Controversias sobre seguridad minera: efectos de la rotura de presas en documentos y debates en Brasil
Controversies over Mining Safety: Effects of Dam Failures on Documents and Debates in Brazil
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 17, Esp., pp. 153-180, 2022
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)
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Resumo: O artigo investiga como a segurança/estabilidade de barragens de mineração é performada em documentos e debates públicos, após os rompimentos ocorridos em Mariana e Brumadinho (Minas Gerais, Brasil). Os documenos referem-se, dentre outros, à lei federal que cria a Agência Nacional de Mineração (ANM), à Política Estadual de Segurança de Barragens de Minas Gerais e a Resoluções e Notas Técnicas da ANM. Já o debate público refere-se a um fórum comunitário ocorrido em 2019 no município de Araxá (Minas Gerais). Com o intuito de complementar e demonstrar os lastros de alguns dos argumentos emergidos no debate, utilizam-se também excertos de três entrevistas realizadas em Araxá, no início de 2020, com atores diretamente envolvidos e/ou afetados pela mineração no município. O artigo descreve três movimentos que performam a segurança de barragens, a partir da: i) confiança na técnica; ii) incerteza na técnica; e iii) o que excede a norma e a técnica. Conclui-se que embora haja um esforço por “estabilizar barragens”, a partir de uma ênfase sobre métodos construtivos, as associações entre humanos e não humanos multiplicam as dúvidas e incertezas, lançando luz à constituição de modos outros de vinculação e concepção da(s) ciência(s) e da(s) técnica(s) em nossa sociedade.

Palavras-chave: controvérsias tecnocientíficas, segurança de barragens, conflito ambiental, mineração.

Resumen: Este artículo investiga cómo, tras las roturas en Mariana y Brumadinho (Minas Gerais, Brasil), la seguridad y la estabilidad de presas de relaves mineros son presentadas en documentos y debates públicos. Los documentos se refieren, entre otros temas, a la ley federal que creó la Agencia Nacional de Minería (ANM), a la política de seguridad de presas de Minas Gerais y a las resoluciones y notas técnicas de la ANM. El debate público se refiere a un foro de la comunidad llevado a cabo en 2019 en el municipio de Araxá (Minas Gerais). Con la intención de complementar y demostrar los antecedentes de algunos de los argumentos emergidos en el debate, el artículo presenta extractos de tres entrevistas realizadas en Araxá, a principios de 2020, con actores directamente involucrados o afectados por la minería en el municipio. El artículo describe tres movimientos relativos a la seguridad de presas: i) la confianza en la técnica; ii) la incertidumbre en la técnica; y iii) lo que excede a la norma y la técnica. Aunque hay un esfuerzo por “estabilizar las presas” a través de un énfasis en los métodos de construcción, este artículo concluye que las asociaciones entre humanos y no humanos multiplican las dudas e incertidumbres, arrojando luz sobre la constitución de otras formas de vincular y concebir la(s) ciencia(s) y la(s) técnica(s) en nuestra sociedad.

Palabras clave: controversias tecnocientíficas, seguridad de presas, conflicto ambiental, minería.

Abstract: This paper examines how the safety and stability of mining dams have been enacted in documents and public debates after the dam failures in Mariana and Brumadinho (Minas Gerais, Brazil). The documents considered here refer to the federal law that created the National Mining Agency (ANM, due to its initials in Portuguese), the Minas Gerais State Policy for Dams Safety and ANM’s Resolutions and Technical Notes, among others. The public debate addresses a community forum that took place in 2019 in Araxá (Minas Gerais). In order to complement and provide background to certain matters that arose during the debate, this paper presents excerpts from three interviews conducted in Araxá, in early 2020, with actors who were directly involved and affected by the mining operations in the municipality. The paper describes three mechanisms that enact dam safety assessment: i) the reliance on the technique; ii) uncertainty over the technique; and iii) that which exceeds the norm and the technique. Although there is an effort to “stabilize dams” that derives from the emphasis on construction methods, the findings of this research indicate that the associations between humans and non-humans raise new questions and uncertainties, shedding light on the formulation of other ways to integrate and conceive science(s) and technique(s) in our society.

Keywords: technoscientific controversies, dam safety, environmental conflict, mining.

Carátula del artículo

Artículos

Controversias sobre seguranca na mineracao: efeitos dos rompimentos de barragens em documentos e debates em Brasil

Controversias sobre seguridad minera: efectos de la rotura de presas en documentos y debates en Brasil

Controversies over Mining Safety: Effects of Dam Failures on Documents and Debates in Brazil

Gabriela Blanco
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil, Brasil
Jalcione Almeida
Université de Paris X, França, Francia
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 17, Esp., pp. 153-180, 2022
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)

Recepción: 13 Diciembre 2021

Aprobación: 07 Febrero 2022

Introdução

Em novembro de 2015, a barragem do Fundão da Samarco Mineração (joint venture formada pela Vale S.A e BHP Billiton) rompeu-se no município de Mariana, Minas Gerais, 1 ocasionando um rastro de destruição ambiental com efeitos ainda hoje incalculáveis. Além da morte de 19 pessoas e um aborto provocado (entre moradores da região e funcionários da empresa), a lama tóxica destruiu centenas de imóveis, contaminou o rio Doce, 2 provocou a morte de toneladas de peixes e seus efeitos desastrosos se estenderam aos estados do Espírito Santo e Bahia. Dada a proporção do desastre, o caso ganhou expressiva cobertura midiática na época e cresceu o debate sobre o tema.

Em janeiro de 2019, pouco mais de três anos do rompimento da barragem do Fundão, um novo desastre assombrou o país: no município de Brumadinho, também no estado de Minas Gerais, rompeu-se a barragem do Córrego do Feijão - igualmente da empresa Vale S.A – causando a morte confirmada de 265 pessoas e o desaparecimento de outras cinco (até o momento da redação deste artigo). Logo após a confirmação do rompimento, ao comparar o caso de Mariana com o de Brumadinho, o diretor da companhia, Fábio Schvartsman, afirmou que o “impacto” dessa vez seria “mais humano” que ambiental (Rodrigues, 2019). Por meio de sua declaração, evidenciou-se, por um lado, a tentativa de estabelecer uma natureza apartada do social e, por outro, uma sociedade composta de humanos que, não obstante, têm suas vidas e existências valoradas, cotidianamente, de maneira desigual.

Desde uma perspectiva sociológica, os estudos sobre desastres no Brasil possuem uma trajetória de mais de duas décadas, abarcando eventos críticos como enchentes e inundações, secas extremas, colapso de barragens, deslizamentos de terra, processos de remoção e desterritorialização de comunidades e políticas públicas de atendimento às vítimas (Mattedi, 1999; Mattedi; Butzke, 2001; Valencio et al., 2009; Valencio, 2010; Siena, 2012). Ainda que as definições sejam múltiplas, há um consenso a respeito da impossibilidade de se considerar os desastres como “situações imprevistas que virtualmente atingem todas as pessoas e grupos sociais de forma indistinta” (Fleury, 2021, p. 115). Ao contrário, os desastres são analisados “com base nos nexos socio-históricos significativos que transcendem a tragédia local” (Valencio; Valencio, 2010, p. 4) e afetam de modo desigual grupos sociais distintos.

Assim, os estudos sobre desastres evidenciam que a distribuição dos riscos não é equitativa. A partir dos desastres da mineração mencionados, observa-se a ampliação significativa do campo de estudos, fortalecendo-se sua articulação com discussões sobre racismo ambiental, neoextrativismo, economia política, conflitos ambientais e ação coletiva (Zota; Trocate, 2016; Milanez; Losekann, 2016;Zhouri, 2018;Losekann; Mayorga, 2018;Castro; Carmo, 2019). A mineração é associada, nesse sentido, à produção de desastres permanentes e persistentes, de modo que o rompimento de uma barragem é tomado como um evento crítico que compõe um processo contínuo de violências, espoliações e, também, resistências.

Ademais, Andréa Zhouri et al. (2018) destacam que os desastres recentes da mineração se referem a desastres sociotécnicos, na medida em que as “falhas” em infraestruturas tecnológicas não podem ser compreendidas como meros “erros técnicos”, mas sim como o resultado de imbricados processos de produção de vulnerabilidades e exposição das populações ao risco. A centralidade que a tecnologia adquire em tais eventos, assim como a necessidade de problematizar sua “purificação” – ou seja, sua pretensa neutralidade, objetividade e separação do social – aproximam as reflexões sobre desastres ao campo dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESCT) e, de modo mais direto, à Teoria Ator-Rede (TAR). 3

Associada às etnografias de laboratório de Bruno Latour e Michel Callon, assim como de John Law e Annemarie Mol, a TAR se caracteriza pela defesa de que “não se pode compreender a ação humana [e] a constituição de coletivos sem levar em conta a materialidade, as tecnologias e os não humanos” (Callon, 2008, p. 307). Considerando a realidade como constituída por redes que vinculam elementos heterogêneos de natureza e cultura, esses autores direcionam o olhar ao modo como a ciência e a tecnologia produzem fatos que estabilizam a realidade.

Para Latour (2017), o trabalho científico e técnico tende a se tornar invisível em decorrência de seu próprio êxito. Enquanto os artefatos funcionam, não nos preocupamos - e nem sabemos explicar – como eles funcionam, ou, em suma, o que sustenta suas existências. Isto só se torna uma questão quando artefatos param de funcionar, quando há um rompimento no fluxo esperado da ação. Nesse sentido, pode-se dizer que, “paradoxalmente, quanto mais a ciência e a tecnologia obtêm sucesso, mais opacas e obscuras se tornam” (Latour, 2017, p. 364). Em síntese, o sucesso da ciência e da tecnologia passa pela produção constante de “caixas-pretas”.

O que se mostra pertinente, portanto, é a análise acerca do que os cientistas/técnicos fazem, e não tanto o que eles dizem que fazem. Annemarie Mol (2002) utiliza o conceito de performance – do inglês, performance, enactment e enact – com o sentido de “fazer existir, promulgar, tornar efetivo”, referindo à busca por descrever como as práticas, de formas múltiplas, “fazem existir” algo. Não se trata, portanto, de pensar uma realidade existente fora das práticas, mas sim, como as práticas criam realidades.

Nesse sentido, as contribuições da TAR possibilitam problematizar o caráter informativo assumido pela ciência e a técnica em debates públicos, quando da presença de controvérsias que envolvem os riscos de artefatos por elas produzidos. 4 Diante dos rompimentos de barragens de rejeitos e seus múltiplos efeitos sobre diferentes modos de existência, caberia uma resposta pautada na crença em uma técnica neutra, que é apenas um meio, um recurso inerte, uma técnica apartada da política? O que os artefatos nos falam acerca disso? Ao descrever as associações que conformam a tecnologia e os seus efeitos sobre diferentes modos de existência, busca-se superar a bipartição entre sociedade e natureza que se encontra intrínseca aos posicionamentos que enquadram, por exemplo, desastres da mineração a “falhas” que podem ser corrigidas por meio de uma tecnologia mais avançada.

Nesse artigo, direcionamos o olhar aos efeitos produzidos pelos rompimentos das barragens de rejeitos do Fundão e do Córrego do Feijão sobre uma questão em particular, qual seja, a segurança das barragens de mineração. Nosso interesse é o de investigar o modo como barragens seguras/estáveis são performadas (Mol, 2002) em documentos e debates públicos, ou a) quais proposições emergem para definir e “encaixar” o que seria uma barragem segura? e b) quais outras se intercruzam e nos informam acerca do que excede as definições e produzem novos embates?

Para tanto, mobilizamos documentos como a Lei federal no 13.575/2017, que cria a Agência Nacional de Mineração (ANM), a Lei estadual no 23.291/2019, de Minas Gerais, que estabelece a Política Estadual de Segurança de Barragens, assim como resoluções e notas técnicas da ANM, a fim de descrever as proposições que emergem no setor minerário a respeito do que é, afinal, uma barragem segura. Em segundo lugar, analisamos um fórum comunitário ocorrido em 2019 no município de Araxá, sudoeste de Minas Gerais, que teve como objetivo discutir a segurança das barragens das duas mineradoras presentes no município (uma de nióbio e outra de fosfato), 5 após o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, no início daquele ano. A escolha pelo debate realizado em Araxá justifica-se pelo esforço de procurar romper com uma concepção de efeitos limitada a atores e lugares diretamente afetados pela passagem geográfica da lama de rejeitos das barragens rompidas.

Por último, utilizamos também alguns excertos de três entrevistas realizadas em Araxá, no início de 2020, com atores diretamente envolvidos e/ou afetados pelas atividades minerárias no município: um geólogo aposentado da empresa de mineração de nióbio, a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM); um engenheiro mecânico aposentado da empresa de mineração de fosfato, atualmente Mosaic Fertilizantes, e uma produtora rural com propriedade ao lado da mina de fosfato. 6 Suas falas são mobilizadas para complementar e/ou demonstrar os lastros de alguns dos argumentos emergidos durante o debate público.7

A partir da seleção e leitura dos documentos de leis e normativas na íntegra, construímos categorias norteadoras da análise - por exemplo, “barragem segura” e “barragem insegura” -, de modo a possibilitar a descrição dos enunciados e proposições que circulavam em cada uma delas. Na sequência, fizemos o mesmo com a transcrição na íntegra do fórum comunitário de Araxá e das três entrevistas junto a atores diretamente envolvidos com a mineração daquele município. Dessa forma,

identificamos o que se reproduzia ou emergia como novo - produzindo novas categorias de análise - em relação aos documentos previamente analisados. 8 O argumento central aqui defendido é o de que os rompimentos recentes de barragens em Minas Gerais produziram a abertura de uma “caixa-preta” (Latour, 2017) que, até o momento, parecia obscurecer a existência de seus artefatos, multiplicando-se as controvérsias em torno ao seu funcionamento no Brasil. O que procura ser “estabilizado” por meio de, por exemplo, novas proposições acerca dos métodos construtivos das barragens, complexifica-se por uma profusão de dúvidas e incertezas sobre cálculos, parâmetros e, de modo mais profundo, pelas propriedades ontológicas do que se encontra em jogo, quando do questionamento acerca do que é, afinal, uma mineração segura.

Para além desta introdução, este artigo divide-se em três partes: a primeira apresenta a controvérsia sobre segurança de barragens de mineração a partir dos documentos analisados; a segunda explora a controvérsia a partir do fórum comunitário realizado em Araxá; e, por fim, a terceira tece algumas conclusões e aponta questões ainda em aberto para o estudo de controvérsias tecnocientíficas envolvendo a mineração no Brasil.

1. A controvérsia sobre segurança de barragens da mineração: seguindo os documentos

As barragens de rejeitos constituem-se em artefatos centrais às atividades de mineradoras. A partir dos desastres de 2015 e 2019, o questionamento sobre a existência de barragens seguras e, por consequência, de uma mineração segura, passa a engajar múltiplos atores. A definição em si de segurança torna-se disputável e a constatação das graves consequências dos rompimentos para diversos modos de vida – até hoje incomensuráveis – provoca engajamentos tanto no sentido de “dar soluções para a continuidade da mineração” como para reivindicar a sua completa impossibilidade.

Tratando-se dos documentos normativos sobre segurança de barragens no país, até a promulgação da Lei no 12.334 de 2010 – conhecida como Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) – não havia a indicação direta de responsabilidade pela fiscalização da segurança de barragens no Brasil. A promulgação da referida Lei definiu como órgãos federais fiscalizadores, em função do uso e tipo de rejeitos/efluentes armazenados nas barragens, a Agência Nacional de Águas (ANA), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) - atualmente Agência Nacional de Mineração (ANM) -, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Além disso, apresentou como obrigação dos empreendedores a elaboração do Plano de Segurança da Barragem, a Revisão Periódica de Segurança de Barragens e as Inspeções Regulares e Inspeções Especiais de Segurança.

No que se refere à construção de barragens de mineração, um ponto que ganha destaque é o modo como ocorre essa construção. De modo recorrente, grandes mineradoras tendem a construir e aumentar suas barragens por etapas, conforme a quantidade de rejeitos que é produzida. Até os desastres mencionados, os documentos normativos no Brasil – como a PNSB - não associavam a segurança das barragens aos seus métodos construtivos, ou a indicação da necessidade de alteração do modo como barragens eram construídas no país. Contudo, após os desastres, ganha centralidade a necessidade de eliminação de um dos principais métodos de construção – o método de linha a montante – referente, não por acaso, ao método utilizado nas barragens do Fundão e Córrego do Feijão.

Pelas definições dadas nos documentos, barragens construídas pelo método de linha a montante são aquelas em que os rejeitos se tornam a base de sustentação para os alteamentos (elevações), de modo que a área da barragem se expande verticalmente. Por outro lado, no método denominado de linha a jusante, os alteamentos são feitos a partir do dique principal da barragem (aumentando-se horizontalmente a área da barragem), a fim de que seus rejeitos sejam empilhados em um terreno já conhecido e detalhado na fase de projeto. Por fim, no método de linha de centro, considerado intermediário, constrói-se uma fração da barragem a jusante, sobre uma fundação conhecida e caracterizada, e uma parte a montante, construída sobre o rejeito.

Em julho de 2016, o DNPM determinou a suspensão das análises e aprovações de novos requerimentos de concessão de lavra para barragens de rejeitos que tivessem em seu projeto o método construtivo a montante. Em 15 de fevereiro de 2019, após o rompimento da barragem em Brumadinho/MG, a ANM publicou a Resolução no 4 que proíbe a construção de barragens a montante no país e, para aquelas em operação ou inativas, estabelece o prazo de no máximo três anos para efetuar sua descaracterização ou descomissionamento. 9 Argumenta-se que barragens a montante possuem um risco mais elevado de rompimento, a exemplo dos casos das barragens de Mariana e Brumadinho.

Também na Lei no 23.291, publicada em 25 de fevereiro de 2019, que institui a Política Estadual de Segurança de Barragens de Minas Gerais, encontra-se a proibição à concessão de licença ambiental para operação ou ampliação de barragens que utilizem o método de alteamento a montante. Ademais, na Resolução no 2.784, de 21 de março 2019, feita em conjunto pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM) de Minas Gerais, determina-se a descaracterização de todas as barragens de contenção de rejeitos e resíduos, alteadas pelo método a montante, provenientes de atividades minerárias no Estado.

Assim, a partir de 2015, e de modo mais intenso em 2019, há uma grande mobilização de atores visando encerrar a controvérsia em torno às barragens de rejeitos da mineração, enfocando a eliminação do método construtivo a montante. A proposição que ganha força é a de que haverá barragens mais seguras se elas não forem construídas pelo método a montante. Em muitos momentos, portanto, observa-se a tentativa de enquadrar os desastres recentes da mineração como uma fatalidade decorrente de um método construtivo obsoleto.

O atestado de segurança/estabilidade das barragens é dado por um documento denominado Declaração de Condição de Estabilidade (DCE), composto pela declaração do empreendedor e de um responsável técnico. A divulgação feita pela ANM a cada semestre da listagem das barragens que tiveram sua DCE aprovada ou rejeitada informa aos demais atores acerca de quais barragens estão dentro dos novos parâmetros de segurança. A listagem tem adquirido expressiva repercussão nos meios de comunicação do país e sua divulgação passou a ser esperada e debatida nas localidades onde há a presença de grandes empreendimentos minerários. 10

Conforme os dados disponibilizados pela ANM, o número de barragens inseridas na PNSB passou de 425 para 436, entre 2019 e 2020 e, neste mesmo período, o número de barragens interditadas passou de 56 para 45. 11 Os critérios de enquadramento de barragens nesta Política são: i) altura igual ou superior a 15 metros; ii) volume igual ou superior a três milhões de metros cúbicos; iii) resíduo classificado como perigoso; e iv) categoria de dano potencial associado, médio ou alto. A distribuição das barragens, quanto aos seus métodos construtivos e aos respectivos percentuais, dentre estes, de barragens interditadas por falta de DCE, no período referenciado, pode ser vista na Tabela 1 a seguir:




O primeiro ponto a destacar é que, a partir da classificação das barragens inseridas na PNSB, observa-se que o método construtivo mais numeroso é o de etapa única -aquele que não prevê alteamentos em sua estrutura. No total de barragens interditadas por não entrega de DCE ou por não terem atestado estabilidade foram as que figuraram como de maior número no segundo semestre de 2019 (19 barragens de um total de 56) e de segundo maior número em 2020 (15 em 45). Ainda assim, quando da análise do percentual das barragens interditadas por seu respectivo método construtivo, observa-se que as barragens de etapa única são as que apresentam o menor percentual de instabilidade (9,3% - 7,3%), reforçando o argumento de que a realização de alteamentos tende a aumentar os riscos de rompimento de barragens.

Tratando-se, por outro lado, das barragens construídas por métodos que pressupõem alteamentos, uma nova informação emerge: ainda que as barragens do método a montante sejam expressivas entre as barragens interditadas no segundo semestre de 2019 e 2020 (17 e 16 barragens, respectivamente), elas não são as que, necessariamente, apresentam o maior percentual de instabilidade. No ano de 2019, por exemplo, foram as barragens de linha de centro as que tiveram o maior percentual de DCE não entregues ou não estáveis (23,3%), seguidas pelas barragens a montante (20,2%). Já no final de 2020, houve uma diminuição do percentual de instabilidade das barragens de linha de centro (8,3%) e um aumento do percentual de instabilidade das barragens a montante (26,2%).

Dado que os relatórios de entrega de DCE são divulgados semestralmente, é de se esperar que, a cada período, haja alterações nesses percentuais. Ainda assim, cabe destacar que a despeito dos esforços por associar de modo direto barragens inseguras às barragens construídas pelo método a montante, os próprios dados técnicos apresentados tendem a produzir novos questionamentos, excedendo os enquadramentos pretendidos e tensionando o conceito de estabilidade. Como nos lembra Latour (2000, p. 53), “quanto mais nos dirigimos da vida ‘cotidiana’ para a atividade científica, do homem comum para o de ciência, dos políticos para os especialistas, não nos dirigimos do barulho para o silêncio, da paixão para a razão, do calor para o frio. Vamos de controvérsias para mais controvérsias”.

Em 2019, um documento da empresa TÜV SÜD Bureau de Projetos e Consultoria Ltda, que havia sido responsável por atestar a estabilidade da barragem do Córrego do Feijão antes do seu rompimento, acionou novos elementos à controvérsia em torno à segurança de barragens no país. No documento, conhecido por meio de uma ação civil pública do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) direcionada à interrupção das atividades e adoção de medidas de segurança na Mina do Córrego do Meio, também da Vale S.A, no município de Sabará, a empresa afirma que

“À luz do desastre da ruptura da Barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão, das notícias publicadas até o momento e do fato que a sua causa de origem ainda não pôde ser estabelecida até esta data, após considerações minuciosas, nós perdemos a nossa fé na estrutura e prática do mercado, de modo geral, atualmente adotada para averiguar a segurança e a estabilidade de barragens de rejeitos. Há uma grande incerteza se as DCEs consistem em uma declaração confiável sobre o status de estabilidade das barragens e se essas declarações podem ser consideradas apropriadas para proteção

adequada contra riscos graves gerados por barragens de rejeitos, em particular para vidas humanas e o meio ambiente” (TÜV SÜD apud MPMG, 2019, pp. 11-12, grifos acrescidos).

No caso acima mencionado, as consequências da tentativa de encerramento de um artefato em uma caixa-preta, sustentado pela crença na existência de uma técnica neutra e segura, ganham enorme centralidade. No momento em que o artefato deixa de funcionar, que uma ruptura se estabelece e o modo como ele age é colocado em questão, aqueles que até então atestavam sua confiabilidade afirmam “perder a fé na estrutura e prática do mercado” e serem tomados de “grande incerteza”. Mas o que, afinal, se rompeu? O rompimento da barragem do Córrego do Feijão – assim como o da barragem do Fundão - não produziu apenas um clima de “incertezas” entre especialistas, mas transportou junto à lama de rejeitos uma controvérsia que nos diz acerca de como modos de existência podem ser profundamente afetados - ou mesmo Revista CTS, número especial, diciembre de 2022 (153-180)Gabriela Blanco e Jalcione Almeida violentamente inviabilizados - pelos esforços em se manter artefatos encerrados dentro de caixas-pretas.

2. A controvérsia em um debate público: o fórum comunitário de Araxá, Minas Gerais (Brasil)

No dia 27 de março de 2019, ocorreu na Câmara Municipal de Araxá um fórum comunitário com o objetivo de discutir a segurança das barragens das duas empresas mineradoras no município, CBMM e Mosaic Fertilizantes. O fórum teve duração de duas horas e meia e, de um total de 19 vereadores da Casa, nove estiveram presentes no dia e oito se manifestaram. Os vereadores de Araxá haviam visitado as minas logo após o desastre ocorrido com a barragem de rejeitos em Brumadinho. Na ocasião, obtiveram a informação de que suas barragens estavam todas dentro dos padrões de segurança, sem qualquer “anormalidade”. Não obstante, logo após a visita, a barragem B1/B4 da Mosaic Fertilizantes foi declarada em situação de emergência pela ANM e todas as operações foram paralisadas. Diante da divergência entre o informado durante a visita e o notificado em seguida, os vereadores decidiram promover o fórum comunitário.

O fórum teve início com a fala do vereador propositor, Fabiano Cunha. Segundo ele, o Poder Legislativo não detém conhecimento técnico para avaliar a segurança de barragens de mineração e, nesse sentido, faz-se necessária a consulta a especialistas para “esclarecer a população” a respeito dos riscos e incertezas. Nas suas palavras, um dos pilares do Poder Legislativo “é dar voz à população, intermediar debates de interesse coletivo e contribuir na busca de soluções, primando sempre pela informação correta e pela verdade dos fatos” (Vereador Fabiano, 2019).

A fala do vereador elucida o que autores como Callon, Lascoumes e Barthe (2009) definem como uma “dupla delegação”, presente na realização de debates políticos sobre temáticas de ciência e tecnologia. Segundo os autores, a “dupla delegação” refere-se a duas grandes divisões/rupturas: a primeira é aquela que isola os cientistas (especialistas) em seus laboratórios, de modo que a sociedade (leigos) apenas espera/delega que o conhecimento apresentado seja sólido, certificado e sem espaço para dúvidas ou divergências; a segunda divisão separa cidadãos comuns de seus representantes eleitos. Através destes, é delegada a constituição do coletivo, cabendo aos cidadãos comuns apenas eleger, via cédula eleitoral, quem falará por eles durante o mandato. Assim, embora haja em debates públicos - como o aqui analisado – o pretenso objetivo de “dar voz à população”, seu efeito se refere mais a um registro retórico de presentes, do que uma prática de composição coletiva de caminhos para o que é intrinsicamente controverso e plural.

Ademais, a “dupla delegação” também expressa, no caso do fórum comunitário de Araxá, o lugar igualmente “leigo” da maioria dos legisladores, quando da análise de questões pertinentes à ciência e tecnologia. Como bem define Latour (2017, p. 226), “quando dizemos ‘esta é uma questão técnica’, significa que precisamos nos desviar por um momento da tarefa principal e que, ao fim, iremos retomar nosso curso normal de ação – o único enfoque digno de atenção”. A busca por ouvir especialistas e garantir a Revista CTS, número especial, diciembre de 2022 (153-180) 163Gabriela Blanco e Jalcione Almeida “informação correta” e a “verdade dos fatos” garante, assim, um retorno à estabilidade, a uma base segura sobre a qual seja possível seguir o fluxo normal da política que, claro está, não comporta “questões técnicas”. 12 No debate público de Araxá, o “esclarecimento de fatos” foi buscado, especialmente, pela presença de técnicos representantes das duas empresas mineradoras do município. Contudo, a Mosaic Fertilizantes, que possuía a barragem interditada, não compareceu, justificando, através de carta lida no início do fórum, que seus técnicos estariam totalmente dedicados à “busca da normalização da condição de segurança da barragem B1/B4” (Mosaic Fertilizantes, 2019). A presença de uma e a ausência de outra passaram a ser mobilizadas nas falas de vereadores durante o debate, destacando-se o argumento de que divulgar informações técnicas era dar mais conhecimento sobre os fatos, deixando a população mais segura.

Manter questões técnicas estabilizadas, encerradas em caixas-pretas, exige a articulação constante de múltiplos atores, sem garantia de sua permanência. Eventos críticos - como o rompimento de barragens da mineração - produzem controvérsias que desestabilizam a técnica tida como “fato” e abrem espaço para as incertezas. Tratando-se da controvérsia sobre a segurança de barragens da mineração, observou-se no debate público de Araxá a conformação de três movimentos principais, descritos na sequência deste artigo: i) a segurança performada pela confiança na técnica; ii) a segurança performada pela incerteza da técnica; e iii) a segurança performada pelo que excede a norma e a técnica.

2.1. “Vocês estão no último estágio da evolução tecnológica”: a segurança performada pela confiança na técnica

A diferenciação dos métodos construtivos de barragens, presente nos documentos analisados, balizou o debate produzido no fórum comunitário realizado em Araxá. O gerente de segurança de barragens da CBMM, Marcos Antônio Lemos, foi o primeiro a falar, expondo, através de números, gráficos, fotos de satélite e mapas, a caracterização das oito barragens que a empresa possui, assim como o seu sistema de monitoramento e segurança. Já no início de sua fala, afirmou que para falar de barragens, era necessário falar sobre métodos construtivos.

Ainda que o principal argumento encontrado nos documentos para “encerrar” o que se entende por uma barragem segura estivesse presente na fala do técnico, ele foi desdobrado num movimento de diferenciação entre a mineradora e a norma vigente. Conforme destacamos anteriormente, a construção pelo método a jusante ou linha de centro emergiu como uma exigência nos documentos nacionais e estaduais, a partir dos rompimentos de barragens em 2015 e 2019. Contudo, afirmou o gerente, a CBMM “sempre utilizou o alteamento para jusante” e, desde 2003, teria iniciado o processo de impermeabilização da estrutura de suas barragens, o que seria um “ponto de melhoria e de melhor prática”, ainda que não esteja difundida como uma exigência no cenário atual de segurança de barragens.

Do mesmo modo, como forma de demonstrar uma maior segurança de suas barragens, o gerente destacou que a empresa utiliza fatores de segurança acima dos exigidos pela normativa brasileira. Assim, a segurança das barragens passa a estar articulada a um conjunto de números e percentuais que atestam uma maior resistência e, portanto, a estabilidade de suas estruturas. O mesmo é mencionado para o processo de impermeabilização das estruturas. O cálculo a respeito do fluxo e níveis das águas dentro do maciço da barragem seria feito como se a barragem não fosse impermeabilizada, o que segundo o representante da empresa denotaria que eles agem “de modo mais conservador” ao esperado.

Na sequência de sua argumentação, emergiram os denominados Plano de Segurança de Barragem (PSB) e Plano de Ação de Emergência (PAE), produzidos pela empresa como parte das exigências da legislação vigente. 13 O PSB é um documento que compila informações das barragens, tais como projeto, realização de inspeções, manutenções, monitoramentos e leituras de instrumentos. Já o PAE é o documento que mapeia e descreve quem são os atores internos e externos à empresa que deverão agir, em caso de situação de emergência (simulando possíveis modos de falha) e como deverá ser feita essa ação (formas de comunicação, responsabilidades, entre outros).

É dentro do PAE que se insere a instalação de sirenes e placas de alerta na denominada zona de autossalvamento – definida como a área de percurso da lama desde o local de rompimento até os próximos dez quilômetros ou trinta minutos de percolação. Segundo o gerente, o estudo realizado pela empresa apontou que o trajeto da lama de rejeitos de suas barragens não seguiria em direção à Araxá, mas a uma represa que se localiza em sentido contrário ao da cidade. Dessa forma, na zona de autossalvamento “não haveria moradores”. Ainda assim, ao responder questionamentos de vereadores presentes, ele afirmou que, para além da zona de autossalvamento, há a presença de população ribeirinha que precisaria ser avisada, sendo que este aviso seria feito não por sirenes, mas por caminhonetes da Defesa Civil – instituída no município somente em 2019.

A apresentação dos Planos foi exaustiva acerca do que deve ser mapeado e como as orientações devem ser seguidas. Imagens das barragens, dos instrumentos de monitoramento e dos locais onde foram instaladas sirenes e placas foram mobilizadas, procurando dar validade à afirmação de que um sistema de controle e monitoramento, eficaz e neutro, estava em operação. Não obstante, chamou a atenção como, em determinado momento da fala, o gerente afirmou que, em última instância, a classificação de uma barragem nos níveis de segurança pré-estabelecidos pelo PAE –ou seja, a definição sobre se ela se encontra em uma situação de risco ou não – é dada pelo “sentimento do técnico ou do órgão fiscalizador” que faz o check-list da inspeção.

Além disso, ao se referir ao que, na prática, um técnico ou órgão fiscalizador observa na sua inspeção, um conjunto de elementos heterogêneos emerge, excedendo o “enquadramento” inicialmente feito sobre os métodos construtivos. A existência de trincas, deformações e recalques; o estado de conservação da cobertura vegetal; a presença de cupins e formigas; a umidade; o estado dos instrumentos de monitoramento e controle, entre outros, foram mobilizados pelo gerente para descrever o que é verificado numa inspeção. A estabilidade de uma barragem mostra-se, assim, sustentada por uma ampla rede de humanos e não humanos, que se vinculam de forma contingencial, complexa e múltipla.

A despeito desta heterogeneidade de elementos e da dimensão subjetiva das avaliações técnicas mencionadas, foi a associação entre segurança e método construtivo a jusante que circulou com maior intensidade nas intervenções de vereadores no fórum comunitário. O método construtivo a jusante reverberou como sinônimo de “evolução tecnológica” e preocupação com as “questões ambientais” e de “segurança”. Ao mesmo tempo, fortaleceu-se um antagonismo entre as empresas CBMM e Mosaic Fertilizantes, uma vez que esta, ausente do debate, possuiria barragens construídas pelo método a montante. Conforme a fala de um dos vereadores,

“A CBMM preza por essa boa convivência, por esse respeito, o que a gente não pode dizer o mesmo da coirmã, da outra mineradora, que nem ofício dessa casa responde. Então, eu pedi a palavra só para elogiar mesmo a CBMM (...) vocês estão no último estágio da evolução tecnológica de monitoramento de barragens” (Vereador Luís Carlos, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Do mesmo modo como a associação entre métodos construtivos e barragens seguras vem sendo reforçada por uma série de documentos anteriores ao debate público aqui analisado, o antagonismo entre a Mosaic Fertilizantes e a CBMM também possui uma história em Araxá. O nióbio é um metal considerado estratégico para a balança comercial do Brasil, uma vez que o país é o seu principal exportador mundial (na forma de liga ferronióbio), sendo responsável por 93,7% da produção mundial e 98,8% das reservas conhecidas no planeta (ANM, 2017). Do total exportado pelo país, 79% é decorrente da mina localizada em Araxá, considerada a maior do mundo com viabilidade para exploração. Desde a década de 1960, a mina vem sendo gerenciada majoritariamente pela CBMM, constituindo vínculos e lastros da mineração com o município. Como expressou um geólogo aposentado da CBMM, no contexto de uma entrevista concedida:

“[f]alar de mineração é menosprezar a atividade de tecnologia que foi derivada da mineração e foi constituída aqui em Araxá para colocar em Revista CTS, número especial, diciembre de 2022 (153-180)Gabriela Blanco e Jalcione Almeida vanguarda, de exportação e de comércio, no Brasil – uma das grandes empresas brasileiras – um avanço tecnológico para tornar o mundo melhor, de fato (...)” (Geólogo aposentado da CBMM, entrevista, 2020).

Observa-se, portanto, uma forte construção imagética da empresa em torno ao caráter de inovação tecnológica da sua cadeia de produtos, procurando diferenciar-se e, em última instância, desassociar-se do setor de mineração. Cabe também destacar que a caracterização da empresa como inovadora associa-se, igualmente, à construção de uma definição de “empresa cidadã”. Dado o seu expressivo faturamento econômico (superior ao da empresa mineradora de fosfato), sua participação na arrecadação de impostos e na efetivação de serviços e obras públicas no município é significativa, passando a ser tratada como uma característica de cidadania. Como apresentado mais adiante, será precisamente a definição de “empresa cidadã” o objeto de contestação de representantes de movimentos populares no fórum comunitário, que demandarão a inclusão de novos elementos ao que, até o momento, estabelece-se como seguro e responsável.

2.2. “Ciência em excesso pode causar falha”: a segurança performada pela incerteza da técnica

Após a fala do gerente de segurança da CBMM no fórum comunitário de Araxá, o segundo técnico convidado a falar, Felipe Russo, foi apresentado, inicialmente, como consultor da área de segurança de barragens da ANM, além de professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). No entanto, sua fala vinculou-se, prioritariamente, a uma outra “identidade”, qual seja, a de antigo funcionário da Mosaic Fertilizantes. Indiretamente, o consultor desempenhou um papel de representante da mineradora ausente, afirmando que buscaria responder às dúvidas levantadas acerca da situação da barragem que, naquele momento, encontrava-se interditada. Nesse sentido, embora seja mantida neste artigo a sua identificação como “consultor da ANM”, cabe destacar a ambivalência da sua presença no referido debate público.

A partir da intervenção deste consultor, produziu-se uma mudança importante na linha argumentativa que vinha, até então, se fortalecendo no fórum. Se, até aquele momento, havia uma defesa de que a segurança das barragens é sustentada por técnicas consideradas mais avançadas, com a fala do consultor explicitam-se os limites e incertezas que perpassam o entendimento de especialistas acerca do que, enfim, garante a segurança de um artefato. Tomando como exemplo a barragem B1/B4 da mineradora de fosfato, o consultor defendeu que não foi a barragem em si que se tornou insegura, mas a normativa que se tornou mais rigorosa:

“houve uma mudança de normativa, e essa normativa ela ficou mais rigorosa, pós-ruptura da barragem de Brumadinho. Não houve alteração significativa em nenhum dos instrumentos das barragens B1/B4, quando a gente fez a visitação, quando eu fui lá avaliar junto com o pessoal da ANM. O que houve foi a não aderência à realidade atual, conforme a nova normativa” (Felipe Russo, Fórum Comunitário, 2019).

Dessa forma, há um esforço em construir um argumento de que a insegurança das barragens de mineração no país é uma realidade produzida após as mudanças e novos parâmetros estabelecidos pelas normativas atuais. A principal mudança tratada pelo consultor em sua fala foi, precisamente, a exigência de eliminação de barragens construídas pelo método a montante e a associação estabelecida entre os métodos construtivos e novos parâmetros de cálculo da liquefação de rejeitos. Nos documentos e normativas produzidos pós-desastres de 2015 e 2019, enfatiza-se que as barragens a montante estão mais propensas a sofrer rompimentos causados pelo fenômeno da liquefação, uma vez que o “solo” utilizado para os alteamentos são os próprios rejeitos e estes, sob mudanças de volume e pressão, tendem a se comportar de modo mais instável (tornando-se um líquido viscoso) se comparados a um solo previamente conhecido e estudado.

Após a Resolução no 4 da ANM, de 15 de fevereiro de 2019, o parâmetro de segurança de liquefação para barragens passa de 1,1 para 1,3 – ou seja, exige-se que uma barragem tenha agora um fator 30% acima do limite dado pelo critério de cálculo. Porém, segundo o consultor, “não existe consenso e convergência acerca do processo de cálculo e da assertividade dos valores” dados para a liquefação de rejeitos. A técnica, no lugar de ser narrada pela certeza e precisão na descrição e controle de uma natureza dada, é performada como incerta e imprecisa:

“(...) Quando você entra na liquefação, você entra em análise estatística probabilística também, porque você tem um apanhado de dados que você afere, as barragens no papel são de uma forma, mas na prática elas são de outra. E aí na hora que a gente vai fazer

esse cálculo, a certeza do que você está fazendo ela entra em xeque” (Felipe Russo, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Nesta fala, os limites de uma descrição da ciência e da técnica por sua racionalidade, objetividade, ou ainda pela certeza acerca dos fatos por ela descritos são explicitados. Como destaca Callon (2004), essas noções não são causas, mas efeitos alcançados a partir das tensões próprias à rede de atores que lhes constitui. Assim, pode-se considerar que “os saberes são universais, é claro, mas são universais dentro de frágeis redes, construídas passo a passo, onde foram realizados todos os investimentos necessários” (Callon, 2004, p. 64).

Baseando-se na incerteza dos cálculos praticados, o técnico argumentou que a adoção de critérios mais rígidos de segurança, com o estabelecimento de prazos para a alteração das barragens existentes, poderia produzir “instabilizações e novos acidentes”. Assim, sua argumentação desdobrou-se para, em última instância, defender uma não intervenção em barragens, como forma de mantê-las estáveis e, consequentemente, seguras: “às vezes é muito mais seguro não intervir, não fazer nada, do que você fazer uma medida atropelada de correção”. E realizou uma analogia como forma de “explicar ao leigo de uma forma mais simples” o seu argumento:

“(...) imaginem que a gente descubra que tem um câncer (...). Você fica louco para tirar aquele câncer e resolver o seu problema. A analogia seria a seguinte: você tomar doses de quimioterapia de um mês, em um dia. E aí você morre envenenado. Então a solução do problema, a ciência em excesso, pode causar a falha do sistema” (Felipe Russo, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Não obstante o destaque dado às incertezas que permeariam os cálculos de liquefação e a imposição de modificações nos métodos construtivos de barragens, produziu-se em determinado momento da argumentação um desvio, que fez emergir a existência de novos elementos como produtores de insegurança nas barragens, vinculados a mudanças sucessivas na gestão das empresas – algo recorrente no setor mineral –e práticas de “má operação” de barragens. Referindo-se à barragem B1/B4 que se encontrava interditada naquele momento, ele declarou que “não foi feito processo de fechamento efetivo”, sendo que a barragem deveria, na teoria, estar fechada desde 1987. Assim, para além da mudança nos parâmetros de segurança praticados, pode-se dizer que a barragem já se encontrava em uma condição não segura, por não ter sidodescomissionada no tempo e modo necessários.

Aqui ganham lugar elementos a priori ausentes na fala do consultor. O não descomissionamento de barragens tem sido apontado nos últimos anos como um problema central no tocante à segurança das atividades minerárias. Ressalte-se que dentre os dois desastres recentes da mineração no país, o de 2019 referiu-se, precisamente, a uma mina que se encontrava desativada desde 2014. Conforme Tonidandel, Parizzi e Lima (2012, p. 36), “na legislação federal não há uma regra geral disciplinando e orientando a abrangência e o conteúdo mínimos de um plano de desativação de empreendimentos minerários”. Assim, ainda que mineradoras apresentem um plano de desativação e recuperação de áreas degradadas, não há disciplinamento acerca dos conteúdos mínimos e os procedimentos de desativação necessários, o que acaba por produzir uma flexibilização das responsabilidades efetivas das empresas com as estruturas paralisadas/abandonadas, assim como um fomento à criação de estratégias para burlar o encerramento das atividades. 14

As estratégias de grandes mineradoras burlarem a identificação de que uma mina está, de fato, encerrada, foram elucidadas durante entrevista realizada com um engenheiro mecânico, atualmente aposentado, da mina de fosfato de Araxá: 14. Em 2016, a Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (FEAM) divulgou, pela primeira vez, o Cadastro de Minas Paralisadas e Abandonadas do Estado, depois que foi constatado que, mesmo com a publicação de uma normativa por parte do Conselho Estadual de Política Ambiental (Deliberação Normativa no 127 de 27 de novembro de 2008), orientando acerca do fechamento das minas e estabelecendo prazos e diretrizes para os empreendedores, ainda assim havia um baixo número de relatórios de paralisação e de planos de fechamento protocolados no órgão ambiental. Conforme o Cadastro, só no estado de Minas Gerais há quatrocentas minas em situação de abandono ou paralisadas. Dentre as paralisadas, 58% estavam sem “controle ambiental” (ou seja, sem medidas de mitigação dos danos ambientais).

“(...) é impossível uma mineração dizer ‘ah não, agora eu vou deixar do jeito que era!’. Esquece, não tem jeito, você fez um buraco enorme, movimentou um volume absurdo de terra, de minério, do que for, mas você deve deixar aquilo nas condições melhores possíveis, recompondo a natureza, a vegetação, tirando os riscos de desabamento, esse negócio todo, de rompimento de barragem e tal. Então isso chama “encerramento da mina”. Quando o minério esgota, você teria esse trabalho. É caríssimo fazer isso. Então o que as empresas fazem? Nenhuma mina acaba. À medida que o minério vai diminuindo, eles nunca fazem o encerramento da mineração. Eles começam a tirar um pouquinho, um pouquinho, para manter um movimento e fugir do ônus de fazer um encerramento, fechamento daquela atividade lá que é a cava” (engenheiro mecânico aposentado, entrevista, 2020; grifos acrescidos).

Segundo o relato, seria precisamente essa estratégia a adotada pela mineradora de fosfato no município, provocando, em última instância, a condição de instabilidade verificada recentemente. Observa-se que a afirmação feita pelo consultor da ANM durante o fórum comunitário, de que a barragem B1/B4 “já deveria, na teoria, estar fechada”, relaciona-se a práticas de negligenciamento, burla ou mesmo omissão por parte da mineradora, anteriores às mudanças recentes nos parâmetros de segurança para as barragens, o que enfraquece, em grande medida, o argumento principal defendido pelo consultor de que não foi a barragem B1/B4 que se tornou insegura, mas a normativa que ficou mais rigorosa. O inseguro, mais uma vez, encontra-se em disputa.

2.3. “Não é apenas quando a barragem rompe”: a segurança performada pelo que excede a norma e a técnica

Conforme tratado nas seções anteriores, o fórum comunitário desenrolou-se com as intervenções de vereadores, a fala do representante da CBMM e o consultor da ANM. Ao final das duas falas, abriu-se espaço para intervenções do público presente. O primeiro a falar identificou-se como Paulo, militante de movimento popular e membro de órgãos colegiados do Executivo. Com a sua fala, novos elementos passaram a ocupar e compor o campo de disputa acerca do que se estaria concebendo como uma barragem segura/insegura. O inseguro não se definiria apenas pelo risco ou efetivação do rompimento de uma barragem, mas pelas múltiplas associações e transformações que esse artefato produz – incluindo-se a inviabilização de modos de existência. O principal contraponto foi feito em relação à fala do gerente da CBMM e às defesas da mineradora pelos vereadores, acionando, para isso, outra controvérsia tecnocientífica presente no município. Segundo ele, “nós temos uma outra questão que, não é apenas quando uma barragem rompe, que ela causa estragos. Nós temos aquelas que matam, silenciosamente” (Militante Paulo, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Em Araxá, além da presença dos minerais apatita e pirocloro, há a presença de águas sulfurosas e radioativas, de origem vulcânica, historicamente utilizadas para fins terapêuticos. As águas “curativas” concentram-se na região do Barreiro, onde estão, igualmente, as duas grandes minas no município. Em 1982, foi detectada a contaminação por cloreto de bário de águas subterrâneas situadas a jusante da Barragem 4 da CBMM, em razão de uma infiltração. Desde aquela época, a empresa estaria realizando ações de controle e remediação da contaminação identificada. Não obstante, em 2008, 120 famílias moradoras da região do Barreiro entraram com ação judicial contra as empresas mineradoras, após a constatação de que a água que abastecia suas casas estava com um nível elevado de bário (Pinto et al., 2011).

O argumento defendido pelas famílias foi o de que o nível elevado de bário nas águas era decorrente das atividades de extração de nióbio, uma vez que a contaminação já tinha sido identificada em 1982 e, segundo os moradores, nunca totalmente controlada. Entre as inúmeras situações apresentadas pelas famílias – que, em conjunto, somaram mais de quinhentos processos – esteve a alegação de adoecimentos decorrentes da contaminação a que teriam sido submetidas durante anos. Já a CBMM defendeu o argumento de que o nível elevado de bário é uma “característica natural das águas da região” – visto serem de origem vulcânica – e que não haveria qualquer relação entre a contaminação de 1982 e os níveis de bário encontrados na localidade onde as famílias residiam atualmente. 15

Trazendo para o debate os processos abertos pelas famílias contra as empresas mineradoras, 16 o participante questionou a separação – explicitada pela controvérsia envolvendo as águas de Araxá – entre uma natureza que se reconhece ter sofrido danos por uma contaminação e os humanos que se reivindicam atingidos por essa contaminação e que, no entanto, não são reconhecidos como parte dela. Desta forma, como separar humanos e não humanos quando tratamos de eventos como os referenciados? Como falar de uma técnica descolada do humano? Ou uma natureza externa, controlável e unívoca? O que parece ganhar força é, precisamente, o caráter ontológico das controvérsias aqui mobilizadas.

Conforme destacam os autores da TAR, sociedade(s) e natureza(s) são resultantes de um mesmo processo, portanto, ontologicamente indissociadas e indissociáveis. Não cabe estudá-las separadamente, mas, ao contrário, realizar o esforço de mapeamento das redes que se estabelecem, a todo momento, entre elementos híbridos. Trazendo a referência para as palavras do representante da sociedade civil no fórum comunitário:

“[o]ra, se a empresa reconhece e, inclusive, na inicial dos processos se vocês pegarem está lá que, realmente, ela contaminou e ella deteriorou e produziu danos irreversíveis ao meio ambiente, o homem é parte integrante e uma das partes principais desse ecossistema. Então como é que você paga medidas reparadoras de danos irreversíveis e não paga os atingidos?” (Militante Paulo, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Seguindo o posicionamento de não separação entre atingidos e natureza/ecossistema, e defendendo a necessidade de consideração dos múltiplos efeitos das atividades de mineração, o participante destacou que “o nosso discurso não é contra a mineração, porque tudo nessa sala aqui é resultado do extrativismo, o nosso discurso é a favor de uma mineração que seja feita de modo consciente” (Militante Paulo, 2019). A mineração feita de modo consciente seria aquela, portanto, que se mostraria capaz de incluir, ao mesmo tempo, humanos e não humanos na composição de mundos perpassados por promessas de desenvolvimento.

O questionamento acerca do caráter informativo do debate público promovido pelos vereadores esteve presente na intervenção do segundo representante da sociedade civil a solicitar a fala. Identificando-se como Frei Rodrigo, representante de instituição religiosa, partícipe de movimento popular e membro de órgãos colegiados do Executivo, ele reforçou a necessidade de estar presente na pauta dos debates da Câmara Municipal a controvérsia envolvendo a contaminação das águas do município. Nesse sentido, Frei Rodrigo problematizou dois dos argumentos sustentados anteriormente nas falas dos técnicos: o primeiro, referente à garantia de uma maior segurança das barragens da CBMM, em razão da prática de impermeabilização e, o segundo, referente à defesa de que a mudança de critérios normativos no Brasil não representaria, necessariamente, uma mudança na condição de segurança das barragens já existentes.

Para o primeiro argumento, o participante destacou que, mesmo com o uso de “técnicas mais avançadas” para o controle e prevenção de acidentes e contaminações – como a impermeabilização da barragem -, não haveria uma técnica plenamente segura, e as práticas da empresa denotariam a permanência dos riscos. Já com respeito ao segundo argumento, o representante afirmou que “segurança de barragem não diz respeito apenas ao rompimento de barragem”. Assim, ele procurou destacar elementos que, tanto no rompimento das barragens do Córrego do Feijão e do Fundão explicitariam que desastres não se produziriam apenas por “limitações técnicas”, advindas de uma incapacidade de prever a falha dos artefatos, mas por escolhas deliberadas de atores envolvidos. Referenciando a barragem do Córrego do Feijão, ele sustentou que “os processos da Polícia Civil têm mostrado que houve, sim, por parte da empresa, conivência” (Frei Rodrigo, Fórum Comunitário, 2019).

Trazendo para o caso concreto da barragem interditada em Araxá, o participante questionou o argumento do consultor da ANM de que a interdição se referiria a “uma mudança de critérios, mas não a uma mudança de condição de segurança”. Relacionando o caso de Araxá aos demais casos de interdição no estado de Minas Gerais, apontou que já havia denúncias de instabilidade, mesmo quando “não existia uma legislação nova”:

“[a]s barragens que estão em risco hoje, as oito barragens que estão em risco hoje, elas já vinham sendo denunciadas pela sociedade civil e por várias organizações. Concordo contigo [consultor] que quando se mudam os parâmetros, obviamente tem que se adequar aos novos parâmetros, mas se sabe muito bem, que a segurança dessas barragens é extremamente relativa” (Frei Rodrigo, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Por último, apresentam-se elementos – emergidos no debate - referentes à problemática de como, afinal, as mineradoras informam as populações próximas às barragens em situações de rompimentos iminentes. Após o rompimento da barragem do Fundão, evidenciou-se a fragilidade dos mecanismos de aviso à população. A barragem se rompeu sem que houvesse qualquer sistema de sirenes instalado para alertar a população próxima à mina. No caso da barragem do Córrego do Feijão, o sistema de sirenes, ainda que instalado, não foi acionado no momento do desastre.

Em Araxá, após os desastres de 2015 e 2019, as empresas instalam os seus sistemas de sirenes e, especialmente, a partir de 2019, intensificam os testes públicos e a comunicação junto às comunidades próximas às minas. Contudo, observa-se que as práticas de “aviso de desastre” adotadas pelas mineradoras inscrevem-se de modo ambíguo. Um dos elementos dessa ambiguidade é mobilizado na fala da terceira representante da sociedade civil a intervir no fórum comunitário. Ela se identificou como Claudia Barto, representante de uma associação de produtores rurais que tem suas propriedades dentro da área atingida por um possível rompimento da barragem interditada da mineradora de fosfato. Na sua fala, relatou que, até aquele momento, a empresa havia, apenas, coletado nomes e telefones dos membros da associação, sem realizar, de fato, uma comunicação acerca do que ocorreria caso houvesse o rompimento. Em síntese, a prática engendrou, entre os produtores rurais, mais dúvidas, incertezas e o sentimento de ausência de informações:

“[o] nosso chacreamento, conforme informações de terceiros, nós estamos a menos de 10 minutos, no caso de que venha a acontecer um acidente na barragem lá. Então, assim, nós estamos em grande risco. O que a gente faria nessa situação? Para onde correr? O que a empresa ia fazer, colocar uma sirene?” (Representante Claudia Barto, Fórum Comunitário, 2019; grifos acrescidos).

Outro elemento mobilizado pela representante foi referente à definição do que se entende por “população atingida” e, consequentemente, quem passa a ser considerado sujeito a ser informado pela empresa sobre as consequências de um rompimento. Durante a fala do gerente da CBMM, este afirmou que dentro da zona de autossalvamento da mina não constariam moradores, assim, não haveria a necessidade da empresa visitar propriedades próximas. Não obstante, em sua própria fala houve a identificação de que, no trajeto da lama, fora do perímetro de 10 km, haveria a presença de uma população ribeirinha. Diante disso, Claudia questionou a arbitrariedade na definição de Revista CTS, número especial, diciembre de 2022 (153-180) quem teria o direito de ser informado, já que com o passar dos dias os efeitos poderiam ser sentidos também por essa população.

A debilidade da definição de quem compõe a “população afetada”, assim como a ausência sistemática de informações acerca dos possíveis efeitos do rompimento das barragens são destacadas nos estudos sobre os desastres recentes em Mariana e Brumadinho. Wanderley et al. (2016) indicam que, diferentemente do que estipulava o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) do empreendimento, os efeitos do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, não se restringiram às áreas de influência estabelecidas tecnicamente. Do mesmo modo, Campolina, Rodrigues e Silva afirmam que os desastres recentes mostraram que “as comunidades localizadas a mais de 300 km de um complexo minerário e até mesmo em estado distinto – onde a mineração não tinha influência na economia local – sofreram e têm sofrido os impactos do rompimento” (2021, p. 136). Nesse sentido, a preocupação expressada no debate público em Araxá relaciona-se aos desdobramentos já identificados em outros lugares do país, a respeito das impossibilidades de se considerar os rompimentos de barragens como eventos isolados e de efeitos facilmente “delimitados”.

Ainda um terceiro elemento que compõe a ambiguidade das práticas de “aviso” das mineradoras foi mobilizado por uma proprietária rural que esteve presente no fórum comunitário, mas que não realizou uma fala pública na ocasião. Seu relato foi obtido posteriormente, em uma entrevista. Segundo ela, sua propriedade se encontra ao lado da mineradora de fosfato, no exato caminho da lama, de modo que, na eventualidade de um rompimento, seria ela a primeira atingida. Após o rompimento da barragem em Brumadinho, sua família passou a receber com frequência a visita de representantes da Mosaic Fertilizantes. O objetivo primeiro foi buscar negociar a venda de uma parcela da propriedade, para a instalação de uma sirene. Contudo, se a presença da sirene, por um lado, demarcaria a possibilidade de serem avisados diante de um rompimento, por outro inviabilizaria as práticas agrícolas da família, uma vez que:

“para isso [instalação da sirene], eles teriam que passar pela nossa propriedade, cortar ela inteirinha, eles não queriam fazer outra estrada para chegar até lá. Então, quer dizer, se eu fosse colocar um pivô [centro de distribuição de água para a lavoura] eu não poderia colocar, porque tem estrada deles no meio. Então eles iriam acabar com a minha propriedade. Então nós não quisemos” (Proprietária rural, entrevista, 2020).

Diante da oposição da família para a instalação da sirene nas condições propostas pela mineradora, a empresa optou por instalar em outra propriedade, na qual o alerta se torna praticamente inaudível para eles. Além disso, após a constatação da situação de risco da barragem B1/B4, a proprietária afirmou que a empresa realizou uma série de visitas a sua fazenda - sem aviso prévio - para solicitar, dentre outras coisas, a retirada do gado de uma parte significativa do terreno (produzindo novos prejuízos). Assim, as práticas da mineradora foram traduzidas como uma expressão do descaso – ao invés de preocupação - com suas vidas, além de fonte de constantes apreensões e Revista CTS, número especial, diciembre de 2022 (153-180)Gabriela Blanco e Jalcione Almeida sofrimento emocional. Nas suas palavras, “sempre o descaso, a preocupação com o meio ambiente que eles não têm, é nítido que eles não têm. Manda tirar o gado? Mas e o restante da fauna e da flora daquele local ali?” (Proprietária rural, entrevista, 2020). Quando questionada sobre o seu desejo frente às atividades de mineração em Araxá, ela expressou: “Eu não quero que ela saia, mas que ela funcione de forma estável” (Proprietária rural, entrevista, 2020; grifos acrescidos).

(Proprietária rural, entrevista, 202

Conclusões

Neste artigo, procuramos enfocar os efeitos produzidos pelos rompimentos recentes de barragens na conformação de controvérsias sobre o que pode ser considerado como “seguro” nas atividades de mineração no país. O objetivo foi investigar como barragens seguras/estáveis são performadas em documentos e debates públicos, partindo-se das contribuições de autores como Bruno Latour, Michel Callon e Annemarie Mol, para quem os fatos técnico-científicos sustentam-se por frágeis redes de humanos e não humanos, sendo as disputas, acordos, desvios e negociações parte constituinte. Considerando que o enfoque etnográfico de boa parte dos estudos da Teoria Ator- Rede (TAR) direciona-se à(s) ciência(s) praticada(s) “em laboratório”, procuramos aqui ampliar as possibilidades de seu uso, descrevendo movimentos acerca de como a(s) ciência(s) e técnica(s) se entrelaçam em redes sociotécnicas que sustentam ou desestabilizam, em última instância, grandes projetos de desenvolvimento. O argumento central defendido foi o de que os rompimentos recentes de barragens em Minas Gerais produziram a abertura de uma “caixa-preta” (Latour, 2017) que, até o momento, parecia obscurecer a existência das barragens de mineração, multiplicando- se as controvérsias em torno ao seu funcionamento.

Na descrição de um seguro em disputa, emergiram proposições e desvios que performam a segurança por meio de três movimentos: i) a confiança na técnica, ii) a incerteza na técnica e iii) o que excede a norma e a técnica. Do primeiro movimento destaca-se a associação produzida entre mineração insegura e método construtivo de barragens a montante. Por meio dela tem-se a tentativa de encerrar a controvérsia a partir de uma proposição que afirma, em última instância, que o inseguro se refere a uma “obsolescência técnica”. Do segundo movimento enfatiza-se a fragilidade da associação direta entre insegurança e método construtivo a montante, uma vez que percebem-se variações importantes nos percentuais de estabilidade de barragens construídas também por outros métodos; dúvidas e incertezas acerca dos procedimentos, cálculos e parâmetros que são praticados para atestar a segurança de barragens no país; e a otimização por parte das mineradoras de ganhos econômicos em detrimento da fiscalização, controle e encerramento de suas barragens. Por fim, destaca-se do terceiro movimento a emergência de um seguro que não pode ser definido apenas pelo risco ou efetivação do rompimento de barragens, mas sim, pelas múltiplas associações e transformações que a barragem, enquanto um artefato, produz. Nesse movimento, a associação é feita entre a possibilidade de uma mineração ser estável – e, portanto, segura – e a inclusão efetiva dos diferentes modos de existência (de humanos e não humanos) nas práticas decisórias que dizem respeito à composição de um mesmo lugar.

Cabe destacar que a descrição realizada neste artigo se limita ao escopo de documentos que foram possíveis mobilizar e ao debate público realizado no município de Araxá, Minas Gerais. Sendo assim, entende-se que os movimentos acima mencionados são parciais e que a inclusão de novos documentos e debates – considerando-se, inclusive, a necessidade de diversificação dos lugares nos quais as redes de estendem – possibilitará a formulação de novas proposições, emergindo elementos em disputa aqui negligenciados. Ainda assim, consideramos ser possível apontar que a descrição da controvérsia lança luz à insuficiência de se centrar asegurança de barragens à exclusiva mudança de métodos construtivos, assim comoà necessidade de se modificar as atuais práticas de “informar” comunidades afetadas e/ou potencialmente afetadas (não apenas por rompimentos, mas por quaisquer consequências envolvendo a presença de barragens). Mesmo após os desastres de 2015 e 2019, estas seguem sendo unilaterais e reprodutoras de cerceamentos e violências, que inviabilizam, em última instância, modos de ser e existir.

Como citar este artigo

Blanco, G. e Almeida, J. (2022). Controvérsias sobre segurança na mineração:

efeitos dos rompimentos de barragens em documentos e debates (Brasil). Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad —CTS, 17(especial: “Fronteras

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Material suplementario
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Notas
Notas
1. Minas Gerais localiza-se no sudeste brasileiro. Historicamente, consolidou-se como o maior estado minerador do Brasil. Atualmente, ocupa a segunda posição em exportação mineral (perdendo apenas para o estado do Pará, no norte do país).
2. O rio Doce possui em torno de 853 quilômetros de extensão, sendo a mais importante bacia hidrográfica da região sudeste do Brasil Referências bibliográficas Agência Nacional de Mineração (2019a). Resolução no 4, de 15 de fevereiro de 2019. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/63799094/do1 - 2019 - 02- 18 -resolucao-n- 4 -de- 15 -de-fevereiro-de-2019-63799056.
3. Conforme Callon (1995, p. 261, tradução nossa), a reformulação da perspectiva sociológica para os ESCT passa por considerar três grandes princípios metodológicos. O primeiro é o de estender “o agnosticismo do observador para incluir também as ciências sociais”. Com isto o autor se refere à necessidade de sermos imparciais, não somente com os argumentos científicos e técnicos, mas também com o que os atores falam sobre si ou sobre o seu entorno social. O segundo princípio é o de simetria generalizada, que afirma que não devemos mudar de registro quando nos movemos dos aspectos técnicos do problema estudado aos aspectos sociais. E, por fim, o princípio da associação livre, que se refere ao observador abandonar “toda distinção a priori entre acontecimentos naturais e sociais. Deve rechaçar a hipótese de uma fronteira definitiva que os separa. Considera-se que estas divisões são conflitivas, porque são o resultado da análise e não seu ponto de partida” (Callon, 1995, p. 262, tradução nossa).
4. Dentro do campo dos ESCT, discussões semelhantes vêm sendo travadas a respeito de como a ciência é produzida, negociada, mobilizada e comunicada, quando da necessidade de enfrentamento dos desafios advindos com as mudanças climáticas. Para um panorama sobre estas contribuições, ver, entre outros, Fleury, Miguel e Taddei (2019).
5. A mina de nióbio vem sendo explorada em Araxá desde a década de 1960 pela mesma empresa, a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM). Já a mina de fosfato, explorada desde a década de 1970, passou pela administração de várias companhias ao longo do tempo. Atualmente, sua gerência está a cargo da empresa Mosaic Fertilizantes.
6. As entrevistas foram realizadas durante os meses de fevereiro e março de 2020, como parte do período de campo de uma pesquisa maior dos autores, que versa sobre desenvolvimento e controvérsias tecnocientíficas em torno à mineração de nióbio em Araxá/Minas Gerais.
7. Neste artigo os nomes dos interlocutores entrevistados serão preservados, em razão de acordo firmado na pesquisa que se encontra em andamento. Já os nomes das empresas e dos participantes do fórum comunitário serão mantidos. A gravação completa do fórum comunitário é de acesso público e encontra-se disponível na plataforma Youtube (Câmara Municipal de Araxá, 2019).
8. O processo de codificação e análise dos materiais foi realizado com o auxílio do software NVivo.
9. Barragem descaracterizada é aquela que não recebe, permanentemente, aporte de rejeitos e/ou sedimentos oriundos de sua atividade fim. Já uma barragem descomissionada é a que encerra as suas operações com a remoção das infraestruturas associadas, exceto aquelas destinadas à garantia da segurança da estrutura (Agência Nacional de Mineração, 2019a).
10. A DCE foi normatizada pela Portaria no 70.389, de 17 de maio de 2017, do DNPM, que criou o Cadastro Nacional de Barragens de Mineração (CNBM), o Sistema Integrado de Gestão em Segurança de Barragens de Mineração (SIGSBM) e estabeleceu maiores detalhamentos para o Plano de Segurança de Barragens e as Inspeções previstas na Política Nacional de Segurança de Barragens.
11. O resultado da campanha de entrega de DCEs de barragens no Brasil é divulgado pela ANM em sua página virtual desde 2019. Optou-se neste artigo por apresentar os dados divulgados no último semestre de 2019 e 2020, como forma de destacar eventuais permanências ou alterações de percentuais referentes aos métodos construtivos de um período ao outro.
12. Cabe ressaltar que a crítica feita pelos autores a uma “dupla delegação” não se refere a uma negação do conhecimento científico. Ao contrário, alinhada à proposta dos ESCT de reconhecer o caráter indeterminado e contextual da ciência e lançar luz aos processos sociais que constituem este tipo de conhecimento, o objetivo é “ampliar o alcance da ciência ao propor que as instituições científicas devem se aproximar da sociedade e se tornar mais transparentes e abertas à participação pública” (Fleury, Miguel e Taddei, 2019, p. 30).
13. O Plano de Segurança de Barragens (PSB) já estava normatizado pela Portaria DNPM no 416/2012 e o Plano de Ação de Emergência (PAE) disciplinado pela Portaria DNPM no 526/2013. Ainda assim, a efetivação por parte das mineradoras de práticas presentes nestes documentos – como a instalação e testes periódicos de sirenes nas zonas de autossalvamento – só se deu após os rompimentos de barragens.
14. Em 2016, a Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (FEAM) divulgou, pela primeira vez, o Cadastro de Minas Paralisadas e Abandonadas do Estado, depois que foi constatado que, mesmo com a publicação de uma normativa por parte do Conselho Estadual de Política Ambiental (Deliberação Normativa no 127 de 27 de novembro de 2008), orientando acerca do fechamento das minas e estabelecendo prazos e diretrizes para os empreendedores, ainda assim havia um baixo número de relatórios de paralisação e de planos de fechamento protocolados no órgão ambiental. Conforme o Cadastro, só no estado de Minas Gerais há quatrocentas minas em situação de abandono ou paralisadas. Dentre as paralisadas, 58% estavam sem “controle ambiental” (ou seja, sem medidas de mitigação dos danos ambientais).
15. Com a constatação do nível elevado de bário nas águas, a Prefeitura iniciou a distribuição de água por galões e carros-pipa e, posteriormente, realizou o desalojamento das famílias, alegando que os terrenos que estavam ocupando eram da União. As famílias, indenizadas pelas casas, passaram a residir em outros bairros da cidade e seguiram com as ações judiciais contra as mineradoras. As ações foram encerradas em 2021, depois de sentença proferida favorável às empresas.
16. A mineradora de fosfato aparece também como réu no processo, uma vez que, segundo as famílias, as águas que passam pela mineradora de nióbio, também fluem pela área da mina de fosfato. Assim, ela é referenciada como “solidária” à contaminação. Ademais, há referências à poluição sonora e do ar causada pelas atividades de extração do fosfato.



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