Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
O objetivo fundamental de “garantir o desenvolvimento nacional” na constituição federal de 1988: análise de um conceito jurídico indeterminado
Felipe Magalhães Bambirra; Arnaldo Bastos Santos Neto
Felipe Magalhães Bambirra; Arnaldo Bastos Santos Neto
O objetivo fundamental de “garantir o desenvolvimento nacional” na constituição federal de 1988: análise de um conceito jurídico indeterminado
The fundamental objective of “guaranteeing the national development” in the brazilian federal constitution of 1988: analysis of an indetermined legal concept
Prisma Jurídico, vol. 16, núm. 2, pp. 241-259, 2017
Universidade Nove de Julho
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O presente artigo, por meio de um metodologia dedutiva e pesquisa a documentos e obras, nacionais e internacionais, além de legislações e regulamentos, visa investigar os contornos normativos e teóricos do objetivo fundamental previsto na Constituição Federal de 1988 de garantir o desenvolvimento nacional. Primeiro faremos uma apresentação da ideia de conceitos jurídicos indeterminados, reconhecidos como estratégias possíveis do legislador diante da estrutura escalonada do ordenamento. Depois faremos uma avaliação da busca pelo “desenvolvimento nacional” revolvendo, com base na doutrina e jurisprudência pátrias, as suas dimensões positivas (“o que o desenvolvimento nacional é”) e negativa (“o que o desenvolvimento nacional não é”).

Palavras-chave:Conceitos Jurídicos IndeterminadosConceitos Jurídicos Indeterminados, Objetivos Fundamentais Objetivos Fundamentais, Constituição de 1988 Constituição de 1988, Desenvolvimento Nacional Desenvolvimento Nacional.

Abstract: Through a deductive and research methodology in national and international documents and works, as well as laws and regulations, this article aims on the investigation of theoretical and legal framework of the fundamental objective consistent in guaranteeing the national development, present in Brazilian Constitution of 1988. First, the idea of undetermined legal concepts will be analyzed, recognizing them as possible legislative strategy regarding the pyramidal structure of the law. After it, an evaluation of the “national development” will be done, considering a jurisprudential as well as a doctrinaire basis, in order to determine its positive dimension (“what national development is”) and its negative dimension (“what national development isn’t).

Keywords: Undetermined Legal Concepts, Fundamental Objectives, Brazilian Constitution of 1988, National Development.

Carátula del artículo

O objetivo fundamental de “garantir o desenvolvimento nacional” na constituição federal de 1988: análise de um conceito jurídico indeterminado

The fundamental objective of “guaranteeing the national development” in the brazilian federal constitution of 1988: analysis of an indetermined legal concept

Felipe Magalhães Bambirra
Unicentro Alves Faria, Brasil
Arnaldo Bastos Santos Neto
Unisinos – RS, Brasil
Prisma Jurídico, vol. 16, núm. 2, pp. 241-259, 2017
Universidade Nove de Julho

Recepção: 03 Outubro 2017

Aprovação: 11 Dezembro 2017

Introdução

Para a investigação sobre o objetivo fundamental, estabelecido pela Constituição Federal brasileira de 1988, de garantia do desenvolvimento nacional, através de uma abordagem e de um debate sobre o conceito deste objetivo constitucional enquanto “conceito jurídico indeterminado”, é premente de início considerar o que seriam esses conceitos dotados de indeterminabilidade na teoria jurídica mundialmente reconhecida, formulando sua construção mediante a análise teórica de juristas histórica e contemporaneamente relevantes para a Ciência Jurídica, e que auxiliaram e auxiliam na formação dos ditames interpretativos aplicados e estudados na atualidade.

Para tanto, premente que sejam aprofundados os conceitos de “zona de certeza” e de “zona de incerteza” jurídicas, o que, como se verá, direcionará boa parte do presente trabalho. Esses conceitos, na forma em que aqui serão apresentados, proporcionam novas leituras sobre o aspecto da discricionariedade que se relaciona de forma intrínseca com o debate em face dos “conceitos jurídicos indeterminados”.

Nessa esteira, o objetivo constitucional de garantia do desenvolvimento nacional, enquanto princípio impositivo da Carta Magna, para seu correto aprofundamento, através da temática aqui abordada, deve ter seus contornos trabalhados através da noção das suas dimensões conceituais, especialmente aquelas na forma abordada prescritivamente pela Constituição Federal de 1988.

Neste sentido, Constituição brasileira põe em relevo as dimensões social, democrática e nacional do desenvolvimento, gerando uma conexão entre o objetivo fundamental proposto e os demais inscritos no art. 3º do texto constitucional e o relacionando com os demais objetivos fundamentais da República.

Assim, é levada em consideração no presente trabalho, como não poderia deixar de ser, uma análise hermenêutica sistemática da Carta Magna de 1988, balizando a interpenetração e o vínculo positivos existentes entre o conteúdo jurídico do desenvolvimento nacional com a justiça social e a distribuição econômica.

Ademais, esse trabalho se dá igualmente pelo debate em torno da zona negativa de certeza e os aspectos do próprio conceito de progresso e seu vínculo com o conceito proposto pelo constitucionalismo direcionado ao desenvolvimento.

Portanto, são abordadas as suas já referidas zonas de certeza positiva e de certeza negativa, contemplando os ditames constitucionais em seu sentido integral, que, além de urgir o vínculo do desenvolvimento com a própria ordem econômico-financeira, igualmente condiciona o intérprete e o aplicador do Direito aos ditames sociais, veiculando uma proposta direcionada ao Estado Democrático de Direito. O referencial teórico que iremos utilizar como norte para compreensão da ideia de desenvolvimento esboçada por Amartya Sem, que visualiza a evolução de uma sociedade como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Ou seja, “nesta abordagem, a expansão da liberdade é considerada o fim primordial e o principal meio do desenvolvimento. Podemos chamá-los, respectivamente, o papel constitutivo e o papel instrumental da liberdade no desenvolvimento” (SEN, p. 52).

Para tanto, o presente artigo foi realizado por meio de um metodologia dedutiva e pesquisa a documentos e obras, além de legislações e regulamentos, nacionais e internacionais.

1 Os conceitos jurídicos indeterminados

Em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen observa que parte das indeterminações da linguagem jurídica, especialmente aquelas relacionadas ao fenômeno da vagueza podem ser de caráter intencional e não um defeito presente na redação das normas. O jurista de Viena pretendeu demonstrar que em face da estrutura escalonada das normas, o legislador sempre dispõe da opção de redigir textos normativos que remetam ao aplicador do direito a alguma esfera de liberdade na hora da concretização e efetivação do comando legal (KELSEN, 1998).

A vagueza é, portanto, não um defeito necessário dos textos normativos, mas sim, uma estratégia possível da qual o legislador pode lançar mão. É o caso do conceito jurídico de “desenvolvimento nacional”, que aparece na Constituição, no artigo 3º, II, na qualidade de objetivo fundamental da República. A Constituição de 1988, sabe-se, não se contentou em estabelecer um catálogo de direitos fundamentais e suas respectivas garantias, associado a um conjunto de regras de organização do poder, aquilo que se convencionou chamar, na doutrina constitucional clássica, de constituição em sentido material. Foi além, e ao lado das regras do jogo, associou a busca por objetivos a serem perseguidos pelos poderes constituídos e pela sociedade, caracterizando-se como uma constituição dirigente.

A ideia dos conceitos jurídicos indeterminados, nascida na doutrina austríaca do Século XIX, remete-nos a uma compreensão do direito enquanto linguagem. Os juristas Edmund Bernatzik e Friedrich Tetzner trataram do tema extensamente no século passado, divergindo sobre os alcances da indeterminação. Para Bernatzik (1886), a indeterminação teria um conteúdo técnico e caberia à Administração escolher, diante da situação fática, que solução adotar, fazendo com que, em determinado contexto, fosse possível a adoção de mais de uma alternativa. Para Tetzner (1924), todavia, todos os atos da Administração estão sujeitos ao controle judicial por conta da supremacia do interesse público, e a diferença entre conceitos determinados e indeterminados é uma diferença quantitativa e não qualitativa. Os atos administrativos praticados com base em conceitos jurídicos indeterminados podem ser submetidos à revisão judicial, não podendo ser colocados na categoria de atos discricionários.

A indeterminação do conceito traria para o aplicador a possibilidade de efetuar um juízo de meios e fins capazes de calibrar a pretensão de dar efetividade às leis. Conceitos como “interesse público”, “utilidade pública”, “incapacidade permanente”, “preço justo” ou então “boa-fé” se enquadram dentro desta categoria de expressões jurídicas cuja vagueza e plurissignificatividade permitem uma adaptabilidade maior do aplicador do direito a diferentes situações. Sendo flexíveis, as normas calcadas em conceitos jurídicos indeterminados também terão uma maior durabilidade, precisamente por sua vagueza. Para Odete Medauar (2009, p. 118), mesmo com a designação como indeterminado, o conceito não o é, “pois é possível expressar verbalmente o seu significado. O que ocorre é a impossibilidade de identificar a priori todas as situações que se enquadram na fórmula. Mas, no momento em que uma situação ou fato aí se enquadram, efeitos ou consequências jurídicas ocorrem”1.

A compreensão inicial partia da ideia de que os conceitos jurídicos indeterminados simplesmente alargavam a esfera de discricionariedade do aplicador do direito. Mas como alertam Enterría e Fernández (2014, p. 467), a “discricionariedade é essencialmente uma liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, ou, se preferir, entre indiferentes jurídicos, porque a decisão geralmente se fundamenta em critérios extrajurídicos”. A doutrina alemã mais contemporânea reelabora a concepção dos conceitos jurídicos indeterminados, afirmando a distinção entre estes e a discricionariedade administrativa. No caso dos conceitos jurídicos indeterminados, através da definição de uma zona de certeza positiva, outra intermediária e uma zona de certeza negativa, é possível encontrar qual a resposta mais adequada para cada interpretação do texto normativo efetuada diante de situações concretas.

Os conceitos jurídicos indeterminados nos remetem a uma dialética entre aquilo que é regrado e o que é discricionário estão presentes, porém com ênfase para a primeira característica apontada. Na autêntica discricionariedade, o aplicador pode escolher entre várias alternativas, todas elas igualmente válidas e legítimas, pois juridicamente significam a absoluta indiferença perante o direito quanto à escolha feita entre algumas opções, a exemplo das “listas tríplices”, escolha elaborada por um órgão para posterior escolha pelo chefe do executivo no preenchimento do cargo. Já com os conceitos jurídicos indeterminados, a margem para eleição de escolhas é definida pela construção de zonas de certeza e incerteza, que recolocam o problema em outro patamar.

Enterría e Fernández (2014, p. 469) assim colocam a questão:

Na estrutura de todo conceito indeterminado é possível identificar um núcleo fixo (Begriffskern) ou “zona de certeza”, formado por dados prévios e seguros, uma zona intermediária ou de incerteza ou “aura do conceito” (Begriffshof), mais ou menos definida e, por último, uma “zona de certeza negativa”, também segura quanto à exclusão do conceito.

Na zona intermediária, acontece uma “margem para apreciação”, cuja presunção de legitimidade e legalidade, em nosso direito, tende a favorecer a Administração Pública, que não pode, entretanto, ser confundida uma posição que garanta um puro exercício discricionário do poder.

2 O objetivo fundamental de garantir o desenvolvimento nacional na Constituição de 1988

A Constituição de 1988 inovou ao trazer em seu art. 3º uma referência específica aos objetivos fundamentais a almejados pela República Federativa do Brasil. Entre os objetivos fundamentais propostos encontra-se a obrigação de perseguir o desenvolvimento nacional. Por todo o texto constitucional encontramos desdobramentos deste objetivo fundamental, que vão servindo de moldura interpretativa para a fixação dos significados possíveis do termo desenvolvimento.

Ao todo, nossa Constituição cita a palavra “desenvolvimento” diversas vezes, em diferentes contextos, que devem ser tomados sistematicamente em seu conjunto, para uma compreensão correta do tema. O art. 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, insere a palavra no inciso XXVI, ao tratar da proteção ao desenvolvimento das pequenas propriedades rurais trabalhadas pelas famílias, e o XXIX, que visa assegurar “aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. Entre as competências materiais exclusivas da União, dentro da nossa tradição centralista, temos a obrigação posta no art. 21, inciso IX, de “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” e ainda no XX, de “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. O art. 23, que trata das competências comuns da União, Estados, Distrito Federal e dos municípios, dispõe no seu parágrafo único, que leis complementares fixarão normas de cooperação entre os entes federados visando o “o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. O art. 24, IX, estabelece ainda que cabem aos entes federativos legislar concorrentemente, entre outros temas, sobre “educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação”. O art. 43, ao tratar do tema das regiões que compõem a divisão administrativa da federação, dispõe que a “União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais”. E conclui dizendo que a “Lei complementar disporá sobre: I - as condições para integração de regiões em desenvolvimento; II - a composição dos organismos regionais que executarão, na forma da lei, os planos regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, aprovados juntamente com estes”.

E a Constituição prossegue, tratando do tema do desenvolvimento. O art. 163, VII, nos fala ainda na “compatibilização das funções das instituições oficiais de crédito da União, resguardadas as características e condições operacionais plenas das voltadas ao desenvolvimento regional”. O art. 174, do qual comentaremos mais adiante, fala das “diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”. Por sua vez, o art. 180 reza que a “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico”. Já o art. 182 determina que a “política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Finalmente, o art. 205 trata do desenvolvimento do ensino, o art. 216-A trata do desenvolvimento humano através da cultura e o art. 218 trata do desenvolvimento científico e tecnológico. Não é preciso mais para concluir que nossa Constituição possui uma enorme preocupação com a questão do desenvolvimento!

Pouco antes, em 1986, a Organização das Nações Unidas afirmou, no art. 1º da sua Declaração sobre o Desenvolvimento (Resolução n. 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas, datada de 04/12/1986), que este consiste em “um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados”. O desenvolvimento é pensado como um processo no qual todos participam e, ao mesmo tempo, é benéfico a todos, pois resulta num incremento do bem-estar de toda a população.

O desenvolvimento nacional posto como objetivo fundamental na Constituição de 1988 constitui, segundo Eros Roberto Grau (2003, p. 196), um “princípio constitucional impositivo (Canotilho) ou diretriz (Dworkin) – norma-objetivo – dotado de caráter constitucionalmente conformador”. Como princípio constitucional impositivo, o objetivo do desenvolvimento nacional importa que o intérprete e aplicador da Constituição de 1988 avalie o texto na sua dimensão ativa e transformadora, importando na construção de políticas públicas articuladas capazes de dar efetividade ao mandamento constitucional. Como diretriz, o desenvolvimento nacional impõe que as políticas não sejam pensadas tão somente em sua dimensão local ou regional, mas que estejam consubstanciadas em políticas dimensionadas, em seus traços gerais, para todo território nacional.

O direito ao desenvolvimento nacional impõe-se como norma fundamental e dotada de eficácia imediata, possuindo ainda um poder impositivo sobre todos os poderes constituídos, que devem sempre agir, cada qual dentro de suas competências, para implementar de forma prática as medidas que possam concretizar tal objetivo.

A Constituição de 1988 põe em relevo as dimensões social, democrática e nacional do desenvolvimento, gerando uma conexão entre o objetivo fundamental proposto e os demais inscritos no art. 3º do texto constitucional. Desta forma, o desenvolvimento nacional está intimamente relacionado com os demais objetivos fundamentais da República, que consistem na “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III). Como observa Guilherme Amorim Campos da Silva (2004), a leitura do art. 3º da Constituição demonstra o caráter de preceito fundamental dos objetivos ali descritos e da sua interpenetrabilidade, uma vez que a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e econômicas, informam o conteúdo jurídico do desenvolvimento nacional com justiça e distribuição.

O desenvolvimento nacional como objetivo fundamental conecta-se ainda com o que dispõe o título constitucional da Ordem Econômica, conjunto normativo que rege a vida produtiva nacional, o qual, nas palavras de Guilherme Silva, “explicita que o desenvolvimento das riquezas e dos bens de produção nacionais deve ser compatível com o ganho de qualidade de vida de toda a população, posta na perspectiva de gerar atividade econômica em igualdade com outras camadas sociais” (DIMOULIS, 2012, p. 131).

O art. 174 da Constituição determina qual papel o Estado deve ter em tal processo, na qualidade de “agente normativo e regulador da atividade econômica”, exercendo, através da lei “as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. Tal dispositivo implica na concepção de que o desenvolvimento nacional, no âmbito das ações do Estado, deve ser planejado, cabendo a este, ainda, indicar os rumos do desenvolvimento para a iniciativa privada. Estado e iniciativa privada devem agir, deste modo, de forma coordenada, criando uma sinergia benéfica para o desenvolvimento nacional.

Em seguida, faremos uma abordagem exemplificativa sobre a questão do desenvolvimento na Constituição de 1988, procurando localizar, entre autores de extração diversa, as zonas de certeza positiva e negativa sobre o conceito indeterminado. Tais abordagens podem nos dar um mosaico de opiniões que, reunidas em conjunto, nos indiquem qual o sentido dado para a ideia de desenvolvimento proposta pela Constituição.

2.1 O que o desenvolvimento nacional é (zona de certeza positiva)

De acordo com José Afonso da Silva (2014, p. 549), o “direito ao desenvolvimento é fundamental, porque é essencial à erradicação da pobreza, e, por isso, é solidário com o direito à alimentação e à vestimenta adequadas, e sem ele não se realiza adequadamente o bem-estar das pessoas”. Trata-se de uma concepção ligada à ideia de afirmação de um Estado de Bem-Estar Social, construção típica do pós-guerra, que se afirmou em muitas das sociedades europeias, através do reconhecimento de direitos sociais concebidos de forma universal, como prestações civilizatórias devidas a todos os membros da comunidade nacional.

A palavra “desenvolvimento” indica a conquista de avanços econômicos e sociais através da superação do seu negativo, o “subdesenvolvimento”, que é a condição onde predomina a pobreza e o baixo desenvolvimento humano.

O desenvolvimento nacional deve ser pensado não somente como crescimento da nossa capacidade econômica, sustentada pela nossa capacidade de produzir bens e mercadorias, mas como uma elevação geral do bem-estar social, através da elevação do nosso nível intelectual e cultural, aumentando aquilo que é nomeado na literatura especializada como “capital humano”, decisivo para o sucesso das nações.

O desenvolvimento importa na construção de instituições inclusivas, capazes de garantir as iguais oportunidades de todos os brasileiros na realização de seus potenciais econômicos e intelectuais, gerando a prosperidade e a melhoria do bem-estar da sociedade como um todo. Tais ações devem levar em conta a circunstância de que a federação brasileira possui características assimétricas com elevadas desigualdades entre as suas regiões. Para planejar a redução de tais desigualdades e fortalecer o equilíbrio dentro da federação, foi instituído o Decreto presidencial n. 6.047, de 22.02.2007, que criou um novo mecanismo de gestão do desenvolvimento nacional, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR, com os seguintes estratégias (art. 2º): “I - estimular e apoiar processos e oportunidades de desenvolvimento regional, em múltiplas escalas; e II - articular ações que, no seu conjunto, promovam uma melhor distribuição da ação pública e investimentos no Território Nacional, com foco particular nos territórios selecionados e de ação prioritária”.

O desenvolvimento econômico é uma condição necessária, mas não única ou bastante para superação do atraso social. Para tanto, é necessário que o avanço das condições econômicas seja seguido da satisfação de necessidades básicas capazes de impulsionar o capital humano de cada nação, com a prestação de serviços básicos e universais de saúde e educação, além de acesso à justiça e à cultura. A conquista de liberdades civis e a participação política também são componentes fundamentais do desenvolvimento.

Cada Estado deve elaborar o seu próprio modelo de desenvolvimento, a partir de suas características nacionais, de uma forma dinâmica, adaptando-se aos fenômenos globais da mundialização e as mudanças na economia internacional. Uma combinação de eficiência estatal na prestação dos serviços sociais básicos (educação, saúde, infraestrutura e segurança) com mercados internos dinâmicos garantidos por uma iniciativa privada competitiva nos parece ser a base de um modelo que seja sustentável neste início do século XXI (Cf. MICKLETHWAIT; WOOLDRIGE, 2015, p. 213-237).

Nunca é de menos salientar que os valores sociais da livre iniciativa (ao lado dos valores sociais do trabalho), postos como fundamentos da República Federativa do Brasil no art. 1º, são a base fundamental do desenvolvimento econômico. Da liberdade econômica e da iniciativa dependem a inovação, a criação de novos produtos, a abertura de novos mercados e a constituição de empreendimentos que vão gerar a riqueza e os empregos essenciais para que a sociedade prosperar. Para que tal ocorra é fundamental que o país tenha uma boa rede de serviços básicos de educação, saúde e segurança. E que exista uma infraestrutura moderna, capaz de dar mobilidade para a circulação de pessoas, bens e serviços que são essenciais para uma vida dinâmica.

No Brasil, que possui uma federação assimétrica e profundamente desigual, o desenvolvimento implica também na superação das distâncias entre o desenvolvimento econômico e social entre as diversas regiões. Para tanto é necessário observar que nosso federalismo é do tipo cooperativo, que implica na observância do princípio da solidariedade entre os Estados. Também aqui, o desenvolvimento não é pensado tão somente na sua dimensão econômica. Conforme observa Gilberto Bercovici (2003, p. 239):

A desconcentração industrial, bem como a regionalização de gastos em infra-estrutura e de políticas de atração de investimentos privados, não solucionaram […] a Questão Regional. O desenvolvimento regional, assim como o desenvolvimento em geral, não é um fim em si mesmo. O seu grande objetivo é a elevação das condições sociais de vida e a redução, a mínimos toleráveis, das diferenças nas oportunidades econômicas e sociais entre habitantes das várias regiões brasileiras, não o mero crescimento do PIB ou a produtividade industrial.

A federação, para que se torne mais forte e perene, deve prezar pelo equilíbrio entre os seus componentes, tema que já foi debatido diversas vezes pelo judiciário. Neste sentido, a guisa de exemplo, temos a decisão do Supremo Tribunal Federal contida na AI 630.997 – AgR, que declarou como constitucional o estabelecimento de alíquotas diferenciadas, através de incentivos fiscais, com vistas à redução das desigualdades regionais e de desenvolvimento nacional. A concessão do benefício de isenção fiscal constitui ato discricionário, fundado em juízo de conveniência e oportunidade do Poder Público, sendo vedada a interferência do Judiciário no mérito de tais atos administrativos.

2.2 O que o desenvolvimento nacional não é (zona de certeza negativa)

O termo desenvolvimento posto na Constituição se diferencia claramente da ideia de progresso presente na história do Estado brasileiro como uma herança do positivismo comteano predominante quando da Proclamação da Primeira República. Em sua carga histórica original, a ideia de progresso se resumia a um ideário de desenvolvimento das forças econômicas. Fazendo uma leitura da Constituição no seu conjunto, observamos que o desenvolvimento aparece em múltiplas dimensões, uma hora como desenvolvimento social, outra hora como desenvolvimento econômico, outra hora como desenvolvimento sustentável e ecologicamente equilibrado. Através de um estudo dessas múltiplas dimensões podemos fixar as zonas de certeza positiva para podermos dizer o que o desenvolvimento é, ao mesmo tempo em que podemos dizer o que o desenvolvimento não é (degradação ambiental, exploração intensiva da mão de obra, destruição das comunidades tradicionais e de seu modo de vida).

Sendo assim, conforme José Afonso da Silva (2014, p. 550), o desenvolvimento não pode se confundir “com o mero crescimento econômico. O direito fundamental ao desenvolvimento só se realizará se o desenvolvimento econômico importar progresso social, crescimento do nível de vida da população em geral”. O desenvolvimento deve se dar de forma qualitativa, de modo sustentável, “com uma exploração equilibrada dos recursos naturais, nos limites da satisfação das necessidades e do bem-estar da presente geração, assim como de sua conservação no interesse das gerações futuras”.

Amartya Sen desenvolve uma crítica a uma visão unidimensional do desenvolvimento, calcada apenas na questão econômica, que nos parece pertinente para a compreensão do conceito de desenvolvimento nacional esboçado pela Constituição de 1988. O unidimensionalismo de tal visão defende que se negligenciem certas preocupações, como a criação de redes de proteção social para os mais pobres, a proteção ambiental e até mesmo o estabelecimento da democracia (vista como um “luxo”), em prol de um modelo que facilite ao máximo o desenvolvimento econômico. A proposta de Amartya Sem (2000, p. 52), que coaduna com a Constituição de 1988, defende que o desenvolvimento seja visto como “um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam”. A liberdade é vista como meio e fim do desenvolvimento. De forma substantiva, a liberdade é fundamental no enriquecimento da vida humana. Sem (2000, p. 52) esclarece:

As liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter condições de evitar privações como fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas, como saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão etc.

A liberdade passa a ter, na visão de Sen, um papel constitutivo e instrumental no desenvolvimento, o que inclui também a liberdade de participação e os direitos civis e políticos fundamentais, pois estes também podem contribuir de forma efetiva para o progresso econômico. As liberdades estão relacionadas entre si, e a sua conquista remete a novas formas de liberdade. Se as pessoas podem participar da política, não irão tão somente poder eleger os governantes, mas também fiscalizar e criticar as autoridades constituídas. Por outro lado, o surgimento de mais oportunidades sociais depende da oferta das prestações básicas de saúde e educação a que a população tem acesso. Deste modo, o crescimento das transações econômicas deve levar não somente ao incremento das rendas privadas, mas também possibilitar os recursos necessários para o sucesso dos serviços sociais que aumentam as oportunidades das famílias. Sen (2000, p. 57 e 58) conclui:

A criação de oportunidades sociais por meio de serviços como educação pública, serviços de saúde e desenvolvimento de uma imprensa livre e ativa pode contribuir para o desenvolvimento econômico e para a redução significativa das taxas de mortalidade. A redução das taxas de mortalidade, por sua vez, pode ajudar a reduzir as taxas de natalidade, reforçando a influência da educação básica – em especial da alfabetização e escolaridade das mulheres – sobre o comportamento das taxas de fecundidade”.

Ao desenvolvimento proposto pela Constituição importa também que seja equânime, gere benefícios aos vários envolvidos, sem externalidades negativas de grandes magnitudes – e, quando isso for inevitável, que seja internalizada ou compensada – ocorra com redistribuição da renda obtida, com diminuição das desigualdades sociais e também regionais, uma vez que a federação brasileira possui uma elevada assimetria entre os níveis de desenvolvimento das suas diversas regiões. Isto é, deve ele ser, também, inclusivo. Sendo assim, concluí acertadamente José Afonso da Silva (2014, p. 550), “se o desenvolvimento não elimina a pobreza absoluta, não propicia um nível de vida que satisfaça às necessidades essenciais da população em geral, ele não pode ser qualificado de sustentável, e, por consequência, também não pode ser tido como direito fundamental”.

Dentro desta visão de que o desenvolvimento possui múltiplas dimensões, contemplando não somente a condição econômica, é preciso respeitar as regras distributivas de cada esfera de justiça existente dentro da sociedade, impedindo, por exemplo, abusos do poder econômico em determinadas questões. Como exemplo de uma decisão judicial ilustrativa, temos o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da ADI 319-QO, que declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 8.039/90, que estabelece critérios de reajuste das mensalidades em escolas particulares, entendendo-se que é necessário conciliar o fundamento da livre iniciativa e o princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social. Sendo assim, o Estado pode ditar, por via legislativa, critérios para regular a política de preços de bens e serviços, combatendo os abusos do poder econômico que vise o aumento arbitrário de lucros.

Considerações finais

A Constituição de 1988, ao expressar os seus objetivos fundamentais, entre eles o de garantir o desenvolvimento nacional, apresenta ao conjunto do Estado brasileiro a obrigação de construir as políticas públicas necessárias para a afirmação de um crescimento qualitativo da vida nacional entendida em vários aspectos, não somente na sua dimensão econômica.

O termo “desenvolvimento nacional” posto como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil constitui um típico conceito jurídico indeterminado, cuja plurivocidade pode nos conduzir a diversas interpretações. Todavia, ao localizarmos em volta de tal conceito uma dimensão ou zona de certeza positiva e outra de certeza negativa podemos entabular um diálogo capaz traduzir a indeterminação do conceito em determinação, diante das situações concretas, não de forma absoluta, chegando a uma única e incontroversa resposta, mas reduzindo significativamente as opções postas diante do aplicador da regra constitucional. E entre a zona de certeza negativa e a positiva podemos encontrar também uma zona de incerteza, que nos conduz forçosamente a uma margem de apreciação.

A contribuição do presente artigo consiste justamente na apresentação da garantia do desenvolvimento nacional como um conceito jurídico indeterminado, o que nos permite um trabalho analítico de separação entre uma zona de certeza positiva e outra zona de certeza negativa, clarificando o tema e permitindo a construção posterior de um mosaico de definições que se enquadrem dentro desta perspectiva multidimensional da ideia de desenvolvimento.

Ao contrário da doutrina que afirma que as expressões carregadas de vagueza possuem baixa densidade normativa, a expressão desenvolvimento nacional possui uma forte carga semântica. O conceito de baixa densidade normativa nos parece equivocado por tentar nos conduzir à conclusão de que o legislador não pretendeu uma forte vinculação do aplicador do direito aos conteúdos programáticos da constituição.

Em sua zona positiva, o desenvolvimento nacional deve ser sempre pensado em relação com os demais objetivos fundamentais da Constituição de 1988. Nesta dimensão positiva, o objetivo do desenvolvimento nacional deve ocorrer de forma sustentável, comandando a diminuição das desigualdades sociais e regionais, como forma de obtermos tanto uma sociedade mais harmônica quanto uma federação menos assimétrica e mais equilibrada. Em sua zona negativa, o desenvolvimento nacional não deve ocorrer de forma unidimensional, surgindo às custas da destruição ambiental ou em detrimento da saúde e da segurança da classe trabalhadora.

Material suplementar
Referências
ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Motivação e controle do ato administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max limonad, 2003.
BERNATZIK, Edmund. Rechtsprechung und Materielle Rechtskraft: Verwaltungsrechtliche Studien. Wien: Manz, 1886.
DIMOULIS, Dimitri (Coordenador-geral). Dicionário brasileiro de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
ENTERRÍA, Eduardo García de e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Revisor técnico Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6º edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MICKLETHWAIT, John e WOOLDRIGE, Adrian. A quarta revolução. A corrida global para reinventar o Estado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014.
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004.
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2006.
TEZNER, Friedrich. Das Freie Ermessen der Verwaltungsbehörden kritisch-systematisch erörtert auf Grund der österreichischen verwaltungsgerichtlichen Rechtsprechung. Wien: F. Deuticke, 1924.
Notas
Notas
1 Medauar (2009, p. 118) prossegue: “Algumas correntes se formaram para explicar os vínculos entre os conceitos jurídicos indeterminados e a discricionariedade. Segundo um entendimento, não haveria discricionariedade quando o legislador usasse uma fórmula ampla, pois isso levaria a uma única solução, sem margem de escolha. Em linha oposta, diz-se que a presença de um “conceito indeterminado” leva necessariamente ao exercício do poder discricionário. Melhor parece considerar que o direito sempre utilizou tais fórmulas amplas, mesmo no direito privado, sem que fossem necessariamente associados a poder discricionário. Havendo parâmetros de objetividade para enquandrar a situação fática na fórmula ampla, ensejando uma única solução, não há que falar em discricionariedade. Se a fórmula ampla, aplicada a uma situação fática, admitir margem de escolha de soluções, todas igualmente válidas e fundamentadas na noção, o poder discricionário se exerce”.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc