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Ideologia, decisão judicial e direitos fundamentais sociais: uma análise do RE 590.415
Tayane Castro Araújo; Nelson Camatta Moreira
Tayane Castro Araújo; Nelson Camatta Moreira
Ideologia, decisão judicial e direitos fundamentais sociais: uma análise do RE 590.415
Ideology, judicial decision and social human rights: an re 590.415’s analysis
Prisma Jurídico, vol. 16, núm. 2, pp. 261-286, 2017
Universidade Nove de Julho
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Resumo: O presente artigo busca compreender a presença de posturas ideológicas, de forma especial a neoliberal, em decisões judiciais no âmbito do direito do trabalho. Diante deste objetivo, utilizou-se do método dialético-hermenêutico para realizar um estudo sobre o conceito de ideologia, e sobre a forma como esta pode ser refletida nas decisões judiciais, sobretudo quando é demonstrado que o seu teor é muito mais político-ideológico do que jurídico. Neste aspecto, o RE 590.415 do Supremo Tribunal Federal teve um papel essencial, sendo utilizado como um exemplo privilegiado, a partir do qual foram realizadas as análises aplicando os conceitos definidos e delimitados ao longo deste artigo.

Palavras-chave:IdeologiaIdeologia, RE 590 RE 590,415415, Decisão Judicial Decisão Judicial, Neoliberalismo Neoliberalismo, Direito do Trabalho Direito do Trabalho.

Abstract: The aim of this research is to understand a presence of ideological stance, especially the neoliberal, in the judicial decision in the labor law. To this end, employ’s dialectical hemeneutical method for study how the concept of ideology was made, and also on how it can be reflected in judicial decisions, especially when it is shown that its content is much more political-ideological than legal. In this regard, Extraordinary Appeal (RE) No 590.415 of the Federal Supreme Court had an essential role as a privileged example, from which the analyzes were carried out applying the concepts defined and delimited throughout this article.

Keywords: Ideology, RE 590, 415, Court Decision, Neoliberalism, Labor Law.

Carátula del artículo

Ideologia, decisão judicial e direitos fundamentais sociais: uma análise do RE 590.415

Ideology, judicial decision and social human rights: an re 590.415’s analysis

Tayane Castro Araújo
Faculdade de Direito de Vitória (FDV). , Brasil
Nelson Camatta Moreira
Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Brasil
Prisma Jurídico, vol. 16, núm. 2, pp. 261-286, 2017
Universidade Nove de Julho

Recepção: 04 Julho 2017

Aprovação: 11 Dezembro 2017

Introdução

O termo ideologia é um ponto de divergência entre diversos pensadores. Desde que foi formulada e utilizada pela primeira vez por Antoine Louis Claude Destutt, conforme explica Terry Eagleton (1997, p.68), teve o seu significado modificado por diversos filósofos que se aventuraram na discussão acerca deste conceito. De um lado, autores como Karl Manheim, Michel Löwy, dentre outros, a entendiam como sendo visões de mundo, enquanto que por outro lado, existiram pensadores, tal como Karl Marx, a enxergavam como sendo uma falsa concepção da realidade.

Não só o conceito de ideologia é controverso, quando analisado ao longo da história, como também a hipótese de que as concepções ideológicas refletem nas ações humanas. Os iluministas acreditavam que, por meio da razão, o indivíduo conseguiria afastar as suas crenças. Em contrapartida, existem autores, como Louis Althusser, que acreditam que dificilmente este afastamento seria possível, pois as visões de mundo estão intrinsecamente ligadas à consciência do indivíduo.

Essa discussão acerca da incidência da ideologia nas atitudes humanas torna-se importante, sobretudo quando inseridas no campo do Direito. A possibilidade de o indivíduo ser movido pelas ideias características de um grupo social, e não conseguir separá-las de suas ações gera a possibilidade do julgador, no momento da interpretação dos fatos, e da tomada de decisão, ser influenciado por posicionamentos político-ideológicos, afastando-se do aspecto jurídico que deveriam guiá-lo.

Nesse contexto, a discussão que direciona o artigo é a respeito da impossibilidade de construção de decisões neutras, em que a interpretação dos fatos não foi influenciada por aspectos exteriores à norma, tal como a ideologia intrínseca a consciência do julgador, em especial quando está envolvido o interesse econômico de mercado. Como forma de tornar essa discussão mais concreta, utiliza-se como exemplo privilegiado o RE 590.415, julgado pelo STF em 2015.

Esta decisão polêmica foi uma das propulsoras do movimento em que se privilegia aquilo que foi negociado em normas e acordos coletivos sobre aquilo que foi estipulado na lei. A situação que permeia o caso é em relação à possibilidade de se transacionar um direito que não é controverso, e até mesmo antes dele ser configurado. Nesse contexto, a polêmica da decisão está no acolhimento desta pretensão por parte do Supremo Tribunal Federal, mesmo sendo esta possibilidade proibida pelo Direito do Trabalho.

O presente artigo utilizará o método dialético-hermenêutico para orientar a sua construção, uma vez que os fatos sociais somente podem ser totalmente compreendidos quando analisados em conjunto com as influências políticas, culturais e econômicas existentes, e não isoladamente, pois é impossível tratar o tema que envolve ideologia e afirmação de direitos humanos (sociais e do trabalho) sem se assumir uma postura hermenêutica diante de fenômenos que devem ser interpretados de acordo com um tempo e uma historicidade. Com base nesta metodologia, e em pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais em um primeiro momento é abordado um histórico do conceito de ideologia, no qual, não se pretende esgotar todas as suas possibilidades e sim oferecer ao leitor uma breve trajetória, que permite a compreensão do tema nos moldes utilizados nesse trabalho. Posteriormente, é discutida a questão da impossibilidade da existência de decisões neutras, visto que a ideologia está intrínseca a consciência do julgador, influenciando-o no momento da interpretação dos fatos. Em seguida, é apresentado o exemplo privilegiado do RE 590.415, analisando-o sob a luz das normas e dos princípios que regem o Direito do Trabalho. E, por fim, no último tópico, por meio das conclusões retiradas do exame do caso apresentado, é demonstrada a falácia existente por trás do discurso da neutralidade do julgador no momento da interpretação dos fatos e da construção da decisão, em especial quando o processo envolve questões de interesses econômicos voltados para o mercado.

1 Um breve histórico sobre o conceito de ideologia

O termo ideologia, em si, carrega uma série de significados que não são, necessariamente, compatíveis entre si. Nesta perspectiva, Terry Eagleton (1997, p. 193) entende que este termo pode ser restritivo, como no caso do entendimento como falsa concepção da realidade, ligada a um controle realizado por uma classe dominante, ou, pode demonstrar-se amplo, considerando como ideológico qualquer conjuntura significante entre discurso e interesses políticos. Diante da riqueza de significações que se desenvolveram historicamente, uma análise, de certa forma, cronológica, conforme será realizada no presente tópico, torna-se essencial, não para esgotar todas as suas possibilidades, mas para ajudar a esclarecer o conceito de ideologia utilizado neste artigo.

A expressão “Ideologia” foi utilizada pela primeira vez, segundo Michel Lowy (1992, p.11), no século XVIII, por Antoine Destutt de Tracy, um filósofo francês enciclopedista1. Destutt publicou, em 1801, um livro chamado “Eléments d’Idéologie”, em que procurava apresentar a ideologia como um subcapítulo da zoologia, que era uma ciência que estudava o comportamento dos organismos vivos. Nesse sentido, continua Lowy (1992, p.11), o filósofo francês definia ideologia como sendo o estudo científico das ideias, como se fosse o resultado da interação entre o organismo vivo e a natureza. Por meio dos sentidos, da percepção sensorial, chegaria às ideias, afastando-se, desta maneira, da metafísica, e aproximando-se, segundo Terry Eagleton (1997, p. 65), da filosofia empírica de John Locke.

Destutt, ao apoiar a sua filosofia nas concepções empiristas, conforme explica Eagleton (1997 p. 65), opunha-se ao imperialismo napoleônico da época. Isso porque, na medida em que se aproximava da escola de John Locke, que defendia a percepção de que os indivíduos eram seres passivos e distintos, associava-se às ideias burguesas, e tornava-se contrária ao absolutismo reinante.

Napoleão quando percebeu que a filosofia de Antoine Destutt era contrária ao seu domínio autoritário, começou a renegar o idealismo revolucionário, tornando o filósofo francês e os seus seguidores como a sua oposição (EAGLETON, 1997, p.65). Desta forma, o próprio conceito de ideologia adentrou no campo das lutas ideológicas: de um lado havia o liberalismo político e o republicanismo e do outro o autoritarismo bonapartista (EAGLETON, 1997, p.65). À vista disso, Napoleão passou a se declarar como o inventor do termo “ideólogos”, como forma de rebaixar Destutt e quem mais o seguisse. Desde então, conforme narra Terry Eagleton (1997, p. 68) a palavra passou a ter um significado pejorativo (apesar de nem todos os conceitos que determinam tal palavra, terem um sentido negativo).

Posteriormente o termo ideologia, segundo Lowy (1994 p.10), é apropriado por Karl Marx, que passa a entendê-lo como sendo uma falsa consciência, correspondendo a um interesse de classe. Ou seja, “seria um conjunto de ideias especulativas e ilusórias (socialmente determinadas) que os homens formam sobre a realidade, através da moral, da religião, da metafísica, dos sistemas filosóficos, das doutrinas políticas e econômicas etc” (LOWY, 1994, p.10). Assim, conclui Lowy (1994, p.10), depreciava-se a qualidade do argumento adversário, porque o considerava irrealístico.

Aprofundando-se nessa concepção marxiana, ampliando-a e a modificando, surge outro pensador que contribuiu fortemente para o desenvolvimento do conceito de Ideologia: o sociólogo húngaro Karl Mannheim (1976, p.81). Em seu livro “Ideologia e Utopia”, ele traz a noção de ideologia como sendo um conjunto de representações que se orientam para a estabilização da ordem estabelecida. Já a Utopia seria a aspiração, representação de outra realidade ainda inexistente, e, por isso, tendo uma função subversiva da ordem vigente. Desta forma, como ressalta Lowy (1992 p. 13), ideologia e utopia, para Mannheim, são duas formas de um mesmo fenômeno, que se manifesta na existência de um conjunto de ideias/ teorias que são expressão de interesses sociais vinculados às posições sociais de um grupo ou classe.

Mannheim (1976, p.81) ainda divide a concepção de Ideologia em duas categorias: ideologia particular e ideologia total. Segundo o autor, a concepção particular de ideologia realizaria suas análises em um nível puramente psicológico, uma vez que o ponto de referência é sempre o indivíduo, que se torna cético em relação as ideias e representações apresentadas pelo opositor, pois encara-as como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma situação, assim como considera que os reconhecimentos dessas ideias não seriam condizentes com seus interesses. Já a ideologia total seria uma visão de mundo de uma determinada época, ou de um grupo histórico-social concreto, de uma classe, etc.

Os conceitos de ideologia total e parcial, assim como o de utopia, foram essenciais para que Michel Lowy construísse o seu próprio conceito de ideologia. Para evitar confusões terminológicas e conceituais, Lowy (1994, p. 10) procurou um termo capaz de referir-se, ao mesmo tempo, a ideologia e a utopia. A sentença adequada, então, passou a ser “visão social do mundo”, que significaria um “conjunto orgânico, articulado e estruturado de valores, representações, ideias e orientações cognitivas, internamente unificado por uma perspectiva determinada, por um certo ponto de vista socialmente condicionado” (LOWY, 1994, p. 13). .

As visões sociais, continua Lowy (1992 p. 14), poderiam ser ideológicas (quando servirem para justificar/ legitimar a ordem social vigente), ou poderia ser utópica, quando tivesse uma função crítica, subversiva, quando apontasse para uma realidade ainda inexistente.

Percebe-se, diante de toda essa explanação, que o termo “Ideologia”, passou por várias significações e ressignificações. Ele não se limita a um conceito, possuindo um campo fértil de significados. A conceituação que é utilizada neste artigo não compreenderá Ideologia como sendo uma falsa concepção da realidade, ou uma análise verdadeira desta, pois ela não é a descrição da realidade.

Tendo em vista esse enfrentamento acerca da ideologia, a seguir, até por uma questão de enfoque no âmbito do direito do trabalho, utilizar-se-á o conceito elaborado por Michel Lowy, apontando-a como uma “visão social de mundo”, envolvendo um conjunto de valores, representações e orientações cognitivas ligadas por um ponto de vista manifestado por uma classe social determinada, que, em seu aspecto ideológico, reflete a legitimação da manutenção de uma ordem social no mundo.

Assim, percebe-se que todo ser humano está ligado intrinsecamente à sua visão social do mundo, e torna-se incapaz de afastá-la quando age, seja como um cidadão comum, seja no papel social de magistrado, no campo jurídico, exercitando o poder de julgar. Dessa forma, desenvolve-se a crítica ao mito da neutralidade da decisão, manifestada na impossibilidade da objetividade da interpretação. Porque toda decisão acaba sendo ideológica, logo, a interpretação objetiva, acaba sendo uma falácia, junto com a proposta de neutralidade do julgador, conforme será demonstrado no próximo tópico.

2 O pensamento ideológico e o mito da neutralidade da interpretação do juiz

Conforme visto no item anterior, cada ser humano possui uma forma diferente de interpretar o mundo, visto que cada um possui pré-compreensões que o fazem entender de forma diferenciada um mesmo fato, ou uma mesma história. Gadamer (2003, p.10), ao debruçar-se sobre esta questão, utiliza do exemplo da interpretação de um livro, em que o leitor o faz com base em suas pré-compreensões, em seu lugar ao mundo. Assim, esta conclusão seria cabível mesmo nos casos da reprodução de um texto, pois ainda sim seria necessária a compreensão do texto original para escrevê-la.

No mesmo sentido poderia ser entendida a interpretação dos fatos pelo julgador. A situação fática é analisada pelo juiz a partir de suas pré-compreensões, e julga, ainda inserido neste universo do seu consciente, ou até mesmo de seu inconsciente2.

Seguindo esta perspectiva, Benjamin Cardozo (2004, p. 2-4) afirma que o julgador teria um princípio, ainda que inconfesso, inarticulado e subconsciente, que orientou o preparo da sentença. Dentro de cada pessoa haveria tendências que dá coerência e direção ao pensamento, e o juiz, como todo indivíduo, não estaria excluído desta premissa. Dessa forma, conclui o autor, tenta-se observar o objeto com o máximo de objetividade, mas jamais será possível enxergá-lo com olhos dos outros.

Aprofundando um pouco nesta questão, entende-se que, nesse processo de interpretação, pode-se concluir, previamente, que o juiz não conseguiria desvincular-se totalmente de sua ideologia, isto é, de duas visões sociais do mundo.

Apesar de toda esta constatação a respeito da impossibilidade de desvincular o ser humano de uma concepção ideológica, de forma que esta não influencie na decisão judicial, ainda sim existiram escolas que defenderam a objetividade do julgador, tais como, por exemplo, a Escola da Exegese3.

Essa concepção da possibilidade de existência, segundo Zaffaroni (1994, p.16), de um juiz totalmente neutro, que não seria influenciado por sua ideologia, foi muito alimentada pela estrutura burocrática europeia. Desta forma, conclui o autor, surgiu o mito do “juiz asséptico, capaz de atuar como um eunuco político, econômico e social, sem interesses em relação ao mundo exterior” (ZAFFARONI, 1994, p.16).

Esta perspectiva da interpretação objetiva da decisão judicial, por muitos séculos conduziu os estudos jurídicos, defendendo que seria possível afastar as influências da ideologia do verdadeiro conhecimento. SILVA (2004, p.6), ao analisar este aspecto, cita o exemplo de Francis Bacon e da sua teoria dos “idola”. Para o filósofo inglês, os “ídolos” eram os fantasmas, ou preconcepções, entendidos como fontes de erro, muitas vezes advindos da própria natureza humana, sendo um obstáculo ao conhecimento verdadeiro. Como forma de evitar tais influências, surge o racionalismo, no qual o indivíduo, valendo de sua razão, consegue evitar as influências dos “ídolos”, e, assim, atingir as verdades absolutas.

É grande a quantidade de pensadores que defendiam este posicionamento. Em sua obra, SILVA (2004, p.7) enquadra os iluministas nesta categoria, pois estes acreditavam que era possível alcançar um objetivismo no pensamento, ao ponto de se afastar as influências da ideologia. No mesmo sentido, SILVA (2004, p.7) ressalta o posicionamento de Daniel Bell, que defendia até o fim da ideologia, como forma de conquistar o pensamento contemporâneo.

SILVA (2004, p.9) ressalta os riscos dessas afirmações sobre ideologia, ao destacar a tendência que o ser humano possui em atribuir ao outro a condição de ideológicos, na suposição que o observador seria inalterado pelas concepções ideológicas que o rodeiam. Assim, continua o autor (2004, p.9), tudo aquilo que questiona o conservadorismo do mundo seria tido como ideológico, pois é considerado irreal. Para a visão conservadora, somente um mundo seria possível, aquele já existente. Somente o outro seria considerado ideológico, partindo-se do pressuposto de que aquele que faz esta observação e interpreta a realidade é uma rara exceção.

No Século XIX, transferiu-se essa posição racionalista para o Direito, quando um grupo de estudiosos, fundamentando-se no rigor-científico, buscou um parâmetro científico, para se afastar do conhecimento ideológico. Desta forma, tentaram desenvolver um conhecimento comprometido com a verdade, excluindo os interesses particulares que poderiam influenciar nas decisões, e acabaram criando uma abstração (LIMA; QUEIROZ; CARMO, 2016, p.158). A lei, segundo Radbruch (1979, p.415), passou a valer por si mesma, e esta seria lei sempre que a força estivesse ao seu lado para se fazer impor, e, a esta concepção que seria chamada de Positivismo. Desse modo, “‘a cientificidade da Ciência Moderna’ consistiria em tornar a tradição objetiva e eliminar metodologicamente qualquer influência do presente do intérprete sobre sua compreensão. ” (MOREIRA, 2012, p. 35).

Esta escola jurídico-filosófica tentou, dessa maneira, afastar totalmente a ideologia dos indivíduos, para que estes não fossem influenciados por ela, criando assim um cientista do Direito que estudaria a sociedade com o mesmo espírito livre de ideologia, visões de mundo, livre de juízos de valores, neutro, da mesma forma na qual estuda ciências como astronomia, física e matemática. Seria possível que, do mesmo modo que se descobre as leis naturais da física, também se poderia descobrir/ determinar as leis da sociedade, pois nesta também existiria um equilíbrio natural (MOREIRA, 2012, p. 36). A lei passa a ser considerada como um comando do soberano, sendo identificada como jurídica não pelo seu conteúdo, mas pela sua origem. Dessa forma, no positivismo jurídico, qualquer direito pode se modificar em sua forma desde que seja corretamente sancionado por um estatuto (MOREIRA, 2012, p. 39).

Diante disso, o juiz, ao aplicar a lei, iria adequar os fatos às normas abstratas, sendo destituído de preferências valorativas, e a sua decisão seria como um ato de conhecimento e não de vontade (MOREIRA, 2012, p. 141).

Nesse mesmo aspecto, Kelsen (1998, p. 250) afirma que a interpretação do direito será sempre autêntica quando proferida por um órgão aplicador do Direito, desde que o ato já não possa ser anulado, e tenha transitado em julgado. A aplicação do Direito, neste caso, segundo o jusfilósofo, seria realizada por meio de um ato de conhecimento, que, juntamente com um ato de vontade do julgador escolheria, entre as possibilidades reveladas, aquela que for mais adequada ao caso. Ela se diferenciaria de toda e qualquer outra interpretação, por ela ser a única com legitimidade de criar o Direito.

O positivismo, segundo Noberto Bobbio (2006, p.223), entendia assim, que se deveria estudar o Direito como ele é, e não como ele deveria ser, e desta forma, afastar-se-iam de concepções ideológicas. Contudo, ao adotar tal posicionamento, continua o autor, eles possuíam o seu próprio modo de entender o direito, como também certo modo de querer o direito. Dessa forma, concluem Martonio Lima, Paulo Roberto Queiroz e Valter de Carmo (2016, p.158), o paradoxo do positivismo foi tentar combater a ideologia das decisões judiciais por meio de outra ideologia. Assim a interpretação positivista, segundo Norberto Bobbio (2006, p. 214), seria estática, pois deveria somente se ater a vontade do legislador, o que levaria a imposição de normas sem adequá-las à realidade e as condições histórico-sociais.

Mesmo com todas as transformações e críticas que sofreram a ciência e a ciência jurídica, ainda hoje, no discurso do Direito, em práticas judiciais e na doutrina se prega o mito de que o intérprete da lei pode atuar desprovido do manto ideológico. No direito brasileiro, Dimitri Dimoulis (2011, p. 235) é o responsável por difundir esse pensamento da possibilidade do aplicador do direito afastar-se das suas preferências pessoais, por meio do estudo da estrutura do ordenamento jurídico, visto que as normas delimitariam a competência e a atuação jurisdicional e impediriam o juiz de interpretar a norma fora do âmbito legal, conforme pode ser observado no excerto abaixo:

Ao estudar a estrutura do ordenamento jurídico e ao interpretar seus dispositivos, o juspositivista adota uma postura de distanciamento tanto de suas preferências pessoais como dos valores e interesses de grupos sociais. Procura também se distanciar dos conteúdos normativos e ideológicos do próprio ordenamento, evitando defender as opções legislativas como adequadas, necessárias ou justas e a legitimar seus resultados (DIMOULIS, 2011, p. 241).

Diante de tal posicionamento, percebe-se que a discussão da impossibilidade de interpretações objetivas, baseadas somente na permissão legal, e na competência delegadas pelas normas, excluindo os fatores externos a ela, ainda é pertinente. Justificasse mais ainda este estudo, quando se percebe que, tendo em vista as inúmeras decisões que o juiz deve proferir, e que, sob um pretexto de alcançar a objetividade na interpretação judicial, acaba sacrificando a realidade, visto que esta foi sendo adequada a norma.

O problema identificado em toda essa discussão acerca da objetividade da interpretação judicial torna-se manifesto quando o julgador age sob um pretexto de pretensa neutralidade judicial, mas quando o ato é realizado, ou o fato é interpretado, percebe-se que a sua interpretação foi baseada em uma ideologia. Como forma de exemplificar e tornar a discussão presente neste artigo de forma mais palpável, no próximo tópico, será feita a análise da decisão do RE 590.415, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em que foi possível perceber a influência de uma interpretação neoliberal, movida por um interesse econômico, tema que será abordado no próximo item.

3 A ideologia neoliberal na interpretação do julgador e o exemplo privilegiado do ré 590.415

A fim de ilustrar um pouco melhor a forte presença ideológica neoliberal constante em uma decisão judicial, optou-se por examinar o Recurso Extraordinário 590.415, publicado no dia 30 de abril de 2015, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, em que constam como requerente o Banco do Brasil, e como a requerida uma ex-empregada da citada agência bancária.

O caso apresentado nesse processo gira em torno de um “Plano de Demissão Incentivada” de 2001 (PDI/2001) apresentado pelo requerente à requerida, no qual, era previsto que a adesão a este plano era condicionada à renúncia à estabilidade no emprego e à outorga de quitação ampla e irrestrita a toda e qualquer verba oriunda do contrato de trabalho eventualmente pendente. A requerida aderiu ao plano e, após um período, a demissão foi concretizada. Consequentemente, ela perdeu, de acordo com o PDI, o Direito de entrar na Justiça do Trabalho para reclamar quaisquer verbas que eventualmente lhe seriam devidas, não só no momento da demissão, mas também durante todo o período que laborou na requerida. Além disso, não foram discriminados, neste plano, os valores pagos à empregada, de forma a não diferenciar quais parcelas estavam sendo pagas.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que esse contrato realizado entre as partes configurava “transação”, sendo essa consideração um dos fatores que favoreceu o entendimento de que o acordo era válido. Além disso, compreendeu-se, no Acórdão, que este era um acordo entre dois entes coletivos4 e devido a isso, o princípio da proteção que permeia as relações trabalhistas no âmbito individual poderia ser relativizado, como aconteceu no presente caso: “No âmbito do direito coletivo, não se verifica, portanto, a mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Por consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2015).

O Supremo compreendeu que por ser uma transação entre dois entes coletivos, haveria uma maior liberdade no campo da autonomia individual, não cabendo inserir o princípio da proteção ao empregado, tendo em vista que este já alcançou a sua maioridade cívica. Assim, o empregado não precisaria que o Estado tutelasse as suas decisões.

Diante deste posicionamento do STF, deve-se tecer algumas considerações em relação alguns dos posicionamentos defendidos no acórdão.

Inicialmente, deve-se compreender o instituto da “Transação”. Ele foi primeiramente abordado, pelo Código de Direito Civil, em seu art. 840 (BRASIL, 2002): “É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”.

De acordo com este artigo, as partes poderiam transacionar em relação a quaisquer litígios. Todavia, por ser uma forma de extinção de obrigação, deveria ser interpretada restritivamente.

O Direito do trabalho importou tal instituto com ressalvas, visto que se preocupava que ele poderia ser utilizado de forma equivocada, e eventualmente prejudicasse a parte mais frágil da relação de trabalho. Por isso, limitou ainda mais a aplicação desta norma, convencionando-se que a Transação não poderia ocorrer em relação a direito incontroversos, e nem anterior ao ato da dispensa. Fundamentou-se tal compreensão nos artigos 9º da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em que determina a nulidade dos atos que objetivam fraudar as determinações da lei trabalhista; no art. 468 da citada legislação, que impede alteração contratual que resultem em prejuízos para o empregado e no Princípio da irrenunciabilidade de direitos, pelo qual “não se reconhece possibilidade jurídica à privação voluntária, pelo trabalhador, em caráter amplo ou restrito, por antecipação ou mesmo posteriormente, dos direitos conferidos pela ordem jurídica laboral” (RODRIGUES, 2000, p.58).

Neste sentido, o trabalhador não poderia renunciar o direito conferido pela norma juslaboral, de forma voluntária, antecipadamente, ou mesmo posteriormente a formulação de um contrato de trabalho.

Guilherme Feliciano (2013, p. 256) ressalta que o fundamento para esta proibição consiste no fato de que os direitos trabalhistas, conferidos pela ordem jurídica são de ordem pública, possuindo um caráter imperativo, e uma necessidade de restabelecer a igualdade das partes no contrato. Nesse sentido, não é possível renunciar a tais direitos, ainda mais se comprovar que de alguma forma foi prejudicial ao trabalhador.

Esse princípio, segundo Alice Monteiro de Barros (1997, p. 89), demonstra um caráter imperativo, cogente, limitador da autonomia da vontade do empregador, por meio da proteção jurídica do economicamente desfavorável do Direito do trabalho. Percebe-se assim o reflexo de tendências ideológicas intrínsecas às regras deste ramo jurídico, relacionada a questão social, ou seja, na busca do equilíbrio entre o capital e o trabalho, e que tem como desdobramento desta ideia, a questão da justiça social.

No caso exposto, entretanto, o que se visualizou foi uma situação inversa. A ex-empregada, antes mesmo de ser demitida e de ter configurado todos os direitos decorrentes de tal extinção contratual, assinou o Plano de Demissão Incentivada, e renunciou a todos os direitos e verbas que futuramente poderia vir a ser caracterizados, mesmo que no acordo não tivesse sido discriminado a quais verbas/direitos ela estava renunciando.

No processo, esta transação, resultou assim, em uma renúncia de expectativa de direitos, pois a empregada ainda nem tinha sido demitida para efetivamente configurar o direito, e que, no ramo trabalhista é tratada de forma restritiva, visto que de nada adiantaria cercar o trabalhador com várias garantias e proteções, se posteriormente estas se tornassem subordinada ao empregador:

A rigor não se pode falar de renúncia antecipada de direito, posto que, antes que o trabalhador se converta em titular do mesmo, possui apenas uma expectativa de adquirir um direito. Se renuncia previamente ao direito instituído em seu favor por preceito de ordem pública que lhe seja aplicável, configura-se uma presunção jure et de jure de que foi constrangido a essa atitude para ingressar ou permanecer na respectiva empresa. Tal renúncia deve ser considerada inexistente (RODRIGUEZ, 2000, p. 75).

Diante disso, compreende-se que “não sendo transação, não se aplicam ao negócio os seus naturais efeitos de quitação; e, sendo renúncia, fulmina-o de nulidade (art. 9 º da CTL), no seu efeito extintivo, precisamente pela incidência direta do princípio da irrenunciabilidade” (FELICIANO, 2013, p. 262). Além disso, o art. 477, parágrafo 2º da CLT e a OJ- 270 da SDI-1, ainda determinam a quitação de verbas estritamente explícitas no acordo. Todavia, conforme pode ser observado no excerto retirado do próprio PDI, neste caso, as verbas não estavam discriminadas e a liberação de pagamento de quaisquer verbas que futuramente poderia ser devida, foi plena:

A adesão individual do empregado ao PDI/2001, com consequente recebimento dos valores pagos a título de rescisão contratual e indenização implicará plena, geral e irrestrita quitação de todas as verbas decorrentes do extinto contrato de trabalho, não havendo sobre ele nada mais a reclamar pleitear a qualquer título. 2.5.1. A quitação integral de todas as verbas do contrato de trabalho, a que se refere o disposto no item anterior, tem o condão de conferir eficácia liberatória geral. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2015).

Tendo em vista que todos os acordos de rescisão feitos pela empresa possuíam o mesmo percentual indenizatório, transparecendo a sua hipoteticidade, o que demonstraria a falta de precisão das verbas rescisórias efetivamente devidas a cada trabalhador, sendo este um documento considerado pro forma.

Comprovadamente, atestado até mesmo pelo Tribunal Superior do Trabalho, que, no julgamento do Recurso de revista deste caso5, entendeu ter sido configurado uma renúncia de expectativas de direitos- o que é considerado ato nulo no direito do trabalho, ainda mais por impedir que o empregado possa rediscutir um valor recebido equivocadamente: este seria um cerceamento de direitos.

O fato do Plano de Demissão Incentivada ser considerado como uma renúncia do Direito, também repercutiu no argumento utilizado no RE 590.415, de que o acordo seria válido porque foi realizado entre entes coletivos. Isso porque, o princípio da Adequação Setorial Negociada6, possui limitações, e uma delas é, de acordo com Delgado (2016, p. 1466), o fato de que a norma coletiva “não prevalece se concretizada mediante ato estrito de renúncia (e não transação) ”7. Nesse sentido, por mais que este fosse um acordo realizado entre dois entes coletivos (o sindicato e a empresa), não pode ser considerado válido, visto que é uma renúncia manifesta de direitos.

Diante do exposto, identifica-se o contraste entre dois posicionamentos diferenciados acerca de um mesmo fato. Aquele que observa a realidade sob um aspecto mais garantista e protetivo, e outro em que se preocupou mais com a autonomia da vontade dos entes coletivos, de forma a considerar a supremacia daquilo que estava sendo acordado, em relação ao que fora definido em lei e nos princípios do ramo jurídico trabalhista. O Supremo Tribunal Federal filiou-se a este último, ao permitir que o acordo realizado pelas partes envolvidas no litígio fosse sobreposto aquilo que foi legislado, ignorando as limitações garantistas do direito do trabalho, acolheu a lógica do economicamente possível e repeliu a lógica do garantismo laboral, demonstrando assim uma tendência interpretativa ideológica de viés economicista, com tendências neoliberais. Essa afirmação, contudo, desperta o questionamento do que poderiam ser consideradas características do neoliberalismo, que foram constadas nesta decisão, para que essa pudesse ser reconhecido esse viés mercadológico, e como isso refletiu no RE 590.415.

3.1 A tendência ideológica neoliberal e seus reflexos no re 590.415

O surgimento do neoliberalismo, de acordo com Perry Anderson (2000, p. 11), ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial, na Europa e na América do Norte, sendo uma reação teórica e política contra a lógica intervencionista do Estado do bem-estar social, e tendo como pai fundador Friedrich Hayek. Entendia-se, conforme descrito pelo citado autor, que a panacéia para aliviar os males advindos do Estado social seria manter um Estado forte, no sentido de romper com o poder dos sindicatos, e de manter o controle do dinheiro, gastando o mínimo com os gastos sociais e as intervenções econômicas.

Surge assim, segundo Ailana Ribeiro e Nara Abreu (2016, p. 110), o capitalismo novamente reconstruído em meio às “derrotas” do Estado Social. Se antes, a lógica capitalista era rígida e acumulativa, nesta nova fase inaugurada pelo Toyotismo[8], ele passa a ser global e flexível. Na perspectiva da força do trabalho, essa capacidade de mobilidade e flexibilidade passou a ser condição para a inserção e permanência do indivíduo no mercado de trabalho. Assim, de acordo com as mesmas autoras, nesta fase da “hipermobilidade do capital”9, que verberou no plano político por meio do discurso neoliberal, e que possuíam preceitos favoráveis a desregulamentação do mercado e à redução das políticas sociais, instauraram um cenário propenso à subjugação do social às vontades do capital.

O neoliberalismo, continua Ailana Ribeiro e Nara Abreu (2016, p. 110), no direito do trabalho, desperta um movimento de “esfarelamento do direito”[10], em que o capitalismo se coloca entre a direção central da sociedade e sua autorregularão pelo mercado. Consequentemente, consubstancia-se em medidas de flexibilização, cada vez mais numerosas e mais frequentes, e que procuram aniquilar os traços protetivos do Direito do Trabalho.

Essa nova política capitalista neoliberal, contrapondo-se ao antigo modelo, torna-se flexível e global. Não abandona, porém, a sua característica cíclica de construção-destruição-reconstrução, almejando o lucro. Em qualquer relação em que ele é inserido, também os relacionamentos tendem a tornar-se assim. O mesmo ocorre com o Direito do Trabalho, que impulsionado por esta ideologia neoliberal, também é pressionado para flexibilizar as suas normas.

Uma das formas desta estratégia do capital, seria por meio, de acordo com Adalberto Moreira Cardoso, citado por Amauri Alves (2010, p.1250), de deslegitimar o Direito do Trabalho, que se daria por meio da “remercantilização da força de trabalho”11 e a “despolitização da economia”12, com a consequente “reprivatização das relações de classe”13.

Quando tenta-se valorizar normas negociadas, sobrepondo-as em relação as normas legisladas e incluídas no ordenamento jurídico trabalhista, como foi realizado por meio desta decisão, percebe-se que houve uma remercantilização da força de trabalho e uma reprivatização das relações de classe. Assim constata-se a movimentação de uma corrente direcionada a retornar ao liberalismo tradicional, em que as vinculações eram por ajustes contratuais, havendo liberdade plena, privilegiando a autonomia da vontade, e a relação capital-trabalho voltaria a ser por negociação individual. Pode-se verificar essa posição de valorização do acordo negociado, no seguinte excerto do Supremo Tribunal Federal:

[...] não deve ser vista com bons olhos a sistemática invalidação dos acordos coletivos de trabalho com base em uma lógica de limitação da autonomia da vontade exclusivamente aplicável às relações individuais de trabalho. Tal ingerência viola os diversos dispositivos constitucionais que prestigiam as negociações coletivas como instrumento de solução de conflitos coletivos, além de recusar aos empregados a possibilidade de participarem da formulação de normas que regulam as suas próprias vidas. Trata-se de postura que, de certa forma, compromete o direito de serem tratados como cidadãos livres e iguais (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2015).

Antes de tecer considerações a esse excerto, faz-se necessário compreender que são quatro as funções do direito do trabalho, conforme explica Maurício Godinho Delgado (2016, p. 53-58): melhoria das condições de pactuação da força produtiva (a estrutura do direito do trabalho é assentada na constatação de que os empregadores não estão em condições negociais de igualdade no curso da relação de emprego, e, portanto caberia ao Estado, por meio do Direito, construir um patamar civilizatório mínimo, que garanta respeito nas relações trabalhistas); modernizante e progressista (possibilita ao Estado a apreensão de conquistas relevantes para as categorias profissionais, por meio dos sindicatos, e que posteriormente seria estendido a todos os trabalhadores), civilizatória e democrática (o Estado estabelece um patamar civilizatório mínimo, abaixo do qual não pode haver, validamente, negociação trabalhista), e conservadora (assegura ao capitalista a tranquilidade no investimento, no que se refere ao custo da mão de obra).

As funções de melhoria de pactuação da força produtiva e a civilizatória e democrática são aquelas que melhor justificam a proteção legislativa em relação a proibição do negociado sobre o legislado. A relação entre o empregado e o capital é desigual, sendo a parte economicamente mais fraca sofrendo mais com o revés deste relacionamento. Diante deste contexto, e almejando construir garantias mínimas para tentar equilibrar esta realidade, foi criado o Direito do trabalho, que, com suas leis e princípios, permitem que esse objetivo seja alcançado. Este escopo, contudo, como pode ser verificado no excerto trazido acima, do RE 590.415, está ameaçado pelo atual movimento que coloca em cheque as normas trabalhistas, visto que se promove a sobreposição daquilo que for estipulado por meio da negociação entre as partes, sob aquilo que anteriormente havia sido estipulado por lei.

Sob o argumento de valorizar a liberdade, a validade desse acordo coletivo, escolhendo-os como princípios supremos em relação a todos os outros que permeiam esta relação, demonstrou-se uma interpretação neoliberal explícita. Isso porque, se procurou diminuir e flexibilizar as relações trabalhistas, e retornar a prática da supremacia da autonomia da vontade das partes contratantes, revelando assim, uma nítida inclinação do julgador e do Supremo Tribunal em favor de um discurso economicista e contra as garantias do trabalhador, e a própria função do direito do trabalho.

Dessa forma, a presença do estudo da ideologia, que iniciou no começo deste trabalho, tornou-se essencial na medida em que ele serviu para mostrar que é impossível se mover fora dela no mundo, inclusive tomando, ou proferindo decisões em nome do Estado. Este age como um aparelho ideológico também, e ele se aproxima ou se afasta do trabalhador, ou do interesse do capital, na medida em que as suas leis, as suas decisões judiciais favorecem mais um do que o outro. Nesse sentido, torna-se nítida, que a flexibilização levará a um desmonte de um sistema histórico de garantias do trabalhador. Pode-se depreender, desta maneira, que é uma falácia acreditar que é possível encontrar a objetividade na interpretação do processo, por meio do respeito estrito às normas, ou mesmo que o juiz seria passível de alcançar a pretensa neutralidade em sua interpretação, de forma que não fosse influenciado por sua visão social do mundo, ou seja, a sua ideologia. Não existe neutralidade na decisão judicial, inclusive no Direito do Trabalho, muito menos em questões que envolvam um interesse econômico, conforme foi visualizado no RE 590.415.

Conclusão

O termo Ideologia é utilizado desde o século XIX, sendo transformado e remodelado, na medida em que os séculos foram passando, e novos pensadores se aventuraram no estudo desse conceito. Por meio da análise desse contexto histórico, desaguou-se, no presente artigo, na concepção que seria utilizado em todo o trabalho: o conceito de ideologia construído por Michel Lowy, ou seja, entendo-a como uma visão social do mundo, isto é, representações e ideias unificadas por uma perspectiva determinada, de um ponto de vista de uma classe social. A análise cronológica e a consequente conceituação levaram ao questionamento da falácia da neutralidade do julgador no momento da interpretação dos fatos que configuram a tomada de decisão. Isso porque, a ideologia, como visão social do mundo, não poderia estar desatrelada do indivíduo, visto que está contida no mais profundo de sua consciência, e que, de uma forma lúcida ou não, é manifestada pelas suas ações.

Dessa forma, insurgiu-se contra o mito da neutralidade do julgador, criado pelas escolas filosóficas do século XIX, inspiradas pelos iluministas, e que é defendida até hoje. Esta falácia já era denunciada pela filosofia no que se referem às demais ciências, só que na ciência jurídica, esta havia se mantido afastada, tendo em vista o seu conceito e da sua ideia de pureza.

Para exemplificar este posicionamento ideológico do Tribunal, manifestada em uma ideia de falsa neutralidade do julgador, foi trazido o RE. 590.415 do STF. Neste julgado, analisou-se se um acordo realizado entre as partes antes da efetiva dispensa (o plano de demissão incentivada) poderia desimcubir o recorrente do ônus de pagar as verbas rescisórias geradas posteriormente à dispensa.

No Direito do Trabalho, essa possibilidade de negociação de direitos, antes mesmo que estes fossem configurados, como no caso da dispensa do empregado, é proibida, sendo considerada, não mais transação de direitos, mas renúncia. No caso, objeto do estudo, a Suprema Corte, entendeu que o acordo era válido, permitindo assim, a renúncia de direitos por parte do empregado.

Diante desta decisão, depreendeu-se que as decisões judiciais são influenciadas por fatores externos às normas, em especial, pela visão social intrínseca ao julgador. Esta percepção torna-se mais evidente, quando o processo é envolto por questões econômicas, como no citado caso. Inclinou-se por um caminho de afirmação da prevalência do interesse patronal na medida em que se flexibilizou as deliberações no âmbito do direito do trabalho, abrindo mão de uma série de direitos, demonstrando assim, ser guiada por um discurso neoliberal. Constata-se, dessa forma, que não existe neutralidade na decisão, inclusive no Direito do Trabalho, como foi visto no RE 590.415.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 O encliclopedismo era uma escola histórico-filosófica, originada pelo iluminismo, em que se buscava catalogar todo o conhecimento humano, a partir dos novos princípios da razão, ou seja, acreditavam na existência de uma natureza acessível a razão e às ciências (ANTISERI; REALE, 2009, p. 237 a 241)
2 Esta é uma palavra que possui uma grande riqueza, demandando um estudo aprofundado, o que não cabe no presente artigo. Para mais informações: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Editora Companhia das Letras, 2011.
3 A escola da Exegese surgiu no início do século XIX, e entendia que era possível um julgamento objetivo, sem influências subjetivas externas, por existir a chamada “vontade do legislador”, sendo este um ente ideal e abstrato. A existência deste instituto possibilitou a crença de que seria possível uma interpretação objetiva, bastasse que se respeitasse a vontade do próprio legislador, e no momento da decisão, apresentassem-na como tal (MOREIRA, 2012, p.141).
4 O STF entendeu que seriam dois entes coletivos, porque a empregada, no momento da formulação do PDI, foi representada pelo sindicato, configurando assim, a relação coletiva.
5 Cabe ressaltar que, após a Suprema Corte ter proferido esta decisão estampada no RE 590.415, o TST reviu o seu posicionamento, de forma a coadunar com a posição do STF, no Embargos de Declaração em Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 10009788120135020467.
6 O Princípio da Adequação setorial negociada significa que, em algumas hipóteses, as normas coletivas sobrepõem às normas heterônomas proferidas pelo Estado. As hipóteses são: a) quando as normas coletivas implementam um padrão de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação trabalhista; b) quando as normas autônomas coletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta, ou de renúncia) (DELGADO, 2016, p. 1465)
7 Aspas são retiradas do texto original, quando citadas estas expressões.
8 Sistema de produção industrial que surgiu na década de 1970, no Japão, contrapondo-se ao taylorismo e fordismo, ao defender a mão-de-obra multifuncional e bem qualificada, a flexibilização a produção, de forma a produzir somente o necessário. Além disso, preocupava-se muito mais com a qualidade do produto do que com a quantidade, aplicava o sistema just-in-time, ou seja, produzir somente o necessário, no tempo necessário (CAVALCANTE, 2008, p. 18).
9 Expressão utilizada por Helena Hirata em um artigo intitulado “Globalização e divisão sexual do trabalho numa perspectiva comparada”, contido na obra “Trabalho Flexível, Empregos Precários?: Uma comparação Brasil, França, Japão. São Paulo: Edusp, 2009, p. 147.
10 Termo inicialmente utilizado por Dorothee Rüdiger, para definir este movimento em que se coloca a direção central da sociedade e sua auto-regulação pelo mercado, no livro Autonomia Privada Coletiva e a crise paradigmática do Direito do Trabalho. Rev. TRT 9º R. Curitiba v. 27 n. 53 p. 71-86 Jul/Dez. 2004, p. 78.
11 Expressão utilizada por Adalberto Moreira Cardoso no livro A década Neoliberal e a crise dos sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 144.
12 Idem, p.144.
13 Idem, p. 144.
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