Função social da empresa: concretização a partir da regulação da atividade empresarial

Social function of the firm: concretization from the regulation of the business activity

Renata Mota Maciel Dezem
Universidade Nove de Julho, Brasil
Renata de Oliveira Bassetto Ruiz
Universidade Nove de Julho, Brasil
André Luiz Mattos de Oliveira
Universidade Nove de Julho, Brasil

Função social da empresa: concretização a partir da regulação da atividade empresarial

Prisma Jurídico, vol. 17, núm. 2, pp. 313-330, 2018

Universidade Nove de Julho

Recepção: 28 Maio 2018

Aprovação: 18 Setembro 2018

Resumo: A função social da empresa não está expressa no texto constitucional, embora constitua desdobramento da função social da propriedade, razão pela qual deve ser conjugada com a proteção da atividade econômica, a livre iniciativa, a livre concorrência e os interesses da empresa. A partir da evolução histórica da função social da empresa, desde o pensamento do Estado Liberal, passando pelo Estado Democrático de Direito e pelo chamado Estado Pós-social ou Pós-Moderno será possível analisar seu atual estágio de concretização. A hipótese que se formula é a de que a regulação da atividade empresarial constitua ferramenta eficiente para que a função social da empresa seja, efetivamente, realidade. Assim, por meio do método hipotético-dedutivo, com a abordagem teórica e pesquisa bibliográfica, ao final serão expostas possíveis soluções para a concretização da função social da empresa.

Palavras-chave: Função social da empresa, Livre iniciativa, Atividade econômica, Regulação.

Abstract: The social function of the firm is not expressed in the constitutional text, although it is a development of the social function of property, which is why it must be combined with the protection of economic activity, free enterprise, free competition and the interests of the company. From the historical evolution of the social function of the firm, from the thinking of the Liberal State, through the Democratic State of Law and the so-called Post-Social or Post-Modern State, it will be possible to analyze its current stage of concretization. The hypothesis that is formulated is that the regulation of the business activity constitutes an efficient tool so that the social function of the firm is effectively a reality. Thus, through the hypothetico-deductive method, with the theoretical approach and bibliographical research, at the end will be exposed possible solutions for the realization of the social function of the firm.

Keywords: Social function of the firm, Free initiative, Economic activity, Regulation.

Introdução

A função social da empresa pode ser compreendida a partir da análise histórica da civilização capitalista.

Superadas as ideias individualistas, típicas das codificações do século XIX, o caminho estava aberto para o chamado Estado Social, no qual destaca-se a preocupação com a função social da propriedade e a forma com que os bens de produção podem ser úteis e melhor empregados, em benefício da sociedade e não apenas de seus detentores.

Com o avanço do capitalismo e a força de crescimento da atividade empresarial, a função social da propriedade desdobra-se na função social da empresa, a fim de que os bens de produção também sejam direcionados à busca dos interesses sociais, da justiça social e da redução das desigualdades.

Nessa perspectiva, a edição da Lei das Sociedades Anônimas, em 1976, e, posteriormente, a Constituição Federal de 1988, incorporam a proteção à atividade econômica, por meio da garantia à livre iniciativa, sem deixar de preocupar-se com a função social da empresa, sobretudo para a redução das desigualdades sociais.

A função social da empresa, embora recepcionada pela ordenação brasileira, ainda é tema discutido na doutrina brasileira, principalmente quanto a sua aplicação e efetividade.

O grande desafio, para além da alegada falta de regulamentação eficiente do instituto, é compreender a extensão da função social da empresa, bem como os mecanismos que garantam sua efetividade, concertados com os princípios constitucionais da ordem econômica.

Portanto, o escopo deste artigo e investigar e esclarecer o que é função social da empresa e, ao final, expor possíveis soluções para sua concretização, partindo-se da hipótese de que a regulação da atividade empresarial constitua ferramenta eficiente para tornar real o que, no plano teórico e legislativo, entende-se por função social da empresa e utilizando-se o método de pesquisa hipotético-dedutivo, com a abordagem teórica e pesquisa bibliográfica.

1 A transição do estado liberal para o estado social

As críticas ao individualismo e ao formalismo do Estado Liberal, no final do século XIX, traziam, antes mesmo da consolidação do Estado Social, nova discussão do pensamento jurídico, influenciadas pelos movimentos revolucionários e reformistas que ocorriam na Europa durante aquele período.

As constantes discussões e críticas ao Estado Liberal faziam com que estudiosos e juristas passassem a levar em consideração temas importantes como a intersubjetividade das relações jurídicas, as finalidades sociais dos direitos subjetivos e a reaproximação do direito com a moral e a justiça, que passaram a permear o pensamento jurídico da época.

Esse novo pensamento, influenciado pelo momento histórico e as revoluções do período, fez surgir uma nova forma de interpretação do Direito, receptiva a argumentos relacionados aos objetivos políticos que se estabeleciam.

Foi exatamente essa ideia de remoralização do direito que permitiu a formação do novo paradigma do Estado Social, tornando a argumentação jurídica receptiva a discussões relacionadas a objetivos políticos que flexibilizavam a vinculação linear da justiça ao que fora previamente estabelecido pelo legislador político, assim como possibilitavam uma nova definição da interpretação do direito (HABERMAS, 2001, p. 319).

Habermas, nesse período, afirma:

A transição do Estado Liberal para o Estado Social apresenta, pelo menos como um dos seus objetivos iniciais, a intenção de resgatar a intersubjetividade dos direitos, estabelecendo relações simétricas de reconhecimento recíproco com a finalidade de coordenar as diferentes pretensões de liberdades das pessoas (2001, pp.323-324).

Começa a surgir, então, um Direito livre do formalismo exacerbado, presente no direito liberal um novo Direito, que considera e se preocupa com as questões da subjetividade, das finalidades sociais e da moral, servindo de base axiológica para as teorias da função social da propriedade e da função social da empresa, que, na sequência, passariam a ser temas de preocupação e tutela.

Essa mudança de paradigma de Estado Liberal para Estado Social, que vinha surgindo, começou a se apresentar nas relações privadas da época, até a consolidação do último, ocorrida na segunda década do Século XX, por meio da promulgação da nova Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919.

Todas essas reflexões tiveram repercussão direta sobre o próprio papel do Estado, suscitando discussões sobre a possibilidade de intervenção na propriedade e na liberdade contratual, a fim de compensar as assimetrias das posições econômicas e possibilitar iguais oportunidades no exercício das liberdades jurídicas (HABERMAS, 2001, p. 487).

A partir desse quadro histórico surgem teorias sobre a intervenção do Estado na Economia e que apresentam soluções para falhas do sistema de mercado e desigualdades, em um movimento de conciliação dos interesses sociais e privados (FRAZAO, 2011, p. 94).

Pode-se dizer, então, de maneira simplificada, que diante desse cenário, o Estado Social nasceu, com a finalidade de conciliar os interesses do capitalismo com as necessidades do bem-estar social, inserindo nas novas Constituições, não apenas a intervenção do Estado na Economia, mas, também, os direitos sociais do povo, que a Constituição passaria a reger.

Nesse contexto de maior intervenção do Estado, subjetividade das relações e maior atenção e preocupação com o interesse social, o Estado Social abriu caminho à funcionalização da autonomia privada diante do poder público, a assegurar, a partir de então, maior equilíbrio e harmonia social.

A função social da propriedade, nesse quadro, ganhou destaque na discussão jurídica e social, superando o caráter individual e arbitrário que era atribuído à propriedade, que passa a ser encarada de um ponto de vista voltado ao bem da sociedade.

Apesar de a utilização do termo função social ter se tornado corrente, o problema prático do exercício dos direitos subjetivos permanecia inalterado, na medida em que a simples conceituação jurídica ou doutrinária, ou mesmo sua expressa previsão constitucional, a partir das chamadas constituições sociais, não garantia sua aplicabilidade, que continuou de difícil concretização.

Embora a funcionalização do Direito, voltada aos interesses subjetivos e sociais, ganhasse mais força nas teorias, não conseguia propagar-se com a mesma intensidade na prática.

A forte e repetitiva ênfase ao caráter social, difundido na época, passou a ser confundida, indevidamente, com o interesse estatal e, posteriormente, permitiu que sua interpretação fosse erroneamente utilizada pelos Estados totalitários, a servir de instrumento justificador para a opressão sofrida pelos indivíduos.

2 A função social da propriedade e dos bens de produção

A noção de função social da propriedade ingressou no Direito Positivo com a promulgação da primeira Constituição Republicana Alemã em Weimar, em 1919, assim como da Constituição Mexicana, poucos anos antes.

Posteriormente, em 1949, a Constituição da República Federal da Alemanha incluiu o mesmo princípio, de idêntica forma, em seu artigo 14, 2ª, alínea “a”: “A propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo tempo, servir o interesse da coletividade”. A norma impõe, indubitavelmente, deveres positivos ao proprietário.

No desenvolvimento da ideia de função social da propriedade, Comparato (1986, p.71-79), ao comentar os dispositivos constitucionais alemães supracitados, entende que ao enunciar de modo deveras sintético a função social da propriedade, a Constituição deixa de estabelecer distinções e precisões fundamentais. Acaba por confundir (ou deixar de esclarecer) que a função social da propriedade não se confunde com as restrições legais ao uso e ao gozo de bens próprios (propriedade dotada de função individual x propriedade dotada de função social).

Eros Roberto Grau (2017, p.230), ao tratar dos princípios constitucionais da ordem econômica, elucida, ao cogitar sobre a função social da propriedade, que seu pressuposto necessário é a propriedade privada.

Assim, o conceito de função social como vínculo que atribui à propriedade conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito, só tem razão de ser quando se refere à propriedade privada.

O segundo ponto a ser considerado é a inserção no capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, artigo 5º, XXII e XXIII, da Constituição Federal, a previsão de que “é garantido o direito de propriedade” e “a propriedade atenderá sua função social, sendo aqui a propriedade compreendida como direito individual.

Nesse sentido, Comparato (1986, p.71-79) ensina acerca do valor histórico da propriedade:

Uma consideração ainda que superficial da história econômica e da evolução do pensamento ocidental, sobre a vida econômica, revela, sem esforço, que a relação da propriedade privada sempre foi justificada como modo de proteger o indivíduo e sua família contra as necessidades materiais, ou seja, como forma de prover à sua subsistência. Acontece que na civilização contemporânea, a propriedade privada deixou de ser o único, senão o melhor meio de garantia a subsistência individual ou familiar. Em seu lugar aparecem, sempre mais, a garantia do emprego e salário justo e as prestações sociais devidas ou garantidas pelo Estado, como a previdência contra os riscos sociais, a educação e a formação profissional, a habitação, o transporte e o lazer. [...] Não é difícil perceber, nessa ordem de considerações, que a eficiência da propriedade, como técnica de realização dos interesses individuais e familiares sempre esteve ligada à estrutura da relação real, o caráter absoluto do direito exercido sobre as coisas adversus omnes. Na medida em que esse caráter absoluto pode ser conferido a outros direitos, eles passam a servir para a mesma função atribuída à propriedade. (COMPARATO, 1986, grifo nosso).

Nesse passo, Eros Roberto Grau (2017, p.234) afirma que a propriedade não pode ser vista tão somente como uma instituição única, mas sim o conjunto de várias instituições, relacionadas a diversos tipos de bens. Elucida o autor que a propriedade deve ser vista sob diversos perfis – subjetivo, objetivo, estático e dinâmico – compreendendo diversos institutos, o que denomina multiplicidade da propriedade. Assim, deve-se observar a propriedade de valores mobiliários, a propriedade literária e artística, a propriedade industrial, a propriedade do solo rural, urbano e do subsolo.

Outra importante distinção é trazida por Comparato (1986, p. 71-79), ao tratar da propriedade dos bens de produção. Segundo o autor, há que se distinguir a propriedade dos bens de consumo e a propriedade dos bens de produção.

Nessa esteira, ao estabelecer a relação entre propriedade privada e a propriedade dos bens de produção, enuncia o autor, que em se tratando destes últimos, o poder-dever do proprietário de dar à coisa destinação compatível com o interesse da coletividade, transmuda-se, quando tais bens são incorporados à exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos, como bem exemplifica o artigo 116 da Lei das Sociedades Anônimas.

O parágrafo único do referido artigo atribuiu ao acionista controlador a incumbência de usar o seu poder com o fim de fazer a companhia realizar seu objeto e cumprir a sua função social, com deveres para com os demais acionistas da empresa, com os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Assim, a função social já não é mais um poder-dever do proprietário, mas do acionista controlador.

Para Comparato, dessa forma, é sobre os bens de produção que recai e se realiza a função social da propriedade. Colocando-se os bens de produção em dinamismo, no capitalismo, em regime de empresa, emerge a função social da empresa. Por isso, repise-se, a função social da empresa não é um poder-dever do proprietário, mas sim do acionista controlador (COMPARATO, 1986, p.71).

Ao considerar-se a ideia de função, ou seja, de um poder-dever – ou um dever-poder para Eros Roberto Grau, “traz-se ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade” (2017, p. 239).

Na relação entre direito subjetivo (de propriedade) e função social (também de propriedade), ou em outras palavras, direito-poder e função-dever, Eros Roberto Grau (2017, p. 240) explica:

A função é um poder que não se exercita exclusivamente no interesse do seu titular, mas também no de terceiros, dentro de um clima de prudente arbítrio [...]. O regime jurídico da propriedade é definido pelo direito objetivo. A permissão ou autorização para o uso da faculdade relacionada à propriedade – da aptidão à propriedade – pode ou não ser definida, juridicamente como função. Se tal ocorrer, o direito subjetivo em causa é, concomitantemente função, sem que isso consubstancie uma contradição dogmática. De resto, a fim de que possamos compreender a ideia de propriedade-função social, cumpre observar ainda que não é a coisa objeto da propriedade que tem função, mas sim o titular da propriedade. Em outros termos, quem deve cumprir a função social é o proprietário da coisa.

Nesse sentido a propriedade passa a ser vista sob uma ótica comunitária e não mais individualista, destinada à satisfação das exigências de caráter social. A propriedade continua sendo um direito subjetivo, porém com função social, seja do proprietário individual, seja de quem detenha o poder de controle da empresa.

3 Teorias sobre a constituição de sociedades empresárias e reflexos na noção de sua função social

Antes de abordar a função social da empresa, é relevante apresentar as teorias criadas pela doutrina nacional e estrangeira acerca das justificativas para a constituição de sociedades empresárias, quais sejam, as teorias contratualistas e institucionalistas, as quais abordam a noção de interesse social. Importante frisar que tais teorias são sempre abordadas quando do estudo das sociedades por ações e a preservação da empresa, notadamente nas hipóteses de falência, mas podem ser ampliadas para o escopo deste trabalho.

Importante ressaltar, também, a definição de interesse social. Não se pretende apresentar um conceito para interesse social, tendo em vista que não há unanimidade na doutrina, havendo, ainda, grande controvérsia sobre o tema.

Assim, a primeira teoria sobre o interesse social da empresa é a teoria contratualista.

Segundo Cerezetti (2012, p.158):

[...] cuida-se de concepção segundo a qual o interesse social estaria fortemente identificado com aquele pertencente aos sócios como um todo. Ela deriva da compreensão do ente social como decorrência de uma relação contratual, cujo escopo seria o contentamento dos interesses das partes contratantes.

Assim, o interesse social presente na sociedade empresária seria idêntico ao interesse dos sócios. A dificuldade estaria em definir a expressão “interesses dos sócios”. Daí advirem outras vertentes de interpretação para a teoria contratualista.

A primeira, identifica os sócios atuais da sociedade, o que significa dizer que a companhia alcançaria seu objetivo ao atingir os interesses daqueles que, no específico momento em questão, a compusessem. A segunda vertente, por sua vez, adota a posição de que os sócios de que trata a expressão seriam os presentes e os futuros, que a longo prazo poderiam ter participação acionária na empresa.

Ambas as teorias sofreram críticas, ainda mais se relacionadas ao conceito de que o interesse social não poderia estar adstrito ao interesse pessoal ou individual dos sócios. Assim, criou-se um novo modelo, reconhecendo que a busca pela maximização no valor das ações seria, então, o verdadeiro conteúdo do interesse social.

Esse último modelo também sofreu críticas por ser prejudicial ao mercado de capitais e às empresas que dele participam, causando instabilidade.

A segunda teoria acerca do interesse social da empresa é a teoria institucionalista, identificada nas ideias de Walter Rathenau, considerado o pioneiro em enfatizar a relevância social da empresa e o interesse público por ela representado, “fatores que justificariam a limitação da influência de proprietários que estariam apenas interessados em satisfazer interesses próprios.” (CEREZETTI, 2012, p. 168).

A ideia de função social da empresa, ainda que com outra nomenclatura, já havia sido idealizada por Rathenau, com sua teoria da “empresa em si” (Unternehmen an sich), ao formar as bases para o desenvolvimento da teoria institucionalista da empresa, hoje muito associada à questão da responsabilidade social. Rathenau ainda influenciou substancialmente o regime das sociedades anônimas alemãs, ao propor a participação dos trabalhadores no conselho de administração da empresa, considerada grande inovação na legislação alemã da época. (RATHENAU, 2002).

De acordo com a concepção acima apresentada, a empresa tem grande relevância para o Estado e para a sociedade, exercendo funções de altíssima importância. Por tal razão, estaria caracterizada a posição de relevo da sociedade por ações e as consequências daí advindas para a sociedade, para o Estado e para a economia de um país.

4 Visão contemporânea da função social da empresa

Na discussão acerca da função social da empresa com origem na função social da propriedade, sempre se ressaltou a importância dos bens de produção, a ponto de muitos afirmarem que o objeto exclusivo da função social seriam os bens de produção.

Se a nova interpretação da função social conseguiu redimensionar a função da propriedade privada sob os prismas jurídico e social, os estudiosos então entenderam que, da mesma forma, o raciocínio poderia ser utilizado para os bens de produção, nos quais a chamada função social da empresa partiria do interesse privado para poder atender também aos interesses externos da empresa, como os dos empregados, dos consumidores e da sociedade.

Assim, há que se dividir os interesses da empresa em interesses internos e externos, na medida em que a empresa possui uma série de interesses, finalidades e objetivos.

Nessa esteira, há que se considerar como interesses internos da empresa os interesses dos acionistas, dos empregados e dos administradores, enquanto seriam interesses externos da empresa para Comparato e Salomão Filho (2005, p. 364-365), aqueles pertinentes à comunidade onde inserta a atividade empresarial, seja regional ou nacional.

Caso se adotasse estritamente a função social da empresa com fulcro na função social dos bens de produção, esta visão encontrar-se-ia equivocada ou, no mínimo, restrita. Não se pode delimitar a função social da empresa no seu âmbito de interesses internos, quais sejam, dos acionistas, empregados, etc.

A visão que se pretende aqui adotar é a função social da empresa abarcando benefícios para a empresa, com a obtenção de lucro (acionistas) e ampliada sua autonomia privada, benefícios para os trabalhadores e stakeholders e, finalmente, para a sociedade em que inserida a empresa (Região, Município, Estado, País).

Nessa esteira, afirma Ana Frazão:

A empresa é vista hoje principalmente como a organização profissional da atividade de produção de bens e serviços para mercados, apresentando diversos perfis e desdobramentos que impossibilitam a sua conceituação em fórmulas fechadas. Talvez por essa razão o novo Código Civil brasileiro tenha optado, no art. 966, por definir apenas o empresário como “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. (FRAZAO, 2011, p. 110).

Dessa forma, a função social da empresa não se limita apenas aos bens de produção, nem à questão patrimonial, mas leva em conta interesses relacionados à forma como seus sócios e administradores gerem suas atividades empresariais.

O poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos (COMPARATO, 1995, p. 34).

No Brasil, a função social da empresa foi expressamente prevista em lei somente no ano de 1976, aprovada em um contexto de grande preocupação com o fomento do mercado de capitais, onde a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76), em seus artigos 116, § único, e 154, impôs aos administradores e controladores de sociedades anônimas o dever de cumprir a função social da empresa.

No que toca especificamente à função social da empresa, o direito tem a relevante função de conformar a racionalidade econômica em prol do atendimento dos interesses sociais, não apenas estimulando e legitimando condutas voluntárias no âmbito da responsabilidade social, como também regulando, de forma obrigatória, determinados comportamentos, objetivo para o qual a responsabilidade civil de controladores e administradores de companhias é um importante instrumento. (FRAZAO, 2011, p. 191-192).

Portanto, a inserção da função social da empresa na ordenação jurídica brasileira, derivada da função social da propriedade, trouxe nova discussão do tema, ainda que sua previsão legal não lhe tenha garantido efetividade, sobretudo porque nem a doutrina nem a lei definiram seu conteúdo ou a interpretação de sua aplicabilidade, o que fez com que doutrinadores chegassem a chamá-la de norma de caráter programático, ainda que outros, de maneira pioneira, tenham extraído sua real importância.

Nesse sentido, afirmam Comparato e Salomão Filho:

No Brasil, a ideia de função social da empresa também deriva da previsão constitucional sobre a função social da propriedade (art. 170, inciso III). Estendida à empresa, a ideia de função social da empresa é talvez uma das noções de mais relevante influência prática e legislativa no direito brasileiro. É o principal princípio norteador da “regulamentação externa” dos interesses envolvidos pela grande empresa. Sua influência pode ser sentida em campos tão dispares como convicção da influência da grande empresa sobre o meio em que atua que deriva o reconhecimento da necessidade de impor obrigações positivas à empresa (2005, pp. 132-133).

Apesar de a doutrina reconhecer a função social da empresa e sua forma de obrigação positiva para as empresas em face da sociedade, indaga-se como a aplicabilidade desse instituto poderia ser colocada em prática, alinhando livre iniciativa, garantida constitucionalmente, com a natureza de direito subjetivo, discutida e trazida da função social da propriedade, questão que, conforme destacam Comparato e Salomão Filho (2005, p.133), poderia ser resolvida a partir do reconhecimento de que “aí está a concepção social intervencionista, de influência reequilibradora de relações sociais desiguais”, que embora presente materialmente, ausente se fez na estrutura de aplicação.

No mesmo sentido, destacam Comparato e Salomão Filho,

A todo o poder correspondem deveres e responsabilidades próprias, exatamente porque se trata de um direito-função, atribuído ao titular para a consecução de finalidades precisas. Assim, também no que diz respeito ao poder de controle, na estrutura da sociedade anônima. Ora, uma das mais sentidas lacunas de nossa ordenação jurídica, até a promulgação da nova lei acionaria, consistia, justamente, na falta de previsão de limites rigorosos para o exercício do controle societário, na medida em que esse fenômeno social havia sido descurado, quase que totalmente, na visão do legislador, ou concebido como realidade menos honesta, numa democracia acionária próxima da ilusão comunitária (COMPARATO; SALOMÃO FILHO, 2005, p. 363).

É certo que a crise do Estado social abriu caminhos para um novo modelo de Estado de Direito, que buscava alinhar a liberdade e a igualdade através da democracia, criando-se, assim, o Estado Democrático de Direito, consolidado na legislação brasileira, no artigo 1º da Constituição Federal de 1988.

Dessa forma, o Estado Democrático de Direito estabeleceu novo paradigma jurídico e nova forma de aplicação das normas, a partir de interpretação que passou a ser realizada por meio de princípios constitucionais e de direitos fundamentais, a irradiar tal interpretação para todo o sistema jurídico.

Assim, os fundamentos constitucionais estabelecidos nos artigos 1º, 2º e 3º da Constituição brasileira devem ser observados no mesmo grau de importância dos objetivos fundamentais da República, a saber, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que busca erradicar a pobreza e as desigualdades sociais.

Ao definir a ordem econômica do Brasil, o legislador, no artigo 170 da Constituição Federal, estabeleceu que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social...”.

A ordem econômica, então, além de garantir a livre iniciativa e buscar a justiça social, deve, pela interpretação constitucional, observar os princípios fundamentais e a dignidade da pessoa humana, também estabelecidos na Constituição, buscando, assim, diminuir as desigualdades sociais e promover a erradicação da pobreza, sem deixar de proteger a livre iniciativa em todos os seus desdobramentos.

Afinal, a função social não tem a finalidade de anular a livre iniciativa nem de inibir as inovações na orbita empresarial, mas sim de assegurar que o projeto do empresário seja compatível com o igual direito de todos os membros da sociedade de também realizarem os seus respectivos projetos de vida (FRAZAO, 2011, p. 193).

A partir desse aspecto institucional da empresa, somado aos dispositivos descritos na Constituição e na ordenação jurídica brasileira, é possível compreender a empresa, no direito brasileiro, como instituição, cuja maior importância transcende à esfera econômica, na medida em que abarca interesses sociais dos mais relevantes, como a própria sobrevivência e o bem-estar dos seus empregados e dos demais cidadãos que dela dependem ou com ela dividem o mesmo espaço social.

É preciso reconhecer, ainda, que a função social da empresa não busca aniquilar as liberdades e os direitos dos empresários, e nem pretende fazer da empresa uma extensão do Estado no cumprimento de suas obrigações. Como afirma Ana Frazão (2011, p. 200) “o objetivo da função social é, sem desconsiderar a autonomia privada, reinserir a solidariedade social na atividade econômica”.

Nesse sentido, a função social relaciona-se com todos os princípios constitucionais, a saber, a livre iniciativa, a livre concorrência, a proteção dos empregados, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais e o tratamento diferenciado às empresas de pequeno porte, deixando explícita a responsabilidade da empresa tanto em relação aos envolvidos na atividade (sócios, empregados, colaboradores e consumidores), quanto à coletividade.

A propósito, tanto a doutrina quanto a jurisprudência passaram a reconhecer a perspectiva da função social da empresa, sobretudo em países pobres e em desenvolvimento, como importante aspecto de atuação para o maior desenvolvimento social, a auxiliar a distribuição das riquezas e a erradicação da pobreza, por meio dos benefícios da atividade econômica.

A função social tem, ainda, a importante tarefa de geração de empregos, tributos e riquezas, tanto para seus sócios quanto para a sociedade, o que, para muitos autores, seria o único e, não menos importante, objetivo a ser cumprido pela empresa.

No entanto, como afirma Ana Frazão (2011, p. 225), a função social da empresa tem como desdobramento lógico, para além das tarefas acima, a necessidade de que a atividade empresarial concretize e tutele os interesses constitucionalmente protegidos, com a consequente vedação ao abuso da livre iniciativa empresarial.

A grande dificuldade, sem dúvida, é a efetivação da função social da empresa, discussão que subsiste e diz respeito à necessidade da previa intermediação legal para a concretização de sua dimensão ativa.

Ao que parece, a regulamentação poderia cumpri esse papel, impedindo que a função social permanecesse como mera norma programática, direcionada apenas ao legislador e não aos cidadãos, sem nenhuma eficácia prática como cláusula geral a orientar o exercício dos direitos subjetivos.

5 Concretização da função social da empresa a partir da regulação da atividade empresarial

Ao narrar a evolução do Direito Comercial, Forgioni (2016, p. 72) a sintetiza em três fases: ato – atividade – mercado. Assim, a primeira fase do Direito Comercial daria ênfase do direito comercial sobre o ato de intermediação (ato); a segunda fase seria a da teoria da empresa (atividade) e, finalmente, a terceira e atual fase seria a da empresa inserida no mercado (mercado).

A partir da década de 70, com a modernização do conceito de empresa, muito bem descrita por Fábio Konder Comparato, a visão de empresa como geradora de riquezas e fator de progresso social vai penetrando no Brasil, em contrapartida à ideia de empresa como mera propriedade dos sócios ou sujeita aos interesses exclusivos e egoísticos dos credores (COMPARATO, 1970).

A doutrina contemporânea superou a visão estática da empresa para adotar uma visão dinâmica. Assim, superado o direito medieval de classe, ligado à pessoa do mercador, passa-se ao critério objetivo e liberal dos atos de comércio e, finalmente, à atividade da empresa. Nesse aspecto, como destaca Forgioni, “urge estudá-la a partir do pressuposto de que sua atividade somente encontra função econômica, razão de ser, no mercado” (2016, p. 73).

Mercado, nesse sentido, passa a ser uma instituição jurídica, constituída pelo Direito posto pelo Estado e reclama que se garanta a liberdade econômica e, concomitantemente, opere sua regulamentação (ou regulação) (GRAU, 2017, p. 33).

Como princípio da ordem econômica, a livre concorrência sofre limitações para que haja certo equilíbrio, por meio da intervenção do Estado na vida econômica.

Para Avelãs Nunes, a intervenção do Estado na vida econômica é um redutor de riscos tanto para os indivíduos, quanto para as empresas, identificando-se, em termos econômicos, como um princípio de segurança (2003, p. 53).

Não obstante, a história vem mostrando que as grandes companhias, denominadas transnacionais, vêm dominando o mercado e ditando suas próprias regras, seja na ordenação jurídica de um país específico, seja no plano internacional, de forma cada vez mais acentuada em um contexto globalizado.

Urich Beck traduz os impactos da globalização e aponta quatro motivos relevantes a serem mencionados, que apresentam o que denomina choque da globalização: 1) Estados ameaçados e atingidos por uma suposta globalização do mercado mundial; 2) Estados de bem-estar social vivendo o dilema da política social na era da globalização, onde o desenvolvimento econômico escapa ao controle do Estado Nacional; 3) a globalização abala a imagem de um Estado Nacional homogêneo, fechado e isolado; e 4) o choque da desnacionalização pondo em cheque categorias centrais de identidade de um país (BECK, 1999, p. 35).

Para Bauman (1999, p.64), “num mundo em que o capital não tem domicílio fixo e os fluxos financeiros estão bem além do controle dos governos nacionais, muitas das alavancas da política não mais funcionam”. E, continua o autor, declarando que a influência crescente das organizações supranacionais está enfraquecendo cada vez mais os Estados-Nações e as forças erosivas são exatamente as transnacionais.

A proposta para tema tão complexo e debatido atualmente é o caminho da regulação, tema tão abrangente e profundo que demandaria um trabalho específico de estudo, o que foge ao objetivo aqui proposto.

No entanto, cabe mencionar que há autores que sugerem o oposto, ou seja, um processo de desregulamentação, considerando-o como possível e necessário.

Nesse sentido, afirma Nusdeo (2016, p. 182):

Em princípio é possível e mesmo desejável um processo de desregulamentação e de privatização, inclusive pelo incremento de técnicas de terceirização. É forçoso, no entanto, perceber a existência de tais limites para tal processo. À medida que ele avança, os inconvenientes do excesso de liberalização se tornarão evidentes e a demanda política por maior ação reguladora se fará sentir. Como ignorar o problema ambiental? E da concentração econômica? E o atendimento às necessidades mínimas dos não absorvidos pela globalização? Além do mais, esta última, à medida que passe a envolver não apenas empresas isoladas, mas segmentos inteiros do mercado, não apenas nações, mas bloco de nações exigirá uma infraestrutura de serviços governamentais bem mais ampla e diversificada, a fim de suprir os bens coletivos para o processo de integração, como já se vê na Comunidade Europeia e em outros blocos.

Nessa esteira, os caminhos a serem traçados ainda estão incertos. Consoante o termo cunhado por Bauman, a pós-modernidade ou modernidade líquida exige um grande enfretamento da sociedade, dos Estados e das empresas, notadamente as transnacionais, na solução de conflitos sociais nacionais e internacionais (BAUMAN, 1999).

Assim, depreende-se necessária a harmonização dos interesses empresariais e sociais, como destaca Comparato (1986, p.71-79):

[...] A harmonização entre os interesses empresariais e o largo interesse da coletividade local, regional ou nacional só poderá ser alcançado quando a ordem econômica e social estiver fundada no princípio do planejamento democrático. Tal significa uma planificação em que os objetivos são conscientemente definidos pelos representantes legítimos dos diferentes grupos sociais, e em que a elaboração dos meios técnicos a serem empregados compita a autoridades independentes do Poder Executivo; uma planificação vinculante para o Estado e diretiva para a atividade econômica privada. (grifo nosso)

Esse é o grande desafio da regualçao da atividade empresarial para o século XXI, como forma de concretização da função social da empresa.

Conclusão

A ordenação jurídica brasileira, a fim de garantir os princípios constitucionais estabelecidos com a finalidade de manter a ordem econômica, o desenvolvimento econômico do país e a dignidade da pessoa humana, dispôs, em contrapartida à livre iniciativa da empresa, obrigações de exercer sua atividade voltada para a diminuição das desigualdades sociais e à justiça social, no que se convencionou chamar função social da empresa.

Esse escopo, que não interfere na obtenção do lucro da empresa, nem no seu crescimento, quando aplicado a seus empregados, fornecedores, ao meio ambiente ou à comunidade em que está inserida, será de grande contribuição para o Estado, na busca da justiça social, na redução da desigualdade e na melhor qualidade de vida dos cidadãos.

Porém, apesar do grande avanço normativo ao proteger a livre iniciativa da atividade empresarial e, ao mesmo tempo, reconhecer a possibilidade de que constitua objetivo da empresa, também, atender a questões sociais, como a redução das desigualdades e ao desenvolvimento nacional, a ordenação brasileira, infelizmente, ainda não encontrou meios eficientes de garantir a efetividade desses objetivos, o que, como visto, poderá ser feito por meio da regulação, caminho que no plano internacional já vem sendo observado, como se percebe no caso das empresas transnacionais.

Dessa forma, já é tempo de voltar a atenção à necessária regulação da função social da empresa e, assim, possibilitar meios de sua aplicação, a fim de garantir os direitos e princípios protegidos na Constituição Federal.

Referências

AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo & direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BECK, Ulrich. O que é a globalização? Equívocos do globalismo, respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial das sociedades por ações: o princípio da preservação da empresa na lei de recuperação e falência. São Paulo: Malheiros, 2012.

COMPARATO, Fábio Konder. Função Social da Propriedade dos Bens de Produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, n. 63, p.71-79, jul./set. 1986.

______. Aspectos jurídicos da macro empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970.

______. Direito empresarial. São Paulo: Saraiva, 1995.

______; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

FORGIONI, Paula A. A evolução do direito comercial brasileiro: Da mercancia ao mercado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

FRAZAO, Ana. Função social da empresa. Rio de Janeiro: Inovar, 2011.

GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica da Constituição de 1988. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução do direito econômico. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

RATHENAU, Walther. Von Aktienwesen (Eine geschäftliche Betrachtung), Berlim, 1917. Trad. portuguesa: Do Sistema Acionário – Uma Análise Negocial. Relato breve sobre Walther Rathenau e sua obra: “A Teoria da Empresa em Si”. Tradução de Nilson Lautenschleger Jr. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, ano 41, n. 128, p. 199-223, out./dez. 2002.

Ligação alternative

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por