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A liberdade de crença como direito fundamental: uma discussão acerca da reparação do dano espiritual ao direito ao projeto de pós-vida nas aldeias da terra indígena Capoto-Jarina
Freedom of belief as fundamental law: A discussion about reparation of spiritual damage to the post-life project in the villages of Capoto- Jarina indigenous land
A liberdade de crença como direito fundamental: uma discussão acerca da reparação do dano espiritual ao direito ao projeto de pós-vida nas aldeias da terra indígena Capoto-Jarina
Prisma Jurídico, vol. 18, núm. 1, pp. 25-47, 2019
Universidade Nove de Julho

Recepção: 28 Setembro 2018
Aprovação: 15 Maio 2019
Resumo: A liberdade de crença é um direito fundamental, conforme ressalta o inciso VI do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Decorrente desse direito fundamental é a sua proteção, tanto em nível nacional, quanto internacional. O estudo, bibliográfico-teórico, amparado em jurisprudências internacionais, legislação e documentos, aborda a possibilidade da indenização por danos espirituais ao direito ao projeto de pós-vida, questão que se relaciona com a liberdade de crença, uma das liberdades constituintes do princípio da liberdade religiosa. Conclui-se pela necessidade de se inserir legislativamente, no ordenamento Brasil, a indenização por danos espirituais ao projeto de pós-vida.
Palavras-chave: Liberdade religiosa, Liberdade de crença, Responsabilidade civil, Dano espiritual, Projeto de pós-vida.
Abstract: Freedom of belief is a fundamental right, as emphasized in section VI of article 5 of the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. Due to this fundamental right is its protection, both nationally and internationally. The bibliographical-theoretical study, supported by international jurisprudence, legislation and documents, deals with the possibility of compensation for spiritual damages to the right to a post-life project, an issue that is related to freedom of belief, one of the constituent freedoms of the principle of religious freedom. It is concluded that there is a need to insert in the Brazilian legal system the indemnification for spiritual damages to the post-life project.
Keywords: Religious freedom, Freedom of belief, Civil responsability, Spiritual harm, After-life project.
1 Introdução
Considera-se a liberdade religiosa como a primeira das liberdades (JELLINEK, 2000), podendo-se entender a afirmação num sentido histórico, lógico e antropológico. No sentido histórico, haja vista terem os textos constitucionais e fundamentais de muitos países ocidentais reconhecido a liberdade religiosa anteriormente a outras liberdades. Em sentido lógico porque referida liberdade implica ou pressupõe outros direitos fundamentais, tais como a liberdade de consciência, de expressão, de associação. Por fim, em sentido antropológico, tendo em vista o fato de ser a liberdade religiosa um elemento constante na história da humanidade, desde a sua mais remota origem.
Estruturalmente, a liberdade religiosa é um princípio constituído, necessariamente, pela liberdade de consciência, pela liberdade de culto e pela liberdade de crença. Deste modo, caso qualquer dessas liberdades esteja ausente é impossível afirmar haver referida liberdade.
Uma simples leitura do texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) é capaz de apresentar a liberdade de crença como um direito humano. Essa liberdade de crença está prevista explicitamente no inciso VI do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88), que estatui ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção dos locais de culto e suas liturgias. (BRASIL, 1988).
É sobre a liberdade de crença, como direito fundamental, que versa a presente pesquisa, especificamente sobre a análise do caso Legacy e seus reflexos na reparação do dano espiritual ao projeto de pós-vida, uma espécie de reparação ao projeto de vida por violação a direitos humanos.
Essa espécie de dano não está expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro. A primeira tratativa do assunto ocorreu no ano de 2005, no caso da Comunidade Moiwana vs. Surinamei, quando o juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade, tratou do dano ao projeto de pós-vida, ressaltando que o Direito Internacional geral, como também o Direito Internacional dos Direitos Humanos, não pode permanecer indiferente às manifestações espirituais do gênero humano.
O dano espiritual é uma forma agravada de dano moral, se relacionando estreitamente com a parte mais íntima do gênero humano, abrangendo em seu conceito sua crença no destino da humanidade e suas relações com os falecidos.
Por sua vez, o direito ao projeto de pós-vida pode ser conceituado como o respeito referente à relação que os vivos estabelecem com os mortos, sendo um liame fundamental com os antepassados, no que se refere à unidade e à perpetuidade de algumas comunidades indígenas.
Assim, apresentados os conceitos de dano espiritual e de direito ao projeto de pós-vida, é necessário apresentar o caso Legacy, que serviu de parâmetro para a presente discussão.
No dia 29 de setembro de 2006, um avião modelo Boeing 737 da Gol Linhas Aéreas, após um choque com outro avião modelo Legacy, caiu nas proximidades do município de Peixoto de Azevedo no Estado de Mato Grosso, matando as 154 pessoas que estavam a bordoii, inviabilizando uma área de cerca de 1.200 km2 da terra indígena Kapoto-Jarina, uma circunferência com um raio de vinte quilômetros, correspondente a quase um sexto do total da terra indígena.
Após a queda, a companhia aérea não retirou da floresta os destroços da aeronave, incumbência que lhe caberia, o que, de acordo com a população indígena dos arredores, provocou danos espirituais à tribo.
No ano de 2010, o povo Kaiapó iniciou a busca da reparação dos danos causados na terra indígena, o que originou o acordo celebrado em 20 de março de 2017, intermediado pelo Ministério Público Federal (MPF), entre os índios Kaiapós e a Gol Linhas Aéreas, sendo a indenização estipulada em quatro milhões de reais, por todos os danos sofridos.
Apesar de não se poder mensurar os prejuízos passados e futuros causados ao povo Kaiapó, no referido documento é reconhecido o direito de reparação relativo a danos ambientais, materiais e imateriais, bem como a todos os prejuízos causados pela queda da aeronave, a manutenção dos destroços na área de queda (uma vez que a retirada desses seria mais prejudicial que a sua mantença), os prejuízos ao povo indígena afetado diante da privação do uso de parte da terra indígena de Capoto-Jarina, interferência na perspectiva espiritual de tal povo no âmbito de sua interação com o meio ambiente, crenças, costumes, hábitos, práticas, valores, ordens internas, honra, dignidade, integridade e a própria concepção de pertencimento, inclusive de futuras gerações, além de quaisquer danos de caráter individual eventualmente sofridos pelos indígenas.
Apresentado o tema da pesquisa, passa-se à problemática que permeia o trabalho, qual seja: os efeitos irradiantes do direito fundamental de liberdade de crença englobam a reparação dos danos espirituais ao direito ao projeto de pós-vida por violações a direitos humanos? Além disso, essa reparação é compatível com a sistemática da responsabilidade civil do ordenamento jurídico brasileiro?
O estudo tem como hipótese a de que o direito fundamental à liberdade de crença engloba a proteção ao projeto de pós-vida, e sua consequente reparação, em caso de violação, como também a de que é necessária a consolidação do direito ao projeto de pós- vida no ordenamento jurídico brasileiro, e, consequentemente, de uma nova categoria de dano, qual seja, o de dano espiritual, haja vista serem questões relacionadas à liberdade crença do indivíduo, que é direito fundamental decorrente da liberdade religiosa, aspecto essencial da dignidade da pessoa humana.
O trabalho é resultado de uma pesquisa que adotou como procedimento a análise documental – o julgamento do caso da comunidade Moiwana vs. Suriname, bem como o termo de acordoiii 1/2017, celebrado entre a etnia indígena Mebengokre Kayapó e a Empresa Gol Linhas Aéreas S.A., assinado no dia 20 de março de 2017, intermediado pelo Instituto Raoni e o Ministério Público Federal, como também o procedimento de revisão bibliográfica, com a consulta a artigos científicos e livros relacionados à temática da liberdade religiosa, proteção internacional dos direitos humanos, responsabilidade civil e à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de legislação nacional.
Estruturalmente, o estudo está dividido em três seções temáticas, além de introdução e conclusão. Na primeira seção, intitulada A liberdade de crença como direito fundamental e o dano ao direito ao projeto de pós-vida, será estudada a caracterização do direito de crença, como também do direito ao projeto de pós-vida e do dano espiritual a esse projeto. Por sua vez, na seção seguinte, O dano espiritual e sua configuração: a questão da responsabilidade civil e sua compatibilização com o ordenamento jurídico brasileiro, será feito um estudo doutrinário acerca da responsabilização civil no ordenamento jurídico brasileiro. Na última seção temática, que possui o título Uma discussão acerca do dano ao direito ao projeto de pós-vida e da indenização por danos espirituais nas aldeias da terra indígena Capoto-Jarina: o Caso Legacy, adentra-se à análise do caso Legacy, em que foi firmado o referido acordo entre a etnia indígena Mebengokre Kayapó e a empresa Gol Linhas Aéreas, intermediado pelo Instituto Raoni e o Ministério Público Federal, adotando-se como fonte documental principal o próprio acordo, bem como a caracterização da liberdade de crença como um direito fundamental constituinte do Estado Democrático de Direito, e também, o julgamento do caso Moiwana vs. Suriname.
No que se refere ao ponto de vista da abordagem do problema, a pesquisa é do tipo qualitativa, preocupando-se com o aprofundamento da compreensão do objeto de estudo.
O objetivo geral do estudo é analisar o reconhecimento do direito ao projeto de pós-vida e da possibilidade de dano espiritual. Por sua vez, os objetivos específicos são estudar o direito fundamental da liberdade de crença; verificar as características da responsabilidade no que se refere ao dano espiritual; e abordar aspectos da indenização por danos espirituais no caso concreto analisado nessa pesquisa.
A pesquisa se justifica por abordar temática ainda pouco discutida no âmbito do Direito nacional, como também em razão de o caso narrado constituir a primeira indenização acordada acerca do dano espiritual no Brasil, reconhecendo o projeto de pós- vida, que potencialmente é precedente para futuras indenizações.
Deste modo, o estudo versa sobre a tutela de novos direitos, o que coaduna com a abertura interpretativa dos direitos fundamentais no âmbito do Estado Democrático de Direito, que é inclusivo, englobando as mais variadas crenças e projetos de vida.
O ordenamento jurídico brasileiro ainda não prevê, expressamente, essa modalidade de dano, como também são poucos os estudos que versam sobre a reparação do dano ao direito ao projeto de pós-vida. É necessário que o Direito brasileiro preveja a responsabilidade civil por danos ao projeto de pós-vida, haja vista a proteção constitucional à liberdade de crença, componente do princípio da liberdade religiosa.
2 A liberdade de crença como direito fundamental e o dano ao direito ao projeto de pós-vida
A crença no sobrenatural remonta aos primórdios da humanidade, sendo possível perceber a influência da religiosidade na sociedade humana em vários aspectos, desde ritos que celebram o nascimento, à influência na construção da moral social e da política na história de suas relações institucionais com o Estado, até questões envolvendo o direito ao projeto de pós-vida.iv
Em relação à importância da religião e da religiosidade nas sociedades humanas, Jónatas Eduardo Mendes Machado ressalta:
Os estudos arqueológicos, históricos e antropológicos colocaram em evidência o lugar central que a religião tem vindo a ocupar, desde sempre, nas sociedades humanas. Atualmente, esse fato é sublinhado pela sociologia. As formas de religiosidade são muito diversas entre si, embora seja possível encontrar semelhanças e pontos de contato em pelo menos muitas delas. Desde logo, a referência ao transcendente, ao sobrenatural, ao absoluto. Por força dessa sua natureza, ela é capaz de libertar energias incontroláveis, surgindo historicamente ligada ao que existe de melhor e de pior na história da humanidade. (MACHADO, 1996, p. 9).
Deste modo, desde que o ser humano se entende como tal, começou a fazer para si imagens, mais ou menos elaboradas, representando a realidade. “Através dessas imagens interpretava as suas próprias experiências e tentava descobrir-lhes um sentido ordenador, que reproduzia através de um modelo discursivo”. (MACHADO, 1996, p. 14). Observa-se, assim, uma relação muito íntima entre sagrado e profano, não sendo possível separar a vida religiosa da vida em comunidade.
A liberdade de crença decorre, juntamente com a liberdade de consciência e a liberdade de culto, do princípio da liberdade religiosa. Em relação à sua conceituação, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990) ressalta ser a liberdade de crença a liberdade de foro íntimo relacionada à religião.
Assim, para adentrar à proposta da presente seção será necessário abordar a estrutura da liberdade de crença e posteriormente a problemática da reparação do dano espiritual ao projeto de pós-vida.
2.1 A caracterização estrutural da liberdade de crença
O conceito de liberdade religiosa (espécie) decorre do conceito de liberdade (gênero), com conteúdo filosófico profundo, dele decorrente a sua concepção jurídica. Deste modo, Nicola Abbagnano, analisando o conceito filosófico de “liberdade”, ressalta que o referido termo possui:
[...] três significados fundamentais, correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem ser caracterizadas da seguinte maneira: 1 Liberdade como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a liberdade é ausência de condições e de limites; 2 Liberdade como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a autodeterminação, mas atribuindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substancia, Estado); 3 Liberdade como possibilidade ou escolha, segundo a qual a liberdade é limitada e condicionada, isto é, finita. (ABBAGNANO, 1998, p. 605-606).
Para a primeira concepção, transmitida na Antiguidade e durante toda a Idade Média, liberdade consistia não somente em ter em si a causa dos próprios movimentos, como também em ser essa causa. Assim, tal concepção privilegia os seres humanos, tendo em vista ser a causa dos movimentos aquilo que o próprio homem escolhe como móbil, enquanto árbitro e juiz das circunstâncias externas. (ABBAGNANO, 1998).
Por sua vez, decorrente do conceito de liberdade é o conceito de liberdade religiosa. Pinto Ferreira frisa que “a liberdade religiosa é o direito que tem o homem de adorar a seu Deus, de acordo com a sua crença e o seu culto”. (FERREIRA, 1998, p. 102). Para Jorge Miranda:
A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinar crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres. (MIRANDA, 2000, p. 409).
Assim, pode-se definir a liberdade religiosa como um direito de liberdade “em virtude do qual se reconhece às pessoas uma esfera de atuação livre de coação e interferências em matéria religiosa e de crenças”. (PALOMINO LOZANO, 2018, p. 78, tradução nossav).
De acordo com Márcio Eduardo Senra Nogueira Pedrosa Morais (2015), a liberdade religiosa é gênero, do qual se desdobram as seguintes liberdades: i) liberdade de consciência, ii) de crença, e iii) de culto. Nesse sentido, a liberdade de crença garante ao sujeito o direito de escolher entre qualquer religião, qualquer crença (liberdade positiva de crença), como também o direito de não ter crença nenhuma (liberdade negativa de crença). A liberdade de culto representa a exteriorização popular da liberdade de crença, a manifestação física mediante rito ou solenidade.
De acordo com a classificação dos direitos fundamentais esboçada por José Carlos Vieira de Andrade (1987), a liberdade de crença se enquadra como um direito de defesa.vi Nos direitos de defesa há um dever de abstenção, um dever de não agir, de não interferência nas liberdades públicas. Os direitos de defesa são denominados de direitos primeira geração por Karel Vasak (1982). Por sua vez, Georg Jellinek (1912) os denomina status negativo ou status libertatis.
Ingo Wolfgang Sarlet, ao definir a liberdade religiosa como direito subjetivo, também afirma que essa se desdobra em liberdades de consciência, de crença e de culto, sendo usualmente abrangidas pela expressão genérica liberdade religiosa. Assim:
Em uma liberdade de crença, que diz com a faculdade individual de optar por uma religião ou de mudar de religião ou de crença, ao passo que a liberdade de culto, que guarda relação com a exteriorização da crença, diz com os ritos, cerimônias, locais e outros aspectos essenciais ao exercício da liberdade de religião e de crença. Também a liberdade de associação e de organização religiosa encontra-se incluída no âmbito de proteção da liberdade religiosa, de tal sorte que ao Estado é vedado, em princípio, interferir na esfera interna das associações religiosas. (SARLET, 2015, p. 829).
A liberdade religiosa e suas ramificações possuem dupla dimensão de eficácia, uma subjetiva e outra objetiva. Enquanto direitos subjetivos, elas “asseguram tanto a liberdade de confessar (ou não) uma fé ou ideologia, quanto geram direitos à proteção contra perturbações ou qualquer tipo de coação oriunda do Estado ou de particulares”. (SARLET, 2015, p. 829). Numa perspectiva objetiva, “tais liberdades fundamentam a neutralidade religiosa e ideológica do Estado, como pressuposto de um processo político livre e como base do Estado Democrático de Direito”. (SARLET, 2015, p. 829).
Afirma ainda Sarlet (2015), decorrer dessa dupla dimensão de eficácia subjetiva e objetiva tanto direitos subjetivos, quanto princípios, deveres de proteção e garantias institucionais que guardam relação com a dimensão objetiva. Ressalta também que, especificamente quanto à neutralidade religiosa e ideológica do Estado, estas se constituem elementos centrais das ordens constitucionais contemporâneas, especialmente no tocante ao aspecto religioso.
É decorrente dessa liberdade de crença que se afigura juridicamente possível a reparação do dano espiritual ao direito ao projeto de pós-vida, que será analisado na subseção seguinte.
2.2 A reparação do dano espiritual ao direito ao projeto de pós-vida
No julgamento do caso Moiwana vs. Suriname, o juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade, tratou dessa nova modalidade de dano. Importante ressaltar que o caso original se entrelaça com aspectos da riqueza cultural latino-americana, especificamente no que se refere ao relacionamento entre nativos surinameses com sua terra tradicional, de importância espiritual, cultural e material.vii
O caso concerne a um massacre ocorrido no dia 29 de novembro de 1986 na comunidade N´djuka Maroon de Moiwana, ocasião em que 39 pessoas foram brutalmente assassinadas e mutiladas pelas forças armadas do Suriname. Além das mortes, os sítios sagrados da comunidade foram totalmente incendiados.
De acordo com a cultura desse povo, eles continuam atormentados com as violentas mortes de seus entes queridos e pelo fato de que os falecidos não tiveram um enterro adequado.viii Conforme ressalta Trindade:
No presente caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname, originado à raiz de um massacre perpetrado há mais de duas décadas, a comunidade N´djuka Maroon mostrou uma consciência admirável e precisa sobre seus deveres em relação aos mortos. Isto surge, claramente, da prova testemunhal apresentada ante a Corte, onde se indica que os sobreviventes e familiares diretos das presumidas vítimas do massacre de 1986 assumiram a obrigação de buscar justiça para seus mortos (como uma “responsabilidade cultural que continua através das gerações”) e reconheceram o dever iminente de recuperar os restos dos mortos, de realizar as cerimônias fúnebres e de ofertar um “adequado enterro” a seus mortos. (TRINDADE, 2018, p. 20, tradução nossaix).
Para construir a argumentação que sustenta o dano ao projeto de pós-vida é necessário qualificar a sociedade moderna (ou pós-moderna). Deste modo, Cançado Trindade ressaltou o mundo pós-moderno como lócus de valorização da ambição do materialismo e de acumulação de riqueza, com corrida armamentista e uso de força, onde o indivíduo se preocupa, cada vez menos, com o sofrimento humano e com a morte.
Ao contrário das sociedades antigasx, nos tempos modernos os seres humanos têm evitado, claramente, se referir à morte. Conforme ressalta Trindade: “as sociedades ocidentais contemporâneas proibiram o estudo da morte ao mesmo tempo em que incentivavam o hedonismo e o bem-estar material”. (TRINDADE, 2018, p. 14, tradução nossaxi). Deste modo: “as culturas antigas atribuíam grande importância às relações entre os vivos e os mortos e à morte como parte da vida. As sociedades modernas trataram em vão de minimizar ou ignorar a morte de maneira quase patética”. (TRINDADE, 2018, p. 14, tradução nossaxii).
Em que pese o menosprezo da sociedade moderna em relação à morte, é fundamental ressaltar não ser essa uma regra para todos os povos. Do contrário, povos antigos e algumas sociedades atuais valorizam a morte, principalmente povos indígenas tradicionais.
O dano ao projeto de pós-vida pode ser conceituado como espécie do dano ao projeto de vida, conceito desenvolvido, em nível internacional, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por intermédio da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
É importante a advertência feita por Trindade, na ocasião do julgamento do Caso Moiwana versus Suriname:
O Direito Internacional em geral e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em particular, não pode permanecer indiferente ante as manifestações espirituais do gênero humano, tais como as expressas nas atuações iniciadas ante esta Corte no presente caso Comunidade Moiwana. (TRINDADE, 2018, p. 24, tradução nossaxiii).
Efetivamente, o projeto de pós-vida se relaciona diretamente com a questão da existência e da morte. Nesse sentido, é importante ressaltar que essa problemática (existência e morte) foi enfrentada pela Corte Interamericana em outros julgamentos, como nos casos Aloeboetoe e Outros (1991), Bámaca Velásquez (2000-2002), Bulacio (2003), Meninos de Rua (Villagrán Morales e outros, 1999-2001), Irmãos Gómez Paquiyauri (2004) e Massacre Plan de Sánchez (2004), em rol meramente exemplificativo.
O precedente da CIDH em relação aos danos ao projeto de vida está localizado no caso Loayza Tamayo vs. Peru, ocasião em que a Corte, além de definir esse dano, o diferenciou do dano emergente e do lucro cessante, nos seguintes termos:
O dano ao projeto de vida não corresponde ao prejuízo patrimonial derivado imediata e diretamente dos fatos, que é característico do dano emergente; tampouco se confunde com o lucro cessante, porque, enquanto este se refere de forma exclusiva a perdas econômicas futuras, que é possível quantificar a partir de certos indicadores mensuráveis e objetivos, o denominado projeto de vida atende à realização integral da pessoa afetada, considerando sua vocação, atitudes, circunstâncias, potencialidades e aspirações, que lhe permitem determinar razoavelmente certas expectativas e atingi-las. (CIDH, 1998, p. 147, tradução nossaxiv).
Doutrinariamente, Carlos Fernández Sessarego define o dano ao projeto de vida como a lesão que, por sua transcendência, desloca o sentido existencial da pessoa, incidindo sobre a liberdade do sujeito a realizar-se segundo o seu livre-arbítrio. (FERNÁNDEZ SESSAREGO, 1996).
Neste momento é importante diferenciar o dano ao projeto de vida do dano moral.xv Aqui também será utilizado o entendimento de Fernández Sessarego (1996), que ressalta serem as consequências do dano moral relativas aos sentimentos e aos afetos do indivíduo, porém, por mais profundas que possam ser essas consequências, não o acompanharão, pelo menos com a intensidade inicial, durante o transcurso de sua vida. Deste modo, essas consequências, dores e sofrimentos tendem a se dissipar, diminuindo com o passar do tempo.
Antônio Augusto Cançado Trindade conceituou o dano ao projeto de vida como:
[...] um dano espiritual, como uma forma agravada do dano moral que possui uma implicação direta na parte mais íntima do gênero humano, a saber, seu interior, suas crenças no destino da humanidade e suas relações com os mortos. O dano espiritual não é suscetível, com certeza, de indenização material, se não que existem outras formas de compensação. Aqui é onde se apresenta a ideia, pela primeira vez na história, no meu leal entender. (TRINDADE, 2018, p. 24, tradução nossaxvi).
Por sua vez, as consequências do dano ao projeto de vida incidem na liberdade do sujeito, “impedindo-o de alcançar sua realização pessoal e cumprir as metas que dão sentido próprio à sua vida”. (FALCON, 2015, p. 52).
É importante ressaltar que a dimensão da crença ultrapassa aspectos físicos, não se resumindo à matéria, ou seja, àquilo que é palpável. É típico da religião a crença no sobrenatural, motivo pelo qual o pós-vida não é apenas uma ideia, mas sim uma realidade que permeia a vida do indivíduo de crença positiva.
Conceituada a liberdade de crença, como também o direito ao projeto de pós- vida, passa-se na próxima seção ao estudo do dano espiritual e sua compatibilização com o ordenamento jurídico brasileiro.
3 O dano espiritual e sua configuração: a questão da responsabilidade civil e sua compatibilização com o ordenamento jurídico brasileiro
O dano espiritual não é pacifico entre os doutrinadores, e muitos o ignoram. Todavia, há jurisprudências abordando o aspecto do dano espiritual, sendo este bem particular em relação às outras formas de dano.
O julgamento do Caso Moiwana vs. Suriname estabeleceu uma diretriz interessante de que a convivência deve ser harmoniosa e implicar dignidade para as comunidades indígenas e não causar dano espiritual pelo impedimento de realização de rituais.
O presente caso da Comunidade Moiwana, a meu modo de ver, abarca algo mais que o direito emergente a um projeto de vida. Uns anos atrás, esta Corte sentou jurisprudência ao afirmar a existência do dano ao projeto de vida. A interpretação geral do caso tomou em conta, porém, os vivos. No presente caso, não obstante, posso visualizar, a dor dos N’djukas da aldeia de Moiwana, a proteção ao direito a um projeto de pós vida, que leva em conta os vivos e suas relações com os mortos, em conjunto. O Direito Internacional em geral, e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em particular, não podem permanecer indiferentes ante as manifestações espirituais do gênero humano, tal expressadas nas ações iniciantes em face a esta Corte e no presente caso da Comunidade Moiwana. [...] Me atreveria a conceitualizar um dano espiritual, como uma forma agravada do dano moral que tem uma implicância direta na parte mais íntima do gênero humano, a saber, seu interior, suas crinas no destino da humanidade e suas relações com os mortos. O dano espiritual não está suscetível, claro, a indenização material mas sim, outras formas de compensação. Aqui é de onde se apresenta a ideia, pela primeira vez na história, ao meu entender. (CIDH, 2005, p. 116-117, tradução nossaxvii).
Surgiu, então, o dano espiritual como uma modalidade mais agravada do dano moral.
Esta nova categoria de dano, como o percebo, compreende o princípio da humanidade em uma dimensão temporal, e inclusive a dos vivos em suas relações com os mortos e com os ainda não nascidos, das futuras gerações. Este é meu entendimento. O princípio da humanitas tem, de fato, uma projeção histórica de longa data e se deve, principalmente, as culturas antigas (em especial, a da Grécia) desde que fora associado, com o tempo, com a formação moral e espiritual dos seres humanos. (CIDH, 2005, p. 117, tradução nossaxviii).
Assim, conforme a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com respaldo no leading case, o dano espiritual distingue-se do dano moral, como é comumente concebido.
Através do julgado perceberam-se e consolidaram-se as características do dano espiritual. Este deve ser coletivo, uma vez que para ser configurado deve atingir as crenças de um povo, não somente configurar uma ingerência na esfera particular; deve, também, envolve uma colisão entre culturas distintas provocando uma reação de uma delas; deve gerar um sofrimento em relação a todos os membros de uma comunidade, sendo este aspecto coletivo o que o diferencia do dano moral. Seria então, um dano moral, atinente a questões de religiosidade, coletivamente considerado; que atingiria o estilo de vida de um povo, suas crenças e dignidade, sendo de tal forma tão relevante que se prosseguissem no tempo, poderia, até mesmo, extinguir aquele povo. Por fim, e por óbvio, trata-se de danos imateriais e extracontratuais.
O caso Moiwana vs. Suriname deve servir de precedente para a responsabilização contundente de danos na esfera espiritual de qualquer povo. É importante destacar esta modalidade de dano, para que casos afetos não sigam sem resolução, e para que a esfera espiritual tenha a devida proteção, como ocorre na esfera patrimonial, moral e até mesmo estética.
Abordados os elementos anteriores, passa-se, na próxima seção, à discussão acerca da indenização por danos espirituais nas Aldeias da terra indígena Capoto-Jarina.
4 Uma discussão acerca do dano ao direito ao projeto de pós-vida e da indenização por danos espirituais nas aldeias da terra indígena capoto-jarina: o caso legacy
Segundo a crença da etnia indígena Mebengokre Kayapó, a área atingida e pertencente à tribo indígena teria se tornado “mearon nhyrunkwa”, ou seja, “casa dos espíritos”, onde é vedada pesca, caça, roça ou construção de aldeias, de tal sorte que as comunidades viverão privadas para sempre. (BRASIL, 2018d). Ademais, a comunidade deixou de consumir o mel das abelhas de uma extensa parte da floresta amazônica que cobre a região, além de uma das 12 aldeias ter necessitado de mudar de local em decorrência do mekaron nhyrunkwa.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 231, reconhece aos índios sua organização social, costumes, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. (BRASIL, 1988). Em igual norte, a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, promulgada em 19 de abril de 2004, reafirma o constitucionalizado direito à autodeterminação e estabelece o reconhecimento e proteção aos valores e práticas espirituais dos indígenas. (BRASIL, 2014).
Nesse diapasão, o artigo 11 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2008, adotada pelo Brasil, prevê a reparação aos danos espirituais através de mecanismos eficazes, bem como o direito de manifestação, prática, desenvolvimento e ensino de suas tradições, costumes e cerimônias espirituais e religiosas. (ONU, 2018).
Essa nova categoria de dano, compreende o princípio da humanidade, em uma dimensão temporal, como ressaltado, no julgamento do caso Moiwana vs. Suriname, inclusive na relação espiritual dos vivos e mortos, englobando o direito dos não nascidos e das futuras gerações.
Outrossim, prevê ainda a referida Declaração, em seu artigo 12, a manutenção e proteção dos lugares religiosos e culturais dos indígenas, além de terem acesso a eles de forma privada.
Apesar de todo suporte legislativo, os indígenas ainda são vítimas de diversas violações de direitos, principalmente ao serem privados de seus territórios tradicionais. No caso em comento, o questionamento se perfaz em até que ponto o referido acordo suprirá a violação dos direitos fundamentais do povo indígena e da pessoa humana, visto que as circunstâncias do caso inviabilizam a reparação pecuniária, e assim reintegre o status quo ante, de tal sorte que a indenização compense os danos resultantes à ofensa da dignidade e a honra dos índios Kaiapós, no que concerne às suas práticas de vida e de morte.
Assim, embora não seja exequível a restitutio in integrum, em razão da impossibilidade material da reposição, a compensação pecuniária é a única possível, uma vez que o dano espiritual é resultado dos danos extrapatrimoniais, sendo, de uma forma mais compreensível, um aprofundamento do dano moral, em seu aspecto coletivo.
Insta ressaltar que os danos espirituais estão inseridos no conceito de cultura, que pode ser entendida como o conjunto de traços espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que distinguem e caracterizam uma sociedade ou um grupo social, e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os valores, as tradições e as crenças.
Desta feita, a cultura dos membros de uma comunidade indígena corresponde a uma forma de vida particular de ser, ver e atuar no mundo, construída a partir também de sua relação com a terra, motivo pelo qual lhes deve ser assegurado o direito de propriedade, revisitado e fundamentado na vida espiritual e proteção ao projeto de pós-vida dos povos, não se referindo a danos meramente materiais e morais, mas espirituais, em razão da ancestralidade da terra.
No caso em comento, resta evidente que deve ser assegurado aos indígenas, a partir do direito de propriedade, bem como em razão da cultura e direitos fundamentais, medidas positivas que possibilitem o pleno gozo de uma vida digna, como garantias às futuras gerações da tribo.
A principal questão do caso em tela é que a identidade cultural está diretamente relacionada ao próprio direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Portanto, automaticamente, a partir do momento em que a primeira é violada, a segunda também será. Em igual norte, o direito de propriedade é reafirmado com base na vida espiritual dos povos indígenas, não se referindo apenas a danos materiais e morais, mas espirituais, em razão da noção de ancestralidade da terra, que acarreta uma responsabilidade dos vivos para com os mortos.
Desta feita, ao comparar o Caso Moiwana VS. Suriname ao Caso Legacy, apesar de não se poder mensurar os danos causados, é possível analisar a dimensão dos danos espirituais dos índios, uma vez que tais acontecimentos importam diretamente na vida, honra e principalmente na dignidade de um povo, não apenas para com os vivos, mas principalmente em relação às responsabilidades com os mortos, relacionando-se no caso em comento, ao direito ao projeto de pós-vida.
O dano espiritual é, conforme estudado ao longo da pesquisa, uma espécie coletiva de reparação civil, relacionada aos danos morais, possuindo requisitos próprios para a sua configuração. Antes do caso em comento, não havia menção à possibilidade de consideração ao direito ao projeto de pós vida e ao dano mencionado, em que pese discussão do tema no âmbito da Corte Internacional de Direitos Humanos. Com este caso inaugural, o dano espiritual possui precedente para que possa ser aplicado para tutelar, não somente direitos dos indígenas, mas de toda e qualquer coletividade que possua seu direito ao projeto de pós-vida violado.
A principal dificuldade enfrentada no caso em tela, consiste no fato de não haver suficiente jurisprudência, de forma precisa, inclusive nas Cortes Internacionais, sobre os danos espirituais, sendo ausente o suporte jurídico, uma vez que a reparação civil se caracteriza de maneira ampla e positiva.
Não se pode negar, ao mesmo tempo, as dificuldades decorrentes de tal positivação, pois o tema abrange o direito de pós-vida, dadas as distintas dimensões que envolvem o caso concreto.
Lado outro, a dificuldade de avaliação do dano espiritual não pode levar à omissão da solução e positivação do direito, de modo que se possa garantir a reparação em favor das vítimas.
Nesse diapasão, tem-se a necessidade de o direito brasileiro volver os olhos para a proteção jurídica dos indígenas, envolvendo o aspecto cultural da sociedade, a fim de que o dano espiritual seja autonomamente reconhecido pelo Direito Civil, eis que se mostra apto a absorver demandas de tal natureza, a partir dos institutos existentes, referentes à reparação civil.
A reparação ao referido dano se perfectibiliza ao arcabouço da responsabilidade civil, conforme estruturada no ordenamento jurídico brasileiro.
5 Conclusão
A liberdade religiosa é um princípio constituído pela liberdade de consciência, pela liberdade de culto e pela liberdade de crença, sendo um dos direitos fundamentais mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro, relacionando-se com a dignidade humana.
Não é possível vida digna se não houver a liberdade de crer (seja a crença positiva ou negativa), de cultuar e de pensar, sendo da condição humana, a crença, questão que se relaciona, até mesmo, com a cultura de uma determinada sociedade.
A crença pode se relacionar com questões do cotidiano, como também com aspectos sobrenaturais. Diante disso, devem ser respeitadas as crenças positivas como também as negativas, sejam essas visões de mundo, inclusive, agnósticas ou ateístas.
As sociedades ocidental e oriental, cada uma à sua maneira, incorporam elementos de projetos de pós-vida, haja vista a maneira como são cultuados os mortos, desde o momento da cerimônia funeral, até o culto à sepultura, ao cadáver e às cinzas, abrangendo o espírito (em algumas religiões e culturas).
O conceito de dano ao projeto de vida foi incorporado, no plano internacional, às questões afeitas às reparações a graves violações de direitos humanos. Decorrente dele, considerando-o gênero, é possível especificar ao dano ao projeto de pós-vida, que, apesar do tratamento a ele dado pelas cortes internacionais, ainda não possui princípios lógicos e claros estabelecidos, que possam avaliar precisamente sua extensão.
Em nível de direito nacional não se encontram disposições legislativas relativas ao dano ao projeto de vida e, por consequência, ao direito ao projeto de pós-vida. De outro lado, doutrina e jurisprudência avançaram na matéria, como ocorreu no caso concreto analisado nesta pesquisa.
A questão foi enfrentada em nível internacional, especificamente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname, quando o juiz Antônio Augusto Cançado Trindade tratou do dano ao projeto de pós-vida, ressaltando que o Direito Internacional geral, como também o Direito Internacional dos Direitos Humanos, não pode permanecer indiferente às manifestações espirituais do gênero humano.
Não há razão para se permanecer exclusivamente no mundo dos vivos, desconsiderando o encontro do indivíduo com seus antepassados, como também a relação harmoniosa entre os vivos e os mortos.
Antônio Augusto Cançado Trindade, diferenciando o dano moral do dano espiritual, ressaltou a impossibilidade de se quantificar o dano espiritual, que deve ser ressarcido, por conseguinte, por intermédio de obrigações de fazer em forma de satisfação, como exemplo, honrando os mortos na pessoa dos vivos.
Deste modo, retornando à problemática exposta no introito do estudo, qual seja: os efeitos irradiantes do direito fundamental de liberdade de crença englobam a reparação dos danos espirituais ao projeto de pós-vida por violações a direitos humanos? Além disso, essa reparação pode ser inserida na sistemática da responsabilidade civil do ordenamento jurídico brasileiro? Tem-se que a hipótese foi comprovada.
Deste modo, tem-se por certo que o direito fundamental à liberdade de crença engloba a proteção ao projeto de pós-vida, e sua consequente reparação, em caso de violação, como também a de que é necessária a consolidação do direito ao projeto de pós- vida no ordenamento jurídico brasileiro, e, consequentemente, de uma nova categoria de dano, qual seja, o de dano espiritual, haja vista serem questões relacionadas à liberdade crença do indivíduo, que é direito fundamental decorrente da liberdade religiosa, aspecto essencial da dignidade da pessoa humana.
O ordenamento jurídico brasileiro tutela penalmente o sentimento religioso e o respeito aos mortos (artigo 140, Título X, ambos da Parte Especial do Código Penal, como também por intermédio da Lei n.º 7.716 de 1989), ainda que de maneira desproporcional, por caracterizar proteção deficiente. Diante disso, é necessária a sua definição expressa na seara civil, o que supera o tradicional paradigma material, físico, do Direito Civil.
Estruturalmente, o dano ao projeto de pós-vida possui aspecto coletivo, devendo atingir as crenças de um povo. Trata-se de dano moral relativo a questões de religiosidade, atingindo a vida de uma comunidade, consequentemente, suas crenças e dignidade.
Como o ordenamento jurídico tutela os danos imateriais, é possível a indenização pelos danos ao projeto de pós-vida, questão relativa aos novos direitos, que são tutelados pelo Estado Democrático de Direito, que é um modelo estatal onde todos os projetos de vida são tutelados, sendo ele inclusivo e tolerante.
Não amparar o projeto de pós-vida é sustentar um ponto-de-vista intolerante em relação ao justo. De outro lado, é importante destacar as dificuldades que acarretam a avaliação do dano ao projeto de pós-vida, haja vista as características e dimensões envolventes nos casos concretos.
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Notas
Informação adicional
Para referenciar este texto: MORAIS, Márcio Eduardo Senra Nogueria Pedrosa; COSTA, Rafaela Cândida Tavares; SILVA, Bárbara Martins Duarte. A liberdade de crença como direito fundamental: uma discussão acerca da reparação do dano espiritual ao direito ao projeto de pós-vida nas aldeias da terra indígena Capoto-Jarina. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 25-47, jan./jun. 2019.