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Co-culpabilidade às avessas e suas vertentes quanto a seletividade e os delitos contra a ordem econômica, financeira e tributária

Reverse co-culpability and their aspects of selectivity and crimes against the economic, financial and tax order

Robson Leandro Soda
Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil
Rosane Teresinha Carvalho Porto
Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil

Co-culpabilidade às avessas e suas vertentes quanto a seletividade e os delitos contra a ordem econômica, financeira e tributária

Prisma Jurídico, vol. 18, núm. 1, pp. 88-108, 2019

Universidade Nove de Julho

Recepção: 10 Julho 2018

Aprovação: 18 Setembro 2018

Resumo: O presente artigo, por meio de metodologia indutiva e pesquisa doutrinária e jurisprudencial, se propõe a elucidar o princípio da co-culpabilidade às avessas, uma realidade flagrante em nossa legislação, o qual se manifesta por meio de três vertentes, quais sejam a da promoção da seletividade e criminalização da vulnerabilidade, do abrandamento de pena nos crimes econômicos, financeiros e tributários e, por fim, a co- culpabilidade às avessas como mecanismo de maior reprovação penal dos crimes praticados por pessoas de alto poder socioeconômico, os chamados “incluídos sociais”.

Palavras-chave: Co-culpabilidade, Co-culpabilidade ás avessas, Seletividade, Direito Penal.

Abstract: The present article, through an inductive methodology and doctrinal and jurisprudential research, aims to elucidate the principle of co-culpability in reverse, a flagrant reality in our legislation, which is manifested through three aspects, namely, the promotion of selectivity and criminalization of vulnerability, the easing of punishment in crimes economic, financial and tributary, and, finally, co-culpability in reverse as a mechanism of greater criminal reprobation of crimes committed by people of high socio- economic power, so-called "social inclusion."

Keywords: Co-culpability, Reverse co-culpability, Selectivity, Criminal Law.

Introdução

O Direito Penal, ao longo dos anos, vem nos trazendo uma infinidade de discussões em diversos campos, como na sociologia e filosofia, buscando sempre acompanhar uma sociedade em constante evolução. Considerado para alguns como um braço pesado, o certo é que existe uma variedade de leis não disciplinadas pelo Código Penal, porém passiveis de aplicação.

Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 77) nos ensinam que direito penal “se designa — conjunta ou separadamente — duas entidades diferentes: 1) o conjunto de leis penais, isto é, a legislação penal 2) o sistema de interpretação desta legislação, isto é, o saber do direito penal.”

Existe, também, uma grande ligação entre o Direito Penal e a Constituição Federal. Ela se dá muito pela forma que o Estado de Direito conduz sua proteção aos direitos fundamentais e também com prisma em seus próprios princípios constitucionais (implícitos ou explícitos), visto que estes norteiam a aplicação e interpretação de todo o ordenamento jurídico.

Além de instituir princípios básicos de proteção ao indivíduo, a Constituição Federal também fixa diretrizes, buscando promover o bem-estar social com enfoque no meio ambiente, nos direitos trabalhistas, na saúde, educação e etc.

Diante da incapacidade do poder Estatal em fazer valer os direitos garantidos aos cidadãos, e diante das benesses recebidas pela classe abastada quanto ao cometimento de crimes que causam consequências catastróficas para toda coletividade, que nasce o instituto da co-culpabilidade, bem como sua versão às avessas, objeto do presente artigo, já que a realidade de vida de cada indivíduo é desigual, trazendo também efeitos para o âmbito jurídico.

Utilizando-se da metodologia indutiva e pesquisa doutrinária e jurisprudencial, partindo de um conhecimento geral que já se possui do instituto da co-culpabilidade, direcionando para sua especificidade às avessas, a pesquisa tem por objetivo responder, de forma mais aprofundada, a seguinte questão: como se manifesta o princípio da co- culpabilidade às avessas e quais suas vertentes frente a problemática de nosso sistema jurídico-penal?

A criminologia crítica anda de mãos dadas com o garantismo no que tange a diminuição de injustiças sociais. Ela reafirma também a necessidade de proteção ao menos favorecido socioeconomicamente, o avesso do que vemos em tempos hodiernos, com o Estado criminalizando as atitudes dos que estão à margem da sociedade pelo simples fato de suas condições socioeconômicas serem desfavoráveis, criando estigmas e indo em contrassenso ao que prega a teoria da co-culpabilidade.

Ademais, pode-se instigar o debate acerca do instituto da co-culpabilidade às avessas na seara da classe mais abastada que notoriamente é beneficiária de certo abrandamento, e até mesmo extinção de punibilidade quando poderiam, ao contrário, sofrer maiores rigores perante a legislação e sanção penal, dadas suas condições sociais e financeiras privilegiadas e maior grau de autodeterminação.

A co-culpabilidade ás avessas é estuda no presente artigo sob o prisma de três vertentes, quais sejam a da promoção da seletividade e criminalização da vulnerabilidade, do abrandamento de pena nos crimes econômicos, financeiros e tributários e, por fim, a co-culpabilidade às avessas como mecanismo de maior reprovação penal dos crimes praticados por pessoas de alto poder socioeconômico, os chamados “incluídos sociais”.

Incialmente, remete-se para definição do instituto da co-culpabilidade e da co- culpabilidade às avessas sob a ótica dos doutrinadores Gregore Moura (2006) e Eugenio Raul Zaffaroni (2006) Conhecida está conceituação, passaremos a explicitar as vertentes do referido instituto, quais sejam a da seletividade e criminalização da vulnerabilidade, do abrandamento nos crimes contra a ordem econômica, financeira e tributária e, por fim, a co-culpabilidade às avessas como mecanismo de maior reprovação penal dos crimes praticados por pessoas de alto poder sócio-econômico.

1 Co-culpabilidade e sua modalidade às avessas

O Estado Democrático de Direito busca assegurar os valores de nossa Constituição Federal de 1988, processo que decorre de extensa evolução da sociedade ao longo dos tempos.

Nosso meio social determina de forma significativa o desenvolvimento humano. A família, escola, comunidade e demais grupos influenciam diretamente na formação dos indivíduos, assim como o próprio Estado enquanto instituição responsável pela viabilização e defesa de direitos.

Além disso, possuímos um sistema penal falho, que pune as pessoas apenas por não possuírem uma condição socioeconômica favorável, incriminando a vulnerabilidade e promovendo a seletividade.

A teoria da co-culpabilidade, conhecida também como teoria da corresponsabilidade, consiste na ideia de divisão de responsabilidade entre o Estado e o agente que cometeu o delito em razão de omissão daquele na tutela e promoção de direitos fundamentais. É importante instrumento de justiça social, com fundamento basilar na dignidade da pessoa humana, reconhecendo que fatores socioeconômicos, dentro de uma sociedade visivelmente desigual, influenciam na conduta do agente, que posto em juízo necessita tratamento diferenciado no que tange a culpa exclusiva pelo ato delituoso. (MOURA, 2006, p. 41).

Trazendo grandes considerações a respeito, Moura (2006, p. 41), define a co- culpabilidade como um princípio implícito dentro de nossa Constituição cuja a corresponsabilidade do estado em detrimento de determinados crimes é reconhecida, principalmente no que tange ás condições socioeconômicas de quem o praticou.

É neste sentido, de que o Estado não cumpre com seu contrato social, excluindo os cidadãos de garantias constitucionais, que alguns autores defendem a teoria da co- culpabilidade como um garantismo penal, onde o poder público pode reconhecer suas próprias falhas absorvendo sua parcela de “mea culpa” na dosimetria de pena, bem como continuar na busca de mecanismos de ressocialização do agente delituoso.

Deveras, que não se pretende responsabilizar penalmente o ente estatal, como se invertessem os papeis no banco dos réus, mas sim “responsabilizá-lo em virtude de sua ausência prévia quando não forneceu condições para que aquele indivíduo tomasse outro rumo que não o estreito caminho da conduta ilícita.” (SILVA, 2011, p. 14).

Assim, conhecido este conceito de co-culpabilidade, muito difundido também pelo penalista argentino Eugênio Raul Zaffaroni (2006), pode-se agora adentrar em outra teoria um tanto peculiar, defendida por Gregore Moura, o qual traz uma crítica ao sistema penal, a chamada co-culpabilidade às avessas.

Segundo a doutrina, a co-culpabilidade em sua modalidade às avessas demonstra a complacência do Estado no que tange aos crimes praticados pela classe econômica mais abastada de nossa sociedade.

Nesta seara, Moura (2006, p. 130-131) afirma:

[...] a co-culpabilidade ás avessas pode se manifestar na legislação sob três formas: a) tipificando condutas dirigidas a pessoas marginalizadas; b) aplicando penas mais brandas aos crimes de colarinho branco, ou, em geral, àqueles crimes praticados por pessoas inseridas socialmente, como os crimes contra o sistema financeiro, crimes tributários, dentre outros; c) como fator de diminuição e também de aumento da reprovação social e penal.

Neste diapasão a diferenciação do princípio da co-culpabilidade para a co- culpabilidade às avessas encontra-se justamente no fato de que, a primeira teoria busca uma corresponsabilização do Estado enquanto descumpridor do contrato social, não proporcionando as mesmas condições socioeconômicas, conduzindo o agente para a criminalidade. Por outro lado, a co-culpabilidade às avessa busca justamente vertente contrária, como, por exemplo, uma maior reprovação penal para o agente que obteve condições socioeconômicas favoráveis, os chamados “incluídos sociais”, mas que ainda assim escolheram o caminho da antijuridicidade. Esta última vertente da co-culpabilidade ás avessas, bem como as demais elencadas pela doutrina serão melhores trabalhadas a seguir.

1.1 A co-culpabilidade às avessas como uma vertente que promove a seletividade e criminaliza a vulnerabilidade

O Labelling Approach ou como é chamada “Teoria do Etiquetamento Social” surgiu com a criminologia crítica, nos Estados Unidos, concentrando os estudos nos processos sociais que acarretavam a criminalidade, as causas do crime, ou, melhor, dos reflexos do controle estatal sob o pretenso criminoso.

Os sociólogos ao desenvolverem a teoria observaram que a sociedade, ao desrespeitar os indivíduos de um grupo social, acabava contribuindo para o comportamento delituoso criando uma espécie de “rotulação social”, também conhecida como etiquetamento. (ZAFFARONI, 2001, p. 136).

Para Zaffaroni (2001, p. 133-134), os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com estereótipos ficando claro que desses são esperados os comportamentos já predeterminados. Uma forma de etiquetamento, visto que obriga todos a olha-los da mesma forma. Ainda neste sentido, o autor assevera que “o estereótipo alimenta-se das características gerais dos setores majoritários mais despossuídos e, embora a seleção seja preparada desde cedo na vida do sujeito, é ela mais ou menos arbitrária”.

Observa-se que, assim, aparentemente, os indivíduos que conduzem o comportamento ao delito já se encontram elencados pelo próprio sistema penal, seja por seu nível de escolaridade, sua cor, condição social e tantas outras condições imagináveis. (BARATTA, 1999, p. 94).

A partir da teoria do labelling approach mais conhecida como teoria do etiquetamento social, percebe-se a problemática de nosso sistema jurídico-penal, que nos dias hodiernos ainda trabalha com pressupostos que ao invés de prevenirem acabam condicionando o crime.

Carvalho (2008) citando Zaffaroni (2001), destaca o princípio da isonomia para uma melhor interpretação ao princípio da igualdade em casos concretos. Segundo o autor “reprovar com a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de privilégio e outras que se encontram em situações de extrema pobreza é uma clara violação do princípio da igualdade corretamente entendido [...]”.

Invertendo o que prega a teoria da co-culpabilidade, o Estado criminaliza as atitudes dos que estão à margem da sociedade pelo simples fato de suas condições socioeconômicas serem desfavoráveis, criando estigmas. Assim, não é incomum aos que possuem uma estabilidade financeira privilegiada enxergarem e selecionarem pessoas, por exemplo, que vivem em comunidades, como um risco a seu patrimônio privado, ou até mesmo ao patrimônio público.

Goffman (1988, p. 14) aduz que o termo estigma e seus sinônimos englobam duas formas de perspectiva: a daquele que evidentemente, por suas características, já se encontra elencado, e, portanto, é o ser desacreditado da relação, e, aquele que sua condição, ainda que por ele sabida, não resta de forma clara aos outros. Este último passaria a condição de desacreditável.

Nota-se que o indivíduo pode passar pelas duas etapas, principalmente na de incerteza de qual estigma será atribuído a si mesmo. Isso ocorre muitas vezes pelo fato dele carregar diversas características que possam ser elencadas a determinados status, como por exemplo o adolescente, o negro, o imigrante, etc… (GOFFMAN 1988, p.15).

Como aduzem Zaffaroni e Pierangeli (1997, p. 320)

O criminoso é simplesmente aquele que se tem definido como tal, sendo esta definição produto de uma interação entre o que tem o poder de etiquetar (‘teoria do etiquetamento ou labelling theory’) e o que sofre o etiquetamento, o que acontece através de um processo de interação, de etiquetamento ou de criminalização.

Heringer Júnior (2000, p.207) nos ensina que o plano normativo de erradicar a pobreza, marginalização e desigualdades sociais não condiz com a realidade, por relegar milhões de pessoas a uma vida miserável. Longe de ser uma condição transitória, agrava- se, em vista de novas formas de manifestação dos polos econômicos mundiais.

De acordo com Moura (2006, p. 44), a co-culpabilidade às avessas pode se manifestar de algumas formas em nossa legislação, e dentre elas está a tipificação de condutas dirigidas a pessoas que vivem à margem da sociedade, a exemplo dos artigos 59 (vadiagem) e 60 (mendicância – revogado pela lei 11.983/2009), da Lei de Contravenções Penais.

Dispõe o artigo 59, do Decreto-Lei n º 3.688/41:

Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena - prisão simples, de quinze dias a três meses.

Neste sentido, nota-se que a vadiagem, vigente ainda em nosso ordenamento jurídico, não deixa de possuir um condão discriminatório na medida em que o referido artigo é direcionado justamente para as pessoas que necessitam da tutela estatal, a qual é falha, e que busca uma sanção ao infrator como se correspondesse efetivamente aos anseios básicos firmados para com este em nossa Constituição.

Em 2010, por exemplo, o TJRS acatou uma denúncia oferecida pelo Ministério Público em face um jovem que pedia esmolas, condenando o mesmo a pena de prisão simples pela ofensa ao artigo 59 da Lei de Contravenções (vadiagem). O jovem alegou, em sua defesa, que guardava carros e recebia dinheiro dos motoristas como forma de serviço, entretanto o MP entendeu que a conduta foi ilícita:

TJRS - Recurso Crime RC 71003203031 RS (TJRS) Data de Publicação: 13/09/2011. Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL. VADIAGEM. ART 59 DA LCP. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DEFENSIVO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. Carecendo a instrução de provas seguras e suficientes acerca da autoria e da materialidade delitiva, assim como de anterior habitualidade ociosa ou de provisão da subsistência mediante ocupação ilícita, impositiva a reforma da sentença condenatória. RECURSO DEFENSIVO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71003203031, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge Cechet. (RIO GRANDE DO SUL, 2011).

Baratta (1999, p. 175), afirma que a justiça criminal não possui os meios eficazes para combater a criminalidade, funcionando apenas como selecionadora de clientela e que “o crime é um subproduto final do processo de criação e aplicação das leis, orientadas ideologicamente às classes dominantes”.

Baratta (2002), que muito contribuiu para a criminologia crítica, reconstruindo conceitos preexistentes por meio de mudanças de paradigmas, baseava-se muito nesta rotulação atribuída aos transgressores. Para o autor este “status” de criminoso era distribuído dentre a sociedade de forma desigual e a própria criminologia critica deveria interferir na política criminal, tratando desigualmente os desiguais (excluídos sociais e selecionados).

Essa criminologia crítica, em sua premissa, avaliaria caso a caso as situações sociais postas, trabalhando alternativas, não sendo sua principal função a de “[...] realizar as receitas da política criminal, mas problematizar a questão criminal, o sistema penal, mecanismos de seleção, enfim, uma análise político-econômica da situação [...]” (BARATTA ,1999, p. 215).

Na mesma face da moeda seletista está a grande mídia. De forma parcial ela colabora e muito para a criação de estigmas, estereótipos e preconceitos. Um bom exemplo disso são os sem teto que diariamente são exibidos em reportagens, de modo geral, como drogados, violentos e destruidores de patrimônio público, mas em momento algum são ouvidos, destacando apenas a versão de seus denunciantes.

Essa influência midiática acaba também trazendo consequências, visto que além do Estado criminalizar certas atitudes, ela reafirma estas condições fazendo com que hoje os que são punidos apenas por se encontrarem em determinada situação não escolhida, fiquem acuados diante das situações, por mais injustas que pareçam.

Boldt (2013, p. 96) assinala:

Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo.

Outro ponto que vale a pena ressaltar, é o da chamada cifra oculta, especificamente a cifra negra (zona obscura, dark number ou ciffre noir). Refere-se a porcentagem (alta) de crimes que não obtiveram solução, fazendo com que nosso sistema penal se movimente apenas em determinados casos, conforme a classe social do agente.

Eis que esta cifra só corrobora a teoria da co-culpabilidade às avessas. Sell, em um de seus artigos, destaca que o critério para o sistema se movimentar nestes casos, conforme o labelling approach, é o quanto o sujeito se encontra marginalizado e “o número de estigmas que ele carrega, ainda que nenhum deles precise ser de natureza criminal. Nesse sentido, o sistema penal não teria a função de combater o crime, mas a de atribuir rótulos de criminosos aos já marginalizados.” (SELL, 2007).

Sell ainda complementa

O rótulo de marginal parece não ter aderência direta à pele dos indivíduos. Para aderir, necessário é que tais indivíduos primeiro tenham sido selados com outros rótulos estigmatizantes, é preciso que seu índice de marginalização seja alto. É assim que o processo contra o político desonesto quase nunca concluirá nada. As recorrentes alegações de ausência de provas, de cerceamento de defesa e a demora na ação, que levará à prescrição "sem julgamento de mérito", o favorecerão antes que o rótulo de criminoso possa-lhe ser impingido. Já para investigar, processar e encarcerar um indivíduo pobre, o sistema repressivo é rápido e quase infalivelmente condenatório. É que a base onde fixar o rótulo de marginal já existia: a própria pobreza. Todos esperavam a condenação e ela veio. Nenhuma surpresa. (SELL, 2007).

Tão logo é mais fácil se obter um abrandamento de penas, em se tratando de crimes elitizados, consoante aos crimes contra a ordem financeira e tributaria, e de forma contraria é mais difícil retirar os rótulos de marginais daqueles que já carregam estigmas ao longo de suas vidas. (BARATTA, 2002, p. 177-179).

O estigmatizado percebe cada momento de mal-estar em determinado confronto, ainda que disfarçado, e sabe que quem o confronta também está ciente desta percepção. Logo, o resultado desta interação nem sempre possui um viés tranquilo, podendo haver exageros. (GOFFMAN, 1988, p. 26).

1.2 Teoria da co-culpabilidade às avessas nos crimes contra a ordem econômica, financeira e tributária

A teoria da culpabilidade às avessas dentro da esfera econômica, financeira e tributária aduz um abrandamento dos delitos praticados ou a extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida nos crimes contra a ordem tributária.

Os conhecidos crimes de colarinho branco, em determinados casos, são passiveis de receber uma punição adequada seja porque são cometidos por pessoas importantes dentro de nossa sociedade ou por serem revestidos de condições mais complexas.

Neste sentido exemplifica Castro (2016):

Não restam dúvidas que os preceitos secundários dos crimes de colarinho branco cominam penas por demais brandas. O tratamento diferenciado é tão gritante que se um criminoso resolver furtar (art. 155 do CP) um objeto de valor pouco superior a um salário mínimo, gerando prejuízo a uma única pessoa, sofrerá pena de 1 a 4 anos. Se tiver a infeliz ideia de furtar esse mesmo objeto com a ajuda de outras pessoas (art. 155, §4o, IV do CP), essa pena gravitará entre 2 a 8 anos. De outro lado, se preferir prejudicar toda a coletividade, ficará sujeito a uma pena bem menor, podendo para tanto: a) não recolher tributo (art. 2o, II da Lei 8.137/90) – pena de 6 meses a 2 anos; b) fraudar licitações (art. 93 da Lei 8.666/93) – pena de 6 meses a 2 anos; c) fraudar consumidores (art. 2o da Lei 1.521/51) – pena de 6 meses a 2 anos. Segundo a visão distorcida do Poder Legislativo acerca do princípio da proporcionalidade, o crime de furto de uma bicicleta merece ser apenado de forma mais severa do que a sonegação de R$1.000.000,00 (um milhão de reais).

Doravante, além de estes crimes receberem uma fixação de pena mais branda, em muitos casos a pena nem é aplicada. Isso muito se dá pelo trabalho incessante de advogados contratados a peso de ouro, que trabalham em vias de recursos protelatórios sucessivos em busca da prescrição.

É cediço que o Brasil é o paraíso da impunidade para réus do colarinho branco. É uma rede de corrupção que se alastra e sempre favorece a classe econômica dominante. Os indicies de criminalidade podem ser considerados muito maiores, visto que se encontram ocultos, ou seja, não registrados pelos órgãos competentes.

Polo assunto em tela, reitera Santos (2006, p. 13):

A cifra negra representa a diferença entre aparência (conhecimento oficial) e a realidade (volume total) da criminalidade convencional, constituída por fatos criminosos não identificados, não denunciados ou não investigados (por desinteresse da polícia, nos crimes sem vítima, ou por interesse da polícia, sobre pressão do poder econômico e político), além de limitações técnicas e materiais dos órgãos de controle social.

Existem também outros comportamentos corruptivos “como a compra de votos, transformando-os em mercadorias de trocas ou vendas, visando à persuasão de outrem para a escolha de candidatos ou mesmo para abster-se de votar [...] “o que acaba, de certa forma, fortalecendo uma cadeia de negócios que desestruturam os interesses de coletividade, envolvendo privilégios públicos, cargos e funções institucionais e, como consequência, interferindo na eficiência da Administração. (LEAL, 2014, p. 425 – 426).

Recentemente tivemos a criação de um esperançoso instrumento para a resolução deste tipo de crime: a chamada Operação Lava Jato. Entretanto, como não houveram mudanças profundas na legislação, a operação apenas montou sua base de sucesso nas delações e celeridade de investigações, um tanto limitada.

Neste sentido, Hugo (2017, § 10°) assevera que:

[...] a operação Lava Jato não traz novidade alguma. Não existe uma evolução da investigação, mas, apenas, uma forma de fazer o empresário delatar. Como este não pode ser torturado fisicamente por sua condição social, resta a delação premiada como incentivo e as prisões (preventivas ou não) como forma de causar receio. Assim, não é surpresa que membros da “força tarefa” façam apologia da prisão para delatar: “o passarinho pra cantar precisa estar preso”.

Zaffaroni (2006, p. 143), ao tratar em sua obra sobre crime organizado, utiliza-se da seguinte argumentação ao destacar a delação premiada como uma prática imoral de investigação, in verbis:

A impunidade de agentes encobertos e dos chamados “arrependidos” constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do estado de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade [...] O Estado está se valendo da cooperação de um delinquente comprada a preço de sua impunidade, para “fazer justiça”, o que o Direito liberal repugna desde os tempos de Beccaria.

Do lado contrário, há os que consideram a operação como um marco na história jurídica, econômica e social do país, e defendem que, com relação à colaboração premiada, o Ministério Público está apenas usufruindo de seu poder de negociar com o acusado, o que lhe é legitimado conforme artigo[1] 4o, parágrafo 6°, da Lei nº. 12.850/2013.

O certo é que os acordos de colaboração deram impulso às investigações. A polêmica quanto à ética não há prazo para deixar de existir. Contudo, é notório que até mesmo nesta esfera vemos a presença do instituto da co-culpabilidade às avessas no tocante que em determinados casos acarreta a impunidade do delator. Em troca do abrandamento do crime, ele divulga informações sobre seus companheiros, fazendo com que a condenação não atinja a finalidade da pena. É o abrandamento da sanção penal do agente que pode afetar ou prejudicar o desenvolvimento social de uma coletividade.

Um exemplo, conforme Leal (2014, p. 429), é da empresa alemã considerada uma das gigantes em engenharia, a Siemens, que teve seu nome envolvido em esquema de corrupção. Na ocasião a multinacional admitiu ter atuado em carteis ao lado de outras empresas brasileiras, assinando um acordo de leniência que poderia garantir a companhia imunidade criminal e administrativa.

Outro exemplo em que a co-culpabilidade às avessas mostra sua face é no que corresponde ao instituto da reparação do dano. Nos termos do artigo 16, para os crimes em geral, nosso Código Penal considera como causa de diminuição de pena, in verbis:

Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (BRASIL, 1940).

No que corresponde aos crimes contra a ordem financeira e tributaria, temos a incidência do § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003:

Art. 9°. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. (BRASIL, 2003).

Neste sentido, com o advento do artigo 9º da Lei n.º 10.684/2003, possibilitou-se que o contribuinte acusado do cometimento de um crime fiscal possa requerer a extinção da punibilidade quanto adimplido com o tributo devido.

Recentemente o STJ mudou seu posicionamento acerca da extinção da punibilidade sobre o pagamento da obrigação tributária. Foi decidido que mesmo o pagamento da obrigação sendo em momento posterior ao transito em julgado da condenação ainda sim o § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003 pode beneficiar o agente.

Portanto, se no histórico das leis que regulamentam o tema o legislador ordinário, no exercício da sua função constitucional e de acordo com a política criminal adotada, optou por retirar o marco temporal previsto para o adimplemento da obrigação tributária redundar na extinção da punibilidade do agente sonegador, é vedado ao Poder Judiciário estabelecer tal limite, ou seja, dizer o que a Lei não diz, em verdadeira interpretação extensiva não cabível na hipótese, porquanto incompatível com a ratio da legislação em apreço. E, assim, não há como se interpretar o artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003 de outro modo, senão considerando que o adimplemento do débito tributário, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado. (BRASIL, 2017).

Para Prado (2005, p. 567) a pena serve para castigar seus transgressores, “Em síntese: a justificativa da pena envolve a prevenção geral e especial, bem como a reafirmação da ordem jurídica, sem exclusivismos”. Logo, a mitigação frente a extinção da punibilidade ou o esvaziamento deste poder-dever do Estado de punir poderá não conter essa pratica. Isso tem lesado toda uma coletividade ao longo de décadas, visto que pode incentivar ainda mais o crescimento da sonegação pois o escopo da punição se concentra apenas na arrecadação aos cofres públicos.

O cumprimento do dever legal de pagar tributos no tempo e modo devidos acaba desprovido de qualquer força cogente. Ciente dos privilégios fiscais e penais que reiteradamente a legislação concede e diante das exorbitantes taxas de juros cobradas pelas instituições financeiras, prefere o sonegador financiar-se, com juros e prazo infinitamente superiores, com os tributos que sonega e que deveriam financiar os elevados fins previstos na Constituição Federal. Como consequência disso, os encargos do financiamento dos programas sociais estatais acabam sendo suportados com maior intensidade pelos indivíduos que pagam corretamente os tributos, em especial as classes mais desfavorecidas, que arcam com uma quantidade enorme de tributos indiretos que oneram produtos de primeiríssima necessidade. As demandas sociais sempre crescentes passam a exigir uma arrecadação cada vez maior e que, por conta da sonegação, acaba incidindo sobre uma base cada vez menor, implicando elevação desmedida da carga tributária. (AVELINE, 2010, p. 264).

Essa sensação de impunidade, advinda destes agentes fiscais, tem contribuído, e muito, para o aumento da criminalidade econômico-tributaria no país. A consagração de privilégios à sonegação fiscal inviabiliza o projeto constitucional que é o de reduzir as desigualdades sociais, na medida em que o Estado necessita destes tributos para promover o bem comum.

Ainda que se trabalhe com políticas públicas para determinados comportamentos corruptivos, nem sempre estas políticas são eficazes. Muitas são de desenvolvimento vagaroso ou são distorcidas para com seu propósito, privilegiando os que estão inseridos no alto escalão do sistema capitalista, criando uma rede que, além de privilegiar a classe mais abastada, também traz para sua orbita outras esferas corruptivas de outros segmentos sociais. (LEAL, 2017, p. 173).

1.3 A co-culpabilidade às avessas como mecanismo de maior reprovação penal dos crimes praticados por pessoas de alto poder sócio-econômico

A co-culpabilidade às avessas também possui uma terceira vertente, que é a de usar mecanismos de maior reprovação penal para aqueles que são componentes da classe dominante abastada da sociedade.

É contrária a teoria da co-culpabilidade, e por isso a tendência “às avessas”, pelo fato de que ela punirá com o rigor da lei todos os que tiveram seus direitos sociais e fundamentais adquiridos, dada as condições privilegiadas. São aqueles que adquiriram uma boa instrução, e demais garantias constitucionais, mas ainda sim praticam a conduta delitiva, enquanto que do contrário, a co-culpabilidade, busca reduzir a culpa do agente conforme seu menor âmbito de autodeterminação. (MOURA, 2006, p. 41).

Utilizando-se de uma interpretação teleológica, procura-se conceber a corresponsabilidade às avessas como forma de maior reprovação penal e elevação da sanção penal, traçando a norma tal qual corresponda a determinada finalidade, principalmente quando em relação à proteção da coletividade. (MOURA, 2006, p. 44).

O princípio da proporcionalidade engloba a proibição da insuficiência da intervenção jurídico-penal, além da proibição do excesso, ou seja, além de combater a sanção penal quando excessiva evita a “resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofensividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se para mais quanto para menos”. (MELHOR; QUEIROZ, 2006, p. 9).

Santos (2004 p. 19), sintetizando os ensinamentos de Alessandro Baratta (2002) explica:

A linha principal de uma política criminal alternativa se basearia na diferenciação da criminalidade pela posição social do autor: ações criminosas das classes subalternas, como os crimes patrimoniais, por exemplo, expressariam contradições das relações de produção e distribuição, como respostas individuais inadequadas de sujeitos em condições sociais adversas; ações criminosas das classes superiores, como criminalidade econômica, dos detentores do poder, ou crime organizado, exprimiriam a relação de acumulação do capital. Essa diferenciação fundamentaria orientações divergentes: por um lado, redução do sistema punitivo mediante despenalização da criminalidade comum e substituição de sanções penais por controles sociais não estigmatizantes; por outro lado, ampliação do sistema punitivo para proteger interesses individuais e comunitários em áreas de saúde, ecologia e segurança do trabalho, revigorando a repressão da criminalidade econômica, do poder político e do crime organizado.

A criminologia crítica anda de mãos dadas com o garantismo no que tange a diminuição de injustiças sociais. Ela reafirma também a necessidade de proteção ao menos favorecido socioeconomicamente. Contudo, a criminologia crítica também, a exemplo dos ensinamentos de Alessandro Baratta (2002), entende que as normas de repressão devem se voltar de forma prioritária para o crime organizado, o que hoje se faz presente na escala mais abastada de nossa sociedade.

Pesquisas empíricas comprovam as diferenças de atitude emotivas e de valoração dos magistrados face aos indivíduos pertencentes a classes sociais opostas. Nesta seara, o magistrado leva, ainda que inconscientemente, às tendências de juízos diversificados, considerando a condição social do agente. Salienta-se, neste sentido, a “tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento conforme a lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores”. (BARATTA, 2002, p. 177-178).

Quanto a formulação dos tipos penais, eles compõem uma rede muito frágil quando dirigidos a indivíduos pertencentes a classes subalternas, e muito largas quando atribuídos a criminalidade econômica da classe que se mantem no poder. (BARATTA, 2002, p. 165).

Hoje, o entendimento de nossos tribunais é que o magistrado possui discricionariedade relativamente ampla para aumentar a pena quando este causar grave dano à coletividade.

Conforme a Lei 8.137/90, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências, mais precisamente em seu artigo 12, existem circunstâncias que podem agravar a sanção de 1/3 (um terço) até a metade nas penas previstas nos artigos 1°, 2° e 4° a 7 da referida lei, por: “ I - ocasionar grave dano à coletividade; II - ser o crime cometido por servidor público no exercício de suas funções; III - ser o crime praticado em relação à prestação de serviços ou ao comércio de bens essenciais à vida ou à saúde.“

Indo ainda mais além, conforme o HC 129.284 que negou provimento de paciente condenada por sonegação de R$ 3,9 milhões, o Ministro Lewandowski, relator, apontou que, mesmo não tendo a inicial acusatória aventado grave dano, com base na razoabilidade e proporcionalidade, está causa de aumento pode ser imposta pelo juiz, quando este se sentir sensibilizado.

Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL E PENAL. WRIT SUBSTITUTO DE RECURSO ORDINÁRIO: ADMISSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO ENTRE A IMPUTAÇÃO E A SENTENÇA OU PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA. CIRCUNSTÂNCIA DE AGRAVAMENTO DE PENA CONSTANTE DO INC. I DO ART. 12 DA LEI 8.137/1990: GRAVE DANO À COLETIVIDADE. PEÇA ACUSATÓRIA QUE CONTÉM A DESCRIÇÃO FÁTICA DA CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE RECONHECIDA PELO JUÍZO PROCESSANTE: ELEVADO VALOR SONEGADO. ORDEM DENEGADA. I - Embora o presente habeas corpus tenha sido impetrado em substituição a recurso ordinário, a Segunda Turma não opõe óbice ao seu conhecimento. II - Ninguém pode ser punido por fato que não lhe foi irrogado, eis que a denúncia fixa os limites da atuação do magistrado, que não poderá decidir além ou fora da imputação, sob pena, como visto, de violação ao princípio da congruência, ou correlação entre acusação e sentença penal. III - Trata-se de relevante princípio processual, assim como o contraditório, a ampla defesa, a inércia da jurisdição e o devido processo legal. IV - O juízo criminal, no caso, não desbordou dos limites da imputação dada pelo Ministério Público estadual, não havendo que se falar em contrariedade ao princípio da congruência. V - A consideração do vultoso quantum sonegado é elemento suficiente para a caracterização do grave dano à coletividade constante do inc. I do art. 12 da Lei 8.137/1990 e como parâmetro para aplicação dessa circunstância agravante. VI – Ordem denegada. (BRASIL, 2017).

Hodiernamente, já percebemos em alguns dispositivos do ordenamento jurídico pátrio esse trabalho de maior reprovabilidade de conduta dos incluídos socialmente.

O código de defesa do consumidor, em seu Art. 76, inciso IV, alínea “a”, estabelece circunstância agravante contra pessoas em condição socioeconômica superiores a da vítima na relação de consumo.

Outro exemplo em que há previsão de agravamento é para o crime de usura, prática de empréstimo monetário, que de praxe pode ser considerada como sinônimo de agiotagem. A Lei n° 1.521 de 26 de dezembro de 1951, que dispõe sobre os crimes contra a economia popular, prevê um maior rigor para o referido crime quando ser o autor militar, funcionário público ou pessoa cuja condição econômico-social seja manifestamente superior à da vítima.

Vale a pena, também destacar, a sanção de multa, que pode ser agravada dependendo do maior potencial lesivo para os cofres públicos ou da maior gravidade das condutas sancionadas.

Ainda conforme o Art.6º de nosso Código Penal temos o fator de aumento até o triplo na circunstância de a pena pecuniária ser ineficaz como fator de desestímulo para aquele agente infrator em face de sua condição econômica. Entretanto o § 1º do artigo 60 do CP é exceção à regra. Assim é usado apenas quando não suficiente o valor a servir de punição ao infrator.

O princípio constitucional da individualização da pena também sustenta a co- culpabilidade às avessas, trazendo um maior grau de reprovação e consequentemente uma maior sanção, visto que leva em conta as peculiaridades de cada caso, atribuído maior culpabilidade para aquele agente que se pode exigir mais.

Neste contexto descrito, adverte-se que a aplicação da co-culpabilidade às avessas como maior grau de reprovabilidade do “incluído social” também depende da análise caso a caso. Não se pretende consagrar a responsabilidade objetiva da classe dominante.

Assim, verifica-se a reprovabilidade do crime quando as condições sociais e econômicas indicarem, diante de todas as boas oportunidades e da consciência da ilicitude, que o agente em sua preferência optou pela prática delituosa enquanto totalmente capaz de entender e absorver a antijuridicidade do ato. (MOURA, 2006, p. 44).

2 Conclusão

A corrupção, passou a ser uma forma de negociata liderada pela classe dominante dentro de um sistema punitivo falho. O Brasil tornou-se um paraíso da impunidade para os réus do colarinho branco enquanto que do outro lado da moeda o Estado criminaliza as atitudes dos que estão à margem da sociedade pelo simples fato de suas condições socioeconômicas serem desfavoráveis, criando estigmas e indo de encontro ao que apregoa o princípio da co-culpabilidade.

Em nossa doutrina este fenômeno de criminalização da seletividade, de suavização nas penas relacionadas aos crimes da classe privilegiada e de diminuição e de aumento da reprovação social e penal, é conhecido como co-culpabilidade às avessas. Contudo, como este instituto se manifesta e quais suas vertentes frente a problemática de nosso sistema jurídico-penal?

Essa teoria é atribuída aos crimes praticados por pessoas de alto poder socioeconômico, que em determinados delitos é beneficiária de certo abrandamento, e até mesmo extinção de punibilidade quando poderiam, ao contrário, sofrer maiores rigores perante a legislação e sanção penal, dadas suas condições sociais e financeiras privilegiadas bem como maior grau de autodeterminação, potencialmente capaz de reconhecer a antijuridicidade. Além do mais, estes crimes atingem diretamente a economia nacional, causando danos à sociedade, danos estes em muitas das vezes imensuráveis.

A criminalidade avança acompanhando a globalização bem como segue os padrões de avanços financeiros e tecnológicos. Em muitos casos, nosso sistema punitivo não consegue encontrar as respostas adequadas, dando margem a impunidade. Em outros é a própria legislação penal que favorece determinada classe, visto que os que ditam as regras, integrando a mesa legisladora, são os mesmos que buscam privilégios, salvaguardando a classe à qual pertencem.

As benesses atribuídas aos detentores do poder econômico ilustram a co- culpabilidade às avessas e criam também um segundo viés para a teoria, que seria a introdução de uma maior reprovação e sanção penal para aqueles que tiveram seus direitos sociais e fundamentais adquiridos, dada as condições privilegiadas, mas ainda sim escolheram, conscientemente, o caminho da criminalidade.

Não menos importante, a seletividade, com o Estado criminalizando as atitudes dos que estão à margem da sociedade pelo simples fato de suas condições socioeconômicas serem desfavoráveis, tornou-se uma das três vertentes da co- culpabilidade às avessas estudadas no presente artigo.

Conclui-se, por meio da pesquisa, que nosso sistema jurídico-penal, em muitos casos, trabalha como um verdadeiro “captador de clientela”, penalizando severamente os já excluídos pela sociedade, o que deve ser veementemente rechaçado, pois contraria preceitos fundamentais instituídos em nossa Constituição Federal.

Existe, também, a necessidade de maior proteção contra delitos que maculam a ordem econômica, de melhor distribuição na sanção de condutas, visto que o bem-estar coletivo e a justiça social não são alcançados na forma como deveriam, e que nossos legisladores, em muitos casos, trabalham de forma contrária a esta justiça social, simplesmente para atingir interesses pessoais.

Faz-se mister um estudo mais aprofundado quanto ao princípio constitucional da individualização da pena, considerado um dos pilares da co-culpabilidade às avessas, e que traz maior grau de reprovação e consequentemente maior sanção ao agente delituoso, visto que leva em conta as peculiaridades de cada caso, atribuindo maior culpabilidade para aquele que se pode exigir mais.

Desta feita, é de grande relevância problematizar este sistema penal, instigando a reconstrução de conceitos, para que assim aconteçam mudanças de paradigmas. A co- culpabilidade às avessas nos traz questionamentos importantes acerca da busca por mecanismos efetivos de proteção a bens jurídicos constitucionalmente salvaguardados, refletindo possibilidades de atualizações do sistema punitivo atual, com respeito a preceitos fundamentais, principalmente da dignidade da pessoa humana.

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Notas

[1] O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

Informação adicional

Para referenciar este texto: SODA, Robson Leandro; PORTO, Rosane Teresinha Carvalho. Co-culpabilidade às avessas e suas vertentes quanto a seletividade e os delitos contra a ordem econômica, financeira e tributária. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 88-108, jan./jun. 2019.

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