Ações afirmativas, movimentos negros e os caminhos da promoção da igualdade racial

O presente dossiê tem como objetivo abordar as ações afirmativas de uma maneira ampla e diversificada, apontando tanto o papel desempenhado pelos movimentos negros no desenvolvimento de uma agenda pública de defesa e discussão destas políticas, quanto os efeitos dessas políticas na diminuição das desigualdades raciais e/ou no reconhecimento da diversidade étnico-racial. Referimos às ações afirmativas como políticas públicas que se destinam a corrigir uma história de desigualdades e desvantagens vinculada aos efeitos do racismo sofrida por segmentos negros e indígenas da população. O que motiva essas políticas é a ideia de que essas desigualdades tendem a se perpetuar caso o Estado continue utilizando os mesmos princípios considerados universalistas (mas que, na prática, favorecem só a alguns setores da sociedade) com que vem operando até agora na distribuição de recursos e oportunidades para as populações que contam com uma história secular de discriminação (Carvalho, 2005; Silva e Silvério, 2003).
Na atualidade, entre as políticas de ação afirmativa implementadas no Brasil há: políticas de acesso e permanência de estudantes negros nas universidades; a aplicação de conteúdos de história e cultura afro-brasileira e africana, assim como práticas de educação antirracista nas instituições de Ensino Básico (Lei Federal 10639/03); a reserva de vagas para negros em diferentes nichos do mercado de trabalho e concursos públicos; o reconhecimento étnico e a regularização fundiária de comunidades negras rurais e urbanas remanescentes de quilombos, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Este conjunto de políticas públicas resultam de processos complexos de negociações, articulações e formulações feitas pelos movimentos negros e outros atores sociais com agências governamentais e estatais ao longo dos últimos anos.
Ressaltamos três dimensões das ações afirmativas, que serão abordadas de maneiras diversas pelos artigos que compõem o dossiê: (i) reparativa; (ii) redistributiva; e (iii) afirmativa. No caso da primeira, a demanda por reparação dos movimentos negros pelo crime de lesa humanidade que significou a escravidão vem de longa data. A Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância celebrada em Durban, África do Sul, em 2001, significou um marco fundamental para pensar as ações afirmativas para a população negra na América Latina (López, 2009; Santos, 2012). A reparação se tornou um horizonte de responsabilidade das sociedades latino-americanas pelo crime da escravidão e pelo racismo pós-abolição, através da viabilização de políticas públicas de promoção da igualdade racial. Como ressalta o artigo de Marcio André dos Santos, esses processos se deram de maneira peculiar em cada país da região, conforme as formações raciais e as trajetórias dos movimentos negros, abordando-se comparativamente os casos do Brasil e da Colômbia.
A dimensão redistributiva ou da equidade seria aquela que aponta a reverter as desigualdades raciais presentes no Brasil e na América Latina como um todo. Um conceito que ganha visibilidade com a implementação de ações afirmativas é o de racismo institucional, que pretende abordar como as instituições reproduzem na sua dinâmica cotidiana os mecanismos de exclusão racial. O artigo de Alexandre Peres de Lima aborda de maneira aprofundada esses mecanismos, para pensar as lutas pelo reconhecimento de um Clube Negro do Rio Grande do Sul, nas brechas do racismo institucional (re)produzido tanto pelo ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), quanto pelas próprias políticas de patrimônio cultural. Emerge, nesse processo de mobilização, uma esfera pública de denúncia com uma série de aliados para reverberarem suas demandas (principalmente focadas na manutenção na sede do Clube, e com isso sua continuidade). A busca pela patrimonialização do Clube 24 de Agosto teve resultados não apenas preservacionistas, mas principalmente foi transformada numa ferramenta de empoderamento, como ação afirmativa, e a conquista do autorrespeito pelo reconhecimento, com a capacidade de se impor positivamente perante outrem.
A dimensão afirmativa, que potencializa transformações decorrentes do reconhecimento de experiências raciais, da diferença cultural, e da manutenção de histórias e memórias “vivas”, é explorada também no artigo de Franciele Ruppenthal, em relação a uma ação política referida ao percurso de um ônibus pelos “territórios negros” na cidade de Porto Alegre. Esta atividade iniciada pela Secretaria Municipal de Educação é uma realização inspirada na Lei 10639/03 antes mencionada. Como refere a autora, o projeto “Territórios Negros” vai além de sua mobilidade, pois ele propõe não só um passeio fora da escola (de alunos e professores da Educação Básica), mas novas maneiras de pensar e compor as narrativas históricas sobre a cidade e, também, outras possibilidades de pensar as territorialidades negras.
Além dos três artigos já mencionados, compõem o dossiê outros dois textos. O artigo de Gregório Grisa e Bernardo Mattes Caprara levanta questões sobre como os gestores de uma instituição de Ensino Superior percebem o processo de implementação de ações afirmativas, dando indícios de aberturas para os processos afirmativos, mas também de mecanismos de racismo institucional. Cabe ressaltar que as análises de como opera o racismo institucional são ainda um desafio para as ciências sociais, na medida em que não se pretende “julgar” um ou outro indivíduo, ou personificar determinados atos, mas aguçar um olhar que relaciona as práticas (e os dizeres) dos sujeitos com mecanismos institucionais mais difusos, que precisam ser visibilizados.
Por último, incluímos o artigo de Emerson Ferreira Rocha, que expande nosso olhar das ações afirmativas para as desigualdades raciais no grupo dos ricos. Através de estudo quantitativo, são analisados os determinantes da desigualdade racial na composição do grupo dos ricos, mostrando que os impactos da discriminação racial são maiores nas posições mais elevadas de renda, onde a posição dos negros contraria seu lugar típico na hierarquia social. Segundo o autor, se a mobilidade educacional constitui uma das melhores vias para que pessoas negras reduzam suas desvantagens com relação às pessoas brancas na competição por melhores oportunidades no mercado de trabalho, essa via perde força na competição em estratos de renda mais elevados. Quanto mais elevada a posição social das pessoas negras, mais as práticas de discriminação são afetas à desigualdade racial de renda, o que é sustentado com a ideia de que a condição socioeconômica e a condição racial operam articuladamente enquanto critérios de formação de status.
O autor sugere (e agora vinculando diretamente com o tema do dossiê) que, a promoção da igualdade educacional entre negros e brancos mediante ações afirmativas, embora eficaz no que se propõe, não têm potencial para corrigir definitivamente a disparidade racial de riqueza. Tal correção dependerá também de ações afirmativas diretamente incidentes sobre o mercado de trabalho, na medida em que sejam contratadas pessoas negras qualificadas e que a renda reflita essa qualificação.
Finalizamos a introdução expressando um anseio e uma necessidade de intensificação dos estudos sobre as políticas de ação afirmativa, que considerem a transversalidade, a pluralidade e a multidimensionalidade destas políticas, como caminhos analíticos e propositivos. Do mesmo modo, parece-nos significativo ressaltar a importância de análises de políticas de promoção da igualdade racial levando-se em consideração o protagonismo dos movimentos negros na formulação de agendas públicas na relação com o Estado e agências governamentais.