Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Lutas diuturnas: políticas públicas, patrimônio e o reconhecimento do clube social negro 24 de Agosto na cidade de Jaguarão (RS)
Alexandre Peres de Lima
Alexandre Peres de Lima
Lutas diuturnas: políticas públicas, patrimônio e o reconhecimento do clube social negro 24 de Agosto na cidade de Jaguarão (RS)
Lasting struggles: Public policies, heritage, and recognition of black social club 24 de Agosto, Jaguarão city (RS, Brazil)
Ciências Sociais Unisinos, vol. 52, núm. 2, pp. 149-161, 2016
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: A proposta é discutir o patrimônio como resultado da articulação complexa e situada das lutas do clube social negro 24 de Agosto, localizado na cidade de Jaguarão, na fronteira do Brasil com o Uruguai, e os desdobramentos que levaram este clube à condição de patrimônio histórico e cultural do estado do Rio Grande Sul no ano de 2012. A partir de uma etnografia desenvolvida entre os anos de 2013 e 2015, articulo a seguinte trama: apresento a formação de uma esfera pública regional dos clubes sociais negros denunciando o arbítrio judicial em favor de certa polícia administrativa, o ECAD. Esta instituição é o estopim das lutas dos participantes do Clube 24 de Agosto em busca de políticas públicas para a preservação de seu espaço cultural e histórico. Nesse caminho há os enfrentamentos ao racismo institucional e a desconsideração a nível local. Ali se forma uma esfera pública de mobilização e denúncia em favor das demandas do clube por proteção. O reconhecimento do clube como patrimônio apresenta uma série de problemas e distorções que desconsideram sua autonomia. Contudo, os impactos positivos desse empoderamento tornam o clube um exemplo para pensar as “políticas da alteridade” que rompem a invisibilidade e conquistam o reconhecimento: condição que leva os sujeitos ao autorrespeito. O objetivo, a partir desta articulação, é visualizar os poderes afirmativos e de mobilização através das denúncias públicas dos participantes do clube e de seus aliados politicamente mobilizados contra uma série de dispositivos institucionais de desconsideração de suas demandas e os profundos efeitos conquistados.

Palavras-chave:patrimôniopatrimônio,clubes sociais negrosclubes sociais negros,reconhecimentoreconhecimento.

Abstract: The proposal is discuss the heritage as a result of the complex articulation and located struggles Clube 24 de Agosto fights as being a “clube social negro” (black social club) in Jaguarão, Brazil’s border city with Uruguay, as from developments that led the club to historic and cultural heritage status granted by Rio Grande do Sul state government in the year 2012. From the ethnography developed between the years 2013 to 2015, I articulate that following plot: the formation of a regional public sphere of black social clubs denouncing judicial discretion in favor of some administrative police, ECAD. This institution is the trigger of the struggles of the participants in the Clube 24 de Agosto in search of public policies for the preservation of their cultural and historical space. In this path there is the confronting institutional racism and disregard the local level. It was formed a public sphere of mobilization and denunciation in favor of the demands of the club for protection. Recognition of the club as an heritage presents a series of problems and distortions that ignore their autonomy. However, the positive impacts of this empowerment make the club an example to think about the "otherness policies" that break the invisibility and gain recognition: condition that leads subjects to self-respect. The goal, from this articulation, is to visualize the affirmative powers and mobilization through public denunciations of the participants of the club and its allies politically mobilized against a number of institutional devices of disregard of their demands and the deep conquered effects.

Keywords: heritage, black social clubs, recognition.

Carátula del artículo

Lutas diuturnas: políticas públicas, patrimônio e o reconhecimento do clube social negro 24 de Agosto na cidade de Jaguarão (RS)

Lasting struggles: Public policies, heritage, and recognition of black social club 24 de Agosto, Jaguarão city (RS, Brazil)

Alexandre Peres de Lima[1]
Universidade Federal do Rio do Grande do Sul, Brasil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 52, núm. 2, pp. 149-161, 2016
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepção: 28 Abril 2016

Aprovação: 07 Junho 2016

Nos últimos anos, as políticas do patrimônio material e imaterial tornaram-se um campo de emergência e reconhecimento estatal de alteridades que são subalternizadas em narrativas hegemônicas. Tais procedimentos administrativos revelam inúmeras implicações. Entre elas, repercutem nas identidades locais e revelam contextos originais e singulares. O clube social negro 24 de Agosto da cidade de Jaguarão, cidade brasileira na fronteira entre Brasil e Uruguai, é um importante exemplo da complexidade desse processo que o levou à condição de patrimônio histórico e cultural do estado do Rio Grande do Sul.

A proposta para este artigo é pensar ações afirmativas como um resultado da articulação complexa e situada no contexto das políticas públicas estatais em processos de ampliação da cidadania ao conjunto das alteridades no Brasil contemporâneo. Nesse sentido, é interessante pensar estes locais de luta por cidadania consoante com a ideia do reconhecimento de histórias e trajetórias que estão contidas nas políticas de redistribuição e reconhecimento delineando diversas ações afirmativas. E também as políticas de patrimônio revelam sua força enunciativa a partir de identidades que historicamente foram invisibilizadas e desconsideradas.

Como política pública, a patrimonialização está voltada à preservação de bens materiais e imateriais das histórias das culturas existentes no Brasil e é resultado de regulamentações recentes. Somente a partir do ano 2000, com a institucionalização da política nacional de patrimônio imaterial, paulatinamente começa a inserção de novas demandas e atores em busca do reconhecimento de seus repertórios culturais (Lima, 2012). Nos diferentes níveis da administração pública, as expressões culturais negras e afro-brasileiras ficaram à margem e invisíveis das políticas públicas de salvaguarda. Passados mais de 15 anos da política implementada, a listagem de bens materiais salvaguardados, mesmo ainda modesta para as dimensões da vida brasileira, mostra-se bastante diversificada.

A partir de uma etnografia desenvolvida entre os anos de 2013 e 2015 (Lima, 2015), é possível evidenciar a articulação de uma trama densa envolvendo a inédita patrimonialização de um clube social negro no Sul do Brasil. Apresento a partir de um evento a esfera pública regional (a rede) dos clubes sociais negros no Rio Grande do Sul mobilizados nas lutas contra o arbítrio judicial de certa “polícia administrativa” (Brida, 2011) de nível regional e nacional, o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). O desdobramento local destas “lutas” é um campo de denúncia das práticas locais do “racismo institucional” (López, 2013) e um enfrentamento ao sistema hegemônico baseado no racismo de “duplo vínculo” (Carvalho, 2006; Bateson, 1998 [1972]). O caminho contra a desconsideração passa a ser trilhado junto com um corpo de aliados, a esfera pública de denúncia local. A ascensão à condição de patrimônio histórico e cultural é o resultado mais importante destas lutas e com efeitos duradouros.

Contudo, as políticas patrimoniais ainda não são consideradas como formas de empoderamento de coletivos no presente. Há dificuldades no entendimento da presença e autonomia dos coletivos que buscam resguardo de seus elementos culturais. Porém, os efeitos sobre os participantes do Clube 24 de Agosto são positivos. Vou exemplificar isso através do conceito de “políticas da alteridade” (Jardim e López, 2013) – chave de leitura sobre a ampliação da compreensão e atuação das “minorias” no campo de diversidades sociais e culturais nos caminhos da cidadania – o conjunto de atitudes e enfrentamentos dos participantes do Clube 24 de Agosto. E, por fim, delinearei as derivações das “lutas por reconhecimento” (Honneth, 2003, 2014), com efeitos não apenas na autoimagem, mas uma leitura êmica sobre o que Honneth sugere como uma conquista do “autorrespeito” deste coletivo.

Primeiro, apresento um panorama para situar o “caso” do Clube 24 de Agosto como um exemplo, pois está referido a um universo mais amplo de clubes sociais negros no Rio Grande do Sul e não pode ser visto como uma exceção. Segundo descrevo os efeitos das lutas que são denunciadas nos fóruns regionais e as consequências das lutas locais para os participantes do clube. O objetivo é visualizar os poderes afirmativos através das denúncias públicas dos participantes do clube e de seus aliados politicamente mobilizados contra uma série de dispositivos institucionais de desconsideração de suas demandas e os efeitos conquistados.

Os clubes negros e as lutas contra as “injustiças”

A categoria “clubes sociais negros” toma força no ano de 2006, a partir de uma aliança entre militantes do movimento negro, intelectuais orgânicos a este movimento e setores do governo federal. Ali visavam articular políticas públicas voltadas aos espaços de fomento, promoção e proteção da cultura negra afro-brasileira. São pessoas ligadas a instituições como o Museu Ferroviário Treze de Maio de Santa Maria (RS) sob a liderança de Giane Escobar e do ativismo intelectual, artístico e político do poeta afro-gaúcho Oliveira Silveira. Estes contam com o apoio institucional da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e da Fundação Cultural Palmares (FCP), ambas instituições do governo federal. Em conjunto, estes atores vão constituir uma arena pública de reivindicação do reconhecimento da especificidade histórica e cultural dos “clubes sociais negros”. Os fins são a proteção e a salvaguarda do patrimônio tangível e intangível pertencente e/ou oriundo destes clubes.

Formou-se então, com estes ativistas e estas instituições uma comissão para realizar o levantamento e a identificação dos clubes sociais negros existentes no Brasil e no Rio Grande do Sul. Giane Escobar (2010) relata que, em 2006, os integrantes desta Comissão[2] viajaram pelo Estado a fim de localizar os clubes negros e qual “era sua real situação, além de buscar informações de Clubes Sociais Negros de outros estados, graças ao apoio e informações repassadas pelo experiente militante e articulador, Oliveira Silveira” (Escobar, 2010, p. 81) – portanto, antes de seu falecimento em janeiro de 2009.

Em fevereiro de 2008, estes atores se reúnem novamente em Santa Maria, desta vez contando com a presença de dirigentes dos identificados e autoidentificados clubes sociais negros de cinco estados da federação (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais). Neste encontro em Santa Maria, elaboram a definição mínima do conceito de clube social negro, como está na ata da denominada “Reunião da Comissão Nacional dos Clubes Sociais Negros”: “[...] são espaços associativos do grupo étnico afro-brasileiro, originários da necessidade de convívio social do grupo, voluntariamente constituído e com caráter beneficente, recreativo e cultural, desenvolvendo atividades num espaço físico próprio” (Escobar, 2010, p. 61). Desde então, a mobilização em torno deste novo personagem político na arena pública brasileira passa a crescer de maneira significativa.

No Rio Grande do Sul, os clubes sociais negros, desde as mobilizações pioneiras de 2006 a 2008, passam a se reunir periodicamente em encontros estaduais. O mais recente destes encontros estaduais foi realizado em maio de 2015, no clube Sociedade Cultural e Beneficente União, localizado na cidade de Santa Cruz do Sul. Neste encontro estadual é possível observar que o movimento dos clubes sociais negros no Rio Grande do Sul passa atualmente por uma rearticulação em favor de uma organização política mais atuante regionalmente e voltada para uma troca de experiências intensas sobre formas de enfrentar precarizações. Neste sentido, a escolha do clube União e de sua localização como local do encontro daquele ano é considerada pelos organizadores de um ponto de vista “estratégico”. Santa Cruz do Sul, localizado na região central do estado, é caminho de fácil acesso a todas as outras regiões de forma a propiciar o deslocamento dos integrantes dos clubes negros.

Estão presentes nesse encontro onze entidades autodeclaradas como clubes sociais negros, de onze cidades diferentes: S.C.R. Os Zíngaros (Bagé), C.R. Harmonia (Caçapava do Sul), C.C.B. União Independente (Cachoeira do Sul), S.C.B. Rui Barbosa (Canoas), C.R. Tabajara (Encruzilhada do Sul), A.C.B. Seis de Maio (Gravataí), Clube 24 de Agosto (Jaguarão), A. Floresta Montenegrina (Montenegro), C.B. Cruzeiro do Sul (Novo Hamburgo), S.C.B. União – o clube anfitrião do encontro de 2015 (Santa Cruz do Sul), e Museu Treze de Maio (Santa Maria). Também estão presentes no evento junto à mesa para a abertura dos trabalhos algumas autoridades convidadas. Há um representante do Conselho Estadual de Cultura e um representante da prefeitura municipal de Santa Cruz do Sul. Juntos estão dois representantes do União, um deles o sr. Adão, presidente da entidade, e Cintia, também da diretoria deste clube. E outros dois, de diferentes clubes, Luis Carlos (ligado ao Floresta Montenegrina), da executiva e da organização do encontro estadual dos clubes negros, e Marta (ligada ao Museu Treze de Maio), também organizadora do encontro, completam a mesa[3].

Após as falas iniciais de abertura e boas-vindas aos participantes, é executada, com muita alegria e satisfação de todos os presentes, uma bateria mirim de percussão (no estilo bateria de escola de samba). A bateria é realização de uma oficina regular organizada no clube União com crianças e adolescentes (segundo o relato de Cintia nas falas de abertura). Oito garotos negros de diferentes idades fazem os tambores, repiniques e tamborins ressoarem forte no espaço modesto do clube. Logo em seguida é aberto o espaço para os representantes de todos os clubes negros presentes falarem a respeito de suas atuais situações. O primeiro representante de clube a falar é o presidente Madruga do Clube 24 de Agosto de Jaguarão. De saída, o assunto que o presidente toca, como um comentário geral a respeito da atual situação dos clubes negros, é o tema do ECAD. Ele o aborda da seguinte maneira:

O ECAD estrangula os clubes negros! E isso é um problema muito grande. Precisa haver um incentivo na parte da cultura, pois, por exemplo, os CTGs recebem um bom recurso [do Estado], enquanto que para organizar a Semana da Consciência Negra, em Jaguarão, o movimento negro e o 24 de Agosto recebem somente 2 mil reais; e não ganhamos nenhum tipo de incentivo ou de isenção fiscal. E 5% da receita bruta do Clube vai para pagar o ECAD. E isso torna muito difícil a situação dos clubes negros. Nós lutamos diuturnamente para manter as atividades: a luta é muito grande, muito difícil (Neir Madruga, Presidente do Clube 24 Agosto, 9º Encontro Estadual de Clubes Sociais Negros; Diário de Campo, maio de 2015).

O presidente Madruga não está sozinho em seu posicionamento frente ao ECAD. Logo após o término de sua fala, bastante aplaudida, ele conclui observando: “[...] dizem que o clube é só para dançar, mas não é, o clube é uma coisa séria”. Sua fala ressoa também na de outros dirigentes, como o do clube Os Zíngaros de Bagé, que chama o ECAD de “verdadeira praga nacional” e completa: “Não há respaldo jurídico para se fazer tal pagamento, pois, como se vai pagar os direitos autorais de artistas como Cartola, que não deixou sucessores para os seus direitos?” (presidente Madruga e presidente do clube Os Zíngaros, Diário de Campo, maio de 2015). Para além de uma redução interpretativa dos interesses e das condições materiais dos clubes negros, é necessário reunir um conjunto de informações sobre como funciona a relação dos clubes com o ECAD para se compreender o conjunto destas denúncias.

O premente tema da arrecadação dos direitos autorais não abre por acaso a pauta e as primeiras falas dos dirigentes clubistas no encontro em Santa Cruz do Sul. Há uma relação mais profunda e complexa, tornando o encontro estadual dos clubes negros em mais uma esfera pública de denúncia contra uma série do que é chamado pelos participantes do 24 de Agosto de “injustiças”. E o caso deste clube é, talvez, um dos mais emblemáticos desta situação.

O estopim para as recentes “lutas” dos participantes do Clube 24 de Agosto que culminaram com o processo de sua patrimonialização é resultado de uma diuturna luta judicial com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o ECAD. Este órgão exige do clube, e de tanto outros, o pagamento referente aos direitos autorais das canções executadas no seu ambiente. O não pagamento resultou na dívida que, segundo as narrativas, principalmente do presidente Madruga, segue nos seguintes eixos: por um lado, a dívida é concebida com o conceito (nativo) de “injustiça” (que veremos adiante); por outro lado, há um impulso judicializante do ECAD cobrando os valores devidos. Mas que instituição é exatamente essa que vai no encalço daqueles que não pagam os direitos autorais? O ECAD surge em 1973 com a Lei Federal 5.988 e tem a atribuição legal de recolher os direitos autorais das canções e músicas executadas em ambientes públicos e privados; segundo a lei, as associações ligadas a músicos, compositores, letristas, arranjadores, manterão um único escritório central para a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras musicais.

A pulsão arrecadatória leva a uma série de contenciosos judiciais. Não apenas o Clube 24 de Agosto, mas outras instituições coletivas semelhantes, como os clubes sociais (negros ou não), passam por esse tipo de conflito. Isso leva ao posicionamento enfático do presidente Madruga, como apresentamos anteriormente e como em outras vezes relatou. Esse posicionamento vem do enfrentamento de mais de 10 anos com o ECAD nos tribunais. Em 1º de maio de 2003, tomou corpo a execução da dívida cobrada pelo ECAD ao Clube 24 Agosto (o processo foi iniciado em junho de 1998). Realizamos pesquisas sobre os processos movidos pelo ECAD contra o clube no repositório digital do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), mas não foi possível acessar os autos do processo. Em princípio, o repositório disponibiliza somente as sentenças (“conclusão ao juiz”) da 2ª Vara Judicial da Comarca de Jaguarão. O acesso aos documentos do processo do ECAD contra o Clube 24 de Agosto não visa suprimir a narrativa local e a etnografia. Com os documentos, visamos explicitar um nível de disputa e de ocorrências que não é capturado facilmente pela observação. Adiante isso ficará mais evidente.

Embora não tenhamos acompanhado o processo em sua totalidade, sabe-se que o valor da dívida era inferior a 5 mil reais. Como não foi realizado o pagamento, após a cobrança judicial em 2003, o processo foi levado adiante para a execução da dívida. Em julho de 2006, chegou a sentença: a execução da dívida seria através do leilão da sede do clube. Em abril de 2007, a juíza da 2ª Vara de Jaguarão nomeou o leiloeiro para a execução. A sentença foi percebida, pelos participantes do clube, como uma “injustiça”. A primeira tentativa, ainda em 2007, dos participantes para reverter o leilão da sede do clube foi a de ganhar tempo através de uma petição para embargar a penhora. A resposta da juíza foi rápida e ríspida. O pedido de suspensão da penhora não foi aceito, pois todos os prazos para embargos foram excedidos. O clube fora notificado e o presidente da entidade à época fora nomeado depositário da penhora, e nada fora feito: “Ora, a toda vista a desesperada tentativa de ora invalidar todo o feito executivo não calha”, escreve a juíza na sentença. Classifica a atitude como “desesperada”, a moção como “intempestiva” e “desprovido de fundamento o arguido pela parte executada” (2ª Vara Judicial de Jaguarão, TJ-RS, 2007)[4].

Mesmo o ECAD movendo ações para resgatar determinada quantia do valor devido e legalmente amparado, esta situação é definida como “injustiça” pelos participantes do Clube 24 de Agosto. Ademais, a ideia de “injustiça” caracteriza-se da seguinte maneira: primeiro, o valor monetário da dívida é desproporcional ao real valor do imóvel da sede; segundo, o impulso judicializante insistente do ECAD não abrira possibilidade para uma negociação do pagamento do valor; terceiro, a própria Justiça não esboçou nenhum tipo de sensibilidade para uma atitude mais conciliadora; quarto, diante destas situações, o ECAD é considerado instância perigosa, uma verdadeira “força fatal” (Lima, 2015, p. 89), que coloca em risco a existência dos clubes negros. Portanto, as taxas exigidas pelo ECAD relativas a direitos de execução de músicas no ambiente social, mesmo quando músicos levam seus instrumentos para execução, são uma ameaça fatal aos destinos dos clubes. Essa força fatal se reflete não somente na situação do Clube 24 de Agosto. É possível verificar outras ocorrências semelhantes.

Judicialmente o ECAD vai no encalço daqueles que não pagam os valores devidos do recolhimento dos direitos autorais. As sentenças conquistadas pelas procurações do ECAD invariavelmente chegam a execuções das dívidas por leilões dos imóveis. Em Pelotas, quatro clubes sociais estão nessa situação desde 1994, como constatamos ao levantar os dados no repositório digital do TJ-RS. O primeiro executado foi o Laranjal Praia Clube, sendo leiloada sua sede no ano de 2005. Ainda corre processo dos clubes Diamantinos, Esportivo Gonzaga e Sociedade Recreativa XV de Julho[5]. Os clubes sociais negros de Pelotas (e de outras cidades do Rio Grande do Sul) não constam em outras citações. O mesmo desenrolar do “estrangulamento” segue com estes clubes: o contencioso judicial com os procuradores do ECAD conquistando a penhora do imóvel.

Ignorando os apelos e as procurações dos participantes do clube, a Justiça da Comarca de Jaguarão colocou a sede do Clube 24 de Agosto a leilão em 2008. O valor do arremate foi inferior a 50 mil reais. O presidente Madruga observa que este montante está abaixo do valor imobiliário real da sede, por se localizar em uma região em processo de valorização. A sede foi arrematada por um vizinho, o proprietário do supermercado de esquina em frente à sede do Clube 24 de Agosto. Especulações surgiram deste fato: o novo proprietário faria da sede um depósito para as mercadorias de seu supermercado. Pode-se dizer, mesmo sendo tão somente um boato, que esta especulação representa uma narrativa que revela um sentimento de desconsideração ao reduzir o significado da existência material, simbólica e histórica do clube em objetos apenas de compra e venda. Outras narrativas contam que o proprietário do supermercado se dirigiu à direção do Clube e propôs (como “novo proprietário”) o aluguel do espaço para o clube continuar realizando suas atividades. Além da proposta ser recebida com extrema desconfiança pelos participantes e pela direção, ela foi percebida como indecorosa. “Nós trancamos o pé!”, diz o presidente Madruga, e seguiram em busca de alternativas dentro do contencioso para permanecerem no comando do espaço.

A perspectiva que estamos tomando aqui, o “ponto de vista nativo”, é da ordem do entendimento e não do sentenciamento. Portanto, é pertinente a observação de André Brida (2011) ao caracterizar o ECAD em sua origem, estrutura e função: não é um questionamento sobre a necessidade de existência do ECAD, que ampara um número grande de titulares de direitos autorais, e que a “fiscalização da utilização desses direitos é logicamente a solução mais pertinente e eficaz [para] fiscalizar a execução pública de obras” (Brida, 2011, p. 49) musicais e lítero-musicais. Não estamos observando o objeto – o “direito autoral” – e sim a estrutura que permite o funcionamento deste dispositivo de controle sobre o direito autoral.

O ECAD é instituição de direito privado e administrado por nove entidades[6] ligadas a músicos, compositores, escritores, arranjadores, regentes, intérpretes e artistas em geral. O estatuto legal é regido pela Lei. 9.610 de 1998, que diz que as “[...] associações manterão um único escritório central de arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras musicais e lítero-musicais e de fonogramas [...] [Brasil, 1998]” (Brida, 2011, p. 39). O ECAD tem sede no Rio de Janeiro e possui 25 “unidades arrecadadoras”, e em 2011 contava com quase 800 funcionários, 45 advogados e 130 “agências autônomas” instaladas em todos os estados do país. Possui em seu sistema 342 mil titulares diferentes e quase 2 milhões de obras cadastradas – sendo mais de 800 mil fonogramas registrados (Brida, 2011). A arrecadação faz com que “[...] 80 mil boletos bancários sejam enviados por mês, cobrando os direitos autorais daqueles que utilizam as obras musicais publicamente, os chamados ‘usuários de música’, que somam 418 mil em todo o país” (Brida, 2011, p. 40). Mas isto não é tudo. Há um aparato jurídico-administrativa que dá legalidade e legitimidade a esta estrutura arrecadatória.

Todo autor pode deixar por escrito e delegar ao ECAD a função de procurador de seus direitos de autoria. Esta é a autorização necessária para o ECAD cobrar os direitos autorais da “execução pública” de suas obras. A execução pública é definida como a “utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos” (Brida, 2011, p. 45). Os locais de frequência coletiva são todos aqueles em que há trânsito ou permanência de público, onde se executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas. Ainda há as definições de usuários entre “permanentes”, “eventuais” e “gerais”, de onde se deduz o cálculo de cobrança, a partir de uma tabela. E é autorizada a cobrança periódica (mensal) aos “usuários permanentes”, que é deduzida da receita bruta de arrecadação destes usuários (Brida, 2011) – vide a fala do presidente Madruga do Clube 24 de Agosto sobre a obrigação de reservar 5% da receita bruta do Clube destinados ao ECAD.

Esta estrutura e atuação do ECAD contra os “usuários” das obras, dentre eles o Clube 24 de Agosto, movendo implacáveis processos judiciais (a partir de uma engenhosa estrutura jurídico-administrativa), torna esta instituição equivalente a uma “polícia administrativa” (Brida, 2011). Segundo André Brida, não é possível, no ordenamento jurídico brasileiro, um ente privado como o ECAD exercer papel exclusivo da administração pública, qual seja, o da coerção/repressão (judicial ou por força) a um indivíduo quando este vem a ser uma ameaça à sociedade ou quando o próprio Estado entende ser oportuno e conveniente coagir um cidadão, mas dentro dos limites da legalidade (os atos discricionários). Contudo, é possível, nos limites da legalidade, a entes privados fiscalizarem e realizarem “atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia” (Brida, 2011, p. 52).

O enfrentamento do Clube 24 de Agosto contra um dispositivo de controle explicitamente policial, portanto, fatal e sem escapatória, tem sua legitimação no campo judiciário. A desconsideração dos participantes do clube ao nível dos tribunais ratifica os atos de procuração do ECAD. Segundo Michel Foucault (1977), uma das funções do juiz no tribunal é fazer a própria polícia funcionar em um nível oficial, jurídico e ritual. E o dispositivo de controle, o ECAD, como instância normalizadora do uso das obras, não visa tanto à proteção dos direitos autorais como extrair um poder político e econômico nos atos protetivos (Foucault, 2005) desta formidável técnica de controle. Estes efeitos de poder, políticos e econômicos, são a nível mais global. Os atos jurídicos que legitimam as procurações do ECAD também partem de relações locais.

Efeitos da desconsideração: os racismos e as mobilizações da esfera pública de denúncia

As sucessivas derrotas do Clube 24 de Agosto no Judiciário levaram os participantes do clube a buscar alternativas para barrar o processo do leilão e a perda da sede do clube. Primeiro, recorreu-se a um advogado. Este, após analisar o processo, sentenciou que “juridicamente não há nada o que fazer”. A direção do clube, já sob a presidência de Neir Madruga, rejeitou a avaliação negativa e insistiu em buscar alternativas ainda em nível local. A política representativa foi percebida como um poder possível para se estabelecer um diálogo, para além da Justiça. Os participantes do clube, então, dirigiram-se ao Poder Legislativo da cidade de Jaguarão. A representação municipal foi vista como alternativa de mediação e como estratégia de retirar do âmbito privado e de tornar público, perante o Estado, o problema do leilão da sede. Dirigir-se ao Legislativo é o início do processo para tirar do âmbito privado e levar para o espaço público o problema do Clube 24 de Agosto com o ECAD. Retirá-lo do campo da legalidade e materialidade, para fazer algo acontecer no campo político.

A Câmara Municipal de Jaguarão não se mostrou receptiva. Os representantes demonstraram aos participantes, de forma simbólica, a posição que estes ocupam no cenário público de Jaguarão. Assim são expostas “as relações hierárquicas e subalternas que extrapolam alinhamentos político-partidários” (Lima, 2015, p. 94). A direção e os participantes do Clube se dirigiram diversas vezes à presidência da casa e a gabinetes de vereadores para solicitarem audiências com algum vereador e receberam invariavelmente respostas negativas. Solicitaram espaço na tribuna para chamar atenção dos vereadores. Diante da insistência, a presidência da casa abriu audiência para tratar do tema da sede do Clube 24 de Agosto e suas disputas com o ECAD. Obtiveram uma resposta negativa, mas de forma não dita e expressa corporalmente – e entendida como uma frase citada, dita, mas não verbal. “Fomos várias vezes à Câmara pedir audiência e nunca éramos atendidos. Eles diziam que não havia o que fazer, era uma questão jurídica [...] Quando conseguimos a audiência, e colocamos nosso problema, eles [vereadores] nos olhavam com cara de deboche” (presidente Madruga, Diário de Campo, 17/08/2014). Para entender a expressão “cara de deboche”, é preciso entender quais os lugares que o Clube 24 de Agosto ocupa na estrutural social, política e simbólica na cidade de Jaguarão.

O Clube 24 de Agosto foi fundado em 1918 por Theodoro Rodrigues, Malaquias Oliveira e mais um grupo de amigos. Desde sua fundação, ele está ligado aos estratos mais negros e mais pobres da cidade de Jaguarão. O próprio Theodoro Rodrigues foi um dos fundadores do Círculo Operário da cidade em 1911 (Nunez, 2010). O Clube teve diversas sedes, sendo a mais lembrada a que ocupou os fundos da Igreja Matriz do Divino Espírito Santo de Jaguarão. No fim da década de 1950, foram adquiridos dois terrenos, na então periferia da cidade, próximos às margens do rio que dá nome à cidade. Ali começou a ser construída a atual sede no final da década de 1960, tendo sido concluída em meados dos anos 1970 e lá se encontrando até os dias atuais.

Segundo Nunes (2010), os clubes sociais das primeiras décadas do século XX eram formas de invisibilização do componente étnico – negro – da população subalterna em favor da ideia de “trabalhadores”. Este dispositivo de “disciplinamento” da população negra da cidade que “[...] estava relacionado à questão da etnia e da constituição da classe operária, [é] estratégia política de aceitabilidade e inserção na comunidade branca e na nova ética trabalhista dos novos anos do pós-abolição” (Nunes, 2010, p. 65). A frequência do clube não foi significativamente alterada até meados da década de 1950 e 1960. Apenas as dinâmicas de apresentação do clube ao resto da população da cidade de Jaguarão foram paulatinamente alteradas. Antes a ideia de exposição pública do clube estava calcada nos carnavais a partir de blocos carnavalescos que se apresentavam nas ruas de Jaguarão e terminavam no salão do Clube 24 de Agosto, passou-se a um processo de “interiorização” das atividades do clube (Lima, 2015), organizando bailes regulares (semanais) ao longo de todo ano, e não mais a partir de apresentações públicas com os blocos carnavalescos nos folguedos de fevereiro.

A marcante presença do Clube 24 de Agosto na história e na cultura da cidade não impede seus participantes e a instituição de sofrer reiterados processos de desconsideração e invisibilização justamente por ocuparem os estratos subalternos na hierarquia social da cidade. As formas reiteradas de invisibilização estão na visão da qual o clube, por pertencer aos estratos mais negros e mais pobres da cidade, seria um “clube mal frequentado” (Lima, 2015). Tal narrativa é observada por Letícia,

[...] mulher branca de classe média, estudante universitária [...] Viveu em Jaguarão até o fim da adolescência na década de 1990 e 2000 e participou ativamente da sociabilidade da classe média de sua faixa etária. Contudo os adultos de sua classe, tanto homens como mulheres, advertiam [...] especialmente as filhas (mulheres), dos locais de sociabilidade a serem deliberadamente evitados: o Clube 24 de Agosto era o [local] que mais recebia enfaticamente a advertência. E explicava-se e justificava-se [o aviso] sob o comentário do espaço ser “um clube mal frequentado” (Lima, 2015, p. 111-112, grifos retirados).

E também, ao longo de muitas décadas, os negros e pobres da cidade eram proibidos de frequentar os clubes “tradicionais” da cidade, como recorda Mestre Vado, músico dos antigos cordões do clube, em relato a Juliana Nunes: “[...] para entrar no Harmonia tinha que ser com uma pessoa de bem, com muita recomendação, filho de fulano, filho de cicrano, e tinha o Jaguarense que era um pouquinho menos, e tinha o 24 [de Agosto] que aí, sim, era só negro, branco não entrava [...]” (Nunes, 2016, p. 132). Há outras situações repletas de sutilezas semelhantes ao “clube mal frequentado” e à proibição da frequência negra aos clubes “tradicionais” da cidade. As situações que relatadas acima possuem uma relação comum: os preconceitos nessas categorizações citadinas refletem-se nas instituições, como apresentamos na situação na Câmara dos Vereadores da cidade e nas reações ríspidas do juizado da Comarca de Jaguarão. A “cara de deboche” das vereanças e a insensível inflexibilidade do Judiciário local em favor do ECAD são elementos conexos de formas sutis do chamado “racismo institucional” e uma reiteração dos processos cotidianos da desconsideração citadina ao Clube 24 de Agosto e a seus participantes.

Estas “histórias vivas” (Ruppenthal, 2015), com suas narrativas não hegemônicas invisibilizadas ou caladas pela força de decisões maiores, são a maneira de abordar como as instituições vão criando entraves sutis, constantes e recorrentes que são transformados em enredos de descaso e desconsideração que tomam forma sistemática e estrutural. Mas este é um aparato de poder historicamente presente (e persistente) em sociedades pós-coloniais e pós-escravagistas onde as instituições de poder se ausentam ou negam a sua responsabilidade diante de determinados segmentos da população. É gerado um processo ativo de exclusão criando desigualdades encarnadas e marcadas em corpos. Mas, ao mesmo tempo, os atos do Estado não são explícitos, mas dados em experiências culturais e sociais no déficit de acesso aos bens da cidadania: reconhecimento, respeito, consideração. O racismo institucional, segundo Laura López (2013), precisa ser pensado a partir de:

[...] noções de igualdade, diferença e cidadania [...] permeadas pela perspectiva racial. [...] O conceito de racismo institucional permite examinar o sistema de correlações de força não projetado em sua integralidade, mas que funcionam sob os pressupostos racistas da seleção e promoção do segmento branco em comparação com os demais segmentos da população, a partir da existência de mecanismos que geram desigualdades ligadas à educação escolar, à seletividade no mercado de trabalho, à pobreza (López, 2013, p. 74).

É importante frisar que o racismo institucional “é estrutural, ‘não intencional’, que ocorre até certo ponto à revelia dos sujeitos. Configurando-se [assim] em processos de discriminação indireta que estão além das relações pessoais”, pois são “rotinas [que] emperram [o] funcionamento adequado” (Ruppenthal, 2015, p. 103) da resolução de uma demanda ou de uma política ou projeto voltado a uma população minoritária em específico. Mas também marcamos que há relações coletivas mais amplas reverberando nas instituições. Principalmente quando há uma proximidade muito grande entre as instituições e a vida coletiva cotidiana, com seus códigos, categorizações e hierarquizações. Há um efeito comum em instituições díspares e este efeito é independente da pessoalidade. A instituição, principalmente o Estado, não é neutro para com as estratificações às quais impõe sua soberania. O racismo institucional é uma espécie de síntese dialética dessa relação.

A estratégia que coletivos como o Clube 24 de Agosto têm encontrado para a interrupção ou curto-circuito destes amplos processos de desconsideração é romper a invisibilidade. O enfrentamento ao racismo institucional começa por rasgar o véu da invisibilidade da presença negra em um dado espaço não somente em termos de instituições, mas em termos culturais e sociais mais amplos e assim chegar a uma visibilização de caráter público. A invisibilização e a imagem negativa somente serão rompidas com uma mudança no ponto de vista do negro em relação a si mesmo. Para José Jorge de Carvalho (2006), tudo passa por um encontro com a “ordem dominante branca no Brasil” (Carvalho, 2006, p. 74), que é um “sistema de duplo vínculo”. Para demonstrar essa relação, este antropólogo usa como exemplo comparativo o racismo nos EUA. O epifenômeno lá observado é o da “dupla consciência” (Du Bois, 1999 [1903]) do negro. A introjeção de uma imagem negativa que passa a ser a própria autoimagem dos negros norte-americanos. Romper a dupla consciência será desfazer a imagem negativa introjetada como forma de autoafirmação e depois enfrentar o branco para mudar a imagem do negro através de demandas por reparação. Com o racismo brasileiro ocorre algo diverso. Para José Jorge de Carvalho, no Brasil ocorre o racismo de “duplo vínculo”.

A ideia do “duplo vínculo” (double bind) de Gregory Bateson é a base da “esquizogênese”. A origem da esquizofrenia não está na perturbação do sujeito, e sim no tipo de experiência em que as referências cognitivas dadas na relação entre duas ou mais pessoas não permitem mais ao sujeito fazer distinções entre o literal e o metafórico. Mas a experiência de desorientação é sistemática, pois, ao não ser capaz de distinguir e discutir a mensagem dos outros, “[...] o ser humano se faz semelhante a um sistema autocorretivo que perdeu o seu regulador; começa a ocorrer uma espiral de distorções intermináveis, mas sempre sistemáticas” (Bateson, 1998 [1972], p. 241, tradução minha). A relação disto com o racismo brasileiro, segundo José Jorge de Carvalho, não é fortuita. Se ao negro é dado o lugar subalterno e inferiorizado, o movimento de afirmação que passa a ser sistematicamente negado o coloca em uma situação delicada. Calado, permanece subalterno. Levantando a voz, é acusado e tornado suspeito (Carvalho, 2006).

Com a abolição da escravatura, a hegemonia branca encerra o negro no estatuto minoritário através da hierarquização racial e da inferiorização estereotipada. E, no momento em que o negro busca sua afirmação, o branco não a aceita. Recusa a atitude afirmativa evocando a igualdade: “não, não há diferença entre um negro e um branco; você é igual a mim, logo não tem o direito de marcar essa diferença irredutível” (Carvalho, 2006, p. 76). Nesse sistema da hegemonia branca no Brasil não há espaço possível para a afirmação. Esta é a noção do “sistema de duplo vínculo”, pois o negro, permanecendo “[…] vinculado a essa estrutura desigual de comunicação, sairá perdendo sempre, independente da posição que escolha assumir” (Carvalho, 2006, p. 76).

Carvalho trata essa relação como uma violência simbólica. Pois, se os negros reagirem a essa estrutura racial amordaçadora, serão tratados com violência. O quadro de referência hegemônico é tomado como neutro, ponderado, não violento. E a reação do outro (negro) sempre será vista como ameaça e, assim, reprimida com violência. Esta é a maior barreira na implementação de políticas reparatórias à população negra no Brasil. A tarefa é árdua: romper este tipo de hegemonia branca que nega duplamente o negro num contexto onde a verificação da violência racial é abundante na mesma medida em que são abundantes as negações do “reconhecimento público e ativo do racismo [por nós] praticado”; por isso,

[o] sítio político em que os brancos se veem imersos tem seu contraponto no Estado de sítio discursivo em que os negros estão confinados: nunca houve tanto para anunciar e nunca foi tão difícil impactar a realidade com a denúncia – visto que a realidade é constituída pela denúncia. E é justamente a consolidação discursiva da denúncia que tem sido especialmente difícil (Carvalho, 2006, p. 80).

A formação de uma esfera pública de denúncia e de mobilização política em torno das demandas do Clube 24 de Agosto é fundamental para a ascensão do Clube à condição de Patrimônio. A direção e os participantes do clube perceberam a necessidade de buscar aliados, mais sensíveis às denúncias desconsideradas pelo Judiciário e o Legislativo ao demonstrarem institucionalmente o peso da marca que carregam – o estigma racial. Para se fazer entender em suas demandas, torna-se necessária uma audiência razoavelmente especializada, letrada, ou com algum tipo de experiência em mobilizações coletivas e políticas. Ou que possua voz ativa, com algum alcance, para tornar pública a denúncia e mobilizar o conjunto das opiniões.

Foram mobilizados estudantes e professores da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), funcionários públicos, radialistas, integrantes do Executivo municipal, afro-religiosos, grupos de capoeira, poetas e escritores, e o movimento dos clubes sociais negros do Rio Grande do Sul. A partir desse momento é organizada uma série de atividades, dentre elas o “abraço ao Clube 24 de Agosto” em 2011 – um cordão humano que, em uma tarde ensolarada, abraçou a sede do Clube (Lima, 2015, p. 102). Ali passou a ser o local onde acontecem as atividades da Semana da Consciência Negra da cidade. Professores e pesquisadores passam a se pronunciar publicamente em textos escritos em favor da permanência da sede sob o controle do Clube 24 de Agosto. Para o convencimento dos poderes político-administrativos, a formação desta esfera pública de denúncia é fundamental, pois, há uma dependência do Estado com as fontes dos poderes de comunicação e mediação que tornam possível a produção da legitimidade de direitos que se apoiam “no mundo da vida [...] e não se encontram à disposição da política” (Habermas, 1997, p. 120). Ou seja, o arrazoamento dos poderes só é possível quando o “mundo da vida” aponta, regula, fixa, exige contas e contesta. A esfera pública torna-se o campo de mediação entre o “mundo da vida”, o mundo das “histórias vivas” e os poderes do Estado. Mas a denúncia não basta a si mesma sem um conjunto de códigos, um léxico informando e fazendo entender as demandas deste coletivo.

Ocorre uma transformação nos códigos do próprio autoentendimento dos participantes em relação à história à qual o clube pertence: a ideia de um território negro, étnico, semelhante de uma comunidade quilombola, ou seja, um “espaço de resistência”. E principalmente detentor de uma importância não apenas histórica como cultural. Irani, um dos integrantes da diretoria do clube, ao narrar este impacto na consciência, diz que “não sabíamos o quanto éramos importantes no nível da cultura. Pensava o clube só pra tomar minha cervejinha e dançar. Agora a gente vê toda a luta, toda a ancestralidade, que aqui [o clube] era o lugar dos excluídos, que é um lugar de história” (Irani, Jaguarão, Diário de Campo, 12/10/2013). A cultura e a história, ligadas a uma etnicidade negra, passam a ser importantes códigos neste conjunto lexical de legitimação das demandas para a sensibilização dos poderes públicos. Disso, os participantes do clube conseguem extrair efeitos; depois de algumas reuniões com a Secretaria de Cultura do Estado e representantes do IPHAE, é encaminhado o processo para análise do tombamento da sede do clube como Patrimônio Cultural e Histórico do estado. Na entrega oficial dos documentos para a abertura do processo, Eduardo Hahn (então diretor do IPHAE) usa as seguintes palavras: “Havia uma dívida do IPHAE de proteção e resguardo com um território negro” (Lima, 2015, p. 105) e naquele momento ocorria o pagamento da dívida. Em 25 de janeiro é publicada no Diário Oficial do Estado a portaria que determina o tombamento da sede do Clube 24 de Agosto como patrimônio.

Afro-brasileiros e políticas patrimoniais: distorção, ausência e presença

Alçar à condição de patrimônio não significa resolver um problema. Mas abrem-se as portas para outra série de problemáticas, como a do não lugar ocupado pela população negra nas políticas patrimoniais. As palavras de Eduardo Hahn do IPHAE são sintomáticas deste conjunto de problemas: o fenômeno específico da ausência de políticas patrimoniais voltadas para os coletivos afrodescendentes no Brasil como modalidade política de reconhecimento. É parte de um reflexo mais amplo da ausência das políticas públicas do Estado brasileiro em relação a todos os campos voltados a este segmento da população. As dificuldades passam, primeiro, pela falta de sensibilização da gestão pública quanto à importância do desenvolvimento de tais políticas como forma de superação de desigualdades sociais e do reconhecimento da legitimidade cultural da população negra. Por este motivo é possível observar a emergência das mobilizações dos integrantes do Clube 24 de Agosto e, logo depois, a formação de uma esfera pública de denúncia contra as “injustiças” sofridas e a busca por algum tipo de proteção. E, segundo, os afrodescendentes tem suas expressões geralmente jogadas na vala comum da ideia de “popular” e quiçá do “folclore” como formas veladas das práticas institucionais de racismo.

Ao mesmo tempo, parte-se da afirmação de uma suposta ausência de discriminação racial e étnica, afirmando-se, consequentemente, a inexistência da tensão e dos conflitos raciais existentes – voltamos ao racismo de “duplo vínculo”. Maria Nazareth Fonseca aponta com exatidão a problemática, pois é de onde que “as imagens de povo, nos projetos da identidade nacional brasileira, devam ser rastreadas a partir do jogo sutil entre lembrar e esquecer [...]; os movimentos de sustentação de identidades nacionais só se podem construir com o esquecimento da violência que viabiliza a unidade almejada por elas” (Fonseca, 2000, p. 91). Não pretendo retomar aqui o profundo e amplo debate a respeito da questão da identidade nacional (no Brasil) e sua relação com os afrodescendentes. Mas cabe ressaltar que a imagem produzida do negro é baseada na maneira como uma série de instituições e pessoas pensaram o Brasil como uma nação livre que carrega o legado da escravidão marcado nas corporalidades negras. Corpos que tem suas imagens desfiguradas e

[...] revelam formas de silenciamento sobre a questão do negro, que, num sentido geral, foi deixado, desde a abolição da escravatura [...], engrossando o grupo dos excluídos que se fazia visível nos grandes centros urbanos. E nos projetos de identidade nacional, “a brava gente brasileira” só podia mostrar o rosto desfigurado para expressar o caráter nacional brasileiro [...], embora almejassem construir a face em que o Brasil pudesse se mostrar como nação livre, excluíam grande parte da população constituída de negros e mestiços [...]. Reforçam-se a essencialização de representações ficcionalizadas de povo e de cultura (Fonseca, 2000 p. 91).

Ideias generalizantes a respeito de determinada prática cultural como pertencente a toda a população operam um escamoteamento dos pertencimentos de especificidades sociais marcadas em dado contexto. Dissemina-se o entendimento segundo o qual as práticas de um largo segmento específico da população não lhe pertencem, e sim pertencem a toda a população. Esta situação distorce e desfigura a imagem da população incluída na generalidade e excluída na sua presentificação e singularidade. Aqui podemos evocar as discussões de Manuela Carneiro da Cunha (2010) a respeito de dinâmicas ambíguas envolvendo culturas tradicionais. Segundo a antropóloga, na imaginação ocidental, as sociedades tradicionais ameríndias são representadas como tudo aquilo que é contrário ao próprio ocidente como sociedade e principalmente em suas ideias de “propriedade”. As práticas e conhecimentos ameríndios devem ser ou do domínio público ou do direito autoral coletivo, seja como protetores da biodiversidade, seja em defesa do sangue Yanomami[7]. O sangue, ao ser recolhido e guardado em instituições científicas fora do Brasil, faz correr uma onda nacionalista de indignação pela apropriação indevida de um “patrimônio nacional”. Os índios passam a ser os “nossos índios”. Assim, mesmo valorizando simbolicamente a imagem do indígena, esta é “uma fórmula que condensa a ambiguidade inerente à condição de indígena” no Brasil (Cunha, 2010, p. 332). Com a cultura afro-brasileira, algo semelhante ocorre, mas em um nível de distorção mais denso.

Há setores progressistas, dos direitos autorais e formuladores das políticas culturais e patrimoniais tomando e pensando as práticas de um segmento da população através de pretensas características representantes do universal no contexto ambiental, cultural e/ou artístico deste segmento. Por outro lado, há ceticismo destes setores quando os atores destes segmentos afirmam e buscam a proteção de suas diferenças, pertencimentos e singularidades (sejam simbólicos ou [in]tangíveis). No caso das práticas culturais afrodescendentes, o que antes era tomado como popular e/ou folclórico (produzindo o efeito da distorção imagética do negro) passa a ser potencialmente objeto de reivindicação de proteção. Para isso são produzidos códigos e léxicos que apontam para uma singularidade étnica fragilizada ao longo do século XX, mas resistente como cultura e permanente em sua territorialidade. Por um lado, está em jogo a legitimação simbólica de certos elementos de uma cultura. Por outro, a presentificação e autonomia dos sujeitos com seus elementos culturais são sistematicamente negadas pelas instituições. A seguir, trago outro exemplo desta ambiguidade que ocorre com o Clube 24 de Agosto e seus participantes.

Jaguarão, especificamente, foi alçada à condição de cidade patrimônio. A cidade conta com um conjunto arquitetônico que é considerado um dos mais homogêneos e preservados do século XIX e do início do século XX de todo o estado. Porém, as referências que são feitas às populações que fizeram este conjunto são somente as de “influência portuguesa e espanhola”. Os elementos da população negra somente são registrados através da presença dos negros escravizados na história da cidade e da região. O marco desta presença são as senzalas dos antigos casarios, as peças de ferro que remanesceram no Mercado Público de Jaguarão, que, à beira do rio, era o local de comércio para compra e venda de escravos. Mas todas essas referências são tomadas apenas como marcos e reminiscências da época da escravatura. Outro elemento (esquecido pela política pública) é o da intensa presença das casas de religião de matriz afro na cidade.

Em 2011, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, tombou o Centro Histórico da cidade de Jaguarão, com mais de 600 bens sendo elevados à condição de patrimônio. O Clube 24 de Agosto está no perímetro urbano que compreende a região de tombamento, porém, o clube não foi incluído no rol de bens a serem elevados à condição de patrimônio, sendo os seguintes

os motivos da não inclusão de certos bens na construção do patrimônio jaguarense que hoje é nacional: ainda estão em pauta os “velhos” jogos de poder da elite [local], a qual quer garantir seu papel de construtor único da sociedade, sem levar em consideração a diversidade da sociedade brasileira [...] Assim, a tentativa de incluir o Clube 24 de Agosto, a nível nacional, quando do processo de elevação de 600 bens a patrimônio histórico nacional, foi descartada por se entender que não [se] deveria “banalizar” o instrumento do tombamento (Nunes, 2016, p. 141).

De fato, o banal é também invisível. A partir de um caso concreto, tomo a narrativa de Rita (integrante da diretoria do Clube 24 de Agosto). Rita é professora do ensino fundamental na zona rural de Jaguarão. Ela relatou um caso que experienciou em um passeio pela cidade de Jaguarão junto com os alunos de sua escola: eram acompanhados por uma orientadora – pessoa ligada ao setor do turismo – que explicava algumas noções de turismo, enquanto visitavam uma série de locais de Jaguarão.

[...] aí ela explicou tudo, fomos na beira do cais, fomos na praça, fomos em vários lugares, e ela foi explicando [sobre esses lugares]. Aí quando chegou no Largo das Bandeiras ela começou a falar sobre os clubes, comentando do Harmonia, do Jaguarense, que esses clubes estão fechados, mas com o tempo eles vão [re]abrir, mas aí eu fiquei quieta, não falei nada, mas na minha imaginação ela só acha que tem aqueles clubes ali e o único que ela não falou para as crianças foi do 24 [de Agosto], e que era um Ponto de Cultura, então, ela não é informada disso aí. Eu fiquei pensando, analisando [...] se ela falou do Jaguarense, se ela falou do Harmonia, ela poderia citar o outro clube também né? É sinal que ela não tem conhecimento. Aí fiquei pensando: ela já não tem conhecimento do clube (Rita, entrevista, Jaguarão, 15/10/2014).

A conclusão a que Rita chegou foi de que a visibilidade que o Clube 24 de Agosto atingiu não foi para dentro da cidade, mas para “fora” da cidade. O reconhecimento conquistado pelo Clube e os aliados “externos”, de “fora”, não são imediatos à cidade, mas de outros locais, fora de Jaguarão. São aliados externos, aportados em Jaguarão, que têm demonstrado e legitimado a presentificação e autonomia cultural dos participantes do clube em sua condição de patrimônio. Localmente os vestígios da escravidão são reconhecidos e identificados. Mas a presentificação e autonomia cultural negra contemporânea da cidade não passam pelo mesmo reconhecimento das grilhetas e das senzalas dos casarões.

O não reconhecimento das práticas culturais afro-brasileiras (dentro de um registro específico) e a negação do conflito tanto em termos práticos como das disputas simbólicas da presença e da afirmação negra em uma série de campos sociais no país como um todo geram consequências graves. Principalmente aquelas da vulnerabilidade e do atendimento deficitário por parte das agências estatais. Os participantes do Clube 24 de Agosto mostram simultaneamente sua posição de força e resistência quando mobilizam um conjunto de atores, reverberando as suas demandas. E, ao mesmo tempo, demonstram a fragilidade da sua posição diante dos poderes institucionais localmente informados como o legislativo, a administração municipal e comarcas citadinas.

A invisibilidade social e simbólica da afrodescendência nos aparatos estatais de reconhecimento do patrimônio é patente, mesmo com avanços significativos na última década. No entanto, as instituições ainda vacilam em reconhecer as especificidades e o poder de reinvenção cultural dos afro-brasileiros. Ainda as apostas convergem somente nas ideias de exótico e folclórico como forma de valorização (operando a imagem distorcida). Nesse sentido, tanto os museus como as políticas patrimoniais, entendidas como estratégia institucional de comunicação e transmissão de conceitos e conteúdos, permanecem em uma letargia em relação às dinâmicas históricas e processos reinventivos da cultura dos afro-brasileiros (Bittencourt Jr., 2013). Mediadas por realidades amplas e plurais, estas culturas estão em “contínuos devires, desvios, hibridização culturais e inflexões advindas do diálogo intercultural, porém cada vez mais incidindo sobre as memórias, os patrimônios culturais, as identificações de matriz africana e valores socioculturais negros” (Bittencourt Jr., 2013, p. 44).

Em resumo, está em jogo a desconsideração dos regimes particulares e autônomos de entendimento e condução dos elementos culturais em favor de regimes distanciados, descolados e por fim exotizantes, que não valorizam os sujeitos do presente. Mesmo havendo um reconhecimento da presença negra escravizada em Jaguarão pelas políticas patrimoniais, o mesmo não ocorre com os elementos presentes, atuais e autônomos da presença negra contemporânea representados pelo Clube 24 de Agosto e outras expressões culturais.

Políticas da alteridade, (in)visibilidade e reconhecimento

Na contemporaneidade a população negra-afro-brasileira não é apenas objeto de políticas públicas verticalizadas. Atua como protagonista de sua própria transformação, inclusão e participação nas arenas públicas da cidadania. Isto acontece a partir de um conjunto de possibilidades de mobilização e reivindicação, transformando as políticas afirmativas em instrumento fundamental de acesso à cidadania em variados níveis da vida do social e das instituições estatais. Os meios utilizados pelas pessoas e agentes envolvidos passam a transitar por campos políticos e sociais diversos. Portanto, é necessário observar os variados usos sociais e contextuais dos movimentos e como os protagonistas ampliam seus significados. Tais usos e ampliação de significados nos fazem repensar as ideias contidas nos conceitos de “diversidade”, “minorias” e da própria “cidadania” (Jardim e López, 2013). Esta ressituação converge para a noção desenvolvida por Claudia Briones (1998 inJardim e López, 2013) de “políticas da alteridade”, que aponta

[...] para o desafio de entender a produção da diferença no seio dos Estados nacionais que se imaginaram como homogêneos em regimes de saber-poder coloniais, e que hoje se encontram interpelados pela reconfiguração de sujeitos, identidades e subjetividades. Nosso entendimento é que tais políticas têm exigido novas práticas governamentais sensíveis à pluralidade e, do mesmo modo, ensejam uma aproximação analítica que perceba as pulsões éticas visando justiça e reconhecimento como fundamentais nos processos identitários contemporâneos (Jardim e López, 2013, p. 10).

As “políticas da alteridade” são o processo onde o atual protagonismo leva à visualização de outros e novos caminhos afirmativos. Aponta igualmente para process processos e instituições sociais com práticas correntes de desconsideração e discriminação que ocorriam sem contestações ou tais práticas eram consideradas como residuais. Um tipo existencial físico e simbólico relegado ao arbítrio daqueles detentores de maiores poderes de enunciação principalmente nas arenas públicas e jurídicas. A ideia e o conceito do díptico visibilidade/invisibilidade passam por estas dinâmicas onde há uma mudança na voz do enunciado. Consequentemente, uma mudança no estado da ocupação das arenas públicas e jurídicas. Há um outro enunciado que “denuncia”, joga luz, e torna visível não apenas uma situação. Essa é uma voz outra, ou melhor, outro conjunto de vozes que enuncia uma denúncia da sua condição de apartamento. O processo e a dinâmica (enunciados e denunciados) nos quais sujeitos negros são invisibilizados, conforme analisa Ilka Boaventura Leite (1996), . um

[...] mecanismo (que) se (dá) pela produção de certo olhar que nega a sua existência como forma de resolver a impossibilidade de bani-lo totalmente da sociedade. Ou seja, não é que o negro não seja visto, mas sim que ele é visto como não existente [...]. Como um dispositivo de negação do Outro [...] é produtor e reprodutor de racismo. A invisibilidade pode ocorrer no âmbito individual, coletivo, nas ações institucionais, oficiais e nos textos científicos (Leite, 1996, p. 41).

Muito das novas formas de atuação do protagonismo negro em torno de políticas afirmativas segue no enfrentamento contra os dispositivos da invisibilidade através dos quais se expressa o racismo no contexto brasileiro, em uma série de níveis. Este é um dos primeiros passos nas políticas afirmativas para romper com todos os derivados da invisibilização/invisibilidade: a exclusão, o silenciamento, o escamoteamento, a desconsideração, o não ser levado a sério. O enfrentamento leva a(o)s protagonistas negros a um espaço identitário que “converte a exclusão num poder afirmativo, generativo” (López, 2009, p. 9). Romper a invisibilidade não é apenas a busca pela justiça, mas há conquistas de outra ordem seguindo na esteira do reconhecimento e do empoderamento. Por isso, os efeitos são tão mais profundos. A apropriação das políticas públicas visando à diminuição de desigualdade torna estes atores em protagonistas de suas próprias transformações, com profundos impactos na subjetividade. Conforme Félix Guattari, estas

lutas de transformação da subjetividade [...] não são simples formas de oposição à autoridade; elas são caracterizadas pelo fato: de que se opõem a todas as categorias de efeitos de poder, àqueles, por exemplo, que se exercem sobre o corpo e a saúde, e não somente àqueles que são aferentes às lutas sociais visíveis; de que põe em causa o estatuto do indivíduo normalizado e afirma um direito fundamental à diferença de modo algum incompatível [...] com alternativas comunitárias; de que implicam uma recusa das violências econômicas e ideológicas de Estado e de todas as suas formas de inquisição [...] administrativas (Guattari, 2007, p. 36).

Políticas da alteridade dizem respeito também às lutas de transformações da subjetividade e dizem respeito a um conjunto mais amplo de transformações sociais. Uma das formas de transformação para a qual é possível chamar a atenção é a ideia de “reconhecimento” (Honneth, 2003, 2014). Na formulação bastante específica de Axel Honneth, uma das dimensões do reconhecimento não é apenas a do reconhecimento de outrem, mas de que a ascensão a um marcador sociocultural positivo de diferença tem um impacto nos sujeitos. Ao ser reconhecido como portador de dignidade e membro de uma sociedade, o sujeito é levado ao entendimento do valor de sua identificação, o “autorrespeito”. E esta conquista faz o sujeito ou coletivo “levar a sério a si mesmo [e] ser levado sério por outrem. Em outras palavras [...] a pessoa passa a se levar [a] sério em relação ao outro” (Lima, 2015, p. 98).

Ser levado a sério é uma das tantas lutas dos participantes do Clube 24 de Agosto, como vimos na narrativa anterior de Rita acerca da visibilidade do Clube na própria cidade. A ideia do “nós trancamos o pé” é caudatária dessa conquista do autorrespeito. E as conquistas que se seguiram e o ganho de espaço de legitimidade no cenário público da cidade foram alterados apesar de persistirem e ocorrerem episódios de desconsideração e invisibilização. O clube hoje conta com inúmeras atividades que acontecem ao longo de todo ano, sendo a Semana da Consciência Negra uma das mais importantes delas, juntamente com os movimentados bailes de domingo e durante a semana. Como relatou Irani, integrante da direção do clube: “Hoje o Clube soa diferente nos ouvidos das pessoas da cidade”.

Algumas conclusões

Abordar a ideia de “políticas da alteridade” é exemplar como esforço conceitual para chamar a atenção de um tipo de protagonismo descrito pela etnografia no início deste artigo. O Clube 24 de Agosto nos mostra uma conversa robusta entre os Clubes no Encontro Estadual dos Clubes Sociais Negros na cidade de Santa Cruz do Sul, trocando experiências e estratégias de enfrentamento contra a “polícia administrativa” do ECAD e suas “injustiças” que vêm solapando os clubes negros com dívidas e execuções imobiliárias a partir de implacáveis processos judiciais ditados por um engenhoso dispositivo de controle na fronteira entre o público e o privado. E a valorização e o tombamento dos clubes negros devem ser entendidos como uma busca de fortalecimento a essas batalhas que são locais – como apresentamos nas formas vividas de desconsideração e desqualificação experienciadas pelos participantes do Clube 24 de Agosto: “a cara de deboche” por parte das vereanças locais, e as referências ao o “clube mal-frequentado” demonstram a relação e o lugar político e simbólico que o clube ocupa dentro da cidade, dentre outras experiências similares.

Formando uma esfera pública de denúncia, o clube chega à condição de patrimônio. Mas o que fica disto não é somente o registro oficial e sim é possível ver no cotidiano dos participantes do clube travarem lutas diuturnas, ora nas relações locais citadinas de Jaguarão, ora nas relações institucionais com o Judiciário e o ECAD – que estão simultaneamente no mesmo local reverberando as tentativas de uma desvalorização originada a partir de dispositivos federalizados do escritório dos direitos autorais. Através da patrimonialização, é possível aos participantes do clube vislumbrar uma saída possível do “aparelho de captura” (Deleuze e Guattari, 1997) institucional do ECAD. Para tal enfrentamento, é necessário tornar pública a denúncia de desconsideração. Mas o racismo institucional dificulta a denúncia e torna necessária a formação de outra esfera pública de denúncia. Aqui os participantes do clube passam a contar com uma série de aliados para reverberarem suas demandas.

A saída da patrimonialização tem resultados não apenas preservacionistas. A própria ideia de patrimônio ainda é um campo de entendimentos fechados e distorcidos a respeito da diferença cultural. Mas o patrimônio na mão de coletivos como o 24 de Agosto é transformado numa ferramenta de empoderamento, como ação afirmativa, e a conquista do autorrespeito pelo reconhecimento. Autorrespeito como condição na qual o sujeito passa a levar a si mesmo a sério: a capacidade de se impor positivamente perante outrem.

Desse modo, compreendemos que o exemplo do Clube 24 de Agosto permite visualizar outras maneiras de pensar políticas afirmativas, pois não é apenas um exemplo de clube negro e, sim, mais um capítulo nas “histórias vivas” da desconsideração advindas de um conjunto de vozes posicionadas em diferentes lugares. O empoderamento e a afirmação são tanto ferramentas de luta quanto dispositivos de mudança na autoimagem dos participantes do clube e na construção de “si dos sujeitos” (Foucault, 2011) e das formas de dialogar com seus “outros”.

A partir daqui,a missão do Clube 24 de Agosto passa a ter uma dimensão mais profunda. Os regimes éticos passam a ser priorizados na organização internas do clube. A ideia do cuidado fica mais aparente, e “cuidar” do clube tornou-se essencial. Fazer os bailes, organizar as atividades, manter a missão do “clube aberto para todos”. As lutas por reconhecimento e os empoderamentos afirmativos delimitam um poderoso espaço calcado na eticidade.

Material suplementar
Referências
BATESON, G. 1998. [1972]. Passos hacia una ecología de la mente. Buenos Aires, Lohlé-Lumen, 355 p.
BITTENCOURT JR., I.C. 2013. As representações do negro nos museus do Rio Grande do Sul são marcadas pela invisibilidade simbólica: do “resgate” afro-brasileiro às pesquisas histórico-antropológicas e às visibilidades negras na museologia contemporânea. In: J.R. MATTOS (org.), Museus e africanidades. Porto Alegre, Ed. Museu Julio de Castilhos, p. 13-54.
BRIDA, A.C. 2011. As limitações do ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – perante a lei 9.610 de 1998, quando atuante na fiscalização e arrecadação dos direitos autorais, com especial enfoque no poder de polícia administrativa. Criciúma, SC. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade do Extremo Sul Catarinense, 60 p.
CARVALHO, J.J. 2006. Ações afirmativas como base para uma aliança negro-branco-indígena contra discriminação étnica e racial no Brasil. In: N.L. GOMES; A.A. MARTINS, Afirmando direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, p. 61-96
COSTA, E. 2016. ‘Conquista’, diz líder Yanomami ao receber sangue repatriado em RR. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2016/04/conquista-diz-lider-yanomami-ao-receber-sangue-repatriado-em-rr.html. Acesso em: 19/04/2016.
CUNHA, M.C. 2010. Cultura com aspas. São Paulo, Cosac Naify, 436 p.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 1997. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, vol. 5, 179 p.
DU BOIS, W.E.B. 1999 [1903]. As almas da gente negra. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 299 p.
ESCOBAR, G.V. 2010. Clubes sociais negros: lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. Santa Maria, RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Maria, 205 p.
FONSECA, M.N.S. 2000. Visibilidade e ocultação da diferença – imagens do negro na cultura brasileira. In: M.N.S. FONSECA (org.), Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte, Autêntica Editora, p. 87-115
FOUCAULT, M. 2011 A coragem da verdade: O governo de si e dos outros II. São Paulo, WMF Martins Fontes, 290 p.
FOUCAULT, M. 2005. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo, Martins Fontes, 382 p.
FOUCAULT, M. 1977. Foucault par lui même. Documentário. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NqKLzFELxIU. Acesso em: 12/04/2016.
GUATTARI, F. 2007. Microfísica dos poderes e micropolítica dos desejos. In: A. QUEIROZ; N.V. CRUZ, Foucault hoje? Rio de Janeiro, 7 Letras, p. 33-41.
HABERMAS, J. 1997. O conceito de “esfera pública”. In: J. HABERMAS, Direito e democracia: Entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, p. 92-121.
HONNETH, A. 2003. Luta por reconhecimento: A gramática dos conflitos sociais. São Paulo, Ed. 34, 296 p.
HONNETH, A. 2014. Freedom’s right: The social foundations of democratic life. New York, Columbia University Press/Polity Press, 412 p.
JARDIM, D.F. 2000. Palestinos no extremo Sul do Brasil: identidade étnica e os mecanismos sociais de produção da etnicidade: Chuí/RS. Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 498 p.
JARDIM, D.F.; LÓPEZ, L.C. 2013. Apresentação. In: D.F. JARIM; L.C. LÓPEZ (orgs.), Políticas da diversidade: (In)visibilidades, pluralidade e cidadania em uma perspectiva antropológica. Porto Alegre, Ed. UFRGS, p. 21-38.
JUSBRASIL. [s.d.]. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/ Acesso em: 02/04/2016.
LEITE, I.B. 1996. Descendentes de africanos em Santa Catarina: invisibilidade histórica e segregação. In: I.B. LEITE (org.), Negros no Sul do Brasil: Identidade e territorialidade. Florianópolis, Letras Contemporâneas, p. 33-53.
LIMA, A.P. 2015. As lutas, os bailes, as retomadas: Reconhecimento, identidades e cultura no processo de patrimonialização do Clube social negro 24 de Agosto (Jaguarão/RS). Porto Alegre, RS. Dissertação Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 181 p.
LIMA, A.R. 2012. Patrimônio Cultural Afro-brasileiro: narrativas produzidas pelo IPHAN a partir da ação patrimonial. Rio de Janeiro, RJ. Dissertação Mestrado Profissional. IPHAN, 157 p.
LÓPEZ, L.C. 2009. “Que América Latina se sincere”: uma análise antropológica das políticas e poéticas do ativismo negro em face às ações afirmativas no Cone Sul. Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 381 p.
LÓPEZ, L.C. 2013. Reflexões sobre o conceito de racismo institucional. In: D.F. JARDIM; L.C. LÓPEZ (orgs.), Políticas da diversidade: (In)visibilidades, pluralidade e cidadania em uma perspectiva antropológica. Porto Alegre, Ed. UFRGS, p. 77-90.
NUNES, J.S. 2016. Edificando um patrimônio sentimental: o Clube Social 24 de Agosto e seu reconhecimento pelo Estado do Rio Grande do Sul. Conexões Culturais – Revista de Linguagens, Artes e Estudos em Cultura, .(1):131-148.
NUNES, J.S. 2010. “Somos o suco do Carnaval!” A marchinha carnavalesca e o Cordão do Clube Social 24 de Agosto. Pelotas, RS. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal de Pelotas, 75 p.
RUPPENTHAL, F.R. 2015. Os percursos da lei federal 10.639/03: o projeto Territórios Negros em Porto Alegre – RS. Porto Alegre, RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 156 p.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em: http://www.tjrs.jus.br/ . Acesso em: 07/04/2016.
Notas
Notas
[2] São os “seguintes integrantes: Oliveira Silveira, Giane Vargas Escobar, Rubinei Machado, Sirlei Barbosa, Magda Melo, Ronaldo Barbosa e Jorge Luis Marinho da Silva” (Escobar, 2010, p. 81).
[3] Aqui não faço alterações de nomes para valorizar o protagonismo desses integrantes, mas mantenho o cuidado de não expor suas pautas a ponto de causar danos ao modo como valorizam o diálogo na esfera pública, pois são reuniões complexas que apontam desconsiderações e injustiças.
[4] Ver fonte na “consulta processual” do sítio do TJ-RS o processo nº: 1.03.0000483-0 na Comarca de Jaguarão, e procurar o item “Ver todas as movimentações”; ali aparecem listadas todas as movimentações do processo e a “Conclusão ao juiz”, que podem ser lidas. Ver texto completo do despacho da juíza de 23/07/2007 no item “Conclusão ao juiz”. O sítio JusBrasil também foi uma plataforma útil para a busca destas informações.
[5] Para o processo do Laranjal Praia Clube, ver na fonte o processo nº 022/11.05.0379930; e para os outros processos, nº 022/1.05.0028777-6. Estes três clubes parecem ter feito um esforço conjunto para enfrentar o ECAD.
[6] As entidades são: SADEMBRA, ASSIM, ABRAC, UBC, SOCINPRO, SICAM, SBACEM, AMAR, ABRAMUS (ver Brida, 2011, p. 39).
[7] O sangue Yanomami foi recolhido nos anos 1960 e 1970 por pesquisadores como o norte-americano Napoleon Changnon. O material estava em centros de pesquisa dos EUA, e nos anos 2000 os Yanomami exigiram que o Estado brasileiro reouvesse o material. O Ministério Público Federal se empenhou na “repatriação” do sangue. O terceiro lote de sangue “repatriado” foi devolvido aos Yanomami pelo MPF através do xamã e líder Davi Kopenawa. Ver Costa (2016).
Autor notes
[1] Universidade Federal do Rio do Grande do Sul. Pesquisador-colaborador Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi). Av. Bento Gonçalves, 9500 IFCH, sala 215, prédio A2, Porto Alegre, RS, Brasil.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc