
Recepção: 29 Março 2016
Aprovação: 04 Julho 2016
Resumo: Este artigo tem como base uma parte da reflexão realizada em minha dissertação de mestrado, que abordou o projeto “Territórios Negros: Afro-Brasileiros em Porto Alegre”. O projeto “Territórios Negros”, que possui o objetivo de auxiliar a implementação da Lei Federal 10639/03, consiste em um ônibus que percorre áreas centrais de Porto Alegre com a finalidade de levar, sobretudo, o público escolar a conhecer os chamados “territórios negros”. A partir da observação direta dos percursos, etnograficamente, este artigo apresenta algumas percepções, narrativas, histórias e memórias dos participantes e da equipe que compõe o projeto, através da reflexão teórica de autoras como Jardim (2013), Chagas (2005), Leite (1991) e Rolnik (1989). Percorrendo ponto por ponto e enfatizando as múltiplas vozes que dão vida ao percurso e conferem sentidos aos chamados territórios negros, é possível notar reflexões sobre diversas questões que envolvem a temática étnico-racial, como, por exemplo, o racismo. Conclui-se que os efeitos que o projeto vem produzindo superam as expectativas dos idealizadores, situando-se entre o não e o tão esperado.
Palavras-chave: Lei 10.639/03, Territórios Negros, reconhecimento.
Abstract: This article is based on the reflection made in my masters’ thesis, which dealt with the project “Territórios Negros: Afro-Brasileiros em Porto Alegre” (Black Territories: Afro-Brazilians in Porto Alegre). The project “Black Territories”, whose objective is to help implementing Federal Law 10.639/03, consists in a bus that drives through central areas in Porto Alegre aiming to show students the so called “black territories”. Through the direct observation of the journeys, ethnographically, this article presents some perceptions, narratives, stories and memories of the participants and the team that worked in the project, based on the theoretical reflection by authors such as Jardim (2013), Chagas (2005), Leite (1991) and Rolnik (1989). By going through each and every point and emphasizing the multiple voices that bring the journey to life and give purpose to the black territories, it is possible to notice reflections on several questions that involve the themes of race and ethnicity, such as racism. The article concludes that the effects produced by the project surpassed the creators’ expectations.
Keywords: Law 10.639/03, Black Territories, recognition.
Uma Lei, um projeto e muitas histórias
O projeto “Territórios Negros: Afro-Brasileiros em Porto Alegre” surgiu, dentro da Secretaria de Educação do Município, com a finalidade de auxiliar a lei federal 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares. O projeto municipal consiste em um ônibus que leva sobretudo alunos e professores a conhecer os chamados “territórios negros” situados em áreas centrais de Porto Alegre.
Neste artigo, que se baseia em parte da reflexão realizada em minha dissertação de mestrado, que abordou os modos como o projeto em questão auxilia a Lei Federal 10.639/03, apresento as percepções, histórias, narrativas e memórias que estão sendo contadas ou recontadas a partir das escolhas dos monitores. Através de uma pesquisa etnográfica que contou com uma participação e envolvimento com os agentes que empreendem tal projeto, pude ter acesso a uma diversidade de depoimentos.
De acordo com Bensá (1998), a etnografia traz a possibilidade de construir e expor discursividades plurais, não negando conflitos e expondo desde o hegemônico até o inusitado. A etnografia permite, assim, expor as distintas realidades existentes, explorando as experiências, sejam individuais ou coletivas. O foco desta etnografia está, sobretudo, nas reações, nas interações, nas surpresas e nas inquietações, nas realidades que os “territórios negros” farão emergir. Nessa perspectiva, os pontos enfatizados e visibilizados pelos monitores são colocados em destaque com o objetivo de também perceber como os sentidos são negociados e de que modo os participantes estão se apropriando das informações compartilhadas e refletindo sobre elas.
Além de auxiliar a Lei e suas diretrizes, o projeto “Territórios Negros”, também chamado de tour pedagógico, possui o objetivo de reconhecer usos e apropriações do território da cidade pela população negra, tirando o aluno da escola e levando-o para o Centro da cidade. No projeto “Territórios Negros”, os participantes, embora em sua maioria já conheçam a cidade, são convidados a, durante o percurso, a partir dos territórios visitados, vê-la de outros modos e refletir sobre suas experiências, incorporando e compartilhando narrativas do cotidiano. Os pontos percorridos evocam, entre outras coisas, a religiosidade, o sofrimento, o protagonismo e o reconhecimento, através das histórias. Percorrer estes territórios é descobrir sentidos de trajetórias desconhecidas por muitos.
O diferencial do projeto “Territórios Negros” vai além de sua mobilidade, pois ele propõe não só uma saída da escola, um passeio ou uma atividade lúdica, mas novas maneiras de pensar e compor as narrativas históricas sobre a cidade e, também, outras possibilidades de pensar as territorialidades negras.
Conforme Leite (1991, p. 40), referindo-se a delimitações de terras de comunidades quilombolas, é necessário ter cautela ao usar a noção genérica de “territórios negros”, que “[...] não esclarece a complexidade de formas de apropriação do espaço por estes grupos”. Nesse sentido, é importante colocar que os territórios negros são diversos e, embora os contemplados pelo projeto estejam localizados na área central da cidade, existem territórios não contemplados, não revelados, ainda invisíveis – ou invisibilizados –, para a população em geral, mesmo no centro, como a esquina do Zaire[2].
Sabendo que o projeto não abrange todos os territórios negros, quero deixar claro, ainda, que os territórios não eram e não são exclusivamente compostos pela população negra (Bohrer, 2011; Rolnik, 1989). Além disso, os territórios negros se constituíram a partir de relações conflituosas de exclusão, mas não só. Conforme Bittencourt Júnior (2010, p. 19-20):
Ao falarmos de Territórios Negros urbanos, não somente nos referimos às histórias de exclusão social e de infindáveis injustiças, mas também de construção de múltiplas singularidades e da elaboração de um repertório cultural negro comum de matriz africana.
Os territórios negros são lugares de moradia, lugares de passagem, lugares de trabalho, lugares de encontro, lugares de sociabilidade, lugares que comungam do passado e do presente e, assim, lugares de histórias. Os territórios negros contemplados pelo projeto são: Largo da Forca (Praça Brigadeiro Sampaio), o Pelourinho (em frente à Igreja Nossa Senhora das Dores), o Largo da Quitanda (Praça da Alfândega), o Mercado Público, o Campo da Redenção (Parque Farroupilha), a Colônia Africana (Bairros Bom Fim e Rio Branco), a Ilhota (próximo do Centro Municipal de Cultura e da avenida Érico Veríssimo), o Quilombo do Areal da Baronesa (Travessa Luiz Guaranha) e, encerrando o roteiro, o Largo Zumbi dos Palmares. Em cada um destes pontos, o ônibus realiza uma parada, e em algumas os participantes são convidados a descer, como no Largo da Forca, no Mercado Público, no Campo da Redenção e no Quilombo, nos demais pontos a observação das territorialidades é realizada pelas janelas do coletivo. Este percurso, que possui a duração média de três horas, provoca diferentes reações em seus participantes, todas elas suscitando reflexões sobre a temática étnico-racial, contribuindo para que as histórias sejam pluralizadas.
Pluralizando histórias
No relato da escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2009), ela compartilha a preocupação com o “perigo de uma única história”, refletindo sobre suas experiências de vida desde a sua infância. Para ela, não há uma única história, mas uma diversidade de histórias. Uma única história, conforme sua perspectiva, com a qual concordo, cria estereótipos e é apenas uma versão das inúmeras possíveis. A autora, então, propõe um equilíbrio de histórias.
Miriam Chagas (2005), neste mesmo sentido, relata-nos, a partir de sua experiência com laudos e pesquisas antropológicas, a respeito da importância da escuta instaurada nestes procedimentos e de como as comunidades quilombolas em questão nestes estudos valorizam tais trabalhos, atribuindo-lhes um caráter decisivo. As comunidades “transmitem” e “testemunham” suas próprias perspectivas, suas experiências históricas em relação à defesa de direitos que levam ao reconhecimento oficial de suas territorialidades.
Citando uma parte de um estudo antropológico realizado na comunidade quilombola de Morro Alto, do qual participou ativamente, Chagas (2005) relata uma “história viva”. Neste capítulo, traz “história vivas” que foram trabalhadas em referência às memórias da escravidão e podem ser contrastadas com as narrativas da história oficializada. Ao contrastar estas narrativas, aparecem diferentes leituras acerca das experiências históricas, já que há histórias não contadas e algumas delas estão vivas nas memórias dos atores. O depoimento do senhor Ermenegildo, citado pela autora, é um bom exemplo disso:
Era o pai do Machado. Era um senhor muito ruim (risos), muito maldoso, então com ele tinha que ser tudo nos trinque, que do contrário não tinha perdão. E tinha um escravo que vivia, que era desse senhor, chamava-se Bastião – Sebastião, mas na época era considerado um Bastião. Esse Bastião era escravo junto com a minha vovó e a avó do Manoel, que era a mesma, a vovó Teresa, a Floriana. Vovó sempre me contava isso aí muitas vezes. Ela, Floriana e a Libânia, a tia Libânia. Então, de manhã, todos os dias de manhã, levantavam de manhã, tinham que preparar a mesa do senhor este, com todos os conforto, e o Bastião ia pra mangueira tratar de uma vaca, tirar o leite para dar o café para o senhor, o Machado véio, e se passasse do horário ou se fracassasse alguma coisa, a sumanta era bonita. E o Bastião hoje em dia, eu permanecia abraçado nele pra todo o ponto de vista. E por que os outros dois maior nunca foram assim? O Bastião olhava, cumpria as ordens, mas tava sempre de corpo mole. Segundo dia ele disse assim para as colegas, para a vovó, a falecida Libânia, a falecida Floriana: ‘Hoje eu vou dar um jeito nesse homem’ (risos). E eles acharam que era brincadeira. Ele, à noite, tinha pensado: ‘Vou apagar esse trem aí’. De manhã, quando foi pra tirar o leite, que tirava o leite que era pra ter o leite quentinho pra servir a mesa do senhor... Ah, e antes disso ele tinha que fazer – como é o nome daquele café? Daquele café que preparava em uma vasilha, os ‘pico’ do café ele levava lá no ubre da vaca e puxava, acho que era Camargo. Era um fortificante, aquilo ali é vitamina. Aquilo ali tudo do senhor, né? Aí o Sebastião foi lá e tudo isso. O senhor achou que ainda não estava a contento e xingou o Bastião. O Bastião olhou para o lado, não tinha ninguém a jeito, assim. Ele olhou pro senhor e o senhor saiu para pegar o crioulo e botar no tronco, colocar na forca, aquele não tinha muito tronco, era mais da forca. Daí, quando o senhor chegou a se aproximar da porteira, ele puxou uma vara de porteira, tamanho médio, assim, de ‘guamirim’. Puxou aquilo ali, botou a vara nas costa e arriou na cabeça do abobado do Machado esse. Ficou só a fotografia do miolo do véio no pau, do senhor na vara de porteira. Ele saiu dali, foi lá na senzala dele, na mesa do senhor: ‘Eu quero aí a merenda do senhor que eu quero passear, quero dar uma volta’. ‘Ah, tu tá louco, Bastião, não faz isso, quer me ver na forca?’ ‘Não, aquilo não incomoda mais ninguém, nem vai incomodar mais vocês nem os futuros netos, aquele lá eu matei’. E assim, ele foi lá na mesa, comeu a merenda do senhor, cumprimentou as colega, a minha avó e as demais todas, abraçou, e nunca mais. Sumiu no mato, meio que nunca... A vovó teve notícias dele muitos anos depois. Teve notícias dele que ele andava muito pras bandas de Rolante. Rolante era mata virgem, né? Era um fim de mundo e foi assim que teve notícias do Bastião. Depois não teve mais notícia, mas em compensação começou a libertação, né? Começou o respeito, que daí começaram a encarar o negro com mais respeito (Chagas, 2005, p. 73-74).
O “heroísmo da própria libertação” (Chagas, 2005, p. 75), conforme a autora, marca esta narrativa do senhor Ermenegildo, uma narrativa diferenciada: afinal, quantos registros conhecemos de escravizados que enfrentaram os seus senhores? Bastião vira um protagonista, um exemplo de luta nas memórias desta comunidade. Quantas histórias invisibilizadas de diferentes protagonismos dos escravizados são desconhecidas?
A invisibilidade dessas histórias, conforme a autora, gera dor devido ao preconceito de não estar presente ou representado de forma diversa na história do Rio Grande do Sul e do Brasil. Nas palavras da autora: “A percepção de que não são vistos até hoje [quilombolas] como pessoas de direito, de que não são chamados a entrar na ‘História’, é revigorada a cada situação que os inviabiliza, os ignora e os despreza” (Chagas, 2005, p. 76), situação que coloca populações negras sempre como descendentes de escravizados. Buscam o reconhecimento de uma história apagada que resulte em direitos garantidos e concretizados. Neste sentido, buscam também “[...] uma troca de sinal: de uma experiência social excludente e estigmatizante para outra inclusiva” (Chagas, 2005, p. 78).
Referindo-se a Chagas, Denise Jardim (2013) ressalta a importância de transitarmos da história oficializada para as histórias vivas, escutar as narrativas não hegemônicas, sobretudo nos processos de reivindicação de direitos, como é o caso das políticas de reconhecimento. Conforme Jardim:
É sob esse esforço, de tornar o indizível (a diferença racial como parte da trajetória social) algo visível, que as comunidades comparecem nesse espaço de interlocução, participando desse campo de forças, em que devem gerar decisões e inscrever-se nas histórias oficiais locais e regionais (2013, p. 25).
O projeto “Territórios Negros” se propõe a isso, ele conta histórias, narrativas e também permite que outras histórias sejam contadas, ampliando o número de narradores – o que mostrarei de modo etnográfico, a seguir, ponto por ponto.
Assim, a história da população negra no Brasil não pode ser ensinada como se começasse na escravidão. Esta questão tem implicado que os negros, mesmo sem ancestralidade de escravizados, sejam lidos no contexto desta história (Segato, 2005). É necessário rever processos aparentemente estabelecidos. Para tanto é necessário compreender que os signos são móveis, conforme nos ensina Rita Segato, e assim podemos desestabilizá-los, sacudir a estrutura e preenchê-los de outros modos.
Neste sentido, a Lei 10.639/03 possibilita “Introduzir nos currículos de ensino brasileiro a possibilidade de reler a história brasileira realizando a crítica à invisibilização de indígenas e negros é parte desse percurso de valorização da diversidade brasileira e de uma releitura do ideário nacional” (Jardim, 2013, p. 28). Assim, a Lei procura garantir, conforme o Parecer 003/2004 do Conselho Nacional de Educação, direito igual às histórias e culturas que compõem a nação brasileira. E o projeto? De quais formas ele dá espaço para novas narrativas e histórias?
Para conseguir perceber o modo como o projeto estava sendo apropriado pelos participantes, acompanhei de modo regular os percursos de outubro de 2013 a novembro de 2014. Durante as incursões em campo no ônibus, percebi que o projeto é um espaço de interlocução que permite muitas reflexões. As narrativas ali proferidas conferem sentidos diversos a esse espaço de reconhecimento que se constitui o ônibus e aos territórios percorridos. Tais narrativas se nutrem das contribuições coletivas, compartilhadas pelos participantes do percurso. Desse modo, as histórias podem ser construídas não só por militantes, intelectuais, mas também por “pessoas comuns”, como os alunos e professores, pessoas com trajetórias diversas e uma heterogeneidade nas condições sociais, cores e idades, que contribuem com suas experiências e saberes para pluralizar as narrativas históricas. Participante ativa nesse processo, a equipe do projeto é formada, atualmente, por três pessoas: o coordenador – que também atua como monitor – o motorista e a monitora. Vejamos, a partir dos pontos percorridos, de que formas as reações, percepções, histórias, narrativas e memórias surgem durante o percurso, tornando-o um percurso vivido.
Largo da Forca: entre a morte e o tambor
A primeira parada é no antigo Largo da Forca (1830-1860), atual Praça Brigadeiro Sampaio[3], localizada no início da Rua dos Andradas, onde está situado o tambor. Neste ponto, os participantes descem do coletivo e escutam explicações próximo ao monumento.
No Largo da Forca, conforme a monitora, 22 pessoas foram enforcadas – já que, na época, existia a pena de morte no Brasil – em sua maioria negras. Os enforcados eram escravizados fugidos, e os demais escravizados, bem como boa parte da população, eram chamados para assistir ao enforcamento. O tambor, inaugurado em 2010, marca este território, sendo este, segundo os monitores, o primeiro marco da “Porto Alegre Negra”. Conforme o Museu de Percurso do Negro[4], responsável pelo monumento:
O tambor na praça evoca aqueles tambores que bateram em diversas comunidades africanas, pulsando no coração do Centro Histórico e por toda a cidade de Porto Alegre. Seus sons conduzem os valores, a visão de mundo afrodescendente e também são constitutivos da identidade cultural porto-alegrense (Bittencourt Junior e Souza, 2010, p. 164).
De acordo com as explicações, o tambor era o “celular” da época, era a forma de comunicação dos escravizados tanto física quanto espiritualmente. O tambor possui grande importância dentro da religiosidade de matriz africana, pois permite a comunicação com os deuses e demais entidades.
A primeira reação que quero apresentar é de um menino negro de aproximadamente 8 anos que estava fazendo o percurso com sua mãe. Ao descer do ônibus, ele olhou o tambor e questionou: “Aquilo é dos negros?”. Assim que a monitora respondeu positivamente, o menino, muito feliz, exclamou: “Show de bola!” e foi observar o tambor de perto. A reação de felicidade de um menino negro ao ver um monumento “dos negros” me chamou a atenção. A cena mostra o quanto a identificação através de obras no espaço público reflete nas experiências pessoais e coletivas e até mesmo na autoestima.
As imagens pintadas no tambor também despertam interesse nas crianças. Em uma turma de 2° e 3° ano de uma escola municipal, enquanto a monitora explicava, as crianças, de 8 e 9 anos, observavam com atenção cada imagem contida no tambor. As ilustrações são do pintor e desenhista Pelópidas Thebano e, conforme o Museu de Percurso do Negro, retratam
[...] os soldados farroupilhas, os lanceiros negros, os negros injustiçados, as quitandeiras, os sambistas, os batuqueiros, os capoeiristas, os trabalhadores, os estudantes negros, as crianças, as mulheres negras, além de figuras representando a afirmação da autoestima da etnia negra mediante lutas sociais e políticas (Bittencourt Junior e Souza, 2010, p. 156).
Entre as imagens, as dos capoeiristas e das mulheres negras foram as que fizeram mais sucesso entre as crianças. Esta mesma turma também ficou interessada nas explicações históricas mais gerais sobre a cidade. Os alunos gostaram de saber que a atual Rua dos Andradas era a Rua da Praia, uma vez que o Rio Guaíba vinha até as proximidades da rua. Uma das professoras lembrou que na Feira do Livro[5] tinham visto fotos antigas da cidade, sobretudo de mulheres lavando roupas no rio.
O tambor também gera possibilidades de reflexão sobre os países africanos na atualidade. Alguns alunos do 5° ano de uma escola particular não acreditaram que hoje existe telefone celular no continente africano; para eles, o tambor, como aparece em alguns desenhos, ainda é a forma de comunicação entre os indivíduos. Além disso, o tambor também resgata figuras importantes da cidade de Porto Alegre, como Mestre Borel, Walter Calixto Ferreira, grande tamboreiro da religião afro-brasileira falecido em 2011. Mestre Borel foi citado por uma turma de tutores de um curso a distância que trata da história e cultura africana e afro-brasileira.
No geral, os alunos gostam muito da parte final deste ponto, quando são convidados a tocar o tambor. Um dos alunos de uma escola da cidade de Rio Grande chegou a sugerir que colocassem uma escada para que pudessem bater na parte de cima do monumento.
Mesmo com a materialidade do tambor, o ponto que chama muita atenção e desperta a curiosidade dos participantes é a forca. Os participantes querem saber, sobretudo, onde era o local das execuções. A monitora explica que ninguém sabe ao certo; esta informação basta para que os participantes, em sua maioria adolescentes, fiquem especulando onde seria este local.
É também na praça que as narrativas sobre a chegada dos africanos ao Brasil são comentadas. Uma professora explicou que, pouco depois de chegarem, os escravizados eram submetidos ao que ela denominou de “ritual do esquecimento”. Os escravizados eram obrigados a dar voltas em torno de uma árvore, apanhando até “esquecer” seu nome, sua idade e suas lembranças ligadas a sua família e país de origem. Após “esquecer”, eram rebatizados e começavam a ser explorados. Esta narrativa foi incorporada à explicação da monitora, que, além de contar este fato, faz com que os participantes se coloquem no lugar dos escravizados, levando-os a refletir sobre a situação de violência e sofrimento a que eram submetidos. Os alunos costumam conversar entre si, comentando quão ruim seria essa experiência.
Nesse jogo entre passado e presente, começando o percurso com o sofrimento dos castigos e da pena de morte, indo para o tambor como o primeiro símbolo da negritude da cidade, que remete à comunicação entre mundos, o estar na praça proporciona um misto de interesses e sentimentos. Continuando o percurso, ainda com sofrimentos, castigos e injustiças, o segundo ponto é o Pelourinho em frente à Igreja Nossa Senhora das Dores.
O Pelourinho e a Igreja Nossa Senhora das Dores: injustiça, sofrimento e protagonismo
A segunda parada é no Pelourinho localizado em frente à Igreja Nossa Senhora das Dores. Esta é a igreja mais antiga de Porto Alegre. O prédio começou a ser construído em 1807, mas a igreja só foi inaugurada em 1903. Esta demora na construção da igreja é atribuída popularmente à história de um escravizado, Josino ou Jósimo, que foi acusado injustamente de um roubo. Uma das versões desta história é que o “senhor” do escravizado roubou a coroa de uma santa para dar à sua noiva. Quando o crime foi descoberto, o “senhor” colocou a culpa no escravizado, que, sem direito a defesa, foi enforcado. Outra versão é que o escravizado foi acusado de ter roubado materiais de construção da obra da igreja. Antes de ser enforcado, disse que, se ele fosse inocente, o “senhor” nunca veria aquela igreja pronta.
Há um grande mistério em torno disso, devido à demora tanto da construção das torres quanto das reformas da igreja. Em um dos percursos acompanhado pela equipe de uma emissora de televisão, o cinegrafista comentou o caso referindo-se à força das palavras proferidas pelo escravizado: “Que boquinha”.
O caso do escravizado com a igreja é muito conhecido, e muitas professoras, alunos e público em geral conhecem a história. Em uma turma de tutores de um curso a distância que aborda a história e cultura africana e afro-brasileira, alguns questionaram, de modo irônico, o que um escravizado faria com material de construção, uma vez que, segundo eles, não teria como escondê-lo.
Uma professora de uma escola da cidade de Rio Grande comentou com os alunos a questão do número máximo de chibatadas que poderiam ser dadas nos escravizados, que eram 40, e enfatizou o sofrimento e a dor causada: “Imaginem 40 chibatadas?”. Os alunos ficaram impressionados. Contudo, o ponto que mais chama a atenção dos alunos é o consentimento da igreja com a violência praticada no Pelourinho. As reações mais interessantes vieram de alunos de uma escola particular católica. Uma aluna do 5° ano questionou: “E será que Deus gostava disso?”. Após esse comentário, a professora, preocupada, comentou comigo que, assim que a aluna chegar à escola, irá “incomodar” os padres, questionando sobre isso. Outro aluno também compartilhou a perplexidade da colega: “Eles tinham religião e escravizavam os outros?”.
As reflexões realizadas nesse ponto são, principalmente, em relação à religião católica da época e ao enfrentamento de Jósimo à situação de injustiça que lhe foi imposta. Tais reflexões reforçam uma imagem sofrida dos escravizados, mas também chamam a atenção para o seu protagonismo, provocando ainda tensionamentos na imagem da Igreja Católica. Nesse sentido, o nome da igreja não parece ser à toa (Bittencourt Junior, 2010). Da fé para o comércio, o terceiro ponto do percurso é o Largo da Quitanda.
Largo da Quitanda: os comércios na cidade
A terceira parada foi no antigo Largo da Quitanda (século XVIII), atual Praça da Alfândega. O Largo da Quitanda era um ponto de comércio no qual produtos eram vendidos e trocados, sobretudo pelas escravizadas em seus tabuleiros. O Largo era considerado o ponto de maior movimento comercial da cidade na época. Era um ponto de fluxo onde os escravizados estabeleciam relações tanto entre si quanto com a população em geral.
Atualmente, na Praça da Alfândega está situada a Pegada Africana. A Pegada Africana é outra obra do Museu de Percurso do Negro, do escultor, arquiteto e urbanista Vinicius Vieira de Souza. A pegada foi desenhada no chão com as pedras portuguesas que calçam a praça. Nela é possível observar o mapa do continente africano, formando um pé, que origina os demais continentes, formando dedos.
Este ponto não é muito comentado pelos monitores e, por este motivo, não costuma despertar curiosidade ou comentários por parte dos participantes. Os monitores não dispõem de imagens da Pegada para mostrar aos participantes. Contudo, ao falar de comércio, muitos alunos associam essa palavra a comércio de pessoas, de escravizados.
A associação de comércio diretamente com o comércio de escravizados é um indicativo do que é marcante no ensino sobre o sistema escravista: o comércio de pessoas e a violência. Até aqui, estes dois pontos foram trabalhados de forma a possibilitar outras visões, enfatizando os momentos de sofrimento e também de protagonismo, tentando ampliar os modos de ver essas histórias. No próximo ponto, continuamos no comércio.
Mercado Público: o caminho das moedas
A quarta parada é no Mercado Público, construído em 1869 com mão de obra escravizada. O local é referência para as religiões de matriz africana, sendo o primeiro local a ser visitado no chamado “passeio” dos iniciados nestas religiões, por ser um local de abundância e por abrigar em seu centro, em uma encruzilhada, o assentamento do Bará. Um assentamento consiste na fixação de um orixá em um objeto através de práticas rituais. Bará é o Exu para o batuque, é um orixá mensageiro, sendo conhecido por abrir os caminhos.
No Mercado, os participantes descem para conhecer o assentamento. Desde 2013, no centro do Mercado Público, no local do assentamento, há uma mandala construída com a técnica do mosaico, com sete chaves e sete correntes, em referência ao Bará. Esta obra é outro marco do Museu de Percurso do Negro.
Chegando ao centro do Mercado, os monitores explicam sobre o assentamento e sobre as religiões de matriz africana. A monitora faz questão de frisar que o mal não está nos orixás, mas em quem faz pedidos com finalidades ruins a eles. Os incêndios sofridos pelo Mercado também são lembrados, ressaltando a proteção do Bará ao prédio e aos comerciantes.
Enquanto ouvem as explicações, os participantes, sobretudo os alunos adolescentes, questionam por que muitas pessoas param para também ouvir as explicações: “Todo mundo vai parar aqui pra ver?”, pergunta um aluno do ensino médio de uma escola estadual, e “Por que tem tanta gente parando?”, pergunta uma aluna do ensino fundamental de uma escola municipal.
Nesta interação que ocorre no Mercado, os participantes percebem o interesse que a religiosidade desperta nos seus frequentadores. Obviamente alguns param, olham um pouco e logo saem, mas outros ficam até o final e aproveitam para elogiar, tirar dúvidas ou contar experiências pessoais para a monitora. Além de pararem para ouvir, alguns também contribuem com as narrativas dos monitores e fazem suas saudações a Bará, jogando moedas, balas de mel ou simplesmente dizendo: “Alúpo!”, palavra de origem nagô que quer dizer “Salve”. Estas demonstrações da religiosidade fazem com que os participantes, sobretudo os alunos, percebam que há muitas pessoas praticantes destas religiões e que não há motivo para ter vergonha ou medo delas.
O medo, a vergonha e o preconceito são também elementos recorrentes da parada nesse território negro. Certa vez, presenciei uma aluna do ensino fundamental, de aproximadamente 10 anos, não querer descer do ônibus para ver o assentamento do Bará. Mesmo pequena, a aluna já tinha a idéia de que o Bará não era algo bom. Ela justificou dizendo que sua mãe sempre comenta que isso “é coisa do diabo”. A professora concordou que a aluna não descesse, mas, ao perceber que ficaria sozinha no ônibus, a aluna resolveu ir junto com os colegas, embora seu rosto mostrasse sua contrariedade. A turma ouviu as explicações, e ela permaneceu em silêncio, como se não estivesse prestando atenção. Contudo, no caminho de volta para o ônibus, todos pararam para observar as imagens dos orixás e de outras entidades que estavam expostas na flora, loja de artigos religiosos ligados às religiões de matriz africana, localizada dentro do Mercado. Os alunos, inclusive a menina em questão, ficaram encantados com as vestimentas e caracterizações das imagens.
Nessa linha, uma das professoras idealizadoras do projeto contou, em conversa informal[6], que no período em que foi monitora já foi chamada em tom de “acusação” de querer tornar os alunos batuqueiros, como se isso fosse um problema. Nos percursos que tenho acompanhado, noto, também, que muitos alunos questionam sobre a religião de matriz africana e contam suas experiências para a monitora e para os colegas em particular, nos seus grupos, e não para toda a turma. Estas percepções revelam o quanto ainda tem que ser feito para que estes preconceitos não sejam reproduzidos e possam ficar apenas no passado.
Ao término das explicações que pretendem desmistificar as percepções negativas das religiões de matriz africana, os monitores convidam os participantes a pedir proteção a Bará oferecendo balas de mel ou moedas e saudando com “Axé”, termo ioruba que significa força, energia e poder. Conforme a monitora, jogar uma moeda para Bará é equivalente ao sinal da cruz em frente a uma igreja católica. As moedas oferecidas a Bará viram a principal discussão nos percursos, independentemente do público.
Depois que as moedas são jogadas, os participantes são convidados a não dar as costas imediatamente ao orixá. Eles saem, então, após caminharem para trás. Neste período, observam os trabalhadores da limpeza do Mercado recolhendo as moedas jogadas, muitos inclusive usando as suas vassouras e pás para auxiliar no recolhimento. Os participantes ficam impressionados e questionam: “Por que pegam as moedas?”, “Quem vai pegar a minha moeda?”. Frente a este tipo de questionamento recorrente, a monitora explica que a moeda é um metal que circula e precisa circular para garantir o sustento de cada um. Ela explica que aqueles que precisam podem pegar as moedas, pois o pedido, a saudação já foi feita e aquela moeda não pertence mais a quem a atirou. Mesmo com a explicação, poucos são aqueles que se contentam com ela. Notei que um dos poucos que não ficou surpreso com o recolhimento das moedas foi um aluno de uma escola particular católica, que associou Bará com o Buda, a partir de uma prática pessoal: “Eu sempre pego as moedas do Buda”.
Do comércio para as moradias, o próximo ponto trata do pós-abolição, abordando os locais de moradia dos ex-escravizados: a Colônia Africana.
Colônia Africana: épocas e status
O quinto território visitado pelo percurso é a antiga Colônia Africana, atuais bairros Rio Branco e Bom Fim e parte da Cidade Baixa, local onde os africanos e afro-brasileiros se estabeleceram no final do século XIX. A Colônia Africana era vista como “antro de vagabundos” (Bohrer, 2011), área desvalorizada na cidade que, juntamente com a Ilhota e o Areal da Baronesa, foi berço do samba. Hoje são bairros valorizados, marcados pela religiosidade e símbolos judaicos, como as sinagogas.
A passagem por este território é rápida. A monitora expõe alguns fatos sobre a abolição, já que este território faz a passagem para o pós-abolição, enfatizando o contexto da época, sem glorificar a Princesa Isabel. Ela comenta sobre o Grupo Palmares[7] e o questionamento deste grupo em relação ao 13 de maio, que seus integrantes consideram “abolição sem estrutura”. Esta explicação, sobretudo entre o público não escolar, costuma gerar desconforto. “Por que o 13 de maio não é importante?” “Por que na escola enfatizam a figura da Princesa Isabel?”. Os participantes costumam ficar surpresos ao perceberem que a Princesa Isabel não era tão “boazinha” como pensavam.
O comentário da monitora, neste território, apresenta ainda algumas funções que os ex-escravizados urbanos passaram a exercer no pós-abolição, como sapateiros, alfaiates, lavadeiras, entre outras. O próximo território envolve as diferentes formas de lazer, de ontem e de hoje: o Parque da Redenção.
Parque da Redenção: liberdade e lazer
A sexta parada é o Parque da Redenção (1888-1934), atual Parque Farroupilha, que ganhou este nome em homenagem ao centenário da Guerra dos Farrapos, sobretudo devido a uma exposição com esta temática realizada no local. Embora tenha ocorrido esta troca de nome, o parque continua sendo chamado de Redenção, palavra que, não gratuitamente, remete a liberdade. Entretanto, a maioria dos frequentadores do parque não sabe o motivo de sua denominação.
Muito diferente de hoje, a Redenção era um local que despertava medo nos moradores, conforme depoimento do senhor Jaime, antigo morador do bairro Bom Fim, registrado por Santos et al. (2010, p. 52):
A Redenção antes era um banhado, uma área sem saneamento e abandonada. Só era bem cuidada e oferecia segurança ali defronte da escola dos cadetes. O resto era mato. E a maioria dos moradores do bairro não gostava de atravessá-lo porque tinha medo de ser assaltado.
Assim como a Colônia Africana, a área do parque era alagadiça, “um banhado”. Na Redenção, os ex-escravizados costumavam se reunir aos domingos para praticar danças e jogos, além de piqueniques. A parada na Redenção é para que os alunos façam o lanche; contudo, muitas vezes, devido ao tempo, esta parada acaba não acontecendo. Antes da parada são apresentadas algumas comidas que os escravizados comiam e, possivelmente, levavam para os seus piqueniques, tais como galinha com farofa, rapadura, pão com linguiça, pipoca, entre outras.
Em um dos percursos, acompanhei o lanche de uma turma de ensino fundamental, dividida em grupos por afinidade, e notei que em um dos grupos o assunto era a religiosidade de matriz africana. Um grupo de alunas conversava entre si sobre os orixás e suas características, e as professoras e a monitora participaram. A conversa foi produtiva no sentido de estimular o debate começado no Mercado Público sobre as religiões de matriz africana e abordar as dúvidas e curiosidades que tanto os alunos quanto as professoras tinham. Passamos para o próximo território: a Ilhota.
Ilhota: enfrentando o racismo
A sétima parada é na antiga Ilhota, área também sujeita a alagamentos, delimitada pelo Arroio Dilúvio e a Cascatinha. A Ilhota é mais um dos locais no qual se concentravam os moradores negros da cidade. Nessa área hoje se localiza o Centro Municipal Lupicínio Rodrigues, nome que faz referência ao ilustre morador, o cantor e compositor Lupicínio Rodrigues. As explicações em torno da Ilhota concentram-se na questão do futebol. Na Ilhota, em uma praça localizada atrás do Centro Municipal Lupicínio Rodrigues, jogava a Liga Nacional de Football Porto Alegrense, popularmente conhecida como “Liga da Canela Preta”. Conforme José Antônio dos Santos (2011), “Liga da Canela Preta” foi uma expressão pejorativa usada para caracterizar a Liga Nacional de Football Porto Alegrense, que recentemente foi ressignificada enquanto resistência negra:
Esse é mais um dos casos em que a história dos negros gaúchos passou a ser representada pelo movimento negro contemporâneo de forma positiva. O que era tratado de forma pejorativa pela grande imprensa da época como “Liga da Canela Preta”, conforme sobejamente afirmado pela historiografia que trata do futebol, atualmente é reverenciado como um dos ícones da resistência esportiva dos negros da capital (Santos, 2011, p. 174).
A monitora, neste território, enfatiza o enfrentamento dessa Liga à Liga Metropolitana de Futebol, que não aceitava negros. Conforme as autoras do livro Colonos e quilombolas:
A segregação racial dos clubes da elite continuava a imperar e foi motivo para o surgimento da Liga da Canela Preta, congregando clubes que reuniam somente jogadores negros. A Liga nasceu no mesmo ano – 1910 – em que surgiu a Liga Porto Alegrense de Football e fazia contraponto ao racismo e ao preconceito que estava posto (Santos et al., 2010, p. 83)
Conforme a monitora, todos os times do estado do Rio Grande do Sul vieram jogar com os “Canelas Pretas”, exceto um. Ao questionar os participantes sobre qual seria este time, grande parte responde: “Grêmio”. Entretanto, para surpresa dos participantes, este time foi o Internacional. Inclusive, conforme conta a monitora, a criação da Liga Nacional de Football Porto Alegrense foi impulsionada pelo pai de Lupicínio Rodrigues, juntamente com outros companheiros negros, pois seu time, o Rio-Grandense, não pôde se inscrever na Liga Metropolitana de Futebol de elite devido ao veto do Internacional, que impediu seu ingresso. Por este motivo, toda a sua família passou a ser gremista, inclusive Lupicínio, que compôs o hino do clube[8].
O percurso mostra que o racismo não era exclusivo de um time ou de outro, mas que era uma prática generalizada entre os times da elite. Segundo a monitora, o Internacional contratou o seu primeiro jogador negro no final da década de 20, Dirceu Alves. O Grêmio somente fez isso no início da década de 50: Osmar Fortes Barcellos, o Tesourinha[9].
Em relação à polêmica a respeito do Grêmio ser um clube racista, a monitora explica as origens destes comentários:
Quando o Grêmio se instalou no terreno[10], a antiga dona, de origem alemã, fez uma cláusula para que o time não contratasse jogadores negros, pois ela não queria que negros jogassem lá, e os dirigentes da época aceitaram. Se contratassem jogadores negros, poderiam perder o campo, conforme a cláusula.
Além de suscitar reflexões sobre racismo, o percurso também faz com que entre os participantes mais experientes lembranças apareçam: “Quando eu era pequena, existia a Ilhota”, diz uma professora do ensino médio; “Meu avô ainda se refere a esta região como Ilhota”, afirma uma senhora de aproximadamente 40 anos do público não escolar.
Próximo à Ilhota, na Cidade Baixa, está localizado outro ponto do percurso: o Museu Joaquim Felizardo[11], antigo solar da família Lopo Gonçalves[12]. O solar é um prédio histórico, tombado em 2007, que, na época de Lopo Gonçalves, era uma chácara.
Este ponto é visitado somente nas terças e quintas, devido à disponibilidade do Museu. Ele está localizado na Rua João Alfredo, antiga Rua da Margem. A visita ao museu proporciona, além de conhecer o acervo, uma visita ao chamado “Espaço Senzala”. O “Espaço Senzala” é o local onde, no período da escravização, havia, como o nome sugere, uma senzala. O espaço é pequeno, com teto baixo, não possui janelas, mas apenas algumas aberturas, as chamadas seteiras, para que a segurança do solar fosse feita e armas pudessem ser colocadas nesses locais, e tais aberturas serviam indiretamente para a entrada de ar e luminosidade. Sobre a senzala, Raquel Rolnik (1989, p. 2) esclarece que
É importante salientar que mesmo a senzala, desenhada pelos senhores brancos como espaço de confinamento dos escravos – fileiras de quartos sem janelas ou mobília fechando-se em pátios de onde se podia vigiá-los e comandá-los –, acabou por se configurar como território negro. Para os negros desterritorializados da África e trazidos ao Brasil pela máquina comercial européia, a senzala representava a submissão à brutalidade dos senhores. Porém, não eram só o olhar vigilante do senhor e a violência do trabalho escravo que estruturavam o cotidiano dos habitantes da senzala. Foi também no interior dessa arquitetura totalitária que floresceu e se desenvolveu um devir negro, afirmação da vontade de solidariedade e autopreservação que fundamentava a existência de uma comunidade africana em terras brasileiras. O confinamento na terra de exílio foi capaz de transformar um grupo – cujo único laço era a ancestralidade africana – em comunidade.
Ampliando o modo de ver a senzala, Rolnik (1989) fornece subsídios para pensarmos uma cena que presenciei entre alunos do ensino médio. Um dos alunos, um menino negro com aproximadamente 16 anos, em tom de brincadeira, comenta com os demais, ao mesmo tempo em que os empurra: “Vocês pediram para entrar na minha casa? Pediram?”. Esta cena foi paradigmática para mim: o menino estaria também ressignificando a senzala? Ou estaria simplesmente associando a identidade do negro ao escravizado, mostrando a marca que este carrega? Entre tantas possibilidades, na hora, fiquei surpresa com aquela brincadeira; pensei em como ele estava se apropriando daquele espaço e em como estava se identificando. De fato, por mais que ele pudesse estar ressignificando aquele espaço, enquanto espaço de sociabilidade, a identificação do negro enquanto escravizado é evidente. Ainda no museu, presenciei, em outro momento, uma senhora idosa, do público não escolar, comentar que sua bisavó havia trabalhado no casarão do museu.
Estas duas situações descritas fazem pensar o quanto um comentário sobre as narrativas pode valorizar o sentido atribuído a elas pelo narrador e também o quanto narrar a si mesmo é mostrar familiaridade e modos de identificação com estes pontos da cidade. Da escravização, passamos pelo pós-abolição e agora chegamos a mais um local de resistência, com o reconhecimento da territorialidade: o Quilombo Areal da Baronesa.
Quilombo Areal da Baronesa: território de resistência
A nona parada é no Quilombo Areal da Baronesa, onde moram 67 famílias. Foi reconhecido em 2004 pela Fundação Palmares e em 2014, finalmente, titulado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O Quilombo Areal da Baronesa consiste em um espaço de resistência na área central da cidade e é um território histórico do carnaval de rua de Porto Alegre, conforme Silva (1993).
A Avenida Luis Guaranha, que corta a área onde está situado o quilombo, uma espécie de beco sem saída, bem estreito, é uma das poucas travessas que resistiram na cidade após os projetos de reforma urbana. Luis Guaranha veio morar no local após o falecimento do Barão e da Baronesa, já que aquelas casas eram suas casas de veraneio. Ele foi um caixeiro-viajante que não deixou descendentes. Quando de sua morte, a área foi repassada à Santa Casa de Misericórdia que passou a alugá-la para os escravizados. Anos depois, a Santa Casa cedeu a área para a prefeitura. Atualmente, no quilombo há 12 casas construídas pela prefeitura através do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB, além do antigo casarão do Barão e da Baronesa e de outras residências, incluindo casas de três pisos.
Essa história é contada por uma das lideranças do quilombo que é bisneta de escravizados, assim que os participantes descem do ônibus e se dirigem até a sede da associação de moradores. Com o percurso, é possível que os participantes, além de conhecerem um quilombo urbano, mudem a concepção de que quilombo é um lugar de esconderijo de “fugitivos”. Conforme explica a liderança quilombola: “O quilombo hoje é um local de acolhimento e resistência”, um local de manutenção de um modo de vida.
É muito comum, nas paradas no quilombo, os participantes se identificarem como descendentes de escravizados, lembrarem-se de parentes que moravam no entorno e contarem experiências que tiveram naquele território ou que ouviram de seus familiares e amigos. Estes são os pontos que a liderança quilombola que costuma receber os participantes destaca ao avaliar o projeto. Segundo ela, é muito legal receber o ônibus do projeto, pois já receberam muitas pessoas que já moraram nas proximidades ou até mesmo na comunidade, e agora recebem filhos e netos destas pessoas e retomam o contato. Assim, além das informações sobre o quilombo, o projeto acaba aproximando pessoas que há muito tempo não se viam. Estas pessoas trazem seus pais e seus parentes para também visitar o local.
A parada neste território proporciona mais que encontros: proporciona a possibilidade de entendimento da ressemantização do termo quilombo no presente. Conforme Abdias do Nascimento: “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” (Nascimento, 1980, p. 263, in Arruti, 2000, p. 106).
Contudo, essa tarefa não é fácil. Em uma turma de alunos do ensino fundamental de 2° e 3° ano, após a monitora anunciar que o próximo ponto seria o quilombo, um aluno sentado bem na frente exclamou, batendo palmas: “Vamos ver os negrinhos!”. Ao chegar ao quilombo, estes aluninhos fizeram muitas perguntas para a liderança quilombola: “Aqui mora só negro?”, “Aqui tinha lugar para os escravos se esconderem?”, “Os escravos foram muito castigados?”. Pacienciosamente, a liderança quilombola respondeu a todos os questionamentos, tentando adaptar as respostas a uma linguagem mais pedagógica para que eles pudessem entender as diferenças do quilombo hoje. Um aluno negro, desta mesma turma, ficou muito contente ao saber que no quilombo são ministradas aulas de capoeira, bateu palmas e, em seguida, foi acompanhado pelos demais. Passamos agora da diversidade de percepções do quilombo para o último ponto do percurso: Largo Zumbi dos Palmares.
Largo Zumbi dos Palmares
O último ponto do percurso é o Largo Zumbi dos Palmares, localizado na Cidade Baixa. O Largo, que homenageia o líder de Palmares, é palco de mobilizações da sociedade civil e do movimento negro. Além de mobilizações, o Largo abriga feiras aos finais de semana.
Este ponto não é muito trabalhado pelos monitores, e, a partir deste momento, assuntos gerais se intensificam. Em uma turma de ensino fundamental, presenciei o início da volta para a escola com grande parte dos alunos cantando funk e colocando outras músicas no celular.
Considerações finais
A partir do que vimos em cada ponto do percurso nos territórios, é possível perceber que o projeto assume uma função de produzir conhecimentos com base em experiências cotidianas, de falas que muitas vezes não seriam consideradas “importantes”. O compartilhamento de conhecimentos é um grande passo para o reconhecimento e para o estímulo de ações mais efetivas para mudar as realidades excludentes do nosso país. Sabendo que, infelizmente, é possível simplesmente reconhecer sem que isso faça diferença nenhuma, uma forma de mexer nas estruturas é produzir novos conhecimentos, compartilhá-los, fazer com que narrativas esquecidas, não contadas, ganhem espaço e visibilidade.
A visibilidade dada aos espaços denominados “territórios negros”, aos respectivos monumentos e, consequentemente, à população “afro-brasileira” através do projeto atribui um reconhecimento a histórias e narrativas apagadas, garantindo, como afirma Chagas (2005, p. 76), uma “fala histórica” daqueles que durante muitos anos não foram e em algumas situações ainda “não são chamados a entrar na História”. Assim, o projeto tem possibilitado que a história possa ser ressignificada através de narrativas que vão além da história formal, abordando experiências vividas, refletindo sobre estereótipos, racismo, relações de poder e muitas outras questões.
Analisando esse processo atual do projeto, um dos idealizadores afirmou que, a partir das narrativas, o indivíduo se transforma em coletividade. Neste sentido, a apropriação do projeto pelos participantes é também uma construção coletiva, uma vez que todas as narrativas vão se agregando e, a cada percurso, construindo novas formas de pensar a cidade e suas próprias relações.
Conforme este idealizador do projeto[13], o resultado de compartilhamento intenso de experiências e narrativas se constitui em um efeito não esperado. As proporções que o projeto vem alcançando tanto em números – de 2011 a 2014, ele teve mais de 30 mil participantes – quanto em conteúdo qualitativo surpreendem, sobretudo, aqueles que possuem envolvimento com o mesmo desde o início. Cabe o questionamento: esse seria um efeito não esperado ou um efeito tão esperado? Para além do jogo de palavras, os efeitos que estão sendo construídos pelo projeto têm contribuído positivamente para, ao menos, suscitar reflexões sobre as relações étnico-raciais, uma questão que precisa, e muito, ser cada vez mais debatida em todas as esferas, sobretudo nas escolas.
Referências
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