
Recepção: 03 Julho 2014
Aprovação: 04 Julho 2016
Resumo: O presente artigo se propõe investigar a crescente internacionalização do ensino superior através da análise do Programa do governo federal “Ciência sem Fronteiras”. Para tal, procura destacar o debate acadêmico acerca de temas como deslocamentos e fluxos territoriais, globalização e geopolítica do conhecimento científico para, em seguida, analisar este programa governamental a partir de discursos oficiais e notícias circuladas pela grande mídia, observando sua concepção, as formas de participação e seus primeiros desdobramentos. Como método, utilizou-se revisão bibliográfica e pesquisa documental, de forma a verificar como este programa, apesar de estratégico para a consolidação do nosso país como potência no Hemisfério Sul, reproduz valores convencionais, seja por fundamentar-se na lógica centro-periferia, seja por apostar na supremacia radical das ciências naturais como forma de inserção do país nas valorizadas rotas industriais e tecnológicas do sistema mundial.
Palavras-chave: ensino superior, geopolítica do conhecimento, Ciência sem Fronteiras.
Abstract: This paper aims to investigate the growing internationalization of higher education by examining the federal government’s Science without Borders Program, highlighting the academic debate on topics such as territorial boundaries and flows, globalization and geopolitics of scientific knowledge. It also aims at analyzing this program on the basis of official speeches and news present in the mainstream media, observing its conception, forms of participation and early developments. As a method, we used literature review and documental research in order to see how the Science without Borders Program, although strategic for Brazil’s development as an important nation of the Southern Hemisphere, reproduces conventional values. Far from questioning the current Western model of development, it is based on the center-periphery model and on the supremacy of natural science as a way of integrating our country into the valued industrial and technological routes of the world system.
Keywords: higher education, geopolitics of knowledge, Science without Borders.
Nas últimas décadas, o fenômeno da internacionalização do ensino superior cresceu vertiginosamente, como um fenômeno mundial. Em 2005, eram quase 3 milhões de pessoas estudando fora de seus países de origem – um crescimento de mais de 40% quando comparado com o número de estudantes estrangeiros no ano 2000 (Contel e Lima, 2007). Dada a grande dimensão deste fenômeno, torna-se necessário investigá-lo de perto, uma vez que engloba, mais do que a realidade objetiva de estudantes em trânsito, culturas em contato, fluxos intercontinentais, trajetórias de vida e um conjunto de políticas educacionais num sentido mais restrito e de Estado e desenvolvimento num sentido mais amplo.
No Brasil, convergindo com as recentes políticas governamentais de desenvolvimento e crescimento econômico e social, foi lançado, em 2011, pelo governo federal, o Programa “Ciência sem Fronteiras”. Outros programas de menor alcance já existiam no país, pulverizados pelos órgãos de relações internacionais de universidades públicas e privadas, mas este se destaca tanto por se definir como uma política de governo quanto pelo alcance que pretende ter, uma vez que apresenta como meta enviar, até 2015, aproximadamente 101 mil estudantes e pesquisadores do ensino superior brasileiro para o exterior (Ciência sem Fronteiras, 2012). Este intercâmbio de pessoas e instituições colabora para a construção de representações sobre “o Brasil” e sobre os outros países e as instituições “de lá”, comparando-as com as instituições de ensino superior brasileiras.
Um aspecto interessante a ser analisado são os critérios de seleção apresentados pelo programa, seja dos países/instituições, seja dos candidatos. Nesse processo, uma série de discursos é repetida, variando desde a irmandade latino-americana e a cooperação com países menos desenvolvidos até o contato com os centros da civilização ocidental e com os países “emanadores” do saber científico qualificado.
O presente trabalho pretende refletir acerca dos aspectos institucionais dos intercâmbios acadêmicos, considerando, principalmente, o Programa “Ciência sem Fronteiras” como catalisador desse processo no Brasil contemporâneo e os discursos em torno desta política no país.
Assim, através destes discursos – construídos principalmente pelo poder público e/ou veículos de comunicação de massa – será possível apontar questões em torno do referido projeto, localizando e refletindo sobre as posições que as universidades brasileiras e o próprio país ocupam nesta dinâmica.
Mobilidades contemporâneas: fluxos e deslocamento de pessoas, bens e objetos
Inúmeras transformações ocorridas na sociedade contemporânea colocaram e ainda colocam grandes desafios para as ciências sociais. Longe do hermetismo funcionalista, as sociedades cada vez mais se cruzam, os Estados-nações interagem, e os elementos simbólicos e significados culturais cada vez mais se inter-relacionam e são ressignificados. Marcadas pela fragmentação das identidades, por diferentes modos de representar pertencimento, a característica principal das migrações internacionais, em tempos de globalização, “[...] encontra-se mais na sua diversidade e complexidade do que no seu volume” (Ribeiro, 2011, p. 15).
Nestes termos, é preciso um esforço teórico e metodológico de atualizar a teoria social para essa nova realidade. Se, por um lado, faz-se necessário se distanciar da ideia da existência de unidades culturais, herméticas e autoexplicativas, com as quais as ciências sociais iniciaram suas reflexões, por outro, não podemos cair no erro de apostar todas as fichas na noção contrária de que tudo são fluxos. Hannerz (1997) tem razão ao afirmar a urgência de pensarmos novos conceitos para esta nova realidade social, tais como os de fluxo, mobilidade, recombinação e emergência; entretanto, não podemos negar a existência de clivagens, fronteiras e encerramentos, pois a abertura do “mundo moderno” a novos fluxos tem como contrapartida o encerramento a outros, tal como vem ocorrendo nos países europeus (Sarró e Lima, 2006, p. 25). É impossível pensar o mundo contemporâneo sem pensar nas diversas formas de pessoas e grupos vivenciarem lugares, práticas e estilos de vida. Entretanto, tais experiências nunca são descoladas de redes de significado e organização mais amplas. Desta forma, cabe a qualquer pesquisador construir seus objetos e objetivos de pesquisa atentando tanto para os aspectos mais amplos da organização e ordenamento do mundo social quanto para as dinâmicas cotidianas, pautadas pela interação e ressignificação constante dos agentes sociais.
Discutir o fenômeno da globalização se torna uma tarefa interessante para se pensar a antropologia em termos transnacionais. Azevedo (2013) destaca a globalização como um fenômeno que se configura de forma heterogênea em diferentes lugares e situações. Além disso, não é um fenômeno socialmente neutro, pois é permeado por diferentes implicações políticas, econômicas, sociais e discursivas. Nesta perspectiva, é possível compreender os deslocamentos das pessoas não de forma aleatória e não intencionada, mas orientada por representações sociais, carregadas de significados e conflitos, políticos e culturais.
É neste sentido que vale destacar a definição de globalização elaborada por Ribeiro (2011), que envolve tanto o aumento da circulação de coisas, pessoas e informações em escala global quanto o “reembaralhamento” das relações entre lugares. Pessoas, objetos e informações não circulam de forma desconectada, e, se frequentemente viajam juntas, por outro lado, observa-se neste novo contexto uma capacidade inusitada de interconexão, de que estes elementos ampliem sua capacidade de influência e o local passe a ser ordenado a partir de eventos que o ultrapassem. Tal configuração coloca em discussão as representações e redes de significados em outro patamar, pois os grupos sociais, as clivagens e as construções identitárias são pensados em escalas cada vez maiores e mais heterogêneas, porém, em constante processo de homogeneização e diferenciação.
A compreensão do processo recente de intensificação da internacionalização do ensino superior a nível mundial e em particular em nosso país requer o entendimento do fenômeno da globalização em suas diferentes facetas. Como “sistema mundial”, a partir de Immanuel Wallerstein (1990), esta noção permite pensar a divisão do mundo em centro, semiperiferia e periferia. Como “encolhimento do mundo”, a partir de David Harvey (1992), ela revela o aniquilamento do espaço como fenômeno histórico-tecnológico de nossa época, resultado da operação de agentes e tecnologias reconhecíveis que devem ser objetos da reflexão social. Como fruto da composição de panoramas distintos, a globalização, para Arjun Appadurai (1990), envolve a concorrência e simultaneidade das diferentes e complexas paisagens étnicas, da hegemonia do capital financeiro globalizado, da difusão global de tecnologias, da capacidade eletrônica de produzir e divulgar informações e imagens criadas pela mídia e da disseminação de elementos da visão do mundo do Iluminismo, ou seja, a concatenação de ideias, termos e imagens incluindo ‘liberdade’, ‘bem-estar’, ‘direitos’, ‘soberania’, ‘representação’ e o termo-matriz ‘democracia’ Esta nova realidade colocada redimensiona os deslocamentos e mobilidades, sobretudo espaciais, que estão carregados de novos significados e produzem novas práticas e representações. Além disso, ela demonstra a complexidade destes fenômenos, exigindo uma reflexão abrangente com vistas a compreender as novas dinâmicas sociais.
Internacionalização do ensino superior e a geopolítica do conhecimento científico
O diálogo interinstitucional entre universidades para além das fronteiras nacionais não é um fenômeno recente e muito menos homogêneo. No Brasil, no início do século XX, algumas universidades foram constituídas a partir da vinda de pesquisadores estrangeiros para o país, demonstrando já uma tradição, entre as instituições de ensino superior, de interligação através do projeto da produção do conhecimento e de investigação científica. As universidades, como instituições das sociedades ocidentais modernas, têm constituído sua legitimidade ao longo dos últimos séculos através da produção do conhecimento baseando-se na validação e cooperação entre os pares, bem como pela missão de divulgação do conhecimento científico – entendendo a ciência como um discurso, uma chave interpretativa e ordenadora da realidade, que se pretende universal. Contudo, a consolidação de um sistema mundial, interligado pelo imperativo de uma linguagem econômica e tecnológica comum, tem caracterizado esta internacionalização progressiva, com desafios aos Estados-nações e suas instituições de ensino superior. A ênfase na função “ensino” em detrimento da função “pesquisa”, balizada pela concepção da educação como serviço, pode ser destacada como um dos efeitos desta intensificação de contatos e parcerias. Regulamentada pela Organização Mundial de Comércio, a prestação de serviços educativos por estas instituições indica o processo de transnacionalização da educação, promovendo sérios conflitos com o projeto de soberania e o princípio de autodeterminação dos Estados-nações (Morosini, 2006).
De forma geral, podemos considerar essa internacionalização como o processo de ativação de trocas relacionadas à educação para além das fronteiras nacionais, que se efetivam através de diferentes modalidades, tais como a realização de intercâmbios estudantis; financiamento de pesquisas em territórios estrangeiros; projetos de pesquisa internacionais cooperativados; consultoria para universidades estrangeiras; grau de imersão internacional no currículo, entre outros. Se, por um lado, estas iniciativas almejam a integração intercultural e internacional nos objetivos, funções e oferta da educação pós-secundária, por outro, compõem o quadro das relações internacionais de mercado orientadas por princípios capitalistas de privatização do ensino superior (Morosini, 2006).
Nestes termos, há quem aponte que as corporações multinacionais, grandes mídias e grandes universidades são os novos neocolonialistas, que possuem interesses não apenas políticos e ideológicos, mas sobretudo comerciais, colocando em risco a autonomia intelectual e cultural dos menos poderosos. Neste sentido, colaboração acadêmica, troca intelectual e internacionalização são subordinadas ao principal objetivo, o lucro. Desta forma, pode-se perceber que a educação não é mais um tema marginal e muito menos exclusivo de especialistas, uma vez que está envolvida em disputas econômicas a nível global (Morosini, 2006; Souza Júnior, 2010).
Assim, da mobilidade de pessoas – manifestação mais recorrente – à circulação de programas e instalação de instituições fora do país de origem, podemos pensar este processo de internacionalização como ativo ou passivo, envolvendo atores hegemônicos e hegemonizados (Contel e Lima, 2011). Os circuitos acadêmicos – fluxo de estudantes, professores e pesquisadores, intercâmbio de conhecimento e ciência – favorecem os países centrais, que protagonizam uma internacionalização ativa versus a maior parte dos países do globo, a periferia ou semiperiferia do sistema-mundo[2], que ocupam um papel passivo nesse processo de internacionalização.
Neste contexto, a produção de conhecimento científico também se torna um elemento crucial na disputa pelo poder e hegemonia entre os diferentes atores globais. Torna-se fundamental reconhecer a atual “sociedade do conhecimento” a partir da geopolítica mundial, uma vez que se evidencia a importância estratégica do conhecimento produtivo como base para as capacidades industrial, científica e tecnológica dos países. Compreender este fenômeno requer verificar quais são os principais elementos que credenciam certas regiões ou países a se comportarem como centros de acumulação e desenvolvimento de pesquisa científica e tecnológica de ponta, bem como identificar o caráter estratégico dos fluxos globais dos atores envolvidos na produção de conhecimento, como estudantes universitários, pesquisadores, professores e profissionais qualificados, que surgem dessa distribuição desigual de lugares de produção de conhecimento. Pensar a geopolítica do conhecimento é fundamental, pois hoje a relação saber-poder é ainda mais aguçada, haja vista o investimento maciço das grandes corporações transnacionais no desenvolvimento técnico-científico, sobretudo na área tecnológica.
Contel e Lima (2011) identificam como protagonistas na dinâmica da geração de inovações técnicas nos países as empresas, que usam, fornecem e investem em pesquisas, o governo, representado por agências públicas formuladoras e executoras de políticas e as universidades e centros de pesquisa, que participam dos “sistemas nacionais de inovação”. A combinação destes três sistemas de ação para a geração constante de conhecimento produtivo é, em grande parte, o segredo da industrialização dinâmica dos países do centro do sistema-mundo, que, no pós-Segunda Guerra, formaram as três principais áreas de controle da economia mundial: Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão. Sem surpresas, são estes os principais centros de atração dos alunos intercambistas de todo o mundo, evidenciando a estreita relação entre mercado/economia e educação superior.
Assim, pensar em educação superior em épocas de globalização nos obriga a perceber que a internacionalização atual é um fenômeno complexo e plurirreferencial. Como consequências destas transformações, configura-se uma disputa acerca do papel social da universidade: cabe a ela protagonizar as transformações exigidas pela nova economia de mercado ou buscar compreensões mais amplas sobre as transformações sociais? Apesar dos inúmeros avanços gerados pela globalização no campo das ciências, como a descoberta e difusão de vacinas, a criação de instrumentos para maior produção industrial e agrária, entre outros, ela também é responsável pela produção de assimetrias. Enquanto apenas 2% da população mundial tem acesso à internet, cerca de 60% da produção mundial, 80% dos recursos econômicos e 95% das tecnologias e produção científica estão em poder dos países participantes da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – ou seja, aqueles considerados desenvolvidos e/ou com PIB (Produto Interno Bruto) e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) elevados. Trata-se de um dado fundamental para a reflexão sobre produção científica, pois a rede virtual tem se apresentado como espaço central de circulação de informação e conhecimento. Dos 6 bilhões de habitantes do mundo, apenas 150 milhões participam de atividades científicas e tecnológicas, sendo que 90% desses se concentram nos sete países mais industrializados (Sobrinho, 2005).
Para Sobrinho (2005), com a expansão da economia de mercado, a educação superior passou a ter que responder por grande parte das demandas surgidas com essa nova organização social e econômica, abandonando a “utopia social” dos anos 60 e 70, que enfatizava o seu protagonismo no processo de democratização das sociedades e diminuição das desigualdades. Nestes termos, é possível pensar as correlações de força internacionais usando novamente a polaridade hegemonia x não hegemonia. As forças hegemônicas na produção técnica e científica determinam quais tipos e qualidades de conhecimento são importantes, sendo que os saberes que interessam aos mercados centrais é que são definidores de quais conhecimentos são necessários e merecem ser financiados. Assim, as instituições de ensino superior passam a se organizar mais pelo mercado internacional, através de imposições de programas e tipos de pesquisas definidos pelos centros econômicos mundiais. Além disso, tal configuração também afeta a socialização, distribuição e uso da produção de conhecimento. Isso é facilmente observável no Produto Interno Bruto (PIB) das maiores economias da OCDE: quase metade do valor é fruto da produção de conhecimento, o que não ocorre com os outros países (Sobrinho, 2005). Argumento semelhante é apresentado por Tilly (2006), ao afirmar que o conhecimento científico confere vantagens políticas, financeiras e existenciais aos que o detêm. “Em áreas como saúde pública, alimentação, meio ambiente e combate letal, a aplicação do conhecimento decide quem sobrevive e quem pode viver confortavelmente” (Tilly, 2006, p. 57).
Esta assimetria pode ser também observada a partir de alguns dados a respeito da “evasão de cérebros’. Estima-se que cerca de 1 milhão e 200 mil cientistas latino-americanos emigraram para os Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, nas quatro últimas décadas. Calcula-se que a América Latina, que participa somente com cerca de 3,5% da produção da ciência mundial, investiu algo em torno de 30 bilhões de dólares em pesquisadores que migraram para os países ricos (Sobrinho, 2005, p. 170).
Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), enquanto em 1975 havia apenas 600 mil alunos estrangeiros matriculados no ensino superior nesses países, em 2005 já eram 2 milhões e 700 mil alunos estrangeiros, sendo que a taxa de crescimento entre 2000 (com 1 milhão e 900 mil estudantes) e 2005 foi de 42,1%. Ou seja, o intercâmbio se tornou uma prática comum e crescente.
Porém, o fluxo destes alunos não se dá de forma homogênea e multipolar. Há poucos países que concentram grande quantidade de estudantes estrangeiros em suas instituições. A partir da Tabela 1 é possível verificar melhor esta questão.

Table 1. Main foreign student destinations (2006).
Institute for International Education. Atlas of Student Mobility (in Contel e Lima, 2007, p. 182).Estes oito países, juntos, polarizam nada menos que 75% do número de estudantes estrangeiros de todo o mundo, sendo que os quatro primeiros – Estados Unidos e principais países da Europa Ocidental – acumulam mais de 50% dos estudantes estrangeiros de todo o globo. Tal dado nos permite lembrar a correlação pontuada acima entre os principais mercados internacionais e a influência do poder econômico na geopolítica do conhecimento. Além de pontuar quais são os principais países receptores de estudantes estrangeiros, é importante destacar quais são os principais países que exportam estudantes para o “centro global”. A Tabela 2 nos permite visualizar este aspecto.

Table 2. Countries that exported the largest numbers of students to the United States (2005/2006).
Institute for International Education. Atlas of Student Mobility (in Contel e Lima, 2007, p. 183).Vale destacar, a partir da Tabela 2, que retirando o Canadá – que, por questões territoriais, envia grande quantidade de estudantes para o país limítrofe – Alemanha e Japão, todos os outros são países que não ocupam posição central no “sistema-mundo”. A partir desta tabela pode-se destacar também que a internacionalização do ensino superior tem relação direta com projetos de desenvolvimento dos países. Os três países que mais enviam estudantes para os Estados Unidos – Índia, China e Coreia do Sul – são países que adotaram como políticas de Estado seu crescimento econômico e tecnológico com ênfase no investimento em educação – a Coreia do Sul, pelo investimento pesado, na segunda metade do século XX, nas “ciências duras” e engenharias, e a China e a Índia, pelo papel protagonista que estão assumindo recentemente na economia mundial (os estudantes dos três países correspondem a mais de 30% dos estudantes estrangeiros nos Estados Unidos).
Através destes breves dados é possível perceber a organização da ciência mundial fundamentada em dicotomias já cristalizadas que refletem e reforçam relações assimétricas entre países e regiões. Seja por meio da polarização “hegemonia-contra-hegemonia” ou “centro-periferia”, pode-se afirmar que há instituições de ensino superior e de pesquisa centrais no ramo das ciências – que no mundo capitalista contemporâneo têm relação direta com os países que ocupam o centro da economia mundial – enquanto outras, ocupando a periferia deste sistema, buscam incessantemente mecanismos para quebrar as barreiras políticas, econômicas e simbólicas que mantêm e reproduzem essa separação. Cabe agora pensar a posição do Brasil nesta geopolítica mundial do conhecimento científico. Para tal, investigar-se-á o recente Programa “Ciência sem Fronteiras”, criado pelo governo federal para enviar estudantes e pesquisadores brasileiros para o exterior.
O Brasil na geopolítica mundial do conhecimento científico: o Programa “Ciência sem Fronteiras”
O Brasil lançou, em 2011, o Programa “Ciência sem Fronteiras” (CsF), com o objetivo de recuperar o atraso histórico do país em relação à internacionalização do ensino superior, comparado com países “desenvolvidos” ou mesmo com os outros países dos BRICs – sobretudo Índia e China. Tal programa tem como objetivo enviar, até 2015, aproximadamente 101 mil estudantes para o exterior, distribuídos entre a graduação, pós-graduação e pesquisadores. Destes, 75 mil seriam financiados pelo governo federal, e os outros 26 mil financiados por empresas públicas, privadas e instituições bancárias. Focado em áreas consideradas estratégicas pelo governo, como engenharias, tecnologias, biologia, fármacos, produção de energia, saúde, entre outros, o programa – gerenciado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, Ministério da Educação e por instituições nacionais de fomento à pesquisa – objetiva inserir pesquisadores, estudantes e instituições brasileiras na geopolítica mundial do conhecimento científico, bem como atrair cientistas e pesquisadores para as instituições do Brasil.
Dentre as 75 mil bolsas financiadas pelo governo federal, as principais modalidades financiadas serão graduação-sanduíche e doutorado-sanduíche, com 27.100 bolsas e 24.600 bolsas, respectivamente. Entre os países conveniados para receber estudantes brasileiros, destacam-se principalmente as instituições localizadas na Europa Ocidental e na América anglo-saxônica, estando na lista também Coreia do Sul e Japão. Segundo as informações contidas no site institucional do programa, os convênios foram firmados com as “melhores instituições e grupos de pesquisa disponíveis, prioritariamente entre os mais bem conceituados para cada grande área do conhecimento de acordo com os principais rankings internacionais” (Ciência sem Fronteiras, 2012). Caso algum aluno deseje fazer seu intercâmbio em outra instituição fora da lista fornecida pelo programa, é necessário que ele apresente justificativas que indiquem a “excelência” da universidade para a qual pretende ir.
Percebe-se claramente, a partir do discurso oficial produzido pelo governo federal, que tal programa se alinha a um projeto maior de desenvolvimento em curso pelo poder público. Tal programa afirma em seu site institucional “que busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional” (Ciência sem Fronteiras, 2012). Para esta empreitada, o programa não incluiu alunos pertencentes a cursos de ciências humanas e ciências sociais aplicadas, o que gerou uma série de críticas e implicações judiciais contra o mesmo.[3]
Para fins de análise do debate em torno da criação deste programa na sociedade civil foi realizado um levantamento geral de notícias sobre o CsF no período de março de 2012 a janeiro de 2013. Longe de querer analisar todas as notícias veiculadas na grande mídia ou fazer um grande quadro comparativo sobre discursos gerados por diferentes atores, pretende-se aqui fazer um levantamento geral acerca do que circulou, acreditando, com isso, poder refletir a respeito de seus objetivos e desafios, as incongruências entre a concepção do projeto e sua execução.
O Programa CsF, conforme já foi dito, faz parte de um projeto maior, de desenvolvimento e de país, no contexto da crescente expressividade externa do Brasil e do acirramento das disputas econômicas no âmbito internacional. De fato, o projeto de transformação do status do país no comércio internacional – almejando maior autonomia e a posição de produtor de tecnologia – não é recente na história brasileira. Atualmente, entretanto, a escala do projeto de crescimento nacional apresenta como um dos desafios a demanda de mão de obra qualificada. Conforme afirma a própria presidenta, “sem ciência, tecnologia e inovação, nós não seremos essa nação desenvolvida e esse país que sepultou em definitivo a pobreza extrema e a pobreza” (Blog do Planalto, 2012b). Há, entre as intenções de criação do programa, garantir a formação de mão de obra qualificada para os setores industriais e comerciais do país. Esta política, inclusive, foi bem recebida pela iniciativa privada, que reivindica este tipo de mão de obra (Estado de S. Paulo, 2012a).
Opinião semelhante foi compartilhada por atores internacionais. Segundo uma notícia brasileira (O Globo, 2012a), a revista britânica The Economist afirmou que o CsF é a mais ousada tentativa de impulsionar a engrenagem da economia brasileira, apontando que o país vem crescendo a uma taxa ligeiramente inferior à dos demais países da América Latina e bem abaixo dos emergentes Índia, Rússia e China. Segundo o autor da reportagem, apesar do otimismo do governo brasileiro quanto à eficácia desta medida, os esforços vão demorar a surtir efeito. A reportagem, contudo, não deixa de ressaltar a importância do programa, lembrando que, nos anos 1960 e 1970, o governo brasileiro financiou programas de doutorado no exterior em exploração de petróleo, pesquisa agrícola e design de aeronaves, áreas em que o Brasil é líder mundial hoje (O Globo, 2012c).
Tal discurso encontra eco também na fala oficial. Em entrevista ao jornal O Globo, o então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, aponta a centralidade do Estado brasileiro na formação de mestres e doutores, que o fazem em instituições públicas, o que diferencia o Brasil de outros países. Para ele, isto ocorre “porque nós somos um capitalismo tardio, em que as empresas aqui nunca tiveram um verdadeiro espírito inovador, de liderança empresarial em setores estratégicos da economia. Com exceções importantes, como a Embraer e a Petrobras”. Mercadante enfatiza a importância da integração entre produção do conhecimento e processo produtivo, devendo o protagonismo na inovação partir também das empresas: para além da posição do país no ranking da produção científica e de artigos indexados, é preciso valorizar as patentes (O Globo, 2012c). Compartilhando desta opinião, o então ministro de Ciência e Tecnologia, Marco Antonio Raupp, lembra a importância do governo federal assumir os custos destas atividades – de alto risco – de inovação tecnológica juntamente com as empresas, por meio de subvenção econômica, fomento a projetos em parceria universidade-empresa e empréstimos com juros subsidiados (Raupp, 2013).
Assim, num primeiro momento, há um consenso de que o CsF é estratégico para o desenvolvimento do país. Entretanto, há que se pensar os termos deste desenvolvimento. A partir dos depoimentos supracitados, está clara a ideia de desenvolvimento atrelado à demanda do mercado por profissionais mais qualificados que, através de empresas privadas, possibilitem a inovação tecnológica no país, condensando, sobretudo, a disputa por descobertas que gerem patentes e aumentem o poder de influência do país na geopolítica mundial do conhecimento. Neste contexto, há áreas de conhecimento que merecem destaque e investimento, em detrimento de outras. As ciências humanas, longe de poder produzir descobertas que interessem às grandes corporações ou gerar patentes, foram energicamente excluídas do CsF. Tal fato pode ser interpretado a partir de diferentes prismas.
Segundo o discurso oficial, representado novamente pelo então ministro da Educação, Aloízio Mercadante, a exclusão das ciências humanas do programa se deve à consolidação da área nas ciências brasileiras, não sendo necessário tal investimento: entre 2004 e 2011 houve uma forte expansão nas humanidades, sendo que a média de crescimento dos cursos de pós-graduação, nesses sete anos, foi de 62% nas ciências sociais aplicadas: ciências humanas, linguística, letras e artes, em contraponto às ciências agrárias, da saúde e biológicas, cujo crescimento foi de 43%, e às engenharias, ciências exatas e da terra, que tiveram aumento de 42%. Para Mercadante, o Brasil, comparado a outros países, apresenta um desequilíbrio no quadro de profissionais: grande quantidade de profissionais do setor de humanidades e número insuficiente de profissionais das ciências da saúde e áreas tecnológicas, o que justificaria a existência de um programa específico para essas áreas, pois as humanidades “vão muito bem” (O Globo, 2102a).
Representantes de organizações científicas destas áreas, entretanto, possuem um discurso divergente do oficial. Para eles, excluir as ciências humanas do programa significa, por parte do governo, não compreender o papel das ciências humanas no desenvolvimento do país. Para Gustavo Lins Ribeiro, professor universitário e então presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), é preciso “rever a concepção de inovação como um fenômeno exclusivamente restrito ao laboratório. As ciências sociais e humanas e as artes no Brasil têm demonstrado historicamente sua capacidade de contribuir sofisticadamente para tornar esse país um lugar melhor de se viver”. Já Benito Bisso Schmidt, professor universitário e então presidente da Associação Nacional de História (ANPUH), afirma que “o efeito da bolsa não se limita ao período passado no exterior, porque os alunos estabelecem redes de contato que permitem uma circulação do conhecimento, produzido aqui e lá, muito maior” (O Globo, 2012d). Há aqui uma clara divergência na concepção do projeto de desenvolvimento. Enquanto o discurso oficial prioriza setores ditos “estratégicos” para o “desenvolvimento” do país, representantes das ciências humanas afirmam ser impossível pensar qualquer projeto de desenvolvimento para o país deixando de lado o caráter mais reflexivo das ciências, característica mais comum nas ciências humanas.
Tal fato pode ser claramente confirmado pela declaração do ministro da Ciência e Tecnologia, que disse que, “para alcançar seus objetivos de desenvolvimento sustentado e competitividade econômica global, o Brasil não pode abrir mão das contribuições do conhecimento científico e tecnológico. Diante dessa realidade inexorável, estamos preparando o sistema de ciência e tecnologia (C&T) do país, para que responda rapidamente ao desafio” (Raupp, 2013). Assim, a geopolítica internacional, que por muito tempo esteve circunscrita a outras esferas, como a disputa bélica ou por territórios, invadiu vertiginosamente o campo das ciências, obrigando seus atores a responder a estas expectativas.
O programa CsF, além de se configurar a partir destas perspectivas mais amplas, também se confronta com dilemas e desafios internos à realidade brasileira. Uma destas questões é o domínio de línguas estrangeiras pelos estudantes e pesquisadores brasileiros. Frequentemente, na sociedade brasileira, com base na formação complementar paga e/ou na vivência no exterior, garantir tal competência a todos os sujeitos envolvidos no CsF se torna um desafio. Este ponto causou grande polêmica entre diversos grupos em relação ao programa, que viram a exigência do domínio da língua estrangeira como forma de exclusão. Esta proficiência, aliada à pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e à necessidade de se verificar o desempenho acadêmico dos candidatos (Blog do Planalto, 2012a), configuram-se como critérios que, no limite, apontam para a participação massiva de alunos oriundos de famílias de classe média e alta, que puderam investir, em suas trajetórias, na apropriação e domínio de línguas estrangeiras, bem como nos saberes gerais que permitiriam um bom desempenho no ENEM.[4]
Outro problema apontado nas reportagens é a falta de pesquisadores nas áreas prioritárias do programa. A grande maioria dos estudantes destas áreas, assim que terminam a graduação, vão para o mercado de trabalho, sem interesse na atividade de pesquisa. Segundo o coordenador do programa da Capes, “a falta de pesquisadores se alia à alta demanda do setor privado por profissionais ligados às áreas prioritárias do programa. Com a oferta de salários generosos, os candidatos acabam deixando os estudos de lado e optam por não ingressar em cursos de doutorado” (Folha de S. Paulo, 2013c). Desta forma, buscar acordo com o setor privado para financiar 26 mil bolsas foi um caminho encontrado pelo governo federal para tentar sanar tal distância entre o mercado de trabalho e o mundo acadêmico.
Há outros aspectos do programa que vem sendo alvo de debate na imprensa. Em relação aos países/instituições de destino, está presente no discurso oficial a afirmação de que as instituições estrangeiras contempladas pelo programa seriam as “renomadas” internacionalmente. Entretanto, já são inúmeros os questionamentos sobre a “qualidade” das universidades que estão recebendo os estudantes do país. A primeira crítica se refere à grande quantidade de estudantes brasileiros financiados pelo CsF em Portugal. Para muitos, as instituições portuguesas não representam o que há de mais “avançado” no campo da ciência, tampouco contribuem para que os estudantes brasileiros se tornem fluentes em outras línguas. De acordo com dados do CNPq e Capes, “cerca de um em cada cinco estudantes brasileiros de graduação bolsistas do Programa Ciência sem Fronteiras optou por cursar parte do ensino superior em uma instituição de Portugal” (Folha de S. Paulo, 2012c). O total de estudantes e pesquisadores brasileiros das áreas de tecnologia e biomédica em Portugal (2.775) é inferior apenas ao número de estudantes brasileiros nos Estados Unidos (3.898), superando os destinos tradicionais de pesquisadores brasileiros como França (2.478), Espanha (2.261), Canadá (1.408), Alemanha (1.111) e Japão (680) (Folha de S. Paulo, 2012c). Há especialistas que apontam que um dos principais motivos para a escolha de Portugal está na inexistência da barreira linguística, uma vez que o país não exige exame de proficiência dos brasileiros. Entre as instituições portuguesas, a campeã foi a Universidade de Coimbra (709 alunos), que não está entre as 400 melhores no índice THE – Times Higher Education (onde a USP é 158ª) e está na 385ª posição no índice QS World University (Folha de S. Paulo, 2013a). Frente a essas questões – a não excelência das universidades portuguesas e o não aprendizado de uma nova língua naquele país – as instituições portuguesas encontram-se atualmente excluídas do CsF.
Contudo, a dúvida sobre a qualificação das instituições indicadas pelo programa não se resume ao caso português. “Dos cerca de 8.000 graduandos, só 12% foram para universidades que integram uma lista considerada como de excelência pela própria Capes” (Folha de S. Paulo, 2013a). São poucos os alunos brasileiros participantes do CsF que estão nas melhores instituições de ensino superior mundiais. “Entre as instituições bem avaliadas, a que mais recebeu alunos foi a Universidade de Barcelona (93 estudantes), posição 187ª no QS. Há ainda alunos nas líderes dos rankings mundiais, como MIT (4 bolsistas) e Harvard (6)” (Folha de S. Paulo, 2013a). Conforme especialistas opinaram em reportagem, o intercâmbio de estudantes brasileiros não depende apenas dos objetivos definidos pelo governo, uma vez que as universidades mais bem conceituadas não delegam a seleção de seus estudantes a outras instituições (Folha de S. Paulo, 2013b).
Contudo, além da excelência acadêmica, há o componente econômico que interfere em alguns desses acordos. São muitos os países interessados na presença de estudantes brasileiros em suas instituições devido, sobretudo, à conjuntura econômica, em que países centrais se encontram em “crise”, e as possibilidades de investimento que o CsF oferece para estes locais são imensas. Em todas as viagens da presidenta brasileira para estes países, são vários os acordos assinados para legalizar e incentivar a ida de estudantes brasileiros para estas instituições. O Reino Unido, por exemplo, que deve receber 10% do contingente de alunos do programa, “tem se esforçado para atrair o interesse de autoridades e estudantes brasileiros, vendo nos alunos de países emergentes – que pagam mais pelos cursos – uma tábua de salvação para as restrições orçamentárias provocadas pela crise na Europa” (Folha de S. Paulo, 2012a). A França também é outro lugar apontado como muito interessado no programa. Ela já é o segundo país com maior número de bolsistas, mas quer ampliar ainda mais o número de estudantes brasileiros em suas instituições (Estado de S. Paulo, 2012b). Além disso, o CsF também representa, para o governo brasileiro, uma oportunidade de acordos estratégicos e de relações sul-sul. Há, entre os acordos firmados, relações com China e Índia. Para a China, através de uma parceria inédita, devem ser oferecidas mil bolsas (Folha de S. Paulo, 2012b), e também haverá uma ampliação da cooperação entre Brasil e Índia na área de educação e pesquisa, além das parcerias já estabelecidas nas áreas de tecnologia, petróleo, gás e petroquímica. Em notícia veiculada, a presidenta afirmou que, além do esforço em aumentar vinculações com China e Índia, a África do Sul e a Rússia também são alvos para acordos (O Globo, 2012b). Entretanto, não há, por parte do Brasil através do CsF, qualquer disposição em enviar estudantes brasileiros para países que ocupem a margem do sistema-mundo.
Mercado, produção de conhecimento e a crise nas ciências humanas
A ênfase conferida às ciências duras identificada no CsF pressupõe um modelo tradicional de ciência que não deixa de estar atrelado à divisão assimétrica do poder: a teoria é universal, mas os principais impactos positivos das pesquisas permanecem concentrados nos locais de sua produção, ou seja, os países centrais. Logo, há uma disputa geopolítica em jogo, que, apesar de não ser reconhecida no campo da produção científica tecnológica, certamente sensibiliza e move a reflexão e investigação no campo das humanidades. Como norte desta concepção, há um modelo tradicional de desenvolvimento, que adota o (autoevidente) discurso desenvolvimentista elaborado em moldes europeus e norte-americanos.
Nunes (2005), ao analisar o processo de constituição das ciências humanas, afirma que a ciência, quando constituída, quis formular-se como universal. Ao ser inscritas em textos, contudo, as teorias se desincorporam, deslocalizam e desterritorializam, apagando de sua prática a memória de seu contexto de produção, no caso a perspectiva eurocêntrica. Quaisquer ações políticas que envolvam “a ciência” exigem considerar que o mundo pós-Guerra Fria se assentou na capacidade de “modernizar reflexivamente” os meios de coerção e de exercício da violência que permite aos Estados do centro avançar seus interesses estratégicos e concepções de “modernização” a uma escala global, colonizando também a imaginação sociológica. Logo, compreender e atuar na dinâmica do saber-poder na contemporaneidade implica valorizar as contribuições contra-hegemônicas de forma a atenuar essa crescente ofensiva do centro “modernizador”.
A tendência contemporânea de questionamento do caráter científico das ciências humanas, bem como de sua validade, faz parte do processo histórico de desenvolvimento do pensamento científico ocidental. O liberalismo secular arraigado nas instituições escolares nos regimes democráticos acabou por sobrevalorizar a técnica e as ciências “duras”, deixando de lado as reflexões pertinentes às ciências humanas; trata-se de um projeto de crescimento econômico que seduz as nações ditas atrasadas com promessa de acesso aos níveis de bem-estar e consumo das nações ricas.
A “crise das humanidades” (Cordua, 2012; Sala, 2013), que não é recente e muito menos local, tem se evidenciado pela redução do financiamento de pesquisas nesta área nas universidades centrais, suscitando reflexões mais amplas acerca da ciência e de seu papel na sociedade: o dilema entre historicidade e abstração, entre particularidade e universalidade. Essa é uma crise cuja análise requer, antes que somente uma abordagem epistemológica, uma perspectiva ontológico-prática (Tonet, s.d.): do ponto de vista ontológico, a objetividade e a subjetividade se encontram numa relação íntima, em que a realidade objetiva deve ser tratada como subjetividade objetivada, ao passo que a subjetividade é a realidade objetiva em forma subjetiva. Desta forma, antes de querer encontrar o fundamento da crise das ciências humanas nos problemas internos das próprias ciências, há que se considerar que tal crise deve ser buscada na realidade objetiva, produto historicamente contextualizado.
Enquanto, ao longo dos dois últimos séculos, as ciências duras assistem a um processo vertiginoso e cumulativo de desenvolvimento, fundamentado em sua aplicabilidade, as ciências humanas construíram uma trajetória sinuosa para se tornarem aptas à compreensão das transformações sociais neste período. Muitas vezes, os próprios debates internos, como o ocorrido entre o materialismo marxista e o idealismo explicativo, mais as desgastaram do que as qualificaram para o entendimento do mundo (Tonet, s.d.).
Esta crise e incerteza no que se refere ao pensamento científico, antes que específica de um campo do conhecimento, é parte inerente do próprio desenvolvimento de seu contexto produtor, refletindo a dúvida a respeito de sua capacidade de mediação entre os humanos e a realidade. O questionamento de sua viabilidade (e de seus pressupostos de neutralidade e objetividade) se apresenta em diferentes áreas: as ciências humanas se desenvolvem, no século XIX, como contraponto ao projeto de civilização defendida pelo iluminismo; o simbolismo e o impressionismo colocam em xeque a noção realista e romântica de arte; nas ciências “duras”, a física atômica inaugura a crise do paradigma newtoniano; as descobertas de Freud se confrontam com o racionalismo psicológico de Wundt; e, por fim, o racionalismo filosófico se desestrutura frente ao niilismo de Nietzsche e sua crítica à moral kantiana (Pereira, 1986).
Entretanto, por mais que tal ampliação da concepção de ciência tenha se tornado possível a partir de novas reflexões durante todo o século XX, as soluções “úteis” prevaleceram. O importante, neste caso, é não nos esquecermos de que a “razão prática”, nos termos de Sahlins (2003), é antes de tudo uma razão simbólica, não escapando, portanto, à esfera da significação. Nossa autopercepção ocidental e moderna como seres racionais em processo de maximização de interesses materiais nos diz mais sobre os valores que perseguimos do que sobre nossa superior e inerente capacidade de intervenção no mundo. O capitalismo, como ordem cultural, realiza-se no plano material, e seu “protagonista”, este homem abstrato, objetivo e racional, é fruto de seu tempo e espaço,
Não se trata de negar o progresso econômico, tampouco uma boa educação científica e técnica, mas de buscar um equilíbrio, na própria dinâmica do processo histórico: na medida em que os extremos se colocam, urge sua correção; na medida em que se instauram processos econômicos radicais, urge o desenvolvimento de mecanismos que nos protejam. A exclusão das ciências humanas do palco de nossas decisões coletivas implica sobretudo o enfraquecimento de nossa capacidade de convivência – entre humanos e entre humanos e não humanos –, bem como de construção de uma cultura capaz de pensar e buscar soluções para problemas mundiais.
Não há, portanto, como “resolver a crise” das ciências humanas sem refletir sobre a ciência como um todo. Adotar argumentos defensivos, já tradicionais, só confirma uma cisão da ciência em dois mundos incomunicáveis, ou duas culturas, nos termos de Snow (1983). Superar a oposição entre o útil/aplicável e o significado/sentido pode permitir uma visão mais unificada de ciência (e também de nossa condição humana), tornando possível redimensionar a relevância social da universidade a partir de novo ângulo. Intuição, experiência pessoal e interpretação são tão legítimas para a construção do conhecimento quanto raciocínio, experiência empírica e análise.
Vale destacar, contudo, que as próprias ciências humanas devem encarar esta crise, não somente como uma exclusão que interessa aos poderes, mas também no sentido de aproveitar estes sinais de isolamento para superar sua tendência à fragmentação interna, que resulta em sua frágil capacidade de atender às necessidades/aspirações coletivas (Sala, 2013).
Desta forma, antes de avaliar o CsF enquanto programa bom ou ruim para o país, cabe destacar tais nuances que a análise desta política proporciona, bem como refletir sobre o modelo de desenvolvimento construído para o país. Neste sentido, a irrelevância das ciências humanas se insere num contexto mais amplo, mundial, do predomínio da técnica e do descompasso, presente em nossa sociedade, entre uma cultura objetiva em pleno vigor e uma cultura subjetiva em declínio, como Simmel (1971) já apontava no princípio do século XX.
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Notas
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