Resumo: O enfrentamento do trabalho infantil entrou na agenda estatal brasileira na década de 1990, ancorado no discurso dos direitos humanos da infância. Ocorre que tal enfrentamento, através das políticas públicas de combate ao trabalho infantil, encontra resistências em sociedades camponesas, em que crianças são socializadas através do trabalho. Nessa perspectiva, o presente artigo tem como objetivo analisar como se delineiam os encontros e desencontros, na arena das legitimidades, entre cultura camponesa e políticas de erradicação do trabalho infantil. Esta importante análise é parte do trabalho de pesquisa de tese de doutorado em Políticas Públicas, em curso. A metodologia utilizada baseou-se na análise sistemática de fontes bibliográficas e documentais, objetivando apontar para dilemas, tensões e trilhas, no plano conceitual, sobre esta relação. O trabalho infantil deve ser combatido, sobretudo no universo do campesinato, em que crianças e adolescentes estão expostas a riscos peculiares da agricultura, ainda que de subsistência. No entanto, é necessário que as políticas públicas de erradicação do trabalho infantil dialoguem com as particularidades socioculturais deste universo, para que elas possam ser construídas de forma a ter legitimidade e eficácia.
Palavras-chave:políticas públicaspolíticas públicas,cultura camponesacultura camponesa,trabalho infantiltrabalho infantil.
Abstract: Tackling child labor entered the Brazilian state agenda in the 1990s, anchored in the human rights of childhood speech. It happens that such a confrontation, through public policies to combat child labor, finds resistance in peasant societies, in which children are socialized through work. In this perspective, this article aims to analyze how to delineate the similarities and differences, in the arena of legitimacies between peasant and political culture of eradicating child labor. This important analysis is part of the doctoral thesis research work in Public Policy in progress. The methodology used was based on the systematic analysis of bibliographical and documentary sources, aiming point to dilemmas, tensions and trails, at the conceptual level, about this relationship. Child labor must be tackled, especially the peasantry of the universe, in which children and adolescents are exposed to particular risks of agriculture, although subsistence. However, it is necessary that public policies to eradicate child labor dialogue with the socio-cultural particularities of this universe, so that they can be constructed to have legitimacy and effectiveness.
Keywords: public policies, peasant culture, child labor.
Trabalho infantil e cultura camponesa: interpelações às políticas públicas[1]
Child labor and peasant culture: Questioning public policies

Recepção: 27 Fevereiro 2015
Aprovação: 29 Abril 2016
No Brasil, de acordo com a PNAD (Brasil, 2012), 3,5 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos de idade continuam sujeitas ao trabalho infantil. Mesmo assim, a estimativa mostra uma diminuição de 5,41% em relação a 2011, ou 156 mil crianças a menos nestas condições. Segundo a pesquisa, essa população é composta por algo em torno de 81 mil crianças na faixa etária entre 5 e 9 anos de idade; 473 mil entre 10 e 13 anos; e cerca de 3 milhões entre os 14 e 17 anos. Em todas as faixas de idade, crianças/adolescentes do sexo masculino são maioria. Do total de 3,5 milhões, cerca de 63% dos casos de trabalho infantil ocorrem no campo, a maioria, em estados da Região Nordeste.
Por trabalho infantil compreende-se, constitucionalmente, no Brasil, o executado por pessoas na faixa etária abaixo das idades previstas em lei, ou seja, 14 anos em qualquer emprego ou ocupação; 16 anos fora de processo de qualificação profissional (aprendizagem); 18 anos para trabalhos insalubres, perigosos, penosos e prejudiciais ao desenvolvimento físico, psíquico, social e moral. Assim define o artigo 7°, inc. XXXIII da Constituição Federal de 1988. A persistência deste tipo de trabalho desafia governos mundo afora.
No Brasil, tal enfrentamento, teve início em 1992, quando o Estado brasileiro assinou o Programa Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC, na sigla em inglês) criado pela OIT. Dois anos depois, foi criado o Fórum pela Erradicação do Trabalho Infantil, e com ele, surgiu o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Em 2006, o Programa Bolsa Família abarcou o PETI. Paralelamente, em 1999 foi criada a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, formada pelo setor empresarial, com o desafio declarado de tirar todas as crianças de situação de trabalho infantil.
Na perspectiva governamental de combate/erradicação do trabalho infantil, como uma problemática de ordem mais geral, situa-se o trabalho infantil na agricultura, em suas múltiplas dimensões, sem que, no entanto, os dados estatísticos se detenham sobre particularidades neste campo. De fato, por um lado, há crianças trabalhando fora do ambiente familiar, muitas vezes, em situações análogas à de trabalho escravo; em troca de moradia para poder estudar; sem remuneração; ou remuneradas através do pagamento em diárias, em geral, em valores inferiores à remuneração de pessoas adultas. Por outro, há crianças que, no âmbito da própria família camponesa, são socializadas com base em uma “ordem moral” (Woortmann, 1990, p. 13) na qual a iniciação nos trabalhos “da roça” ocorre em tenra idade, como parte fundamental – nesta ordem moral – do processo de tornar-se homem ou mulher camponês/a. Nesta perspectiva, não é incomum que pais e mães entendam que, assim, garantem-se a vida, a alimentação, a educação, parte da profissionalização, cultura, dignidade, respeito e convivência familiar e comunitária.
Como as políticas públicas de proteção à infância e adolescência e de erradicação do trabalho infantil, sobretudo, o Programa Bolsa Família, lidam com ambas as situações? Há mudanças culturais substantivas, no interior da agricultura camponesa, sob a ação destas políticas? A legitimidade da política junto a estas populações tem sido avaliada? Buscando refletir sobre tais questões, no âmbito de pesquisa em curso[4], focalizamos, neste artigo, com base em trabalhos que tratam dos temas políticas públicas e avaliação de políticas públicas, campesinato e trabalho infantil, a problemática da relação entre políticas públicas de combate/erradicação do trabalho infantil e valores do que Woortmann (1990) denomina campesinidade.
Se se toma por base a história da infância (Ariès, 1973), o trabalho infantil, tal como problematizado, hoje, é tema recente, com origem no século XX. Aliás, o próprio conceito de infância como forma de subjetivação própria, na perspectiva das culturas infantis, é uma construção do século XX (Sirota, 1998).
A história do trabalho infantil, no Ocidente, é parte da história da infância. Em linhas gerais, o trabalho infantil, antes da Revolução Industrial, fazia-se presente com crianças trabalhando, desde pequenas, com pais e mães no campo, em tarefas que iam de semear a terra a aprender a fabricar calçados e vestimentas, em condições ambientais muitas vezes inclementes. Este padrão de trabalho implicava o convívio interfamiliar. Com a primeira Revolução Industrial, na Inglaterra, e com o cercamento dos campos (Polanyi, 2000), parte da população deslocou-se para as cidades, para o trabalho fabril, que passou a contar com a exploração do trabalho infantil fora da convivência interfamiliar, demarcado pela ordem da fábrica e pelas transformações nas relações de trabalho[5]. Crianças, a partir dos 6 anos de idade, eram destinadas ao trabalho fabril, em jornadas equivalentes a 14 horas/dia e com ganhos correspondentes à quinta parte do de uma pessoa adulta. Isso acontecia sobretudo – mas não só – com as abandonadas em orfanatos. As condições de trabalho eram precárias e expunham as crianças a acidentes fatais e a diversas doenças[6].
No Brasil (Freitas, 2003), no que tange a trabalho infantil, no período colonial[7], viviam-se situações semelhantes à do campesinato europeu pré-Revolução Industrial, entre os chamados “pobres livres do campo” (Palácios, 2009, p. 148), além das realidades de povos escravizados e de nações indígenas diversas. Na história da infância no país, sobressai o fenômeno de crianças abandonadas, com a duração por cerca de um século e meio de instituições como a “roda de expostos” (Freitas, 2003, p. 53) e como a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), no século XX. Estas são indicações da forma que tomou a configuração institucional, no que tange ao papel do Estado, para lidar, historicamente, com a infância e adolescência em situações de liminaridade – sem dúvida, com educação pelo e para o trabalho[8].
Esta breve retrospectiva visa a destacar, na atualidade, novas concepções de infância e de trabalho infantil. Assim, como referido, a criança tende a ser vista como um ser em processo próprio de subjetivação e o trabalho infantil como algo que não deve fazer parte da vida deste ser. Assim é considerada toda forma de trabalho exercido por crianças e adolescentes, abaixo da idade mínima legal permitida para o trabalho, conforme a legislação de cada país. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) define o trabalho infantil da seguinte maneira:
[...] toda a forma de trabalho abaixo dos 12 anos de idade, em quaisquer atividades econômicas; qualquer trabalho entre 12 e 14 anos que não seja trabalho leve; todo o tipo de trabalho abaixo dos 18 anos enquadrado pela OIT nas “piores formas de trabalho infantil” (UNICEF, 1990, p. 15).
Harmonizando os comandos da norma internacional ratificada e de outras normas brasileiras, mas levando em consideração restrições maiores da legislação pátria, é infantil e juridicamente proibido o trabalho executado abaixo das idades previstas em lei, ou seja, 14 anos em qualquer emprego ou ocupação; 16 anos fora de processo de qualificação profissional (aprendizagem); 18 anos para trabalhos insalubres, perigosos, penosos e prejudiciais ao desenvolvimento físico, psíquico, social e moral.
No plano político, há ações concretas implementadas pelo Estado, organizações internacionais, ONGs, etc. fundamentadas no aparato legal de proibição do trabalho de crianças e no alicerce simbólico e valorativo construído por instituições internacionais (OIT, ONU, etc.). Avaliações de programas e projetos públicos ou privados vêm indicando redução significativa das piores formas de trabalho infantil. Contudo, análises de teor qualitativo indicam, também, uma tendência de estabilização nos índices dos resultados alcançados, sobretudo no Brasil. No enfrentamento às práticas de trabalho infantil, no campo das políticas públicas e programas sociais do governo federal, destaca-se o referido PETI, abarcado pelo Programa Bolsa Família[9] em 2005.
O PETI teve início, em 1996, como ação do governo federal, com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), para combater o trabalho de crianças em carvoarias da região de Três Lagoas (MS). Sua cobertura foi, em seguida, ampliada para os estados de Pernambuco, Bahia, Sergipe e Rondônia, num esforço do Estado brasileiro para implantar políticas públicas voltadas ao enfrentamento do trabalho infantil e ao atendimento das demandas da sociedade articuladas pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), criado em 1994. A partir de então, o PETI foi progressivamente alcançando todos os estados do país.
Em 2005, ocorreu a integração – e redesenho – do PETI com o Programa Bolsa Família. O objetivo declarado do redesenho foi o de promover modificações visando a racionalizar e aprimorar a gestão de ambos os programas, com ênfase na intersetorialidade e no potencial das ações, evitando a fragmentação e a superposição de esforços e de recursos. Segundo Brasil (2011) integração possibilitou a ampliação da faixa etária para crianças e adolescentes com até 16 anos, a ampliação do foco de atendimento para todas as formas de trabalho infantil registrados no CadÚnico, a extensão da oferta do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) para todas as crianças e adolescentes de famílias inseridas no PBF com marcação de trabalho infantil e o acompanhamento dessas famílias pelo PAIF/CRAS.
Em 2011, o PETI foi introduzido na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), conforme o disposto no Art. 24-C da Lei 12.435, de 06 de julho de 2011, e passou a integrar o SUAS, sendo reconhecido como estratégia de âmbito nacional que articula um conjunto de ações intersetoriais, visando ao enfrentamento e à erradicação do trabalho infantil no país. Tal estratégia seria desenvolvida de forma articulada pelos entes federados e com a participação da sociedade civil, sendo impressa nova dimensão ao programa: protagonizar as articulações com os demais serviços e ações de proteção social, bem como com as demais políticas públicas afeitas ao tema, a sociedade civil e órgãos de controle social.
A partir de 2013, considerando os avanços normativos e na implementação do SUAS, foi iniciada a discussão do redesenho do PETI, que teve sua pactuação final em abril de 2014, com o objetivo de contribuir para a aceleração das ações de prevenção e de erradicação do trabalho infantil em consonância com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (Reedição 2011-2015) (Brasil, 2011), acompanhado pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), sendo esta composta de forma quadripartite: governo, sociedade civil, trabalhadores e empregadores.
O redesenho do PETI, segundo o governo federal, consiste na realização de ações estratégicas voltadas ao enfrentamento das novas incidências de atividades identificadas no Censo IBGE 2010 e no fortalecimento do Programa em compasso com os avanços da cobertura e da qualificação da rede de proteção social do SUAS. Nesta perspectiva, ele se destina a potencializar os serviços socioassistenciais existentes, bem como a articular ações com outras políticas públicas, em uma agenda intersetorial de erradicação do trabalho infantil (Brasil, 2011).
Cabe lembrar que a implementação do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil é uma tarefa de vários órgãos do governo federal, da sociedade civil, do setor empresarial e de trabalhadores organizados. O objetivo declarado é atingir o cumprimento das metas estabelecidas nas Convenções nº 138 e nº 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinadas pelo Brasil.
Como alicerce do PNETI, o Programa Bolsa Família define sua atuação em termos de um nível máximo de renda familiar – R$ 154,00[10] por pessoa – e da condicionalidade à obrigação de as famílias manterem as crianças na escola. Dentre seus objetivos destacam-se reduzir desigualdades e retirar crianças e adolescentes do trabalho perigoso, penoso, insalubre e degradante, a fim de possibilitar-lhes acesso, permanência e bom desempenho escolar. Destina-se a famílias que vivem em condição de extrema pobreza[11].
O processo de difusão social em torno do trabalho infantil no Brasil envolveu uma aliança de atores sociais, movimentos articulados em redes mundiais, justificando-se e ancorando-se no discurso dos direitos humanos. Esta demanda é vocalizada como prioridade na agenda estatal. No sistema de proteção integral, busca-se o máximo de validade e eficácia das normas referentes a crianças e adolescentes, que, por sua vez, foram inspiradas nas normas internacionais de direitos humanos e fundamentais (Rossato e Lépore, 2011). Por direitos humanos e fundamentais entendem-se as normas jurídicas intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado democrático de direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico (Marmelstain, 2009).
Do exposto, vale considerar que, nos planos jurídico e político, com vistas ao combate ao trabalho infantil, busca-se a assegurar que ações visando à eliminação das piores formas de trabalho infantil toquem nos efeitos perversos do mercado de trabalho, sobretudo, nos diversos elos que integram as cadeias produtivas vinculadas a determinados setores do agronegócio, com níveis inaceitáveis de exploração do trabalho, baixos salários, controle e dependência de trabalhadores/as em relação a patrões, subjugação de membros de famílias agricultoras e incorporação de crianças precocemente ao trabalho.
Nesta direção, se a solução do problema da exploração do trabalho infantil deve situar necessidades e demandas das crianças em primeiro plano, o conjunto de medidas não se deve restringir às crianças. Estas integram grupos domésticos (assalariados rurais ou agricultores familiares) prejudicados e afetados pelos mecanismos de mercado, por condições precárias de trabalho, renda e salário, pela migração de jovens, pelo abandono institucional, isolamento social e precariedade de acesso às políticas públicas (Straposolas, 2012).
Medidas contra o trabalho infantil nas proporções em que se encontra – quase sem controle e espalhado no mundo inteiro – são sanções internacionais e boicotes; todavia podem ser perigosas e resultar em mais miséria para as crianças se não houver um cuidado criterioso em sua aplicação [...], ou seja, a promulgação e aplicação de uma legislação que reprima a exploração de crianças em trabalhos perigosos, oferecendo-lhes, ao mesmo tempo, atividades de substituição viáveis e procurando, em caráter prioritário, zelar por sua saúde, segurança, bem-estar e possibilidade de frequentar a escola (Ferreira, 2001, p. 50).
A ausência de uma perspectiva socioantropológica na compreensão deste modo de vida vem a salientar o choque entre duas “legitimidades”: uma de ordem cultural e simbólica e outra da ordem da gestão pública das questões sociais, com consequências importantes para a legitimidade das políticas públicas para a erradicação do trabalho infantil neste universo.
Em que pese a dificuldade de se conceituar campesinato, dados os múltiplos enfoques, nas diversas áreas das ciências sociais, no que tange à diversidade empírica, pode-se dizer que se trata de populações rurais cujo modo de vida está ancorado no tripé: família-terra-trabalho (Wanderley, 2009), com um ethos (Woortmann, 1990) que lhes dá fundamento como “ordem moral” (p. 13). Em sociedades camponesas (Sahnin, 2008; Wolf, 1976; Mendras, 1978), a estrutura das chamadas famílias extensas (Almeida, 1986) sempre foi compatível com a necessidade de mão de obra em uma economia de aprovisionamento. Nesse tipo de família, é comum contar-se com a convivência de até quatro gerações (Levin, 1997; Tucker, 1991).
Nestas sociedades, o trabalho infantil é sempre “naturalmente” visto como parte do processo de socialização primária (Moraes, 2000; Moraes e Martins, 2011), em cujo âmbito se fazem investimentos na reprodução das novas gerações, corroborando o que diz Wanderley (2009) no sentido de que as relações no interior da família camponesa são pautadas pelo horizonte das gerações, em projetos para o futuro. Nesta direção, um eixo central na associação camponesa entre família, produção e trabalho pode ser visto na expectativa de que o investimento tanto em recursos materiais quanto de trabalho despendido, pela geração atual, na unidade produtiva seja transmitido à geração seguinte, garantindo-lhe condições de sobrevivência. Assim, diz a autora, não é incomum que, para fazer frente ao presente e ao futuro, camponeses/as ancorem-se em saberes tradicionais como algo transmissível a filhos/as, justificando decisões referentes à alocação de recursos, especialmente do trabalho familiar e do consumo da família. Em muitos grupos camponeses, diz a autora, a cultura reporta-se, em grande medida, a uma tradição cujos lastros podem ser encontrados nas relações de parentesco, de herança, das formas de vida local.
Lembra Woortmann (1995) que relações de parentesco são fundamentais à compreensão teórico-empírica do campesinato, sendo família um grupo de pessoas tanto ligadas por descendência a partir de um ancestral comum quanto por matrimônio ou adoção. Assim, parentesco é tanto biológico quanto ritual.
Na ordem moral demarcada pela campesinidade, a iniciação de crianças nos chamados “trabalhos leves” (Moraes, 2003, p. 34) na roça, no extrativismo, no quintal[12], ocorre em tenra idade, a partir dos 5 anos de vida. É comum que crianças realizem atividades tais como ajudar a alimentar animais, sobretudo a “miunça”. Um pouco maiores, por volta dos 7 anos, ajudam a levar refeições para pai/irmãos maiores, no trabalho da roça, a depender da distância; ajudam em afazeres domésticos; a regar hortas no quintal; a acompanhar mulheres em coletas de coco babaçu, de pequis, etc.; enfim, atividades diversas, definidas como “ajuda”, termo aplicado também ao trabalho feminino, como lembra Moraes (2003, p. 35).
Uma questão pertinente a estudos sobre campesinato e trabalho infantil diz respeito à problematização de quanto/quando este trabalho extrapola a legalidade, caracterizando-se, nos marcos do sentido político-jurídico atual, principalmente pelos danos causados à vida e saúde de crianças e adolescentes. Sobretudo, pela necessidade de entendimento e de diálogo – ante o princípio de universalização das políticas públicas – com particularidades socioculturais, as quais devem ser consideradas na elaboração/implementação de políticas.
A propósito, Neves (1999) observa que a tecnicidade da lei não é capaz de apreender o trabalho infantil como produto das relações sociais. Daí generalizar como trabalho infantil toda espécie de atividade infantil remunerada ou não, independentemente do contexto sociocultural em que se insere a criança. Entendemos, ainda, que a lei e as políticas públicas não dão conta de contradições expressas em narrativas governamentais que condenam certos tipos de trabalho infantil, mas aceitam passivamente outros, como o artístico, comum, por exemplo, nas propagandas, em emissoras de televisão, na indústria da moda, etc. Além do mais, são discursos e práticas que primam pela erradicação do trabalho infantil em sociedades que, ao mesmo tempo, toleram a exploração sem medida de trabalhadores/as adultos/as.
Nesta direção, Straposolas (2012) aponta para a inadiável tarefa de sociologização do conceito de trabalho infantil, no enfrentamento dos desafios, na superação das dicotomias e na compreensão de significados e singularidades deste fenômeno. Isto se torna tão mais importante frente a diversas atribuições de sentidos ao trabalho infantil, em contextos urbanos e rurais – este último, aqui focalizado, considerando práticas e relações sociais em que se inscreve o trabalho das crianças nos processos produtivos, particularmente na família camponesa. Tal problematização é incipiente entre nós, embora no debate mundial, segundo este autor, o trabalho infantil apareça, por um lado, como uma das formas mais perversas da exploração na sociedade capitalista e, por outro, como legítimo, na resistência à exclusão de camadas populares mais desprotegidas. Segmento expressivo de crianças trabalha, e urge distinguir as formas de trabalho legítimas (aprendizagem escolar, certas formas de ajuda familiar, algumas atividades econômicas protegidas e reguladas) de outras inaceitáveis, restritivas de direitos e associadas à exploração.
Argumenta Straposolas (2012) que o tema exige diferenciar atividades da agricultura familiar das do trabalho assalariado, considerando que, como crianças rurais não formam um grupo social homogêneo nem vivem realidades e contextos sociais, econômicos e culturais semelhantes, o trabalho infantil também possui variações, diferentes manifestações, condicionantes e razões de existência. Como referido, no Brasil, sua presença é observada tanto no agronegócio exportador de alimentos e matérias-primas, com formas mais agudas de exploração do trabalho das crianças, quanto em regiões de agricultura familiar. Além do mais, modificações recentes nos sistemas produtivos agrícolas e pecuários – pela modernização dos processos produtivos dos sistemas agroindustriais e inserção das empresas produtoras e exportadoras de alimentos e matérias-primas – acentuam as exigências (dos mercados globalizados) de aumento na escala da produtividade e na qualidade das mercadorias produzidas em série: avicultura, suinocultura, fumicultura, fruticultura, dentre outras. A renovação de regras e exigências dessas empresas e a adoção de novas tecnologias, maquinários e equipamentos por agricultores/as que se lhes devem adequar trazem uma sobrecarga às pessoas que permanecem nas unidades produtivas, inclusive às mais novas, em um contexto de redução da mão de obra familiar (redução da taxa de natalidade somada à migração de filho/as, sobretudo a partir dos 15 anos de idade).
A significativa redução numérica de crianças rurais (em comparação com outros grupos etários), nas sociedades contemporâneas, diz este autor, torna particularmente sensível sua presença/ausência nos equilíbrios demográficos, nas relações de afeto, na sociabilidade comunitária, na aprendizagem, na sucessão patrimonial, na divisão social do trabalho agrícola familiar e até na própria formação de rendimentos familiares. O fenômeno não se esgota em razões econômicas, implicando dimensões socioculturais. Uma maioria de crianças do sexo masculino trabalha na agricultura, em atividades tidas como “perigosas” e “pesadas”. Uma maioria de meninas encontra-se às voltas com o trabalho doméstico. Mas não se pode concluir que meninos/adolescentes trabalhem mais que meninas/adolescentes cujos ritmos de trabalho são mais regulares ao longo da semana e do ano, com horários extensos e preenchidos nas rotinas da casa e da família. De fato, meninos/rapazes, no domínio agrícola, vivem mais a sazonalidade: índices elevados nos picos da atividade agrícola versus horários e conteúdos laborais mais suavizados que os das meninas/moças. Gozam de mais tempo para o lazer, maior flexibilidade e autonomia para participar das atividades no espaço público que as meninas (Straposolas, 2012) e até para experimentar migrações sazonais.
Martins (1993), na abordagem da lógica de inserção das crianças no trabalho agrícola familiar, valoriza as representações e a voz das crianças pesquisadas; explicita a precariedade vivida por crianças de origem rural na sua (não)infância; explicita problemas estruturais da realidade social afetada por políticas macroeconômicas nacionais e internacionais geradoras de liminaridade social, empobrecimento e condições desiguais de desenvolvimento intrarregionais; pensa crianças como portas de entrada para analisar o contexto em que vivem e como portadoras da crítica social na atualidade. Focaliza o cotidiano das crianças pesquisadas em três momentos: (i) tempo dedicado ao trabalho; (ii) período da escola; (iii) brincadeiras. Com isto, refere a fragmentação da sociabilidade na infância dessas crianças.
Por seu turno, Neves (1999) reflete sobre condições sociais da exploração do trabalho infantil e sobre alternativas de prevenção, focando a ausência de instituições que ofereçam apoio a pais e mães na tarefa de socialização de filhos/as. Esta debilidade do tecido institucional facilita a dependência do trabalho e a aceitação de condições adversas nas quais o trabalho aparece como recurso de enquadramento moral de pobres e empregadores, como agentes mais próximos a viabilizar a sobrevivência, crédito e apoio diante do inesperado. A inserção laborativa precoce exprime, assim, a divisão familiar do trabalho e o sistema de valores morais que organiza a interdependência dos membros da família, os quais, desde cedo, assumem responsabilidades na constituição dos bens fundamentais ao consumo. A ética expressa na aceitação do sacrifício é constitutiva do ordenamento moral subjacente a orientações comportamentais, referido por Woortmann (1990).
Moraes (2003), ao focalizar o trabalho feminino nos cerrados piauienses, conclui que oposições entre os termos ajuda (mulheres e crianças)/trabalho (homens), pesado (homens)/leve (mulheres e crianças) relacionam-se às inscrições de gênero e de geração. Assim, à divisão sexual e geracional do trabalho agrícola familiar subjazem conotações ideológicas muitas vezes obliteradas pela ideologia do trabalho familiar. Como lembra Straposolas (2012), a polissemia da categoria trabalho é construída socialmente e (re)produzida historicamente. No ethos camponês, funciona como referencial repassado intergeracionalmente no interior do grupo doméstico, juntamente com um saber agrário, agronômico, telúrico, prático. Crianças aprendem a conviver desde cedo com atividades produtivas, associando, no cotidiano, sua participação e aprendizado à divisão social do trabalho, às relações de sociabilidade, às manifestações lúdicas e à vida escolar. Estimuladas pela ética do trabalho como valor, crianças e adolescentes aprendem desde muito cedo um conjunto diferenciado – por gênero e geração – de papéis sociais, regras, hierarquias, poderes na divisão social do trabalho familiar, implicados na reprodução do patrimônio fundiário[13].
Nesse tipo peculiar de organização social, as próprias crianças, muitas vezes, propõem-se a participar de alguma atividade, sendo acolhidas em situações de aprendizagem in loco. Assim, mesmo que somente para uma atenta observação, a criança toma parte da situação, e seu grau de participação vai depender em grande parte da sua direta solicitação. Por outro lado, o saber que flui de uma geração a outra não é tão espontâneo nem tão impessoalmente dissolvido em outras práticas sociais como parece. A ausência de escolas e momentos especialmente dedicados a ensinar e aprender não corresponde à não existência de cuidados e atenções especialmente dirigidos à efetivação da aprendizagem, em uma infinidade de tramas de relações entre parentes, entre “mais velho/as” e “mais moço/as”, entre companheiros/as de trabalho, na prática ritual. Em uma simples atividade produtiva que oportuniza a crianças/adolescentes aprendizagem por “imitação”, há regras, princípios e iniciativas dirigidos a que a situação de trabalho seja intencional e sistematicamente pedagógica. Assim, o convívio continuado com as crianças requer habilidades e pressupõe que não se interrompam as atividades, mas que se possa levar em conta a presença das crianças, potenciais aprendizes. Habilidades de convívio são aprendidas, desenvolvidas e/ou desaprendidas (Straposolas, 2012).
Se a ausência de crianças no ambiente do trabalho não é regra entre famílias camponesas, a frequência e a intensidade de sua participação oscilam a depender de condições econômicas e produtivas, assim como da disponibilidade de terra e de mão de obra. Sob a influência de normas culturais relativas às condutas do grupo doméstico, os membros deste grupo são estimulados, na prática, a internalizar a importância do envolvimento no trabalho agrícola familiar. Crianças, então, assumem tarefas desde pequenas, treinadas para executar atividades que podem – se mal realizadas – comprometer o patrimônio da propriedade, bem como expô-las a riscos e incertezas. Nesta economia peculiar, os mesmos agentes que planejam são os que decidem e executam, com a transmissão do conhecimento e das atribuições sendo feita, para as crianças, no âmbito do trabalho (Straposolas, 2012).
A noção de trabalho infantil precisa ensejar uma reflexividade socioantropológica como base de ações consequentes tendo-se em conta sua complexidade e ambiguidade. Trabalho infantil como atividade ilegal, praticada clandestinamente e socialmente condenável, é uma conceituação, muitas vezes, posta em questão por uma opinião pública orientada para a aceitação da atividade laboral de crianças. O princípio é o da socialização nos valores educativos do trabalho contra a ociosidade[14]. Assim, tem-se, por um lado, a visão aproblemática do trabalho infantil como mal social e, por outro, a visão conservadora do trabalho das crianças como estratégia educativa. Em ambas, predomina uma concepção não sociológica do fenômeno. A sociologização do conceito – isto é, a análise da atividade econômica e social das crianças no quadro das relações sociais em que ela ocorre e na relação entre a estrutura e a ação social – constitui-se como tarefa indispensável e urgente (Neves, 1999). Eis um dilema que interpela diretamente as políticas públicas de erradicação do trabalho infantil.
Crianças não formam um grupo social homogêneo nem vivem realidades e contextos sociais, econômicos e culturais semelhantes. O trabalho infantil também possui variações, diferentes manifestações, condicionantes e razões de existência. No que tange à inserção de crianças no trabalho agrícola familiar nos marcos do que se poderia referir como lógica camponesa, este trabalho emprega mão de obra predominantemente familiar nos processos produtivos. Sem dúvida, em que pese a organização de base familiar, não se pode ignorar a diversidade e heterogeneidade das categorias sociais com projetos de vida e visões de mundo diferentes, no interior do grupo familiar, entre hierarquias, desigualdades e conflitos de gênero e geração. São peculiaridades que influenciam e condicionam os processos de socialização, as representações, os valores e a trajetória social de crianças rurais. Assim, a idealização da unidade familiar – que, em si, inclui trabalho agrícola e doméstico – como um trabalhador coletivo, com todos/as colaborando para o conjunto do empreendimento, pode obliterar inscrições e conflitos de gênero e de geração (Straposolas, 2012).
No entanto, não se pode desconsiderar a própria ideologia da unidade da família, no âmbito do grupo familiar e, até mesmo, de grupos domésticos[15]. Com base nisto, convém considerar que, no âmbito de sociedades orientadas pelos princípios da campesinidade[16], particularidades socioculturais muitas vezes vão de encontro às diretrizes de políticas públicas genéricas de erradicação do trabalho infantil, pondo em xeque a sua legitimidade e eficácia. E, como argumenta Rothstein (1998), a legitimidade é uma das bases do sucesso de uma política pública.
No processo de socialização, no universo camponês, com a família cultivando a terra em uma economia de aprovisionamento[17], as pessoas trabalham no âmbito da família nuclear ou ampliada, em um “modo de vida” (Moraes, 2000, p. 248) diferente do padrão laboral do universo urbano-industrial. E mesmo considerando que o estudo de filhos/as é parte das estratégias de reprodução camponesa, na atualidade, políticas de transferência de renda podem nem sempre ter legitimidade e eficácia junto a estas populações, mormente quando a condicionalidade incide sobre formas culturalmente estabelecidas de socialização plasmadas tanto pelo ethos quanto pelo que Bourdieu (2013, p. 86) denomina “senso prático”, no interior de um habitus (Bourdieu, 2013), pelo qual as famílias levam em conta: ciclo biológico familiar, relação entre braços disponíveis para o trabalho e bocas para serem alimentadas, etc. Assim, torna-se necessário compreender valores da campesinidade subjacentes às práticas de reprodução cultural e à socialização primária da criança.
Isto não equivale a dizer que o trabalho infantil, mesmo nas condições tradicionais de uma agricultura camponesa baseada em ecótipos do tipo paleotécnico (Wolf, 1976) com baixo uso de insumos modernos, “agricultura de toco” ou “swidden” (Wolf, 1976, p. 39; Moraes, 2000, p. 166), não possa trazer perigo e risco a crianças. Estas são fisicamente vulneráveis, suscetíveis a várias lesões, prejuízos, ferimentos e doenças relacionadas ao trabalho.
Mas isto equivale a considerar, sem cair nas armadilhas do relativismo grosseiro, a necessidade de incluir nos debates sobre trabalho infantil, no âmbito da sociedade, o tema das identidades culturais, como direitos humanos, com extensão aos direitos culturais[18]. Como lembra Stuart Hall, cultura é o meio partilhado, necessário, o sangue vital ou a atmosfera partilhada mínima, no interior da qual os membros da sociedade podem respirar, sobreviver e se reproduzir. Ocorre que a maioria das nações modernas consiste em culturas separadas, só unificadas por um longo processo de conquista violenta. As nações são compostas por diferentes classes sociais, grupos étnicos, geracionais e de gênero. Daí que, em que pese a natureza generalista das políticas públicas, sua elaboração/implementação requer, em vez de pensar culturas nacionais como unificadas, pensá-las como constituindo um dispositivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Isto porque a identidade é relacional, ou seja, ela depende, para existir, de algo fora dela, a saber, outras identidades. Assim, identidades são marcadas pela diferença.
Nesta direção, analisar o sistema de representação implica considerar a cultura e seu significado. E só podemos compreender os significados, neste sistema, se conhecermos quais posições de sujeitos eles produzem e como os sujeitos se posicionam em seu interior. Isto aponta para o conceito de circuito da cultura, que teoriza que o foco se desloca dos sistemas de representação para as identidades produzidas por aqueles sistemas (Woodward, 2014). Nesse sentido, a representação inclui práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando os sujeitos. E é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos (Woodward, 2014).
No contexto de envolvimento laboral infantil, em uma pós-modernidade que guarda traços dos inícios da Revolução Industrial, a proteção à infância põe-se como tarefa da sociedade. Nesta direção, é fundamental que as políticas públicas tenham legitimidade, um dos pilares da sua eficácia. Por sua vez, o processo de construção desta legitimidade requer a compreensão de subculturas, modos de vida, no diálogo e na construção da participação na esfera pública (Habermas, 1984).
Partimos do princípio teórico de cultura nacional como composta de subculturas diversas que dialogam/tensionam no interior da sociedade envolvente. Em decorrência, em casos como o aqui focalizado, observa-se esta relação de diálogo e de tensão, no caso, no que se refere às políticas de erradicação do trabalho infantil. Estas correm o risco de perderem legitimidade – pelo menos em parte – tornando-se pouco eficazes, se não se observarem e contemplarem certas peculiaridades socioculturais das populações referidas, com as quais devem dialogar para construir legitimidade. Sem dúvida, políticas públicas não são particularistas, nem se trata de propor que o sejam. O importante é que contemplem mecanismos de eliminação/redução das tensões referidas. Um desses mecanismos encontra-se no próprio programa Bolsa Família, quando este estabelece um sistema de recompensa financeira, o que guarda certo tom de medida emergencial, sobretudo, quando o governo federal prevê a total erradicação do trabalho infantil até o ano 2018.