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O artista popular e o contrato: lógicas divergentes nas produções musicais
The popular artist and the contract: Divergent logics in musical productions
Ciências Sociais Unisinos, vol. 52, núm. 2, pp. 253-262, 2016
Universidade do Vale do Rio dos Sinos


Recepção: 25 Novembro 2015

Aprovação: 02 Maio 2016

Resumo: As formas de produzir, distribuir e consumir música gravada foram rapidamente alteradas desde o final do último século. Muitos trabalhos de pesquisa, em diferentes áreas das Ciências Humanas, dedicaram-se a explicá-las e interpretá-las. Este artigo toma como objeto empírico um contrato de trabalho, de “Cessão onerosa de interpretações fixadas”, estabelecido entre um artista da música popular brasileira, João do Vale, e uma grande gravadora de discos, a CBS, nos anos de 1980. Mostro como este documento jurídico, forma institucionalizada de vínculos sociais específicos, revela estratégias de reprodução de um modelo hegemônico de negócios no período, e de que modo as disposições dos agentes envolvidos neste processo se ajustaram a esta ordem vigente. Parto da hipótese de que a conclusão deste contrato de venda evidencia a marca e o domínio do campo fonográfico, de sua organização e funcionamento, tanto para a gravadora quanto para o artista.

Palavras-chave: artista popular, mercado fonográfico, gravadoras majors, contrato de trabalho, carreiras artísticas.

Abstract: The means of producing, distributing and consuming recorded music have been quickly changing since the end of the 20th century. Many investigations in different areas of the Human Sciences aimed at explaining and interpreting these means. The present article takes as its empirical object a work contract of “onerous assignment of fixed interpretation” made between a Brazilian musical artist, João do Vale, and a big record label, CBS, in the 1980s. It shows how this juridical document, which is an institutional form of specific social bonds, reveals the strategy of a hegemonic business model of distribution in that period and how the dispositions of the agents involved in that process adjusted perfectly to that order. The text builds on the hypothesis that the conclusion of this sales contract shows the mark and domination of the phonographic field, of its organization and its functioning, considering bot the label and the artist.

Keywords: popular artist, phonographic market, major labels, work contract, artistic careers.

Introdução

As formas de produzir, distribuir e consumir música gravada foram rapidamente alteradas, desde o final do último século. Muitos trabalhos de pesquisa, em diferentes áreas das Ciências Humanas, dedicaram-se a explicá-las e interpretá-las. Este artigo toma como objeto de análise um contrato de trabalho, de “Cessão onerosa de interpretações fixadas”, estabelecido no ano de 1981, entre um artista da música popular brasileira, João do Vale, e uma major, a Discos CBS Indústria e Comércio Ltda. Meu objetivo é mostrar como este documento jurídico pode revelar estratégias de reprodução de um modelo hegemônico de negócios no período, e de que modo as disposições dos agentes envolvidos neste processo, o artista e a companhia de discos, ajustaram-se a esta ordem vigente. Se, como mostra Simmel (1983), os vínculos sociais, para se manterem, institucionalizam-se, cristalizam-se em monumentos, objetos, práticas e processos os mais distintos, um contrato de trabalho pode precisar aquilo que tomo como hipótese, isto é, a eficácia da organização e o domínio sobre a produção, circulação e consumo das obras no mercado fonográfico, agindo tanto sobre o comprador quanto sobre o vendedor envolvidos nesta relação de troca, evidenciam-se na conclusão deste contrato de venda, apontando para interesses convergentes empenhados na manutenção e reprodução das crenças que alimentam o funcionamento deste campo da produção artística.

Dos agentes interessados nesta relação contratual temos, de um lado, o compositor e intérprete João do Vale, à época com 48 anos de idade, que se consagrou artisticamente em fins de 1964, quando se apresentou no Show Opinião ao lado dos companheiros e amigos Nara Leão e Zé Ketti. A singularidade de sua produção musical distinguia-se por suas qualidades internas, isto é, pela beleza e força de suas letras e músicas, e externas, pois João, sertanejo e maranhense de origem, negro e muito pouco alfabetizado, correspondia à imagem que marcava as práticas e representações de um tipo especial de artista popular (Barreto, 2012). Neste período, viajava pelo Brasil fazendo shows para plateias variadas e acompanhado por artistas também com formações distintas. As caravanas do Projeto Pixinguinha 1979 (Tavares e Lemos, s.d.), organizadas pela Fundação Nacional de Artes – Funarte, com apresentações musicais em diferentes capitais brasileiras, por exemplo, eram um dos eventos que contavam com sua participação, consolidando sua reputação como capital, atribuindo-lhe certa distinção no campo da música popular brasileira. Se, como repara Benhamou (2002, p. 87; 2004), a notoriedade como recurso de rentabilidade se desenvolve a partir dos investimentos que lhes são dedicados, os projetos e trabalhos de João, naqueles anos, o consagraram como um “autêntico artista popular”. Em fins de 1980, ele acompanharia outro grupo de artistas numa viagem a Angola, pelo conhecido Projeto Calunga, para divulgação da música popular brasileira a convite do então presidente revolucionário Agostinho Neto (Jakobskind, 1981). Clarividente, ele mesmo já notara a importância do culto às suas origens para este processo de reconhecimento e legitimação de sua produção, ao afirmar recorrentemente em suas entrevistas:

Lembro que no Lago das Onças tinha algumas pretas velhas que falavam embolado. Todo mundo dizia que era coisa da roça. Mas não. Acabei descobrindo em Angola ouvindo o povo falar. Era uma mistura do português com a linguagem própria das pretas velhas (Sic) (Jakobskind, 1981, p. 61).

Estas são as características que, grosso modo, definem o artista que assinará o contrato de trabalho em discussão. Como disse há pouco, as transformações ocorridas na estrutura de sua personalidade, em razão destas realizações profissionais, não extinguem o peso dos estigmas carregados, mesmo inserido em novas redes de relações sociais. Do outro lado desta relação contratual temos uma major da música, uma grande gravadora de discos do período, parte de uma das mais antigas companhias de comunicação dos Estados Unidos, a Columbia Broadcasting System – CBS Incorporated. No Brasil, a gravadora CBS Discos atuava desde os anos de 1960, com um cast considerável de artistas da música popular, até ser adquirida pela Sony Music Entertainment no final dos anos de 1980 (Barreto, 2009).

O produto do trabalho endossado por este contrato foi o LP João do Vale Convida[2], lançado em 1981, com 14 faixas produzidas por Fernando Faro, Raimundo Fagner e Chico Buarque e com direção musical do maestro José Briamonte, reunidos numa mesma gravadora, por um desejo de João, manifestado algumas poucas vezes, mas que ganhara força durante sua viagem a Angola. O contrato recrudescia sua notoriedade e singularidade, características importantes no mercado artístico, sobretudo para a atribuição de valor às obras, além de restituir-lhe o sentimento e a delimitação de seu status de artista, já que quase sempre João se definia como criador, livre e sempre inspirado, adquirindo um prestígio pelo oposto a este status, isto é, pelo desinteresse para com os padrões impostos por aquela condição e os processos de racionalização que a acompanham. Sua importância social fundava-se ainda sobre uma “graça carismática” (Francastel, 1956) que se traduzia pela gratuidade de seus gestos e a singularidade da obra única que realizava. Aí poderia ter residido seu brilho e sua tragédia, na disjunção entre racionalidades desiguais.

As dimensões materiais e simbólicas de um contrato de trabalho estabelecido por uma major da música

Na análise sociológica dos fenômenos econômicos, Bourdieu procura romper com os pressupostos teóricos sobre os quais repousa a ortodoxia econômica, destacando a gênese social das disposições econômicas, caracterizando o mercado como um campo de lutas onde se enfrentam agentes econômicos dotados de recursos diferentes, cujos interesses, ainda que construídos socialmente, devem ser enfatizados. O mercado, uma construção social, é o lugar de encontro entre demanda e oferta movidas por interesses que não são a-históricos. O fato econômico é examinado, neste quadro analítico, a partir da ideia de Marcel Mauss de “fato social total”, afinal, como mostra em “O campo econômico”, o mundo social está presente em cada uma das ações econômicas (Bourdieu, 2005; Raud, 2007).

Neste ambiente, a forma dos contratos é representativa de uma dimensão da prática econômica, expressa condições de produção e reprodução dos agentes e das instituições de produção e reprodução econômicas, culturais e sociais. É, por isso, um artefato histórico, dotado de uma dimensão cultural e simbólica, tese que ratifica a ideia de Durkheim em Da divisão do trabalho social, ou seja, a de que “os contratos têm sempre cláusulas não contratuais”, que não expressam só interesses utilitários. Para Bourdieu, assim como para a tradição sociológica durkheimiana e weberiana, as trocas nunca são completamente reduzidas à sua dimensão econômica (Bourdieu, 2005, p. 22).

É justamente a partir do conhecimento dos recursos e disposições de ambos os agentes envolvidos nesta troca específica, entre major e artista, que demonstro como se produziram e reproduziram as instituições, os agentes e as condições de práticas hegemônicas, por parte da força dos interesses econômicos, jurídicos, sociais e culturais dos primeiros frente à fragilidade dos interesses do segundo. Nesta esfera da produção cultural, os fatores econômicos dividem sua importância com fatores simbólicos, cujos significados não necessariamente passavam pela maximização dos lucros materiais. Gravar um disco por uma grande companhia significava prestígio, reconhecimento econsagração, êxitos que não implicavam diretamente lucratividade financeira individual. O próprio João, mesmo relativizando seu desejo de gravar como intérprete, expressa-se sobre o novo disco, destacando aspectos apartados do mundo dos negócios:

Esse disco tem tanta gente. Tem tanta gente que quase nem tô. Esse disco é pela CBS, produzido pelo Chico e o Fernando Faro. Eu gosto mais do disco pelo carinho com que tá sendo feito, todo mundo se mobilizou para fazer este disco. Eu já estou acostumado a ficar na minha, ficar como compositor, tava tudo bem, mas o camarada Chico e o Faro se interessaram de fazer este disco comigo e convidaram os artistas que se protificaram a participar (Paz, 1981, p. 22-23).

Ainda que esteja integrado a ela, o artista pensa sua obra distante da lógica econômica e da racionalidade burocrática que caracterizam os trabalhos na major. Ignorará os conflitos entre interesses, demonstrará indiferença às condições de existência de um mercado, alentando a representação que ele e seus pares comumente fazem de si mesmos e os outros fazem deles: a da figura típica-ideal, estereotipada na imagem do “artista-criador”. Acontece que, para além destas significações, a imagem do artista como demiurgo também se acomoda ao cálculo, às estratégias das instituições encarregadas de fazerem circular suas obras (Béra e Lamy, 2008).

Elemento privilegiado nesta racionalidade, o “Contrato de Cessão Onerosa de Interpretações Fixadas” é apenas um dos modelos de contratos que se estabelecem entre produtores e artistas quando da realização de um trabalho de gravação de discos. Regularmente, para um disco, existem diferentes tipos de contratos, aplicados aos diversos profissionais envolvidos no projeto. Neste que examino, cuja vigência prevê um período de dois anos, automaticamente prorrogados por mais um ano, a contar de maio de 1981, “João Batista Vale, com pseudônimo artístico de ‘João do Vale’”, é designado como “ARTISTA”, e a DISCOS CBS INDÚSTRIA e COMÉRCIO LTDA, como “PRODUTOR”. As referências aos profissionais responsáveis pela produção e direção do disco não são mencionadas; eles trabalham para a companhia, assim como o artista e seus convidados estão, como todos os envolvidos neste processo, dispondo de seus trabalhos para a companhia.

De início, duas dimensões deste tipo de negócio se articulam, embora o contrato em si faça ver explicitamente apenas uma, a econômica/comercial. A outra, a artística, com a qual trabalham o artista, produtores, diretores e demais técnicos não funciona a partir da mesma lógica da primeira, ainda que possa combinar-se a ela.

Já na cláusula I, o contrato define que

O “ARTISTA” obriga-se a interpretar para “Gravações”, seguindo as instruções artísticas e técnicas do “PRODUTOR”, as seleções musicais, literárias ou outras criações artísticas que lhe forem indicadas pelo “PRODUTOR”. Para os efeitos deste contrato, entender-se-á por “Gravar” a ação de um artista de interpretar, em forma vocal e/ou instrumental, os gêneros artísticos mencionados precedentemente nesta cláusula e a ação de um produtor de fixar em “Fonogramas” os sons da interpretação do “ARTISTA”. Por “Gravação” entender-se-á a fixação dos sons da interpretação do “ARTISTA” em qualquer suporte material que permita a sua reprodução em discos, fitas, filamentos, cartuchos, cassettes, arames ou qualquer outro meio conhecido ou a ser inventado no futuro, que se possa usar para a sua comercialização junto ao público, incluindo aqueles que consistam na transmissão da imagem do “ARTISTA”, ou seja, a reprodução audiovisual, destinados preferentemente à sua utilização por usuários individuais. Estas reproduções serão denominadas, doravante, como “Produtos Resultantes” (Discos CBS, 1981, p. 1, grifo meu).

A CBS Discos garante para si o domínio sobre as gravações e sobre seus produtos, nos tempos presente e futuro. A oferta e a demanda construída neste período permitia o estabelecimento do negócio nestes termos. O artista concede ao produtor toda a “exclusividade” de suas interpretações gravadas, sendo esta “motivo determinante” para a realização do contrato, proibindo-o de outras gravações, dentro e fora do país, durante os anos de vigência do contrato. Inclusive, sobre o artista, recairá o ônus relativo a prejuízos resultantes de “impontualidades e negligência” quanto ao não cumprimento do calendário de horários estabelecidos pelo “plano de gravação” em estúdio, “segundo exclusiva conveniência” do produtor. Na execução deste cronograma, “O ‘ARTISTA’ repetirá suas interpretações, tantas vezes quantas sejam necessárias, até que o ‘“PRODUTOR’, a seu exclusivo critério, considere satisfatória e comercialmente viável a gravação” (Discos CBS, 1981, p. 2).

É possível reconhecer que os agentes envolvidos neste processo de produção não estão livres das pressões estruturais. Suas práticas estão imersas numa ordem social específica, onde as crenças econômicas e as crenças culturais e/ou simbólicas justificam a criação de um mesmo produto, sob argumentos muito diversos, formados pela combinação de diferentes recursos e interesses da parte dos profissionais implicados neste trabalho. Por um lado, artistas e técnicos trabalham com elementos, sentidos e concepções que pertencem à esfera artística, “dados sensíveis” muitas vezes, tais como: qualidade, reconhecimento social e consagração dos compositores, intérpretes, músicos e produtores envolvidos no projeto e qualidade social do público consumidor do produto, o que exige esforços estéticos e técnicos que vão desde o primor pela qualidade do material gravado até a concepção final da capa do LP[3]. Por outro, em oposição a estes elementos geradores de “créditos propriamente simbólicos”, temos os “créditos econômicos” (Bourdieu, 2010)[4], muito claros no contrato, especificados nas cláusulas que tratam dos direitos sobre os fonogramas, as exibições das gravações, as formas de remuneração presentes e futuras, os modos de divulgação do trabalho, etc.

A respeito deste ponto da “garantia dos créditos econômicos”, em especial sobre os pagamentos que serão destinados ao artista, o contrato estabelece primeiro o que a major está adquirindo, o que lhe será de direito dali em diante do seguinte modo:

O “PRODUTOR” adquire: (a) A propriedade e livre disposição, inclusive depois do término ou recisão deste contrato, dos “Fonogramas” produzidos durante a vigência deste contrato, bem como de seus suportes materiais, podendo, para todos os fins e por todos os meios, produzir e ceder a qualquer título os referidos “Fonogramas”, divulgar e vender os “Produtos Resultantes”, sem limitação de quantidade, assim como autorizar terceiros para fazê-lo, tanto no Brasil como em qualquer país do mundo, sob qualquer marca, assegurando ao “ARTISTA” o recebimento da retribuição na forma convencionada neste contrato; (b) O direito exclusivo de fabricação, reprodução e venda dos “Produtos Resultantes”, sem limitação de quantidade, para todos os meios, tanto no Brasil como em todos os países do mundo, podendo, além disso, autorizar e/ou proibir a referida fabricação e/ou reprodução no país ou no exterior, sob qualquer marca; (c) O direito exclusivo de autorizar e/ou proibir no Brasil e em todos os países do mundo, as transmissões através de emissoras de rádio, televisão, ou audições públicas, em qualquer forma, dos “Fonogramas” e/ou “Produtos Resultantes”, assim como a utilização e/ou reprodução em películas sonoras ou por qualquer outro meio; (d) O direito exclusivo de fixar e modificar os preços de venda dos “Produtos Resultantes”; (e) Em geral, todos os direitos que tenha o “ARTISTA” em qualquer país do mundo, ou que venha a lhe ser reconhecido no futuro, sobre os “Fonogramas” a que se refere este contrato, pelo que fica expressamente estipulado que são de propriedade única e exclusiva do “PRODUTOR” [...]. [...] Ao “PRODUTOR” é assegurado igualmente o direito exclusivo (que poderá transferir para outrém a seu exclusivo critério) de reproduzir, imprimir, publicar e divulgar, em qualquer meio de comunicação que julgar adequado, bem como em etiquetas, impressos, cartazes, camisetas e materiais similares, os nomes, retratos, pseudônimos e demais dados do “ARTISTA”, em conjunto ou separadamente daqueles referentes às pessoas direta ou indiretamente envolvidas no processo de gravação [...]. [...] Concede-se, portanto, ao “PRODUTOR” o direito de utilizar o material biográfico do “ARTISTA” e qualquer outro material a ele concernente para os propósitos de comércio e/ou propaganda do “PRODUTOR”, sendo vedado ao “ARTISTA” ceder a outrem, a qualquer título, os direitos ora garantidos ao “PRODUTOR” durante a vigência do presente contrato (Discos CBS, 1981, p. 3).

Depois, arbitra sobre os direitos de remuneração (Quadro 1), a partir das especificações dos produtos concebidos, tanto o principal quanto os derivados. Esses pagamentos se destinam ao artista, quase sempre realizados trimestralmente ou na forma de adiantamentos.

Quadro 1
Direitos de remuneração.

Chart 1. Profit rights.

Discos CBS (1981, p. 4-6). Sobre os percentuais pagos ao artista, descontam-se previamente todos os impostos que “incidam ou venham a incidir sobre o preço de vendas” (tais como: Impostos sobre Produtos Industrializados – IPI e Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICM). Detalhados no Contrato do seguinte modo: (i) Discos com capa simples: 10% do total do preço médio de venda; (ii) Discos com capas duplas e/ou acessórios: 15%; (iii) Fitas magnéticas de qualquer tipo (videodisco, videocassete, videorecord, magnetoscope, videoscope, magazines, cassetes e fitas reproduzidas): 25%. Estão incluídos ainda nestes descontos taxas e impostos relativas à conversão de moedas, quando das transações comerciais fora do Brasil, além de uma taxa fixa de 15% das somas líquidas recebidas em moeda estrangeira, fora do país, referente à “Gestão de cobrança e compensação por despesas de administração e transferência”, função desempenhada pela major, para estes casos específicos (Discos CBS, 1981, p. 5).

Este segmento primordial da produção das obras culturais não pode ser compreendido fora do conjunto das relações objetivas que se estabelecem entre todos os envolvidos neste processo. Os interesses que convergem para a manutenção e reprodução das crenças que sustentam o funcionamento deste campo da produção artística, tornando possível a “criação” e sua circulação, invariavelmente passam pela objetividade de um contrato jurídico, marcado, no período, pelo monopólio instituído pela major sobre o direito de comercializar música gravada em discos e seus produtos derivados e conexos.

“Se um contrato tem sempre cláusulas não contratuais”, se é um artefato histórico, dotado de dimensões econômicas/materiais, mas também cultural e simbólica, o contrato em análise é revelador de um modelo de negócios que funcionou até os anos de 1990 do último século. São evidentes a hegemonia da major e as sinergias que se estabelecem entre seus diferentes tipos de negócios, entre as diversas filiais, joint-ventures, selos e demais pequenas gravadoras pertencentes a ela, multiplicadas pelo mundo. É inegável que a força econômica também contribui para o incremento da força simbólica daquilo que produzem. No entanto, como afirma Bourdieu (2005; Raud, 2007), opondo-se ao modelo econômico da igualdade dos atores que estabelecem trocas mercantis, os agentes não são iguais e intercambiáveis, eles são dotados de diferentes formas e quantidades de poder; isso tornaria impossível a realização do disco sem os artistas, demais músicos e técnicos enredados neste processo. Isto é, não havia como prescindir de seus capitais, disposições, recursos e interesses para a feitura do LP. Pelo menos não para um disco como este, gravado com os mais consagrados intérpretes, compositores, músicos e produtores da música popular brasileira. Profissionais nos quais já havia se formado, ao longo de suas trajetórias e itinerários socioprofissionais, o “senso do jogo”. Isso faz ver que, no processo de estabelecimento de um contrato social, “não se faz somente um cálculo de custo e benefício, trata-se de um ato amplamente simbólico que faz intervir outros valores além da pura maximização de uma utilidade econômica” (Bourdieu, 2005, p. 28).

Não foram incomuns, quando este disco estava sendo produzido e durante seu lançamento, comentários a respeito do que ele representava naquele momento para a carreira artística de João, que, como mencionei anteriormente, dividia-se entre shows realizados pelo país e apresentações em uma casa de forró, criada em fins dos anos 1970, no Rio de Janeiro, onde era a grande atração fixa, o “Forró Forrado”. Publicou-se que o disco tinha como objetivo “tirá-lo do ostracismo”, “reavivar a curta memória dos produtores fonográficos” em relação ao talento do artista, “lembrar que ele era um dos mais importantes criadores populares da nossa música” (Dias, 1983). Se esta era a real intenção, penso que é um fato de menor relevância, frente à vontade de João em gravar um novo disco e algum desejo, acalentado por muitos anos, de firmar-se como compositor e intérprete de suas próprias músicas. Sem dúvidas, este trabalho lhe restituiria o estatuto de artista da música popular brasileira, não sem antes submeter suas obras à materialidade, à economia, ao desejo exterior do cliente; sua “vocação/virtuosidade artística” e a beleza de suas composições acomodaram-se às necessidades e custos materiais da produção dos discos, deixando pouco lugar para as ideias – de inspiração teológica, a partir das quais os artistas regularmente se autodefinem, afetando as práticas, mediações, interpretações e críticas no âmbito da produção das obras culturais – do artista-criador e sua obra “pura” (Heinich, 1991).

O sucesso do disco rendeu-lhe ainda um programa especial para a Televisão Globo, “Sexta Super”, gravado em 1982 e dirigido por Augusto César Vanucci. Por estas vias, consolidava-se sua reputação como importante compositor e intérprete da música popular, restando ao artista e à major empenharem-se contra a fugacidade de sua duração. Afinal, como mostra Benhamou,

a variedade das formas contratuais e dos modos de remuneração nos setores culturais têm as mesmas características de seus produtos: diversidade, singularidade, incerteza, prazos imprevisíveis e, por vezes, muito longos entre a emergência de produtos novos e seu reconhecimento (Benhamou, 2002, p. 157).

Para o artista, os “créditos simbólicos”, ainda que convertidos em créditos “econômicos”, não deram conta de alterar de modo significativo a vida material de João do Vale. Se apostas simbólicas aí existiram, elas foram bem-sucedidas; se apostas materiais também existiram, talvez o tenham sido em menor grau, ainda que por dois anos João estivesse contratado pela major. Do lado da CBS, cabia ao contrato dirimir a efemeridade do sucesso inicial e as impermanências características da comercialização de objetos artístiscos, mantendo o artista

[...] obrigado, durante a vigência deste contrato, a mencionar em sua publicidade, através de qualquer meio de divulgação, inclusive emissoras de rádio e televisão, a sua condição de artista exclusivo do “PRODUTOR” [...]. [...] O “ARTISTA” se obriga a prestar toda a colaboração ao “PRODUTOR” sem nenhum ônus adicional para este último, para promoção de seus - “fonogramas”, prestando-se a qualquer promoção publicitária que o “PRODUTOR” a ele requerer, seja individualmente, seja em forma conjunta - com outros artistas. Entendem-se por promoções publicitárias, entre outras, o “ARTISTA” comparecer para reportagens, em qualquer meio de divulgação, programas de rádio e televisão, casa de músicas, e, até 6 (seis) atuações em televisão por ano, também sem remuneração alguma, devendo interpretar em cada atuação, um mínimo de (2) duas obras. Por outro lado, o “ARTISTA” obriga-se a não participar de qualquer tipo de apresentação, pública ou não, “shows”, tournés, festivais, festas e outros similares, no país e no exterior, que sejam patrocinados, direta ou indiretamente, por outras empresas gravadoras ou qualquer outra empresa que apresente conflito de interesses para com o “PRODUTOR”, a não ser que haja prévia e escrita autorização do “PRODUTOR”. Caso o “ARTISTA” não cumpra o ora estipulado, deverá responder pelas perdas e danos que acusar ao “PRODUTOR”, sendo que mesmo no caso de ação judicial movida pelo “PRODUTOR”, esta não eximirá o “ARTISTA” ao fiel e cabal cumprimento de todo o disposto no presente instrumento (Discos CBS, 1981, p. 7).

A música de João destinava-se a uma ampla variedade de ouvintes. Seu sucesso devia-se ainda à concepção de artista popular a que ele correspondia; sua obra era produto de uma aprendizagem artesanal e não acadêmica, técnica, culta. Seu “dom” para compor, “forma propriamente artística da vocação”, como afere Nathalie Heinich (2005), identificava-se a uma disposição inata, constitutiva de sua personalidade, em oposição à técnica, ao saber apreendido ou intercambiável. São marcas ainda muito próximas do paradigma do artista romântico do século XIX. O contrato em si lhe parecia menor, sobressaindo o registro sonoro de suas composições por pessoas pelas quais alimentava admiração e amizade; por músicos, profissionais e gravadora portadores de legitimidades incontestáveis. Nas ocasiões em que foi ouvido, ele mesmo não hesitava em revelar suas impressões e valorações sobre o trabalho:

“Tudo foi feito com muito carinho por essas pessoas e pela CBS, que não mediu gastos (a produção custou Cr$ 5 milhões)” – diz João – “Foi o melhor presente que eu poderia ganhar. Imagine que teve gente que se chateou comigo, porque não pôde participar do disco. E olhe que ninguém ganhou cachê!” [...] “As pessoas gravaram porque são amigas, e não por causa de suas origens [nordestinas em sua maioria]”.[5]

“Eu sempre tive muita sorte. Quer dizer, como compositor eu sempre tive sorte, né? Porque as pessoas gravam minhas músicas, cantam aí e tal, e eu não fiquei muito sem fazer show, não. É claro que o disco deu um empurrão e melhorou muito, mas eu tava fazendo os meus showzinhos, isso eu tava mesmo” (Dias, 1983).

O “senso do jogo” para João do Vale produziu- se e foi reproduzido numa lógica distinta daquela que caracterizava os demais envolvidos no projeto; o seu ponto de vista e sua visão de mundo se formaram num espaço social distinto daquele do campo fonográfico especializado. Suas práticas profissionais se assentaram em valores pessoais como amizade, lealdade, gratidão ou mesmo reciprocidade. Ao mesmo tempo, suas expectativas nas interações e avaliações sobre os outros eram orientadas por comportamentos que correspondessem às mesmas regras. A ordem normativa do contrato não correspondia às condutas pessoais de João, que, certamente, destoavam das convicções interpessoais dos outros profissionais envolvidos na feitura desta obra. A intervenção de valores e interesses nas suas formas mais variadas deixa ver como, tanto para a major como para o artista, o desejo de concretizar o contrato possuiu razões divergentes, cujo consenso se encontrava apenas na forma jurídica universalmente válida de realizá-lo. Daí por que, como partes destes processos, Bourdieu prefere falar de agentes “razoáveis” e não “racionais”, aqueles que “podem ter condutas razoáveis sem serem racionais; podem ter condutas às quais podemos dar razão, como dizem os clássicos, a partir da hipótese da racionalidade, sem que estas condutas tenham tido a razão como princípio” (Bourdieu, 2007, p. 138). Em outras palavras, agem de acordo com o “senso do jogo”, adquirido ao longo de suas trajetórias sociais.

Na finalização do contrato, estão estabelecidas as regulamentações a respeito do que ocorreria com o não cumprimento, pelo artista, daquilo que havia sido acordado até então. Em termos gerais, caso isto acontecesse, ele perderia, automaticamente, o direito de receber os pagamentos que pudessem lhe corresponder e estaria obrigado a devolver todo o montante do que lhe havia sido adiantado, se fosse o caso. O contrato poderia ser rescindido ainda caso o artista se recusasse a realizar suas interpretações para as gravações a que estivesse obrigado, deixasse de comparecer a duas gravações consecutivas, programadas pelo produtor, ou em casos de impontualidade. Em situações de enfermidades, lesões, acidentes que impedissem o cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato, o produtor poderia prorrogá-lo. E concluindo esta cláusula acordava-se que

É facultado ao “PRODUTOR”, a seu exclusivo critério, fazer um seguro de vida e acidentes pessoais do “ARTISTA” no qual conste o “PRODUTOR” como único beneficiário, sendo que o referido seguro não acarretará nenhum ônus pecuniário ao “ARTISTA”. [...] Caberá ao “ARTISTA” a responsabilidade de cientificar seus eventuais herdeiros e sucessores da existência do seguro, informando aos mesmos que não terão direito algum de participar em eventuais prêmios pagos pela seguradora ao “PRODUTOR” (Discos CBS, 1981, p. 10).

A major ainda tornava legítima a administração do tempo pós-contrato ao regulamentar que,

Depois de terminado, rescindido ou denunciado o presente contrato, o “PRODUTOR” terá o direito de continuar fabricando, reproduzindo e vendendo, sem limite de tempo, no País e no Exterior, diretamente ou por intermédio de terceiros, discos ou outras classes de “Produtos Resultantes”, reproduzindo “Fonogramas” realizados durante a vigência do contrato (Discos CBS, 1981, p. 11).

Consequentemente,

O “ARTISTA”, por este instrumento, constitui e nomeia o “PRODUTOR” seu bastante procurador, com poderes irrevogáveis para representá-lo, em qualquer país e perante qualquer Juízo ou Tribunal, autoridade, entidade ou pessoa, para a defesa de todos os direitos, atuais ou futuros, decorrentes dos fonogramas que contenham suas interpretações fixadas em conformidade com este contrato, podendo tudo praticar que necessário for para tal finalidade, em qualquer instância judicial ou extrajudicial. [...] Cumpre ao “PRODUTOR” a seu exclusivo critério, exercer ou não, em qualquer oportunidade, os poderes outorgados, ou que venham a ser outorgados, em conformidade com esta cláusula (Discos CBS, 1981, p. 14).

Para então concluir, de modo a suprimir qualquer embaraço, que,

Pelo presente contrato e ao prover os serviços previstos no mesmo, o “ARTISTA” adquire e terá adquirido a posição de contratado independente e nada do disposto no presente poderá sentir o efeito de contemplar ou constituir o “ARTISTA” em agente ou empregado do “PRODUTOR” (Discos CBS, 1981, p. 14).

Em síntese, temos visões de mundo estruturadas por princípios que podem divergir, cujas tensões, não fosse a força da universal legitimidade do contrato de trabalho, poderiam impedir a realização deste projeto. A major, de um lado, e os artistas, de outro, cada um com interesses muito específicos, baseados em critérios econômicos, mas também em critérios artísticos, simbólicos, ambos enfrentando as pressões estruturais que caracterizavam o campo fonográfico naquele momento; “presos ao jogo, presos pelo jogo”. Neste ambiente, o contrato é um recurso que fortalece a importância desse jogo social, legitima a crença de que o que se passa aí é importante para os envolvidos, faz ver que “o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos [...]” (Bourdieu, 2007, p. 139). A major, por meio do contrato, demonstrava seu domínio sobre o controle e aplicação da doxa. Aquilo que revela claramente para os nascidos, ou bem iniciados, nas estruturas deste modelo de negócio (ou do mundo artístico especializado), pode jamais ser visto por quem “não tem na cabeça as estruturas que estão presentes no jogo” (Bourdieu, 2007, p. 139).

As dimensões (os sentidos) do “jogo” para o artista popular

Procurei indicar, nesta discussão, como um tipo específico de contrato de trabalho estabelecido entre uma major da música, durante os anos de 1980, e um artista popular pode ser revelador da forma de funcionamento destas companhias, da marca de sua hegemonia no mercado fonográfico naquele período, mas igualmente como pode deixar ver as dimensões sociais, materiais e simbólicas, os interesses, as expectativas e demais disposições de cada uma das partes envolvidas, major e artista. Lógicas econômica e artística se enfrentam neste ambiente, definem condutas, redirecionam escolhas, administram os tempos presente e futuro. Porém, o artista principal, aquele para quem o disco será gravado, não trabalha sozinho; outros artistas dividem com ele a criação do produto final, também como contratados da gravadora. São profissionais reconhecidos e consagrados, decidem sobre os canônes do bom gosto, da boa música, da música popular, no embate com outros profissionais, outras majors, outros produtores independentes de música gravada, compositores, intérpretes, críticos, etc. Como dito há pouco, conhecem os objetos e as regras em/da disputa; seus interesses pela reprodução destas relações provêm do fato de reconhecerem a importância de estar neste confronto. Daí, a crença no contrato e em sua inteligibilidade.

Porém, dentre eles, um parece ter entrado no jogo com disposições e recursos deslocados; não havia cumplicidade entre suas estruturas mentais e aquelas estruturas objetivas do mundo da música gravada, no âmbito da grande gravadora multinacional. As “afinidades de estilos de vida e sistema de valores” (Bourdieu, 2010, p. 65) entre João do Vale e o restante dos artistas não encontravam maiores correspondências. Para ele, a gravação do disco representava um ato de amizade, afeto, apreço e consideração dos amigos, da gravadora, dos técnicos e dos outros agentes engajados no projeto. Significava o reconhecimento do valor de seu trabalho como compositor e intérprete popular, a recondução, e fixação, de seu nome na música popular brasileira, a mais “autêntica e original”, porque concebida por um homem do povo, capaz de reproduzir em suas letras e músicas a “Voz do povo”.[6] Antes da gravação deste disco, por ocasião de uma coletânea distribuída pela Editora Abril em sua homenagem, nos anos de 1970, ele afirmara:

Estou lançando um disco aqui no forró. São alguns dos meus sucessos escolhidos pela Editora Abril,[7] que é a responsável pelo lançamento. Eu, pra falar a verdade, até hoje gravei um LP, embora tenha feito mais de quatrocentas músicas. Já recebi propostas, mas nunca quis saber. Por quê? Porque peço dinheiro adiantado e eles não dão. Dizem que são os donos do dinheiro e eu digo que sou o dono do meu trabalho. Então não há acerto e eu continuo aqui, animando esse povo no meu forró (Marques, 2013, p. 81).

Para anos depois declarar, reconfortado, sobre o novo disco:

Esse novo disco [CBS, 1981] surgiu assim, eu sou mais chegado ao palco onde o povo está vendo cantar o autor da música com suas expressões sentimentais. Mas aí, num bate papo como esse aqui, o “Camarada Chico”, comentava que ouvia muitas músicas minhas, mas não eu as interpretando, foi quando coloquei que não era muito de gravar. “Camarada Chico” então me disse, “eu já sou cantor, escritor, autor de músicas e muitas outras coisas, agora eu queria estrear como produtor de disco, mas com um disco seu”. Topei na hora. Logo já apareceram os companheiros que nos acompanhavam na excursão, escolhendo as músicas que iriam gravar (Arquivo Familiar).[8]

Os críticos, por seu turno, contribuíam para tornar mais sólida esta sua consagração:

Lembrar que João do Vale é um dos mais importantes criadores populares de nossa música ficou mais fácil, em 1983 – desde que, ano passado, um grupo de músicos do primeiro time tratou de resgatá-lo do ostracismo a que fora condenado por longos anos, produzindo um LP destinado a reavivar a curta memória dos produtores fonográficos. [...] O disco motivou um especial da Globo, reunindo uma constelação de astros e redimindo João definitivamente pelo afastamento – de resto involuntário, fruto muito mais da Censura (que lhe podou novas criações) e da diretriz das gravadoras (preocupadas em explorar os nordestinos aculturados, mais fáceis ao entendimento do consumidor do sul) (Dias, 1983).[9]

A assinatura deste contrato e a gravação do disco, com uma major, conferiam uma das distinções mais legítimas que um compositor e/ou intérprete poderia receber naquele período. Acredito que este poder não pode prescindir da crença dos diferentes agentes envolvidos neste processo de produção e divulgação da música gravada, embora cada um tenha interesses muito específicos pelo trabalho e pelo seu resultado em si. Porém, para um dos envolvidos, para a “estrela” do disco, a lógica que moveu suas convicções em relação ao que aconteceu parecia dispersa. Talvez não conformada aos padrões da profissionalização que se estabelecera naquele meio? Esta explicação é bem plausível. No entanto, se o argumento levantado for confrontado com dados empíricos consistentes, o estudo da trajetória social de João do Vale, a explicação de sua tragédia particular, poderia vir a tomar forma de uma regularidade na vida de tantos outros intérpretes e/ou compositores brasileiros, sobretudo os de músicas populares, destituídos da compreensão do “sentido do jogo” que se impunha no campo da produção da cultura popular brasileira e da importância de se negociar com a criatividade, permitir que ela seja mediada pela técnica e pelas leis do mercado. Quem sabe, se esta ideia ganhar força, passemos a enxergar, na constituição da música popular, as marcas das desigualdades da formação social brasileira.

A análise do contrato de “Cessão onerosa de interpretações fixadas” estabelecido entre João do Vale e a Discos CBS Indústria e Comércio Ltda. fez ver como importantes vínculos econômicos, culturais e sociais foram estabelecidos e reproduzidos, durante um longo período, no mercado de música gravada no Brasil. Práticas e processos distintos se deram à sombra de um tipo de primazia, a das majors, que estabeleceu verdades e legitimidades para boa parte do que se produziu e comercializou em termos de música popular, tanto para as obras quanto para seus compositores e/ou intérpretes. Este contrato dava concretude a uma doxa do campo fonográfico, ele garantia a adesão inquestionável às regras do jogo, fundadas sobre a igualdade do recurso jurídico, mas igualmente sobre a excelência da gravadora.

De acordo com Bourdieu, a doxa designa o conjunto de crenças, associadas à ordem das coisas próprias a um universo social dado, que se impõe de maneira pré-reflexiva e, por isso, indiscutida. É evidente e inevitável. A experiência dóxica é descrita pelo sociólogo como uma adesão muda e acrítica aos pressupostos, por vezes, cognitivos e avaliativos do senso comum: “[...] é aquilo sobre o qual todo mundo está de acordo, totalmente de acordo, que não se fala, está fora de discussão/questão, que é esclarecedor por si mesmo” (Bourdieu, 1983, p. 90). A doxa é constitutiva do pertencimento ao campo, ela é própria a um campo (ao artístico, por exemplo), faz parte dos pressupostos de inclusão neste campo.

No entanto, como crença tácita e prática nas regras do jogo, próprias de cada um dos campos nos quais funciona, ela é percebida e avaliada de modo particular por todos os agentes envolvidos. Aqui analisei os modos de inclusão e os sentidos que as partes enredadas na gravação do disco de João do Vale têm a respeito das crenças, ilusões e formas de funcionamento de um espaço essencial, pelo menos até os anos de 1990, na produção fonográfica brasileira. Observo que a lógica do artista popular destoa das outras, é emblemática do modo como compreende a si mesmo como artista e a sua obra. São disposições cujos pressupostos parecem pertencer a um período anterior a toda racionalidade organizada e administrada trazida pela grande gravadora transnacional. Inevitavelmente, isto tem implicações sobre sua inclusão e circulação neste campo profissional. Os modos como aderiu e interpretou as verdades da doxa do mercado de música gravada encontram, em alguma medida, correspondentes na maneira como se delineou sua trajetória pessoal e profissional. Ocorre como se a rotinização da criação não fosse por ele notada, isto é, não há a percepção de que a institucionalização e a integração ao mercado transformam os estados, as qualidades, as disposições das obras e das carreiras, em virtude da criação de controles administrativos, profissionais e sociais, como indicam várias passagens do contrato tomado como objeto de estudo. A “carreira artística” de muitos compositores e intérpretes da música popular brasileira é rica em demonstrações desta natureza, do embate entre a ilusão do “artista inspirado”, “gênio criador isolado”, e o real caráter coletivo da produção de suas obras. O preço pago pela visão equivocada dissipa figuras importantes na banalidade das competências, dos status e dos papéis que se complexificam quando a criação artística se rotiniza (Weber, 2013, p. 285-320). Os processos de racionalização que se operam diluem as singularidades destes compositores dentro das corporações, das instituições, e lhes imprimem o anonimato da divisão do trabalho e da produção, pela impessoalidade dos serviços e trocas firmados neste campo (Béra e Lamy, 2008, p. 275). Evidentemente que, num ponto ou noutro da produção, difusão e consagração das obras artísticas, esta racionalização adquire novas características, por vezes contrárias às mencionadas, mas que se desfazem frente ao utilitarismo e à igualdade jurídica do contrato de trabalho que se impõe ao artista. Mesmo as individualidades dos talentos, objetivadas muitas vezes nas notoriedades e consagrações dos músicos, artistas e técnicos envolvidos neste negócio, são parte do empreendimento, não escapam à burocratização; dissolvem-se nas equidades que os contratos criam, subordinadas não ao domínio da gravadora, mas do campo fonográfico como um todo. Essa lógica de funcionamento necessitava das crenças e das compreensões as mais lúcidas, e as mais embotadas, de todos os criadores implicados no/pelo “jogo” da produção fonográfica.

Referências

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BARRETO, M. 2009. As majors da música e o mercado fonográfico nacional. Campinas, SP. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 267 p.

BARRETO, M. 2012. A trajetória de João do Vale e os lugares de sua produção musical no mercado fonográfico brasileiro. Revista ArtCultura, 14(24): 47-60.

BENHAMOU, F. 2002. L’Économie du Star-System. Paris, Odile Jacob, 367 p.

BENHAMOU, F. 2004. L’Économie de la culture. 5ª ed., Paris, La Découverte, 123 p.

BÉRA, M.; LAMY, Y. 2008. Sociologie de la culture: Coll. Cursus. 2ª ed., Paris, Armand Colin, 343 p.

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BOURDIEU, P. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 208 p.

DE MELLO, Z.H. 1984. A poesia popular de João do Vale, bela e gratificante. Jornal OESP, 28 jul., p. 3.

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DISCOS CBS INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA (DISCOS CBS). 1981. Contrato de Cessão Onerosa de Interpretações Fixadas. 25 maio.

FRANCASTEL, P. 1956. Art et technique aux XIX. et XX.. Paris, Ed. Minuit, 308 p.

HEINICH, N. 1991. La gloire de Van Gogh: Essai d’Anthropologie de l’Admiration. Paris, Minuit, 256 p.

HEINICH, N. 2005. L’Élite artiste : Excellence et singularité en régime démocratique. Paris, Éditions Gallimard, 370 p.

JAKOBSKIND, M.A. 1981. De volta às origens. Cadernos do Terceiro Mundo, .(33): 58-67.

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O GLOBO. 1982. João do Vale lança elepê com Tom, Chico, Nara, Fagner & Cia. Rio de Janeiro, 30 jan., p. 27.

PASCHOAL, M. 2000. Pisa na Fulô mas não Maltrata o Carcará: Vida e obra do compositor João do Vale, o poeta do povo. Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 295 p.

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SIMMEL, G. 1983. Como as formas sociais se mantêm? In: E. de MORAES FILHO (org.), Simmel. São Paulo, Ática, p. 46-58. (Col. Grandes Cientistas Sociais).

TAVARES, B.; LEMOS, A. [s.d.]. Brasil Memória das Artes. Apostila Digital Nº 3 - Projeto Pixinguinha 1979. Disponível em: http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/arquivos/2011/02/apost-pixing-79.pdf. Acesso em: 15/03/2014.

WEBER, M. 2013. La domination. Paris, La Découverte, 427 p.

Notas

[2] João do Vale Convida, CBS, 1981. Em seu Lado 1, o disco trazia as gravações de: Na asa do vento (de João do Vale e Luiz Vieira), Pé do lajeiro (de João do Vale, José Cândido e Paulo Bangu) com Tom Jobim, Estrela miúda (de João do Vale e Luiz Vieira) com Amelinha, Bom vaqueiro (de João do Vale e Luís Guimarães) com Raimundo Fagner, O canto da ema (de João do Vale, Ayres Vianna e Alventino Cavalcante) com Jackson do Pandeiro, Carcará (de João do Vale e José Cândido) com Chico Buarque e Morceguinho, o rei da natureza (de João do Vale e José Cândido) com Zé Ramalho. No Lado 2, estavam: As morenas do Grotão (de João do Vale e José Cândido), Uricuri – Segredos do Sertanejo (de João do Vale e José Cândido) com Clara Nunes, Fogo no Paraná (de João do Vale e Helena Gonzaga) com Luiz Gonzaga Jr., Pipira (de João do Vale e José Batista ) com Nara Leão, Pisa na fulô (de João do Vale, Ernesto Pires e Silveira Jr.) com Alceu Valença e Minha história (João do Vale e Raymundo Evangelista). Posteriormente, o LP será relançado em CD pela já Columbia-Sony Music (Paschoal, 2000, p. 249). A propósito, para a escolha deste repertório foram gravadas 32 músicas; João cantou sozinho três das 13 faixas selecionadas pelos produtores. O lançamento aconteceu na casa de forró Forró Forrado, em fevereiro de 1982, na cidade do Rio de Janeiro (O Globo, 1982, p. 27).
[3] Além dos artistas mencionados anteriormente, reunidos por Chico Buarque, Raimundo Fagner e Fernando Faro para a gravação do LP, a capa do disco foi finalizada pelo artista plástico Elias Andreato, reconhecido, notadamente na música popular brasileira, pelas diversas criações e concepções de capas de discos que produziu. Se esta distinção pode ser tomada como real em termos simbólicos, o disco expressava a concepção mais legítima do que significou música popular até aquele momento; a partir dali o significado seria outro, muito mais próximo da ideia de popular como massivo. Em termos econômicos, expressava a versão do popular, sob a orientação dos “canônes do bom gosto”.
[4] De acordo com Bourdieu (2010), no final do século XIX, os progressos da autonomia do campo literário podiam ser identificados na hierarquia entre gêneros (e autores), segundo os critérios específicos do julgamento dos pares e seu inverso, isto é, a hierarquia segundo o sucesso comercial. Assim, ele verifica a existência, para cada uma das hierarquias, de formas de rentabilidade divididas em critérios distintos. Ou seja, para as hierarquias elaboradas sob o ponto de vista econômico, vinculam-se critérios relativos ao lucro comercial; para as hierarquias elaboradas sob o ponto de vista dos “critérios de apreciação”, créditos simbólicos.
[5] O Globo (1982, p. 27). Os críticos culturais também reforçavam a representação mítica/romântica do artista popular em João do Vale. Por ocasião de um show do artista, escreveu Zuza H. de Mello: [...] “João do Vale é um observador aguçadíssimo de seu ambiente, da natureza, de sua época, e mostra um fantástico talento ao traduzir suas observações com a beleza estética que têm os poetas populares através da sua sensibilidade, que dispensa cultura. É esse misterioso dom que, em última análise constitui perfeito exemplo de inteligência” (De Mello, 1984, p. 16).
[6] Nome de uma música de João do Vale e Luiz Vieira, gravada no primeiro LP de João do Vale, João do Vale - O poeta do povo, em 1965, pela CBD – Phillips (Paschoal, 2000, p. 247).
[7] Abril Cultural (1977). Em 1980, lançou João do Vale. Série Grandes Compositores. História da Música Popular Brasileira (Paschoal, 2000, p. 248).
[8] Arquivo familiar. Notícia (aparentemente de algum jornal) que traz apenas o título “João do Vale fala do seu recente elepê”.
[9] É importante relativizar o “ostracismo” a ele atribuído, afinal, como dito anteriormente, o artista seguia participando de projetos culturais musicais, fazendo shows pelo Brasil e apresentando-se na casa de shows Forró Forrado.

Autor notes

[1] Universidade Federal do Ceará. Departamento de Ciências Sociais. Av. da Universidade, 2995, Bloco 1, 60020-181, Fortaleza, CE, Brasil.


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