Resumo: A análise da Minga, manifestação realizada entre outubro e novembro de 2008 na Colômbia, objetiva explorar a categoria protesto buscando evidenciar as especificidades das relações contemporâneas entre o Estado nacional e os povos indígenas. O estudo dialoga com estudiosos que focaram no caráter político do protesto social. A revisão documental, a observação participante e a realização de entrevistas com líderes desse protesto constituíram eficazes instrumentos de coleta de informação para evidenciar que esses protestos se tornam fato político mediante estratégias de constrangimento público dos governantes. Essa situação se desdobra em crises de legitimidade a serem capitalizadas politicamente pelos manifestantes. Porém nas reuniões interministeriais, cenários de diálogo entre manifestantes e representantes estatais, prevalecem as estratégias governamentais de dilatamento e esvaziamento político dos protestos.
Palavras-chave:protesto indígenaprotesto indígena,MingaMinga,legitimidadelegitimidade.
Abstract: The study of the Minga, a protest that took place in October and November of 2008 in Colombia, intends to explore the category of “protest” by showing the specificities of contemporary relations between the national State and the indigenous people. The analysis dialogues with scholars who have highlighted the political character of the social protest. Document analysis, participant observation, and interviews were the instruments used to gather information, which demonstrates that the protests become a political act through strategies that publicly constrain government officials. This situation leads to crises of legitimacy that can be politically capitalized by protesters. However, in the interministerial meetings, where the dialogue between the protesters and the state representatives takes place, the governmental strategies designed to delay and neutralize the protests prevail.
Keywords: indigenous protest, Minga, legitimacy.
Protesto indígena na Colômbia: a Minga em questão
Indigenous protest in Colombia: The Minga at issue

Recepção: 27 Janeiro 2016
Aprovação: 06 Maio 2016
Apresenta-se um recorte analítico da “Minga[2] de Resistencia Social y Comunitária del Suroccidente Colombiano”, doravante Minga. Esse protesto se estendeu entre outubro e dezembro de 2008 no Departamento de Cauca[3]. Objetiva-se explorar a categoria protesto buscando evidenciar especificidades das relações contemporâneas entre o Estado colombiano e os povos indígenas. Indaga-se sobre o lugar dos protestos nos processos organizativos dos indígenas de Cauca. Quanto à Minga, questiona-se se o repertório[4] acionado reflete a historicidade da mobilização indígena ou se foi um protesto conjuntural contra o governo Uribe.
A aproximação com o objeto de pesquisa iniciou mediante a revisão documental voltada para a análise de 62 documentos relacionados diretamente com a Minga, dentre eles três cartas, oito vídeos, cinco relatórios do Observatório Social da América Latina (OSAL) e 46 matérias jornalísticas. As publicações jornalísticas referem-se ao período entre 9 de outubro e 31 de dezembro de 2008. Dezenove dessas publicações foram veiculadas em El Liberal, jornal local de Cauca, e 27 na Revista Semana, veículo de cobertura nacional na Colômbia.
A natureza dos documentos analisados é majoritariamente jornalística. Esse dado colocou em destaque o caráter constitutivo da mídia no protesto. No dizer de Landsman (1985), “a própria mídia como ator no conflito”. Isto é, diante da impossibilidade dos manifestantes de transmitir informações em primeira mão, são os meios de comunicação que constituem a fonte principal para a interpretação pública dos protestos. Os recursos midiáticos exercem relações de poder amparados em uma pretensa neutralidade.
A pesquisa também incluiu trabalho de campo realizado entre o último trimestre de 2010 e o primeiro trimestre de 2011. A rotina de aproximação com os entrevistados consistiu em visitas às sedes do Conselho Indígena Regional de Cauca (CRIC[5]), ao território indígena La María[6] e às moradias dos entrevistados. O período de pesquisa de campo foi marcado pelos seguintes fatos: (i) a comemoração dos 40 anos do CRIC, celebrada entre 21 e 24 de fevereiro de 2011; (ii) finalização da vigência da Consejería[7] do CRIC 2007-2010; (iii) comemorações dos 20 anos da constituição política colombiana e (iv) início do período presidencial de Santos.
O trabalho de campo se apoiou na observação participante e na realização de entrevistas. Técnicas da observação participante foram desenvolvidas durante a participação nas reuniões preparatórias e nas comemorações antes citadas. Realizaram-se 12 entrevistas com líderes da Minga e duas com lideranças indígenas que desaprovaram a realização desse protesto. A maioria dos entrevistados possuía formação escolar básica; somente dois deles eram pós-graduados. As idades dos entrevistados oscilaram entre 28 e 60 anos. Entre os entrevistados houve a participação de duas mulheres. As entrevistas foram realizadas no território indígena La María, nas sedes do CRIC e nas moradias dos entrevistados.
No debate acadêmico, os estudos sobre consolidação democrática destacam o caráter político controverso do protesto social (Gohn, 2010). O protesto foi conceituado como forma de participação não convencional, não formal ou extrainstitucional (Paoli e Telles, 1998). Essa caraterização destaca o entendimento de que o protesto estimularia a instabilidade política. A partir da análise da Minga, busca-se dialogar com esse debate ampliando a reflexão sobre as práticas de democratização em grupos sociais minoritários e vulneráveis. Para tanto, serão enfatizadas as encenações, provocações e afrontas realizadas pelos participantes da Minga em cenários institucionalizados e não institucionais.
Além desta introdução, este texto incluiu três itens. No primeiro subtítulo, descreve-se a Minga como objeto de estudo. No segundo subtítulo, esse protesto é analisado no contexto do processo organizativo indígena na Colômbia e na perspectiva da legitimidade racional-legal moderna. Encerra-se com o item dedicado às considerações finais.
Mediante a descrição analítica do repertório – carta aberta, bloqueio de estrada, marcha e passeata – da Minga, busca-se corroborar que essa mobilização elencou reivindicações históricas do processo organizativo indígena de Cauca. A sua realização no mês de outubro de 2008 revelou o seu enquadramento como uma “contracomemoração” indígena. Há que destacar que as contracomemorações surgiram em clara oposição à predominância do lugar dos povos ancestrais na história oficial colombiana.
Na Colômbia, no mês de outubro, comemora-se oficialmente o “descobrimento da América”[8]. Desde a década de 1990, os indígenas sistematicamente “contracomemoram” ditas festividades, quase sempre realizando protestos. O fato da Minga iniciar em 12 de outubro de 2008 revelou o simbolismo desse protesto no âmbito da mobilização política indígena. Enquanto contracomemoração, buscou recuperar a tradição reivindicativa dos direitos ancestrais desses povos. A carta aberta demandou a presença do presidente Uribe [9], em 14 de outubro de 2008, no resguardo[10] de La María. Intimou o presidente a “[…] contarle a nuestra gente, de frente al mundo, ¿cuándo su política tomará la ruta que permita garantizar los derechos fundamentales de todos los colombianos […]?” (Ruano, 2013, p. 157).
Nos estudos sobre o movimento indígena de Cauca, a carta aberta constitui uma modalidade de reconhecida trajetória (Gros, 1992; Espinosa, 1995; Rappaport, 2000). A carta aberta aparece como mecanismo acionado para estabelecer comunicação com representantes estatais. Geralmente, essas comunicações são redigidas no idioma oficial – espanhol, buscando adequar-se à lógica dominante que se fundamenta na cultura escrita. A carta aberta tentou legitimar suas demandas nos canais institucionalizados. Segundo um líder da Minga, a carta aberta objetivava “una base de entendimiento para trabar negociaciones con el gobierno […] la carta fue un mecanismo respetuoso e de buena voluntad” (Entrevista nº 6, Popayán, Colômbia, 27/01/2011).
Manifestar o descontentamento mediante uma carta aberta configurou uma ação política conservadora justificada pelo contexto de criminalização da mobilização indígena no governo Uribe. Em julho de 2008, o presidente Uribe publicamente qualificou os protestos indígenas como comportamento de terroristas e delinquentes. Nessa lógica, demandou rigor militar contra essas atuações:
[…] la orden desde que comenzó este gobierno fue: ¡no invasiones de tierras, no bloqueos de carreteras! […] les pido a los generales […] que tengamos todo el rigor, bajo mi responsabilidad, para evitar estos actos de terrorismo […] ¿hemos pagado recompensas por información sobre esos invasores? Ofrezcamos recompensas, eso ha sido muy útil en el país. A uno le dicen que esa gente [indígenas] es muy unida y no van a delatar: ¡mentiras! Son apenas delincuentes (VPRO, 2008).
A carta aberta da Minga questionou essas declarações e criticou a intensificação da repressão governamental contra a mobilização política indígena. Além disso, apresentou demandas antigas legitimadas mediante assinaturas de um coletivo plural e abrangente – povos indígenas, setores marginalizados e comunidades organizadas. Também trouxe à tona o persistente descumprimento estatal de acordos assinados em resposta aos protestos indígenas realizados na década de 1990. Esses acordos objetivaram dar resposta a exclusão histórica nas questões fundiárias e no acesso aos serviços públicos.
Um bloqueio da Estrada Pan-Americana[11] foi acionado pelos participantes da Minga em 14 de outubro de 2008. De acordo com os entrevistados, nessa ocasião “había miedo, pues durante el gobierno Uribe ninguna carretera había sido bloqueada”. Esse temor remete à coerção instaurada pela política de “Seguridad Democrática”[12]. Segundo os indígenas, o bloqueio deveu-se à negativa de Uribe de comparecer ao encontro convocado mediante a carta aberta. Conforme o seguinte depoimento, o bloqueio surgiu como desdobramento do descaso governamental.
Hay que dejar claro que el bloqueo de la carretera es un recurso que no es motivado por nosotros [Minga]. Es un recurso que el gobierno da pie para que se haga. Hicimos el lobby, mandamos la carta, lo citamos [al gobierno] de buena voluntad. Y [el gobierno] empieza a dilatar, a confundir, inclusive él [Uribe] manejó mucho a los medios, empezó a generar una opinión negativa sobre la Minga ¿Quién está obligando a que se actúe? ¡El mismo gobierno! No es que la Minga bloqueó la carretera para que el gobierno venga, el gobierno obligó a que se llegue a ese espacio (Entrevista nº 2, Popayán, Colômbia, 18/12/2010).
Para os indígenas, o bloqueio de estradas é eficaz para obrigar o governo a dialogar com os manifestantes. Esse imaginário social se configurou a partir dos protestos realizados em 1999[13]. Desde então, esses bloqueios são realizados com relativa frequência, principalmente, pelos indígenas de Cauca. Segundo os indígenas, o bloqueio deve ser mantido apesar da hostilidade mediática e da repressão policial. Habitualmente, o bloqueio chega a ter várias horas consecutivas de duração.
O governo Uribe ordenou reprimir o bloqueio acionado pela Minga amparado juridicamente pelo “estado de conmoción interior”, instrumento jurídico consagrado no artigo n° 213 da Constituição colombiana. Porém, a repressão não se limitou aos procedimentos administrativos e jurídicos estabelecidos. Segundo os indígenas, um policial à paisana objetivou badernar o bloqueio. Em resposta e justificando-se nos princípios de justiça própria, os manifestantes sancionaram esse policial mediante lategadas conhecidas como juetiadas ou fuetazos[14]. O governo Uribe classificou dita sanção como tortura e sequestro. Em consequência, a justiça ordinária acusou cinco lideranças indígenas por tortura contra esse policial.
Esse desdobramento colocou em relevo a sobreposição do sistema de justiça colombiano aos preceitos jurídicos indígenas reconhecidos constitucionalmente. Além das disputas hierárquicas entre esses regimes de justiça, o protesto colocou em evidência contestações discursivas. O termo infiltrado, quando usado por representantes governamentais, visa estabelecer ligações entre os protestos e o conflito armado interno. Isto é, o termo é acionado para criminalizar o protesto. A Minga denunciou a infiltração de um policial à paisana que pretendia desestabilizar o protesto. Esse termo foi acionado para evidenciar que o governo extrapolou os procedimentos jurídicos permitidos para conter o protesto.
Segundo os indígenas, essas estratégias governamentais implicam que os bloqueios se desdobrem em perdas políticas, simbólicas e materiais para seus processos de mobilização. Entre os manifestantes há uma compreensão dos efeitos negativos dessas estratégias e da repressão militar, a qual é promovida como o principal mecanismo de contenção estatal dos bloqueios na Colômbia. Apesar de carecer de estudos acadêmicos sobre o impacto, é corriqueiro que a mídia nacional destaque as perdas econômicas e transtornos decorrentes. Entretanto, os bloqueios de estradas geram desdobramentos de natureza diferenciada para os atores diretos e indiretos.
O bloqueio da estrada realizado pela Minga durava aproximadamente 30 horas. Os discursos governamental e mediático declaravam que o bloqueio ameaçava a ordem pública e demandavam a mitigação do protesto. Na madrugada de 16 de outubro de 2008, uma operação militar arremeteu contra o bloqueio. Segundo os indígenas, “fue un momento muy difícil […] tratamos de impedir que [policiais do Escuadrón Móvil Antidisturbios – ESMAD] entraran al territorio La María. Lograron quemar y desalojar […] disparar”. Uribe legitimou essa atuação militar afirmando que o bloqueio teria sido infiltrado por subversivos (Cometa, 2008).
Posteriormente, vídeos inéditos difundidos pelo canal de televisão internacional Cable News Network (CNN) evidenciaram a desproporção da força militar acionada contra o bloqueio. Essas imagens, reproduzidas posteriormente na rede nacional aberta de televisão, apresentaram a polícia dotada de equipamentos militares arremetendo contra os manifestantes que tentavam reagir com “bastões de mando”[15], pedras e paus. A incursão policial resultou em uma centena de manifestantes feridos, majoritariamente crianças, mulheres e idosos –, alguns sofreram lesões incapacitantes. Também foram destruídos o centro de saúde, a escola, moradias e plantações (Correa e Cárdenas, 2008a).
Os desdobramentos dessa difusão midiática remetem ao debate proposto por Landsman (1985), que destacou os meios de comunicação como atores constitutivos no protesto social. As notícias divulgadas não constituem um espelho da sociedade porque informam a respeito dos fatos de forma seletiva e particular. No caso da Minga, a transmissão dos vídeos antes citados, em uma prestigiosa televisão estrangeira, incidiu na redefinição desse protesto na pauta midiática nacional. Até então, essa cobertura midiática ecoava o enquadramento desse protesto como uma manifestação criminosa nas seções “judiciais” e “problemas sociais” dos jornais nacionais.
Os conteúdos veiculados pela mídia se tornam decisivos na formação da opinião pública diante de um protesto. Em seguida, as matérias jornalísticas sobre a Minga foram incluídas no editorial e na página política dos jornais nacionais, colocando em evidência a hegemonia da mídia estrangeira no contexto colombiano. Nesse caso, a mídia nacional mostrou-se contrária até que a pauta midiática internacional questionou a legitimidade das práticas governamentais de dissolução do protesto. Questionaram-se também as estratégias e a predominância da ação militar do governo Uribe. No tocante à Minga, a ampla divulgação midiática do abuso estatal, em boa medida, foi determinante para os desdobramentos que se analisam a seguir.
O protesto explorou politicamente a midiatização da desproporção do uso da força militar mediante uma campanha mediática veiculada em rádio e na internet[16]. Autodenominada minga informativa, enfatizou o caráter político do protesto indígena em clara oposição ao enquadramento governamental que o classificava como alteração da ordem. Em resposta surgiram manifestações internacionais e locais deslegitimando a violência do governo Uribe. Diante do notório descontentamento da população, Uribe e o chefe da polícia nacional admitiram o excesso policial contra essa manifestação mediante um discurso transmitido na televisão (Canal Institucional, 2008).
Os desdobramentos da minga informativa denotaram a eficácia política das estratégias de constrangimento social. O potencial dos mecanismos de constrangimento foi analisado por Niezen (2009) a partir da atuação política dos indígenas Cree da Baía de James, no Québec. Esses mecanismos publicitam, no âmbito nacional e internacional, as injustiças e inconsistências da ação estatal diante dos povos indígenas. Os excessos da força policial sofridos pelos manifestantes tornaram-se fato político na medida em que conseguiram constranger a atuação governamental. Conforme Klandermans (1984), a eficácia do protesto é medida pela crença dos manifestantes no seu potencial transformador.
A Minga também acionou articulações políticas em várias esferas institucionais. No Congresso Nacional, senadores e deputados indígenas exigiram a exoneração do chefe da polícia nacional. Reuniões e comunicações buscaram envolver instituições de defesa dos direitos humanos como a Defensoria del Pueblo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH). O Parlamento Europeu e o Sindicato Canadense de Trabalhadores Públicos[17] dirigiram cartas a Uribe questionando a repressão contra os indígenas (Correa e Cárdenas, 2008a).
Em 18 de outubro, na sede do governo do Departamento de Cauca, representantes da Minga reuniram-se com os ministros do Interior, da Agricultura e da Proteção Social. Os ministros apresentaram proposta de compra de terras para encerrar o protesto. Segundo os manifestantes, dita proposta não compreendia a “real dimensão dos problemas indígenas” (Correa e Cárdenas, 2008a). Por isso, insistiam na importância do “diálogo cara a cara” com o presidente Uribe. Na mobilização indígena, esse tipo de diálogo remete a uma prática política adotada a partir da década de 1970. Consiste em exigir, durante processos de negociação das reivindicações indígenas, a interlocução direta com autoridades de maior hierarquia na administração pública, o presidente e/ou os seus ministros.
Visando legitimar o pedido de diálogo direto com o presidente Uribe, em 21 de outubro de 2008, 20 mil indígenas percorreram 34 km de distância entre o Município de Santander (Cauca) e a cidade de Cali[18], capital do Departamento de Valle. Conforme Chaves (2000), a marcha como tipologia de mobilização social aparece em diferentes tradições e épocas. Sua aparência estereotipada se reveste de diversos significados e adquire contornos diferenciados. Espinosa (1995) observou que esse marchar indígena é orientado na busca por experimentação social, informação e reconhecimento. Segundo Rappaport (2000), esses deslocamentos refletem práticas indígenas de reafirmação territorial.
Nos processos de mobilização indígena, a marcha se constitui como forma de protesto padronizada que explora performances étnicas (Ruano, 2013). Nas marchas da Minga – de Santander a Cali e, posteriormente, de La María a Bogotá –, os manifestantes apresentaram-se exibindo faixas e bandeiras, encenaram músicas e discursos, alguns usaram vestuários tradicionais. Conforme os entrevistados, o deslocamento geográfico dos manifestantes – entre o município de Santander (Cauca) e Cali (Valle) – buscava conquistar novos aliados. No encerramento da marcha, Uribe prometeu dialogar publicamente com os manifestantes reunidos na cidade de Cali.
Em 24 de outubro de 2008, 20 mil indígenas aguardaram pelo presidente Uribe no Centro Administrativo Municipal de Cali (Valle). Uribe se apresentou à reunião após atraso de aproximadamente três horas. Os indígenas negaram-se a levar adiante o encontro. Alegaram que a impontualidade do presidencial revelou descaso para com os povos indígenas (Correa e Cárdenas, 2008a). Na mídia, Uribe destacou que sua agenda foi alterada pela liberação do congressista Óscar Lizcano, após oito anos em cativeiro pelas FARC (Caballero, 2009). Posteriormente, Uribe propôs realizar uma reunião com representantes indígenas na sede do governo de Cauca, em Popayán.
Os líderes da Minga retrucaram exigindo uma reunião que permitisse ampla participação dos manifestantes. Para os indígenas, o Resguardo La María, território governado por “princípios, valores e tradições culturais próprios”, deveria ser o local para dita assembleia. Essa exigência revela que para os indígenas a presença de Uribe nesse território assumiria certo caráter reparador das perdas simbólicas e políticas ocasionadas pela incursão militar no dia 16 de outubro de 2008. O deslocamento presidencial até esse território confirmaria a eficácia política desse protesto (Entrevista nº 6, Popayán, Cauca, 26/01/2011).
Em 8 de novembro de 2008, Uribe e sua equipe de ministros compareceram ao Resguardo La María. Essa reunião interministerial, transmitida ao vivo pelo canal de televisão governamental, iniciou com um discurso proferido por Aida Quilcué, Conselheira Maior do CRIC. A líder indígena denunciou o mecanismo de delação de líderes indígenas no âmbito da estratégia de “rede de informantes” promovida por Uribe. Essa estratégia se fundamentou no pagamento de “recompensas” em dinheiro. Criticou o discurso presidencial por deslegitimar e criminalizar a mobilização indígena. Encerrou enfatizando: “Presidente Uribe, para que usted se sentara a dialogar con nosotros tocó poner heridos y muertos”.
Durante essa reunião, os manifestantes apresentaram a seguinte pauta de reivindicações: (i) a preservação da autonomia dos territórios indígenas no contexto de guerra interna; (ii) a revisão da legislação sobre “usos” e distribuição de terra; (iii) cumprimento dos acordos assinados pelo governo nacional[19]; (iv) respeito à Declaração das Nações Unidas sobre os povos indígenas e (v) rejeição do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos[20]. No fim, os indígenas afirmaram que Uribe não respondeu aos questionamentos e demandas indígenas. O presidente argumentou que “es mejor contar con un gobierno que dice lo que piensa [...] Imaginen un gobierno que, por salir del apuro, venga a comprometerse con obligaciones que no pude cumplir” (El Liberal, 2008).
Em 10 de novembro de 2008, os manifestantes iniciaram uma marcha rumo à Bogotá, capital colombiana. O presidente Uribe criticou a sua realização afirmando que essa marcha “escondia interesses políticos”. Aliás, segundo ele, esse protesto era inconsequente porque ignorava os problemas de segurança do país (Vieira, 2008). Essa prática rotineira de desqualificar o protesto foi contestada pela Minga mediante a seguinte afirmativa:
¡Claro que nuestra Minga es Política! […] político es defender los derechos indígenas y colectivos; [...] político es defender el carácter de entidad territorial de todos los territorios indígenas […] político es discrepar de la llamada seguridad democrática (Vieira, 2008).
Os discursos estatal e dos manifestantes se apoiam no termo “político” para veicular posicionamentos contrários e favoráveis ao protesto indígena. O primeiro atribuiu conotação pejorativa orientada a enquadrar o protesto como disputa político-partidária. A Minga retomou o termo para reafirmar-se enquanto sujeito político e criticou a tentativa governamental de reduzir a mobilização em defesa dos direitos coletivos indígenas a uma disputa partidária. Disse ainda que dita defesa não é atribuição exclusiva dos partidos políticos.
Durante os aproximadamente 600 km de marcha até Bogotá, visualizou-se a resistência indígena diante das políticas indigenistas colombianas[21]. Nesse percurso, veicularam-se imagens vívidas dos indígenas colombianos contemporâneos. As cidades pelas quais essa marcha passou receberam discursos em praça pública, apresentações com vestuário e símbolos étnicos, faixas, bandeiras e encenações dos manifestantes. Esse quadro diverso dos participantes da marcha e dos repertórios de ação política configuraram as performances que buscavam legitimar a Minga.
Conforme Chaves (2000), a politização das penúrias destaca o caráter sacrifical das marchas. A autora faz referência aos desafios logísticos como chuva, frio, calor, lama, precariedade no abastecimento de água potável e insegurança das rodovias. Além dessa logística complexa, há que destacar os empecilhos políticos que dificultam o desenvolvimento de uma marcha de protesto. A repressão policial e tentativas estatais de cooptação e intimidação foram enfrentadas pelos manifestantes. Essas dificuldades foram destacadas nos discursos voltados para sua legitimação.
Segundo os entrevistados, a obstinação das novas lideranças e o apoio político local das autoridades indígenas tradicionais confluíram na concretização dessa marcha. No entanto, ela não esteve isenta de tensões internas entre os diferentes tipos de liderança: tradicional indígena/novas lideranças indígenas; lideranças indígenas/líderes de outros setores sociais. A escolha dos repertórios de ação política e práticas oportunistas na interação mediática também geraram controvérsias entre os manifestantes. O gerenciamento da diversidade de atores nessa marcha de protesto também representou risco significativo para seu desenvolvimento.
Após contornar empecilhos de natureza diversa, em alguns casos televisados, a incursão da Minga na capital do país ratificou a vitalidade política desse protesto. Em 20 de novembro de 2008, a marcha multitudinária chegou a Bogotá. Nessa data, os manifestantes se instalaram no prédio da Universidade Nacional (Correa e Cárdenas, 2008a). Em 21 de novembro de 2008, realizaram uma passeata até a Plaza de Bolívar, circundada pela sede presidencial e o Congresso Nacional. Conforme González (2010, p. 2), essa “praça constitui um espaço de poder e manifestações socioculturais”. A concentração multitudinária ovacionou o discurso de Aida Quilcué, conselheira do CRIC e líder da Minga:
¡Aquí estamos, hemos caminado esta Minga! […] humildes, trabajadores, estudiantes, obreros, campesinos, afrocolombianos, indígenas, todos quienes estamos representados en esta Minga hemos querido romper un sistema que nos ha reprimido […] quisimos reafirmar este proceso de dignidad al hombro con muchos muertos y heridos, al hombro con muchas tristezas por este conflicto social y armado ese despertar de los corazones necesita seguir caminando […] la Minga significa encontrarnos en marco de un proceso colectivo, de muchos pensamientos, de muchas actividades, es encontrarnos a dialogar […] vamos a empujar con más fuerza este proceso de reivindicación (CNP, 2008a).
A citação anterior destaca a pluralidade dos manifestantes da Minga – trabalhadores, estudantes, camponeses, negros e indígenas – que se autodeclarou como “processo coletivo” ainda em construção. Isto é, apresentou-se como “processo de diálogo e encontro de pensamentos diversos” que precisam ser impulsionados socialmente (Feliciano Valencia, inCNP, 2008b). Nessa data, excepcionalmente, as portas da sede do Congresso colombiano abriram-se para visitação pública. O livre ingresso no Congresso Nacional não fazia parte do horizonte de possibilidades dos manifestantes. Essa estratégia governamental foi eficaz porque dinamizou a dispersão pacífica dos manifestantes.
Em seguida, Uribe exigiu o retorno dos manifestantes aos seus locais de origem a fim de concretizar uma reunião interministerial em Bogotá (Caballero, 2009). Para tanto, foi requerida a formação de uma comissão de representação dos manifestantes. Os líderes do protesto manifestaram desagrado diante dessas exigências, no entanto as aceitaram. A escolha dos representantes teve como critério a sua experiência prévia em processos de negociação com o governo. Segundo os representantes, no debate com os funcionários públicos a legitimidade das reivindicações se processa a partir de dados estatísticos e documentos assinados (Entrevista nº 1, Popayán, Cauca, 18/12/2010). O grupo de representação foi chamado pelos manifestantes de “Comissão Política” da Minga.
O conhecimento dos representantes não surgiu no vazio social, foi acumulado e reelaborado a partir das vivências que surgem no processo organizativo indígena de Cauca. Conforme Espinosa (2005), essa habilidade política reflete aprendizados sistemáticos e avaliação do desempenho dos líderes indígenas colombianos nas negociações com representantes governamentais. Para os manifestantes da Minga, a reunião interministerial foi interpretada como uma conquista política. Esse logro confirmou a eficácia do protesto na concretização de cenários institucionais para negociação das demandas sociais.
En la reunión interministerial nos tocó de tú a tú con los ministros. […] fue histórico que logramos sentar a los ministros todo ese tiempo [entre las 18 hs hasta la media noche]. Llevaron más críticas el ministro de defensa [Juan Manuel Santos, presidente colombiano entre 2010-2018] y el ministro de agricultura [Andrés Felipe Arias]. Hicimos el ‘cara a cara’ con los ministros. El debate político fue lo más importante. Me di el gusto de debatirme con los ministros. Los vimos fatigados y preocupados […] Hoy estamos [movilización indígena] fuertes […] Estamos seguros que si hoy llamamos al presidente él se sienta a negociar con nosotros [CRIC] (Entrevista nº 3, La María, Cauca, 23/01/2011).
A realização da reunião interministerial, à qual compareceram a totalidade dos ministros, renovou simbolicamente a confiança dos manifestantes nesse processo de mobilização política. No imaginário dos manifestantes, o protesto é compreendido enquanto mecanismo eficaz na abertura de espaços institucionais para o “diálogo cara a cara” com o governo. Conforme a citação acima, esses espaços representam para os indígenas rituais de reparação simbólica dos abusos e omissões estatais. Revela-se, assim, a centralidade da dimensão moral nos processos de mobilização indígena.
Entre os indígenas é relativamente consensual o entendimento de que, nesses espaços de negociação, pouco se avança na concretização da pauta reivindicativa. Segundo afirmou uma liderança: “Sabemos que no regresaremos con los bolsillos llenos de recursos, pero regresar con la dignidad en alto lo consideramos una ganancia política” (Entrevista nº 8, Popayán, Cauca, 03/02/2011). Isto é, a legitimidade conquistada durante a negociação com o governo desdobrara-se em reconhecimento público das reivindicações indígenas. Dito reconhecimento constitui capital político que nutre a mobilização indígena.
As reuniões interministeriais também funcionam como estratégia governamental de neutralização política dos protestos. Essas reuniões se enquadram na lógica institucionalizada governamental. A legitimidade das demandas é minimizada sob pretextos de restrição orçamentária. Nesse âmbito, minimiza-se a dimensão política dos protestos e se busca apaziguar o descontentamento social. Por isso, conforme Correa e Cárdenas (2008a, 2008b), em 3 de dezembro de 2008, a Comissão Política da Minga decidiu unilateralmente encerrar o diálogo, alegando descaso dos representantes do governo diante da pauta de reivindicações.
Essas rotinas de poder[22] da administração pública mostraram-se eficazes, diluindo no tempo o conteúdo político dos protestos. A temporalidade e o contexto são dimensões que incidem na legitimidade dos protestos. Por isso, o ritmo lento dos processos, trâmites e argumentações burocráticas e jurídicas no âmbito governamental age na contramão da temporalidade política dos protestos. Essas estratégias governamentais são antigas, e também foram observadas nos protestos da década de 1980. Desdobraram-se em acordos assinados pelo governo que ainda aguardam pela sua concretização.
Em resposta à Minga, também foram realizadas reuniões interministeriais no território indígena La María. Os indígenas as qualificaram como “perda de tempo”. Em julho de 2009, a Comissão Política retornou a Bogotá para “oficializar” a retirada das negociações com o governo Uribe. Nessa oportunidade, Aida Quilcué teria sido “retida à força” pela segurança do prédio do Ministério do Interior. As fotografias da entrega desse documento teriam sido destruídas pelos seguranças nessa retenção arbitrária (Entrevista nº 6, Popayán, 27/01/2011 e nº 7, La María, Cauca, 28/01/2011). O uso da força aparece como uma constante na interação do Estado colombiano com os povos indígenas.
Na descrição da Minga, como objeto de estudo nas ciências sociais, buscou-se salientar a sua riqueza analítica. Em primeiro lugar, mediante a abordagem metodológica voltada para os registros midiáticos desse protesto, evidenciou-se a diversidade de atores envolvidos e a sua incidência discursiva no protesto. De outro lado, a análise da historicidade do repertório mostrou a sua complexidade e suas múltiplas interações no âmbito de uma geopolítica da mobilização indígena sustentada na articulação com diversos atores nacionais e estrangeiros.
Nessa dinâmica, a politização dos excessos no uso da violência estatal constitui uma estratégia de constrangimento que busca questionar a legitimidade das decisões governamentais em situações de protesto social. No âmbito governamental, o uso da força pública é a estratégia mais evidente de mitigação do protesto. No entanto, também se mostrou a eficácia das rotinas administrativas como estratégia estatal de neutralização do protesto indígena na Colômbia. Referem-se principalmente as reuniões interministeriais que, mediante argumentações burocráticas e jurídicas, promovem o esvaziamento da arena política criada pelos protestos. Esse alongamento temporal motivado pelo governo é chave no amortecimento da arena política criada pelos protestos. No entanto, a historicidade do repertório e a pedagogia do protesto indígena se contrapõem nessa dinâmica.
Para contextualizar a Minga na historicidade da mobilização indígena, remete-se à questão territorial na pauta reivindicativa. De acordo com Gros (1992), o problema da concentração da terra é preponderante nas reivindicações indígenas na Colômbia. A partir do regime republicano as políticas indigenistas tentaram dizimar o Resguardo, instituição de origem colonial que atualmente reflete processos autonômicos territoriais indígenas. Segundo Villa (2005), 710 Resguardos reconhecidos legalmente ocupam aproximadamente 27% do território nacional.
Na Colômbia, os processos de organização política indígena emergiram para denunciar o desrespeito aos direitos pelo Estado nacional, principalmente em matéria territorial. Embora a maioria de estudos datem essa dinâmica na década de 1970, há que lembrar a importância do movimento liderado pelo indígena Quintin Lame, em 1930. Algumas dessas demandas históricas foram atendidas na reforma constitucional de 1991 que ratificou os direitos territoriais indígenas no país. Porém, apesar dos avanços constitucionais, ainda prevalecem as práticas de ataque aos direitos sobre os territórios que ocupam.
A questão territorial se fez evidente nos cinco itens da pauta de reivindicações apresentada pela Minga, conforme citado no item anterior. Três itens explicitam a complexidade da questão territorial colombiana. O primeiro diz respeito à vulnerabilidade da autonomia dos territórios indígenas no contexto de conflito armado. O segundo demandou nova legislação sobre usos e distribuição da terra. O terceiro exigiu o cumprimento de acordos, a maioria deles em matéria territorial. Da mesma forma, o cumprimento da Declaração da ONU sobre povos indígenas e a repulsa ao tratado de livre comércio incluem justificativas sobre a defesa dos territórios.
A legitimidade da Minga se sustentou no caráter histórico das suas reivindicações. Esse caráter foi destacado nos espaços formais de diálogo com o governo, isto é, nas três reuniões interministeriais conquistadas pelos manifestantes. Nesses espaços institucionalizados, imperou a lógica racional moderna, na qual as demandas sociais precisaram ser sustentadas mediante documentos jurídicos e dados estatísticos. Em resposta, os indígenas apresentaram cifras que corroboraram o desrespeito dos direitos territoriais pelo Estado colombiano. Ditas estatísticas buscaram comprovar o descumprimento estatal dos acordos assinados a partir da década de 1980 (Entrevista nº 3, La María, 23/01/2011).
Esse desempenho dos representantes indígenas reflete aprendizados e processos sistemáticos de avaliação das negociações em espaços institucionalizados com representantes governamentais no passado (Espinosa, 2005). Esse conhecimento político não surgiu no vazio social, foi apropriado e reelaborado na interação com a sociedade dominante. É nessa perspectiva que os protestos e seus desdobramentos se tornam cenários pedagógicos para os processos de mobilização indígena.
A importância política e simbólica das reuniões interministeriais como espaços institucionalizados de diálogo com o governo é defendida pelos indígenas na perspectiva do “diálogo cara a cara”. Isto é, a negociação das reivindicações diante de autoridades de maior hierarquia na administração pública é central para o processo organizativo indígena. Tal compreensão coloca em destaque a lógica da legitimidade racional moderna. Nessas reuniões, ao presidente do país, aos ministros e às lideranças dos protestos, enquanto autoridades ou figuras legítimas respeitadas pelos atores em conflito, cabe orientar as decisões para superar as tensões.
A legitimidade como conceito político refere-se ao fenômeno governamental baseado no consentimento coletivo com a ideia de autoridade legítima nos estados modernos e na superioridade de valores que guiam, motivam e justificam comportamentos e formas de organização social. A legitimidade constitui um valor que reafirma e reconhece relações de poder ou superioridade representadas em uma pessoa ou grupo (Ramos, 2010). A demanda indígena de negociação com autoridades de maior hierarquia no âmbito governamental enquadra-se na ideia de legitimidade de quem orienta a tomada de decisões na dissolução dos protestos.
As reuniões interministeriais, além do desenvolvimento da pauta ou programa, contribuem no sentido de legitimar, ou não, tanto as lideranças quanto as suas ações. As discussões suscitadas tornam-se espaços estratégicos de competição por prestígio e recursos. Na moldura dessas reuniões, a apresentação pública das polêmicas e divergências constitui objeto de disputas. Contudo, os indígenas destacam seu potencial pedagógico. Trata-se de uma pedagogia que aprimora e atualiza as habilidades políticas dos representantes indígenas na interlocução com o Estado nacional.
Como cenário fértil para o dissenso, as reuniões interministeriais tendem a dilatar as reivindicações. Enquanto modalidade governamental de contenção do protesto social, mostram-se eficazes diluindo, mediante processos administrativos e burocráticos, a politização do descontentamento social. Diante dessas estratégias acionadas pelo governo durante as reuniões interministeriais entre a Minga e os representantes governamentais, os manifestantes reavivaram a insatisfação colocando em evidência pública o descaso estatal.
Nos processos de mobilização indígena, o termo protesto denota descontentamento social. Afirmativas como “não nos ouviram”, “não respeitaram”, “não nos reconhecem”, “a lei existe e ela é descumprida” remetem a práticas sociais autoritárias em contextos nacionais. Os protestos indígenas na Colômbia geralmente reivindicam o exercício pleno dos direitos coletivos reconhecidos constitucionalmente. Especificamente questionam o descumprimento estatal de compromissos e de disposições jurídicas conquistadas pelos indígenas. Em resposta, é corriqueira a criminalização desses protestos mediante enquadramentos que os associam com os atores armados à margem da lei. Nessa lógica, acionam-se estratégias governamentais que oscilam entre a cooptação e o uso desproporcional da força policial.
A contenção estatal do protesto social na Colômbia opera preferentemente mediante o que Tambiah (1996) chamou de “formas padronizadas de intimidação do adversário”. Durante a Minga, ganharam destaque os mecanismos de contenção baseados na repressão policial e jurídica. Ordens de prisão ou detenção, principalmente das lideranças, exposição pública dos líderes acusados pelo judiciário, apreensão e/ou destruição de pertences e símbolos dos protestos – bandeiras, faixas, bloqueios de estradas – são práticas estatais rotineiras de criminalização e despolitização dos protestos. A prevalência da criminalização desdobra-se em custos políticos e perdas simbólicas para os governos e para os processos de mobilização social.
Diante das práticas estatais de criminalização e esvaziamento político do protesto, ativaram-se arranjos de articulação política. A Minga destacou a participação de um coletivo social abrangente. A menção na carta aberta a indígenas, mestiços e afrodescendentes, rurais e urbanos, não refletiu apenas um lema, mas o retrato plural de sua composição interna, principalmente nos momentos cimeiros. Essa pluralidade de atores contribuiu positivamente, legitimando as suas reivindicações.
De outro lado, alguns estudiosos associaram dita pluralidade com a conjuntura, relativizando a historicidade dessas articulações sociais. Díaz (2008) classificou a conjunção de diversos atores sociais na Minga como descontentamento conjuntural com o governo Uribe. Rappaport (2011) também entendeu essa diversidade como uma estratégia contra o militarismo neoliberal desse governo. Essa compreensão pode ser entendida dado o contraste entre certo “apaziguamento” social durante o primeiro semestre (Correa e Cárdenas, 2008a) e a “agitação social” do segundo semestre de 2008. Na segunda metade de 2008, ocorreram oito protestos, dois contra os desdobramentos do conflito armado[23] e sete protestos trabalhistas[24] (Laurent, 2010). No primeiro semestre, foram registrados apenas dois protestos[25] relacionados ao repúdio dos desdobramentos do conflito armado no país.
Essa conjuntura estimulou alianças em torno da Minga, porém esse protesto mobilizou significações históricas não apenas delimitadas pela conjuntura. Segundo Arrieta (2009), a nomeação dos protestos mediante a categoria Minga, a partir de 1980, buscou substituir o termo “mobilização” por outro que refletisse os valores e crenças indígenas. Isto é, a Minga é uma ação política demarcada no processo organizativo indígena na Colômbia. Contudo, o protesto em 2008 reconheceu a importância da união com caminhoneiros, transportadores, cortadores de cana-de-açúcar e estudantes e lembrou que, desde a década de 1990, acionaram-se alianças similares.
O termo Minga como autodenominação dos protestos indígenas tomou força na década de 2000. Uma marcha realizada em 2001 teria sido o primeiro protesto que adotou esse termo para nomear-se. Entre 2004, 2007 e 2008, essa terminologia foi adotada por diferentes mobilizações indígenas na Colômbia. Essa nomeação indica a operacionalização da etnicidade nos quadros interpretativos dos processos organizativos indígenas. Díaz (2008) indicou a potencialidade dos protestos assim denominados na criação de “propostas metodológicas” sobre como fazer política.
Rozental (2009) afirmou que a Minga é uma oportunidade de partilha, troca e consolidação de laços a partir dos quais a força das pessoas se multiplica. No entanto, também alertou que, como processo dinâmico, ela reflete contradições, experiências e aspirações diversas. Segundo os entrevistados, o oportunismo na defesa das diversas demandas teria aflorado principalmente durante a reunião interministerial em Bogotá. Isto é, diante da possibilidade de angariar recursos públicos, ganhou destaque a individualização da pauta de reivindicações.
Na disputa por recursos públicos, mobilizam-se práticas de clientelismo, corporativismo e facções entre coletivos sociais (Paoli e Telles, 1998). Nessa lógica, as assimetrias entre os grupos sociais reunidos na Minga colocaram em xeque a frágil coesão desse arranjo social plural. Conforme o entendimento dos entrevistados, não é possível uniformizar a densidade e a habilidade política indígena alcançadas em protestos anteriores. Por isso, os representantes indígenas privilegiaram a defesa das suas reivindicações. Tal escolha implicou a relativização dos anseios dos setores sociais aliados que careciam de estratégias sólidas de negociação com o governo.
Apesar dessas tensões, esse protesto colocou em evidência a busca pela ampliação do campo social da mobilização indígena de Cauca. Segundo González (2010), a Minga de 2008 destacou o poder multitudinário e seu crescente protagonismo nas lutas sociais nacionais. Para Castaño (2015), esse protesto instalou uma nova forma de trabalho político que busca dinamizar diversos processos de mobilização social na Colômbia. Contudo, seus líderes indígenas reconhecem o caráter utópico desse processo. Para Feliciano Valencia, “a Minga é um processo de diálogo e encontro que precisa ser impulsionado socialmente”. Nas palavras de Aida Quilcué,
La Minga significa encontrarnos en marco de un proceso colectivo, de muchos pensamientos, de muchas actividades. La Minga es encontrarnos a dialogar […] vamos a empujar con más fuerza este proceso de reivindicación (CNP, 2008).
A categoria protesto evidenciou que as relações contemporâneas entre o Estado colombiano e os indígenas não se processam apenas no âmbito institucional. Os processos organizativos dos indígenas de Cauca surgem motivados pelo descontentamento coletivo diante das agressões aos seus direitos. No entendimento dos indígenas, os protestos e seus desdobramentos tornam-se cenários pedagógicos para os processos de mobilização indígena porque aprimoram e atualizam habilidades dos representantes indígenas na interlocução com o Estado nacional. Nesse sentido, os protestos possibilitam aprendizados sobre como “fazer política” em espaços institucionalizados e fora deles.
Apesar da importância pedagógica e simbólica das reuniões interministeriais, como cenários que possibilitam o “diálogo cara a cara”, nessas instâncias prevalecem as práticas e estratégias governamentais de dilatamento e esvaziamento das reivindicações. Enquanto modalidade governamental de contenção do protesto social, ditas reuniões de negociação da pauta reivindicativa se mostram eficazes para mascarar, mediante processos administrativos e burocráticos, o descontentamento social. Nesse sentido, essas reuniões se revestem de ambiguidade no tocante à eficácia pragmática do diálogo entre os manifestantes e o Estado nacional.
A análise da Minga indicou que os protestos se apresentam como formas sociais dinâmicas que refletem processos históricos de contestação à dominação exercida pelos Estados nacionais. Apesar da garantia constitucional dos direitos indígenas, práticas sociais autoritárias ainda continuam vigentes na Colômbia. A ação estatal não se limita aos procedimentos administrativos e judiciais legitimados como dispositivos de dominação. Mecanismos de cooptação, intimidação e violência física usados para mitigar os protestos revelam os abusos do Estado.
Considerações de caráter moral e simbólico incentivam os indígenas a protestarem. Essas valorações ratificam a crença na eficácia pedagógica, política e simbólica dos protestos indígenas. A categoria protesto confere centralidade às diversas formas de reivindicação acionadas pelos indígenas nos canais institucionalizados e além deles. A politização indígena da repressão estatal pôs em xeque a legitimidade das decisões governamentais de dissolução da Minga; essa ação política foi determinante para legitimar as reivindicações e o protesto.
A análise mostrou que a Minga não foi apenas um protesto conjuntural contra o governo Uribe. Apesar desse governo qualificar a mobilização indígena como terrorismo e delinquência, a partir da estratégia de delação de líderes e do incremento do índice de assassinatos, esse protesto pautou reivindicações históricas. Demandou a autonomia dos territórios indígenas e a revisão da legislação sobre o uso e a distribuição de terras. No âmbito das relações internacionais, rejeitou o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e exigiu o cumprimento da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas.
Quanto aos atores envolvidos, o discurso da líder Aida Quilcué, na Plaza de Bolívar em Bogotá, destacou que a Minga estava integrada por trabalhadores, estudantes, camponeses, negros e indígenas. A carta aberta que iniciou esse protesto foi assinada por povos indígenas, setores marginalizados e comunidades organizadas. A partir desses dados, ratifica-se a pluralidade dos atores nesse protesto. Porém, focalizando as reivindicações, observa-se que três dos cinco itens da pauta reivindicativa dizem respeito a interesses específicos dos indígenas: autonomia dos territórios, cumprimento da declaração da ONU e dos acordos assinados pelo governo. O enquadramento da agenda reivindicativa sugere a predominância indígena sobre os diversos anseios da pluralidade de atores reunidos na Minga.
Neste trabalho, evidenciou-se que o componente étnico atravessou a concretização desse protesto. Em primeiro lugar, destacam-se aspectos de ordem territorial. Os momentos de maior relevância aconteceram em La María. Em torno desse território, construíram-se representações associadas à dinâmica de recuperação territorial iniciada em 1970. O início dos protestos em outubro também remete ao simbolismo desse mês no processo de mobilização indígena. Os repertórios de ação política – carta aberta, bloqueio de estrada, marcha e passeata – embora não sejam de exclusividade indígena, ressaltaram a historicidade e enquadramento desses protestos no processo organizativo indígena. As suas lideranças, principalmente os porta-vozes, foram indígenas de reconhecida trajetória no processo organizativo indígena colombiano, e a politização da imagem desses líderes assim como o discurso étnico por eles veiculado ratificam a centralidade indígena na Minga.