Apresentação
As redes depois dos levantes e na crise da globalização
As redes depois dos levantes e na crise da globalização
Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 2, pp. 1-2, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Nesse dossiê, apresentamos cinco artigos que desenvolvem abordagens, temas e horizontes diferentes entre si, mas também com relação à proposta elaborada para o presente dossiê. Dois artigos propõem um arcabouço teórico bastante abrangente para apreender o ciclo de levantes, revoluções e lutas que começou com as revoluções árabes e, depois de ter passado pela Espanha, chegou ao Brasil em junho de 2013. Se trata, inicialmente, do artigo de Carolina Salomão Corrêa que tematiza a cidade como espaço de produção (uma produção organizada nas redes de circulação), como terreno de luta de um trabalho cada vez mais precário e fragmentado e, ao mesmo tempo, capaz de uma autonomia sem precedentes: a precariedade é atravessada por novas linhas de resistência. Por sua vez, o artigo de Bruno Tarin, propõe, com uma literatura próxima daquela mobilizada por Carolina, colocar no cerne da reflexão a produção de subjetividade, sem a qual não há nem lutas nem “cooperação” e, pois, nem mesmo produção no sentido capitalista. Entre fragmentação (precariedade) e singularidades (novos direitos), a diferença é o fato - ou não - de uma nova institucionalidade (o “comum”). É essa institucionalidade que produz e é produzida ao mesmo tempo - em espiral - a/pela diferença entre o fragmento precário assemblado pelo mercado e a singularidade rica que coopera livremente, entre a crowd e a multidão. Esses dois artigos, pois, oferecem um primeiro panorama de reflexão, entre as “redes” e as “ruas”.
Os demais três artigos mobilizam estudos de casos e se concentram em problematizar as redes sociais, os regimes discursivos ou o papel das mídias. Denise Osório Severo, Maria da Graça Luderitz Hoefel e Helena Shimizu se concentram na análise do funcionamento das redes sociais e particularmente do Facebook. Nisso, desaparece um pouco a perspectiva de que todos os movimentos de contestação da governança da globalização, desde o levante zapatista dos Chiapas, no Sul do México, sempre usaram as redes digitais. O apoio internacional e, em particular, nas Universidades dos Estados Unidos (entre elas aquela de Austin, no Texas, com o ativismo do professor Harry Cleaver) mobilizado pelas listas de e-mails, teve um papel importante em bloquear a repressão militar das zonas liberadas depois do levante de 1994. Como não lembrar, o papel dos Centros de Mídia Independentes (CMI) e do mote “don’t hate the media, become the media” durante as grandes manifestações contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle e contra o G8 em Genova?! Mas é verdade que, no movimento de junho de 2013 no Brasil, foi o Facebook que desempenhou o papel principal e inovador.
Já, o artigo de Camila Farias da Silva e Eduardo Georjão Fernandes, sobre a produção midiatica das performances do protesto analisa como a mídia e, nesse caso, sobretudo o jornal Zero Hora de Porto Alegre foi “enquadrando” os protestos de 2013. Por um lado, a análise se debruça sobre o início do movimento de junho, que começou em abril em Porto Alegre e, pelo outro, a novidade de junho: o uso estético da resistência, de um novo registro de luta, algo que os autores definem - usando Charles Tilly - como repertório e como “performance” com todas as implicações na interpretação da violência. A resistência e dimensão quase-insurrecional das manifestações de junho foi realmente uma das grandes novidades. A mídia - que hoje boa parte da esquerda de governo qualifica de “golpista”- naquele momento se juntou ao governo do PT e do PMDB para atribuir a violência a setores minoritários de vândalos a serem reprimidos. Havia, porém, uma outra dimensão nessas performances: a afirmação de um conflito democrático que afirmava uma brecha de saída para fora da guerra que constitui o dia a dia das periferias e da vida dos pobres. A restauração de junho, que aconteceu entre a Copa do Mundo e o as eleições de 2014, terá um efeito dramático: a intervenção do Exercito no Rio de Janeiro, com milhares de soldados, para proporcionar alguma sensação de segurança na cidade sede das Olimpíadas é emblemática.
Enfim, o artigo de Luciana Correia Barbosa, Sérgio Carvalho Benício de Mello e Henrique Muzzio nos apresenta mais um caso importante do ciclo de junho, dessa vez em Fortaleza. O movimento #Ocupeococó seguiu as mobilizações contra a Copa das Confederações. Essa ocupação em defesa de um parque foi muito próxima do levante de Istanbul, que começou com a defesa de Gezi Park contra o projeto de construção de um shopping. Como foi o movimento Estelita em Recife, se trata de algo totalmente complementar da revolta por transportes gratuitos e de qualidade, na busca por uma outra cidade. O Nordeste, essa região que deveria ser o modelo do período “lulista” é caracterizado por cidades sem urbanidade, onde o urbanismo é mesmo aquele da corrupção, como apareceu no caso da polêmica entre o então ministro da Cultura de Temer e um dos homens de poder, o Geddel, sobre a liberação ilegal de uma obra pelo Iphan em Salvador. Esses movimentos, como o #ocupeococó, foram capazes de fazer uma crítica material do próprio conceito de desenvolvimento, capazes de construir saídas democráticas do impasse onde a tentativa neodesenvolimentista levou o país.
O dossiê permite avançar nas reflexões sobre as práticas, as estratégias e os conceitos de multidão, comum, redes, ator-rede diante dos desafios colocados pelos diferentes cenários da crise da globalização. Ao mesmo tempo, o embate entre “globalismo” e “neosoberanismo” e mais em geral sobre a crise da globalização não aparece de maneira explicita em nenhum dos artigos que recebemos. Isso pode ser um indicador das dificuldades que temos de pensar essa crise, na medida em que nela se repetem - em termos diferentes - as mesmas inversões de discurso que apareceram nos anos 1930, depois da grande depressão de 1929, quando a transformação do socialismo em um nacionalismo - pelo fascismo italiano - se tornou um nacional-socialismo racista no país que devia ser o teatro da grande revolução proletária ao mesmo tempo que, na pátria do socialismo (a URSS), se tornava explicito o desastre stalinista. A vitória do Brexit e depois aquela de Trump, a derrota da Marine Le Pen apenas no segundo turno e por parte de um outsider como Macron na França não se encaixam nas tradicionais clivagens, da mesma maneira que a crise da coalizão PT/PMDB no Brasil e a tragédia Venezuelana rompem todas as polarizações ideológicas às quais estávamos acostumados. Talvez seja necessário voltar de maneira ainda mais atenta e intensa a esse debate.