Artigo
Entre precariedade e resistência: a cidade como espaço de produção e luta no capitalismo cognitivo
Between precariousness and resistance: The city as space of production and struggle in the cognitive capitalism
Entre precariedade e resistência: a cidade como espaço de produção e luta no capitalismo cognitivo
Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 2, pp. 174-186, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Recepção: 17 Julho 2017
Aprovação: 03 Agosto 2017
Resumo: Este artigo propõe identificar as relações que são possíveis estabelecer entre as transformações do trabalho e o recente ciclo global de lutas. A compreensão partilhada é de que, a partir da década de 1970, o capitalismo entra em uma fase de transformação, caracterizada pelo crescimento do papel das dimensões cognitivas do trabalho. Diferentemente da dinâmica fordista, que tendia a excluir a subjetividade do trabalhador nos processos produtivos, o trabalho pós-fordista exige a participação subjetiva do trabalhador não apenas na produção. Isto é, no regime de acumulação do que aqui nomeamos capitalismo cognitivo, o trabalhador participa por meio da sua capacidade de criar, imaginar, intervir, mas, também, nas dinâmicas de circulação. A produção contemporânea se dá extrapolando os espaços de confinamento fabris de outrora, difundindo-se por todo o tecido social em uma cooperação entre redes e ruas. Nesse contexto, a cidade converte-se em espaço de produção e valorização do trabalho. Diante das condições de vida e trabalho na cidade, cada vez mais precária, a metrópole constitui-se também como terreno das lutas por melhores condições de vida e gestão democrática da cidade. Enquanto, nas fábricas, os trabalhadores se organizavam em torno dos direitos relativos a salários e horários; na cidade, a multidão luta pela infraestrutura física e imaterial para a vida social, esta que, em última análise, alimenta a economia cognitiva. É nesse sentido que as revoltas recentes nas metrópoles globais correspondem às lutas do trabalho contemporâneo. Este texto pensa a necessidade de criar uma nova agenda política que faça justiça à nova composição técnica do trabalho.
Palavras-chave: precariedade, cidade, multidão, lutas.
Abstract: This article proposes to identify the relations between the changes in labor and the recent global cycle of struggles. The shared understanding in the investigation is that from the 1970s, capitalism goes through a transformation characterized for the growth of the role of the cognitive dimensions of the work. Unlike the Fordist dynamics, which tended to exclude the worker’s subjectivity in the production processes, the post-Fordist work requires the worker’s subjective participation not only in the production. In other words, the worker participates through their capacity to create, imagine, intervene, but also in the circulation dynamics. Therefore, contemporary production happens, extrapolating the otherwise confined factory spaces, disseminating through the entire social fabric in a cooperation between networks and streets. In that context, the city turns into a space of production and valorization of labor. In face of life and work conditions in the city, increasingly precarious, the city is also a territory for struggles to improve life conditions and the city’s democratic wages and schedules; in the city, the multitude struggles for the physical and incorporeal infrastructure for social life, this that in last analysis feeds the cognitive economy. It is in this direction that the recent revolts in the global metropolises correspond to the struggles of the contemporary work. In this scene, this text proposes to think the necessity to create a new political agenda that makes justice to the new technical composition of work.
Keywords: precariousness, city, multitude, struggles.
Introdução
Refletir sobre as recentes transformações ocorridas no universo de trabalho exige, invariavelmente, uma ponderação sobre a nova configuração do capitalismo contemporâneo. Diversos autores (Rullani, 2000; Boutang, 2007; Corsani, 2003; Cocco, 2012; Hardt e Negri, 2004) assinalam uma transição de um modelo capitalista industrial, baseado em um espaço de produção facilmente delimitado e controlado, para um modelo de capitalismo que está literatura chama de cognitivo. Marcado pela centralidade de aspectos comunicacionais, afetivos e relacionais na geração direta de valor, o capitalismo cognitivo é caracterizado por ambivalências que se expressam em novas formas de controle e exploração e pela superação de diversas distinções que marcaram o trabalho industrial fordista, sobretudo, a distinção entre tempo de vida e tempo de trabalho. As atividades nesse regime de acumulação demandam do trabalhador atividades e elementos antes restritos à esfera particular. É por isso que podemos falar de um biocapitalismo, uma vez que se trata mesmo da vida inteira posta a trabalhar através da mobilização da subjetividade do trabalhador não apenas no processo de produção, através da sua capacidade de criar, imaginar, intervir; mas também nas dinâmicas de circulação (Morini e Fumagalli, 2010). Esse artigo parte da compreensão que as transformações no universo do trabalho correspondem à passagem do modelo de produção fordista ao pós-fordista e que essa transição é paradigmática não só das formas de produção, mas de reprodução e socialização do trabalho.
Assim, a partir dos elementos que caracterizam o trabalho e as formas de vida no capitalismo cognitivo intentaremos traçar uma articulação entre os elementos que vão pouco a pouco determinando as mudanças no contexto do universo do trabalho e os levantes metropolitanos recentes. A hipótese de análise é que as lutas se constituem como multidão na defesa do que ela produz como forma vida. Trata-se, portanto, de identificar e refletir sobre as relações que são possíveis estabelecer entre os levantes globais recentes e as transformações do universo trabalho na passagem ao modelo de produção pós-fordista.
Nesse estudo, essa relação será pensada a partir de dois eixos:
A cidade como espaço de produção e de vida.
A precariedade das condições de trabalho e de vida.
A compreensão compartilhada neste artigo é de que na cidade e nas condições precária da vida e do trabalho nesse espaço reside um fecundo eixo de análise entre as duas temáticas. Conforme sugere Alexandre Mendes (2015),
compreender o espaço urbano à luz dos conceitos “metrópole“, “neoliberalismo” e “biopolítica” é fundamental para perceber como este se constitui enquanto um “território das lutas e da produção de uma nova subjetividade, aquela correlata às modificações da relação entre produção e espaço.
Nas dinâmicas produtivas próprias do capitalismo cognitivo, a cidade tem especial centralidade em virtude dos fluxos sociais que ela hospeda e viabiliza e que, em última instância, alimentam a economia biopolítica metropolitana. Isso nos permite pensar em termos de um deslocamento da fábrica a metrópole. Assim, convertido em usina contemporânea, no espaço urbano se desenvolvem os processos produtivos e de resistência que outrora habitavam as fábricas. É nesse contexto que a multidão - enquanto conceito de classe - se oferece como chave de análise e interpretação dessa subjetividade forjada no território de lutas que constitui o espaço urbano. Deste modo, insistindo na passagem da fábrica à metrópole, propomos aqui pensar a multidão como a composição técnica do trabalho metropolitano.
Essa analogia nos permite afirmar que o que está no cerne dos levantes globais recentes são as condições de vida e trabalho na metrópole. E nesse sentido, as lutas metropolitanas podem ser interpretadas como lutas trabalhistas que expressam fundamentalmente indignação e recusa à violência física e simbólica cotidiana e a precariedade das condições de vida e trabalho.
Simultaneamente locais e globais, as revoltas na cidade têm gatilhos específicos, mas em comum eles têm a presença massiva e ativa de trabalhadores precários. Por essa razão, a precariedade - junto com a cidade - é outro eixo de análise da relação entre o ciclo de levantes e as transformações do universo do trabalho.
Para traçar essa articulação, iremos, em um primeiro momento caracterizar o capitalismo cognitivo, indicando as especificidades do trabalho nesse novo paradigma. A proposta é observar como a sobreposição das características do trabalho nesse novo arranjo irá determinar a precariedade como condição existencial do trabalho. Nessa análise, observamos como o trabalho pós-fordista é marcado por ambivalências que se expressam em novas formas de controle e exploração e pela superação de diversas distinções que marcaram o trabalho industrial fordista (Morini e Fumagalli, 2010, p. 240-241). Os autores referem-se à separação entre “tempo de trabalho e tempo de vida”, “espaço de trabalho e espaço da vida” e separação entre as esferas da produção e reprodução, assim como a distinção entre produção, reprodução e consumo. Em seguida, a partir da imagem da colméia, oferecida por Moulier Boutang, buscamos evidenciar a crise da métrica, a financeirização com recurso de governança e a precarização com estratégia de controle intensificação do trabalho em um capitalismo onde a lei valor baseada no tempo de trabalho já não é suficiente. Numa segunda etapa, propomos um ensaio imagético a partir do levante de junho de 2013, como ilustração da violência física e simbólica que atearam fogo ao movimento. E por fim, caracterizamos a multidão como sujeito das insurgências.
Sobre a transição ao capitalismo cognitivo
A partir da década 1970, o modelo de produção fordista/ taylorista, até então hegemônico começa a dar sinais de esgotamento. Determinações objetivas: relacionadas à crise socioeconômica e política da década; e subjetivas: que dizem respeito aos aspectos sociais e culturais concorrem progressivamente para a construção de um novo paradigma produtivo.
Essa dupla determinação faz com que o capital se reorganize como resposta à crise, ele o faz desestruturando as grandes fábricas, ou seja, flexibilizando a produção, no sentido espacial - deslocalizando-a no território - no sentido temporal e subjetivo, isto é, flexibilizando o próprio trabalhador.
Desta forma, o modelo de produção fordista baseado nas grandes fábricas centralizadas, organizados em linhas de montagens serializadas, com rígido controle de tempo, produtos homogêneos, trabalho massificado e fragmentado; vai gradativamente dividindo espaço até ser completamente substituído por outros modos de produção onde a flexibilidade, a comunicação e a participação subjetiva do trabalhador nos processos produtivos têm papel central.
Deste modo, esse trabalho que começa a se estabelecer a partir da década de 1980 é marcado por outra relação com o tempo e espaço e também com a própria vida do trabalhador. Podemos formular que se trata de um paradigma de produção que acontece entre os territórios e a comunicação. Território no sentido de que a produção está integrada à circulação, fora do chão de fábrica, sem, contudo, excluir o chão de fábrica, se estendendo para toda sociedade. E que o trabalho é fundamentalmente uma atividade relacional, afetivo, linguístico.
Desse modo, as mutações no universo do trabalho se relacionam com transformações do próprio modo de ser do capitalismo e, nesse sentido, correspondem à passagem de um capitalismo industrial para um capitalismo que chamamos aqui de cognitivo.
Assim, o capitalismo cognitivo não se apresenta como uma nova etapa do capitalismo industrial, convergindo atividades materiais e imateriais, tampouco diz respeito à abolição do trabalho. No capitalismo cognitivo, o trabalho tem sua centralidade renovada a partir da sua transformação. Nessa etapa, pretendemos apresentar os elementos que caracterizam o capitalismo cognitivo, e faremos isso a partir da forma que ele se apresenta, organizando-o em torno de três vertentes. De modo sistemático e em síntese, podemos afirmar que o capitalismo contemporâneo é global, cognitivo e financeirizado.
Global, imaterial e financeirizado... e precário
Essa sistematização não intenta ser uma explicação exaustiva do conceito, trata-se apenas de uma apresentação que visa demonstrar como as características desse capitalismo afetam as formas e condições do trabalho contemporâneo e, em última instância, determinam a precariedade como condição existencial do trabalho.
Como primeira característica, temos o fato dele ser organizado em termos globais, a partir de uma estruturação em rede. Conforme Hardt e Negri (2000, p. 12) apresentam em Império, a soberania hoje tem nova forma, “composta de série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica e regra única”. Isso implica dizer que, na atualidade, não é mais possível falar de um capitalismo nacional, mas sim de um capitalismo integrado globalmente, que circula e organiza suas redes de fornecedores no nível local e global. Deste modo, o capitalismo cognitivo é ao mesmo tempo territorializado e desterritorializado. “O processo de desterritorialização pode ser pensando como algo que se alimenta da reorganização produtiva de territórios desenhados por novas formas produtivas” (Cocco, 2012, p. 128). Ocorre que “o local de produção é cada vez menos capaz de concentrar o conjunto de funções complexas de um processo integrado de concepção, inovação, criação e consumo amplamente socializado” (Cocco, 2012, p. 128). Isto é, as metrópoles e as redes convertem-se em terreno privilegiado de produção. Essa organização em rede inclui sem homogeneizar espaço e tempo. Isto é, o capital não precisa mais confinar, nem determinar o tempo de produção, para explorá-lo.
A segunda característica desse capitalismo é que o valor que ele acumula é do tipo intangível. Dito de outro modo, o trabalho é majoritariamente imaterial, do ponto de vista da valorização da produção. Isso não significa dizer que não existe trabalho material, mas afirmar que o valor do produto não é mais determinado pela quantidade de trabalho investido na fabricação do produto ou na utilidade do produto. Não é mais nem tempo de trabalho, nem valor de utilidade que determinam o valor de um produto, mas sim as atividades imateriais envolvidas na produção. Assim, conforme explicita Maurizio Lazzarato (2006), mais do que produzir bens, ele produz mundos, “a empresa que produz um serviço ou uma mercadoria cria um mundo” (p. 99). Afirmar que o capitalismo cognitivo produz mundos significa dizer que quando a gente compra um bem material, que tem que ser construído no chão de fábrica, o valor, a determinação do preço passa por tudo que acontece fora dessa fábrica. Existe o bem material, mas ele é o suporte de elementos cognitivos e comunicativos, do ponto de vista de como ele é produzido e de como ele é valorizado. Lazzarato (2006, p. 102) explica que “a empresa não cria um o objeto (a mercadoria), mas o mundo onde esse objeto existe. Tampouco cria o sujeito (trabalhador e consumidor), mas o mundo onde o sujeito existe”. O autor destaca ainda que “mesmo uma indústria tradicional, como a automotiva, produz apenas carros que já foram vendidos. E vendê-los significa construir um consumidor, uma clientela, em outras palavras, um público. O investimento no que o autor chama de máquinas de expressão, que são responsáveis por construir o mundo que será vendido, ultrapassa amplamente os investimentos em “trabalho” ou “meios de produção”.
Dito de outro modo, o conteúdo tangível do valor é uma parcela ínfima quando comparado às dimensões imateriais da composição do produto, isto é, ao mundo que ela carrega. Nessa perspectiva, o que o capitalismo cognitivo precisa produzir, capturar e explorar é, em última análise, a produção de subjetividade. Deste modo, nós passamos de uma fase na qual o capitalismo se organizava em torno do trabalho material, da sua dimensão material, que tendia a excluir a subjetividade, isto é, onde a subjetividade do trabalhador aparecia apenas na luta contra o trabalho a uma situação na qual o capitalismo explora a dimensão imaterial do trabalho.
Essas novas características do trabalho, sua imaterialidade e intagibilidade do valor, conduzem ao terceiro aspecto próprio do capitalismo cognitivo, o fato dele ser financeiro2. Cocco (2014) explica que isso significa dizer que as finanças, no capitalismo cognitivo, não são um desvio, mas são o seu modo de existência e governança. No entanto, o autor ressalta que as finanças preexistem ao capitalismo contemporâneo, isto é, elas já existiam no capitalismo mercantil. No entanto, as já citadas características do trabalho no capitalismo cognitivo alteram o papel desempenhado pelas finanças. Conforme ressalta Andrea Fumagalli (2011, p. 323), “os mercados financeiros são, hoje, o coração pulsante do capitalismo cognitivo”. Uma vez que regime de acumulação do capitalismo cognitivo se estrutura em torno da exploração da cooperação comum e do controle dos espaços externos à empresa, são os mercados financeiros que garantem o financiamento da atividade de acumulação. Dito de outro modo, as finanças se tornaram o principal mecanismo de criação monetária. Conforme explicita Cocco (2014, p. 7) as crises e desequilíbrios que as caracterizam são do capitalismo como um todo, isto é, “a ‘ficção’ não diz respeito às finanças em si, mas a ilusão de que eles poderiam ser capazes de assegurar uma regulação do regime de acumulação cognitiva do capitalismo atual”.
Dito de outro modo, quando a atividade produtiva é organizada em rede e o valor que ela acumula é intangível, o capital perde a métrica baseada no tempo de trabalho e a única maneira de governança são as finanças. Ou seja, as finanças são o modo de gestão de um novo regime de acumulação que explora o trabalho e a vida como um todo.
De modo sucinto, esse é o paradigma de produção do capitalismo contemporâneo, que aqui, com o auxílio de uma literatura específica, chamamos de capitalismo cognitivo (Rullani, 2000; Boutang, 2007; Corsani, 2003; Cocco, 2012; Hardt e Negri, 2004). Essa literatura se contrapõe a leituras e interpretações apologéticas da centralidade dos componentes cognitivos como agentes de liberdade e emancipação de uma economia fundada no conhecimento. A leitura a partir da hipótese do capitalismo cognitivo reafirma a natureza capitalista do processo de transformação - isto é, a permanência da variável fundamental do sistema capitalista, a extração da mais valia - e evidencia a contradição profunda que opõe a lógica do capitalismo cognitivo às condições de desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento. Isso porque trata-se de uma economia fundada no conhecimento, mas enquadrada na lei de valor do capital
- assim, em vez de favorecer o desenvolvimento de uma economia baseada no conhecimento, bloqueiam-na com o objetivo de poder capturar o valor e o saber produzidos pelo conhecimento para transformá-los num capital, numa mercadoria fictícia.
A medida de valor do capitalismo clássico baseado no excedente do tempo de trabalho não serve mais para mensurar o valor dos produtos uma vez que, como vimos, as dimensões imateriais da produção constituem a maior parte do valor. Conforme expõe Fumagalli (2011, p. 324-325):
O processo de valorização perde a unidade de medida quantitativa ligado à produção material. Tal medida era de algum modo definida pelo conteúdo de trabalho necessário para produção de mercadoria, mensurável com base na tangibilidade da própria produção e do tempo necessário para a produção. Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a atrelar-se a formas diversas de trabalho, que ultrapassam o horário de trabalho efetivamente formal para coincidir sempre mais com o tempo total de vida.
Assim, o regime de acumulação cognitivo é caracterizado por um descompasso estrutural. “O trabalho colaborativo em rede implica na expansão sistêmica da gratuidade. O enigma da métrica constitui um verdadeiro quebra-cabeça para a construção de novos modelos de negócio e acumulação a partir das redes” (Cocco, 2014, p. 86). Ocorre que a valorização do produto depende da sua circulação, mas a exploração desse valor depende da contenção e regulação dessa mesma circulação. O autor nos recorda que o valor da moeda (base das finanças) é relacional, isto é, é ligado a instituições e relações sociais que legitimam esse valor.
No capitalismo cognitivo, a valorização não pode prescindir do comum. Nesse contexto, “o trabalho realmente é produtivo e inovador na exata medida em que é livre” (Cocco, 2012, p. 45). Inovações jurídicas como copyleft e creative commons são exemplos de tentativas de adaptação ao novo paradigma da produção de valor; enquanto, num movimento paradoxal, empresas de intermediação de conteúdos e de produção de software recorrem ao Estado para impor leis de proteção de propriedade intelectual.
Sociedade pólen: crise de valor do trabalho imaterial
A imagem da colméia, desenvolvida por Yann Moulier Boutang (2007) auxilia-nos na compreensão do modo que o capital submete a subjetividade, o conhecimento, os saberes coletivos à sua lei de acumulação. É o autor francês que oferece, talvez, a melhor metáfora para compreensão do trabalho imaterial e da importância desse trabalho que nem sempre se converte em um bem material, mas que é o principal gerador de valor. O autor utiliza a imagem do trabalho das abelhas na colméia para representar o que ele nomeia sociedade pólen. Trata-se de um trabalho que não é mensurável como mel, mas inestimável como a polinização.
A partir da metáfora da colméia, o autor apresenta uma contraposição à interpretação da economia política tradicional, que vê a produção de mel e cera como principal trabalho das abelhas e a polinização como uma externalidade (um trabalho colateral e de menor importância). Boutang (2012, p. 75) deseja mostrar a partir do trabalho de polinização da abelha é que as “externalidades - identificadas pela economia política neoclássica e heterodoxa como tendo um papel marginal - desempenham um papel cada vez mais central”. Dito de outro modo, no capitalismo cognitivo, a exploração não está restrita ao produto desenvolvido no espaço e tempo restritamente trabalhado, mas extrapola o tempo de trabalho formal capturando os valores produzidos na rede complexa das trocas de informação, de conhecimento, de saberes, a cooperação e interação social, afetiva, coletiva. Um trabalho que é de fato incomensurável e, no entanto, fundamental para a produção e a reprodução social.
Pelbart (2013, p. 333) esclarece que:
uma sociedade pólen é precisamente aquela que repousa sobre essa circulação, propagação, contaminação, atividade em princípio gratuita, mas que, à contrapelo do modo de produção e de mensuração e apropriação fordista, requereria outros mecanismos de remuneração e de repartição dos bens, inclusive da propriedade intelectual.
Nos domínios dessa lógica, é difícil encontrar a medida de valor para esse trabalho. O exemplo das abelhas intenta, portanto, apreender o valor econômico das externalidades. No caso específico da colméia, para tentar dimensionar a importância do papel da polinização, Boutang (2012) traz um dado sobre o efeito econômico global agrícola calculado sob a hipótese de extinção das abelhas. O investimento para substituir seu trabalho de polinização é estimado em 790 bilhões de dólares anuais, enquanto a produção comercial de mel é avaliada em um bilhão de dólares por ano.
No âmbito mais amplo, para além do trabalho das abelhas, Boutang (2012, p. 75) refere-se à economia das externalidades nas proporções de um iceberg: “Se quisermos quantificar, corresponderiam precisamente à proporção ¼ vísível, ¾ invisível do iceberg”. Por essa razão o trabalho da abelha é tão emblemático dessa economia. O que é visível é o mel e a cera, enquanto a polinização aparece como “mera” externalidade, um benefício colateral do trabalho de fabricação de mel e cera. No entanto, comparando os valores do trabalho material e imaterial das abelhas, “podemos estimar algo como mil a 5 mil vezes o valor da atividade das abelhas em relação à estimativa de mercado decorrente da venda de seus produtos” (Boutang, 2012, p. 76). O trabalho de polinização é tão valioso que “muitos apicultores norte-americanos sequer recolhem o mel produzido pelas abelhas, contentando-se em alugar o serviço de polinização que elas realizam” (Boutang, 2012, p. 76). Dito de outro modo, há apicultores que já investem apenas nas externalidades. Uma externalidade, prossegue o autor, “aparece assim que uma transação, seja ela comercial ou não (daí sua dimensão simbólica e não monetária) tenha como consequência produzir um efeito positivo (aumento do benefício) ou negativo sobre um terceiro” (Boutang, 2012, p. 77).
Numa sociedade pólen a geração de valor acontece no contexto de suas dinâmicas de produção e circulação de modo integrado. Precisamente na indistinção entre tempo de trabalho, não-trabalho e tempo de produção.
A fonte da riqueza deslocou-se do quadro estrito do trabalho, desbordando para o tempo da vida como um todo, inclusive para o do lazer, do entretenimento, da criação artística, das relações afetivas, até mesmo para o do sonho. Trata-se da força invenção disseminada por toda parte e por todo o tempo, não só nos laboratórios ou nas universidades, mas também entre os desempregados, os artistas, os intermitentes, o cognitariado e o precariado de toda ordem ( Pelbart, 2013 , p. 332).
Por essa razão, a participação anônima, aleatória, voluntária e, com frequência, gratuita torna-se fundamental numa economia que se baseia na criação, nas relações e trocas.
Podemos concluir que na realidade produtiva pós-fordista, em geral, não existe mais a separação entre o local da valorização do bem e o espaço de consumo. Isso quer dizer que enquanto na matriz fordista, o processo de produção do valor se dava na esfera da produção e assim que esse bem começava a circular, ou seja, saia do chão de fábrica e passava para esfera do consumo, passava a perder valor, no contexto da produção imaterial, de modo inverso, o produto agrega mais valor à medida que circula.
Nesse contexto de produção de significações, a centralidade do trabalho imaterial caminha no sentido da integração do chão de fábrica que se torna cada vez menor, mais organizado em rede, com as próprias dinâmicas da circulação. A circulação, segundo o paradigma das redes, se torna o próprio terreno da produção. Isto é, reflete uma produção que é cada vez mais reprodução. Conforme exposto, do ponto de vista do valor, a eficiência e a produtividade dependem da circulação.
Nessas dinâmicas, a cidade enquanto território de produção passa a desempenhar papel privilegiado no processo de circulação e, portanto, valorização do trabalho. Dito de outro modo, no pós-fordismo a cidade é o espaço de produção por excelência, conforme formula Negri numa entrevista a Federico Tomasello (Rede Universidade Nômade, 2014). O autor defende que apesar das especificidades de cada espaço é possível afirmar que a metrópole é a “fábrica” contemporânea. É no espaço da cidade e na cooperação entre redes e ruas que o trabalho adquire seu valor. Dito de outro modo, a valorização do trabalho no capitalismo cognitivo depende da circulação e, nesse sentido, não pode prescindir da liberdade. Nesse contexto, o dilema do capital é o de depender da liberdade e da circulação para valorização, mas garantir a restrição e o controle para exploração.
Precariedade como condição existencial desse trabalho
Assim, a importância da externalidade, representada pelo enxame cooperativo, a questão cultural, cognitiva, afetiva e simbólica exponenciadas na circulação, hoje, dizem respeito ao valor dos bens em geral. E a demonstração empírica disso reside no fato de que nossas economias se transformam em economias terciárias. As economias terciárias são elementos empíricos, estatísticos, de uma transformação geral. No capitalismo que se reestrutura em torno da produção de subjetividade, as relações de serviços são fundamentais para criação de valor.
No capitalismo contemporâneo, “a colaboração é condição da exploração e por isso ela pode acontecer por fora da relação de emprego, na precarização da relação salarial, no terreno da empregabilidade” (Cocco, 2014, p. 39). Temos assim outro aspecto do caráter financeiro do capitalismo cognitivo o fato de que a relação salarial foi substituída pela relação de débito e crédito. Trata-se, segundo Cocco, de um devir-renda do salário.
Assistimos ao tornar-se renda do salário: a remuneração do trabalho passa a ser cada vez mais composta de um conjunto de fontes diversificadas (no marco de uma crescente fragmentação e precarização, a remuneração salarial se articula com uma multiplicidade de formas - transferências monetárias, contratos por projetos - que encontram sua curva de estabilidade na expansão do crédito, ou seja, no endividamento). O que antes era legado da informalidade e do subdesenvolvimento, agora se transforma em nova regra ( Cocco, 2014, p. 8).
Nesse contexto, este trabalho organizado em redes, que demanda a subjetividade nos processos produtivos e que a gente faz o tempo todo, numa indistinção entre tempo de trabalho e tempo de vida é marcado por uma fragmentação social que se expressa na multiplicação dos estatutos do trabalho formal, na precarização dos contratos e dos vínculos e mais em geral da proteção social. Ou seja, uma das características fundamentais do trabalho no capitalismo contemporâneo é a precarização da relação salarial e deslocamento das relações para o terreno da empregabilidade.
Deste modo, ao mesmo tempo que o valor, mesmo o da produção industrial, passa a depender dos serviços e das relações sociais envolvidas nessa (re)produção, o próprio trabalho passa a ser uma “relação de serviço”. Embora a relação salarial continue a existir, ela não remunera todas as atividades envolvidas na concepção de um produto ou serviço. Isso significa dizer que esse trabalho organizado entre as redes e as metrópoles, que o valor que ele produz deriva de atividades relacionais e cognitivas não cabe mais na relação salarial tradicional.
A dinâmica da empregabilidade se expressa na crescente separação entre a dinâmica do emprego e do trabalho, ou seja, se tende a trabalhar cada vez mais fora do emprego, ou seja, sem contrato. Isto é, o trabalho cada vez menos é estabelecido por uma relação salarial de tipo formal, mas se dá por contratos precários, esporádicos, numa dinâmica não mais de emprego, mas de empregabilidade. Assim, o que era paradigmático de alguns setores, como o cultural, o portuário - passa ser condição do trabalho geral.
Da fábrica à metrópole
Como já dito, este trabalho que acabamos de caracterizar tem a cidade e não mais a fábrica como espaço de produção, assim um segundo eixo para pensar a articulação entre os levantes globais e o trabalho contemporâneo, é a partir da extensão da fábrica a toda sociedade.
Antônio Negri concebe a metrópole como a fábrica contemporânea. Ele fala de uma “fábrica social difusa”. Com essa asserção, o autor nos fornece o ponto de interseção entre as temáticas do trabalho e das revoltas urbanas recentes. No posfácio de A crise da economia global (Fumagalli e Mezzadra, 2011, p. 362), o autor diz que: “não há luta de classe sem um espaço no qual essa possa se desdobrar. Hoje esse lugar é a metrópole. Outrora foi a fábrica, ainda hoje é a fábrica, mas falar em fábrica hoje significa outra coisa que outrora. A metrópole é a fábrica atual”
Essa analogia nos permite afirmar que o que está no cerne dos levantes globais são as condições de vida e trabalho na metrópole. E nesse sentido, as lutas metropolitanas podem ser interpretadas como lutas trabalhistas que expressam fundamentalmente indignação e recusa à violência física e simbólica cotidiana e a precariedade das condições de vida e trabalho.
Não por acaso, no Rio, o movimento de junho de 2013 teve uma continuidade a partir de paralisações de categorias: greve dos professores, greve dos garis, dos rodoviários, depois novamente dos garis. Ao contrário do insistente discurso de dispersão e declínio do movimento veiculado na mídia, o que houve foi uma continuidade pelas problemáticas da violência e do estado de direito; menos massiva se comparada aos atos de junho, mas igualmente potente. Na pauta, a exploração das múltiplas formas de vida na cidade, desmilitarização da polícia e a contestação às intervenções na cidade por conta dos megaeventos.
Na Turquia, no mesmo ano, a insurgência se dá em torno da preservação de um parque urbano, mas a ocupação do parque Gezi foi muito mais que uma manifestação de cunho ambiental. A manifestação na praça Taksim teve como estopim a tirania dos interesses da especulação imobiliária, mas os protestos revelaram uma insatisfação política em relação ao governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan.
Reação à crise econômica de 2008, as acampadas espanholas e norte-americanas evidenciaram uma profunda insatisfação com o modelo econômico e político do país e uma crise de representatividade dos partidos. O desemprego entre os mais jovens e a precariedade das condições de vida na cidade mais uma vez figuravam como pauta dos levantes. Em 2016, praças voltaram a ser ocupadas em diversas cidades francesas. O movimento Nuit Debout mobilizou a juventude francesa contra as reformas trabalhistas e a precariedade laboral, mas se estendeu para questões relativas à política de migração, questões religiosas e raciais.
Deste modo, a compreensão partilhada aqui é de que esses movimentos, simultaneamente locais e globais, têm gatilhos específicos, mas em comum:
a presença massiva e ativa de jovens e dos trabalhadores precários na luta, e nesse aspecto, podemos pensar novamente as manifestações como lutas do trabalho, como uma greve geral em defesa de outras formas de vida na cidade;
o desejo de pensar novas formas de fazer política, de se organizar, de ocupar os espaços, ou seja, são movimentos que giram em torno da construção de hábitos democráticos;
a cidade, a metrópole como razão e terreno das lutas.
Razão porque todos esses movimentos, preservando suas particularidades, têm em comum contestação e descontentamento com as condições de vida e trabalho nas cidades. Esse descontentamento, essa indignação, tornado ação converte a cidade num espaço de conflitos e terreno de novas formas de ação política. Na Figura 1, Milhares de pessoas acampam na Praça do Sol, em Madri, durante a mobilização do 15M em 2011.
Os métodos de luta e resistência - ocupação, acampadas, ato-marchas -evidenciam o desejo de apropriação e ressignificação desses espaços. Trata-se de reinvidicar o direito aos espaços que as políticas autoritárias e a relação promíscua entre as esferas públicas e instituições privadas usurpa. No Brasil, as manifestações populares que aconteceram em junho de 2013, tiveram como estopim o aumento das tarifas dos transportes públicos em diversas capitais do país, mas converteu-se numa ampla revolta contra as péssimas condições de vida nas cidades, contestação às arbitrariedades do governo e violações de direito pelo Estado, conforme exposto na Figura 2.

Como já mencionado, no Brasil, o movimento se articula em torno das questões relacionadas à mobilidade e se desdobra pelos meses seguintes e entra o outro ano, 2014, concentrando diversas pautas concernentes às questões referentes à cidade. Na ocasião da Copa do Mundo, manifestantes aproveitaram para contestar os investimentos em estádios e infraestrutura para os megaeventos em detrimentos de demandas sociais históricas, como saúde e educação (Figura 3).

Assim, a revolta tem como foco os investimentos ligados aos megaeventos - Copa das Confederações, Mundial da Fifa e Olimpíadas - mas se estende pela problemática da violência policial e violação de direitos. Ou seja, trata-se de um estopim e de uma continuidade a partir da revolta contra a precariedade da vida e trabalho na cidade (Figura 4).

Afinal, lutar por transporte público acessível e de qualidade é lutar pelo direito de não perder horas da vida em um transporte caro e sucateado. Pelo direito de usar o transporte não só para trabalhar, mas também para desfrutar da cidade. O
Carolina Salomão Corrêa direito de ir e vir é frequentemente violado nas cidades. No Rio de Janeiro, é comum - no verão e em calendários turísticos - o Estado, através da Polícia Militar impedir o acesso às praias da zona sul por moradores da zona norte (Figura 5).

De modo radical, é uma luta para não ser removido de sua casa e expulso da sua comunidade onde você construiu sua vida e seus afetos. A comunidade Vila Autódromo, na zona oeste do Rio de Janeiro, tornou-se referência por ser símbolo de resistência contra a política de remoções na cidade, associada aos megaeventos esportivos. Situada ao lado do Parque Olímpico, sede dos jogos de 2016, a Vila Autódromo é um dos principais alvos da política de remoções. Os moradores que não cederam às pressões, foram expulsos violentamente de suas casas e as demolições acontecem de forma arbitrária (Figura 6).

A luta é também para não ser assassinado ou “desaparecer” na porta de casa. O desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo representou um novo marco de visibilidade midiática dado a casos de violência policial cotidiana. Amarildo foi levado por polícias da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha. Investigações concluíram que o morador foi torturado e morto. As indagações sobre seu paradeiro na forma-slogan “cadê o Amarildo?” converteram-se numa luta pelo direito à vida e à justiça. Amarildo tornou-se símbolo de todas as vítimas de violência policial que o antecederam e inaugurou um debate sobre as práticas policiais genocidas do Estado3 (Figura 7).
Trata-se de tutar contra o estado de exceção tornado regra; lutar pelo direito de participar das decisões que concernem suas condições de vida na cidade. Em paralelo às ações urbanas nos centros, nas periferias a lógica desenvolvimentista impõe teleférico no lugar de saneamento básico, em detrimento de ações prioritárias e urgentes como a reforma fundiária/imobiliária (Figuras 8 e 9).

Nesse sentido, é uma luta também contra um determinado modelo de desenvolvimento.
Então é na precariedade, ou melhor dizendo, na luta contra ela, que a gente encontra o ponto de convergência entre as transformações do trabalho e as revoltas metropolitanas.
A multidão e a hidra: a composição heterogênea das lutas contemporâneas
Diferentemente das lutas operárias do período fordista, lideradas por um grupo mais ou menos homogêneo de operários e trabalhadores de fábrica, os levantes contemporâneos têm como sujeito das lutas um grupo heterogêneo que tem a cidade e não mais a fábrica como terreno de produção. Observando a composição social das lutas recentes, da Tunísia ao Brasil, identificamos jovens desempregados, trabalhadores pre-cários, mulheres, estudantes, trabalhadores sindicalizados, ou seja, uma pluralidade de sujeitos que não cabem em reduções identitárias simples.
Os teóricos que trabalham com o conceito de multidão empreendem a apresentação desse sujeito social a partir da distinção entre outros conceitos de classe. Em A gramática da Multidão, Paolo Virno (2013) afirma a pertinência do conceito de multidão para pensar eventos e fenômenos recentes, ou, como o subtítulo da obra sugere, pensar as formas de vida contemporânea. O autor sustenta que “uma ampla e notável gama de fenômenos - lingüísticos, formas de vida, tendências e éticas, características fundamentais do modo de produção material - resulta pouco ou nada compreensível se não é a partir do modo de ser dos muitos” (Virno, 2013, p. 10). O autor sustenta sua análise opondo o conceito de hobessiano de povo ao de multidão, de Espinosa. A diferença entre os conceitos é determinada pela relação que estabelecem com o Estado. Enquanto povo, na concepção de Hobbes, é uma multiplicidade que pode se conformar na vontade do Estado e ser por ele representada; a multidão, em Espinosa, representa uma pluralidade que persiste como tal, sem convergir numa unidade.
Na obra de Negri, o conceito é pela primeira vez trabalhado em “Anomalia Selvagem”, de 1981, obra em que o autor se debruça sobre a filosofia de Espinosa. Em linhas gerais, Negri explica que Espinosa recusa a concepção moderna de que o povo precisa da representatividade do Estado para se governar, manter a ordem e administrar conflitos - o que autor chama de concepção jurídica do mundo. A democracia de que fala Espinosa, e é defendida por Negri, se constrói na práxis, de forma espontânea e autônoma e nesse sentido, dispensa mediação.
O conceito de Multidão, portanto, resiste à fundição em sujeito único. Em Multidão, Hardt e Negri (2004) esclarecem que multidão é sim um conceito de classe, mas que essa classe é determinada pela luta.
No texto “A Hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos e a classe trabalhadora atlântica do século XVIII”4, Linebaugh e Rediker (2010) recorrem à figura da hidra, uma serpente de múltiplas cabeças, para ilustrarem a composição plural dos levantes na Europa e nas colônias britânicas da América do Norte.
O texto de Linebaugh e Rediker (2010) apresenta uma alegoria que nos parece apropriada para uma ilustração elucidativa da multidão. A partir da figura da Hidra, os autores propõem uma análise da constituição plural da classe trabalhadora atlântica do século XVII. O texto faz referência ao segundo trabalho de Hércules, na história grega. Consta da mitologia que Hércules confronta uma serpente de múltiplas cabeças que a cada golpe cresciam mais duas.
A argumentação dos autores é que a história contada sobre as atividades revolucionárias do século XVIII negligencia os pontos de contatos e conexões importantes de uma classe trabalhadora plural, resistente e militante que insurgiu contra o império britânico e, em última análise, determinou a revolução. Marinheiros, negros e brancos, escravos e mulheres, formaram uma resistência atlântica ao nascente capitalismo inglês. No texto, os autores observam que ao fazerem referências à nacionalidade, etnias e raças, os historiadores deixam de abordar as conexões e contatos presentes na composição das rebeliões. O levantamento de Linebaugh e Rediker parte da organização material da classe trabalhadora atlântica, composta por trabalhadores assalariados, majoritariamente marinheiros (mas também soldados e jornaleiros) e escravos. Os autores descrevem o propósito de sua investigação como “um esforço para recordar, literalmente remembrar (re-member), para tornar a ligar, como forma de superar alguma da violência, algum do desmembramento por qual passou a classe trabalhadora atlântica” (Linebaugh e Rediker, 2010, p. 246). A partir da análise de rebeliões, levantamentos populares e greves entre 1747 a 1780 os autores procuram demonstrar a unidade heterogênea de um “estranho bando” - a classe trabalhadora deste século.
Não nos interessa detalhar5 cada evento, enunciando suas especificidades; parece-nos interessante, contudo identificar a figura da Hidra que se apresenta como da classe trabalhadora da época. Recorrer aos acontecimentos atlânticos é interessante no sentido que esses acontecimentos guardam similaridades ricas com os levantes recentes, e o ponto crucial dessa convergência (e que nos interessa particularmente) refere-se à composição multifacetada da classe trabalhadora insurgente. Os autores demonstram, a partir dos eventos, as conexões no interior da classe trabalhadora.
Os marinheiros lideraram uma série de lutas militantes contra o recrutamento forçado. Essa resistência, segundo os autores, é o embrião da ideologia revolucionária. Os marinheiros forneceram uma contribuição preciosa à revolução, pois já traziam uma bagagem de resistência e militância apreendidas no próprio terreno portuário: motins, pirataria, rixas, interrupção do trabalho foram táticas amplamente usadas pelos trabalhadores para afirmar seus interesses contra patrões, capitães e oficiais coloniais e reais (Linebaugh e Rediker, 2010, p. 251). Os marinheiros e os assalariados constituíam a vanguarda revolucionária e foram determinantes para independência. O que historiografia falha em reconhecer é que junto à luta da classe trabalhadora marítima estavam negros escravos. Da mesma forma que a greve londrina de marinheiros tem inspiração na insurreição dos irlandeses e a ela somaram-se barqueiros, serradores e alfaiates todos reivindicando melhores salários.
“Houve, portanto uma história de cooperação inter-racial que deu sustentação, durante a era revolucionária, aos protestos comuns de marinheiros e escravos contra o recrutamento forçado e outras medidas” (Linebaugh e Rediker, 2010, p. 257). Os autores contam que tabernas, adegas e os próprios portos serviam de espaço de interação e convivência, fato que causava pânico às forças imperiais. Os autores descrevem essas organizações como “essencialmente democráticas”, uma vez que qualquer um poderia somar-se aos trabalhadores e alçar status de liderança segundo sua atuação no movimento. Junto ao exército e a milícia, a organização da “turba politizada” era uma das três mais importantes no movimento revolucionário e também a mais difícil de controlar.
Linebaugh e Rediker (2010, p. 268) concluem que as revoluções do século XVIII, lideradas por trabalhadores negros e brancos, irlandeses e ingleses, livres e escravos, com ou sem salário, foram partes de um ciclo mais amplo de rebeliões. E esclarecem que “um dos temas centrais deste ciclo foi a luta multifacetada contra o confinamento - nos navios, nas oficinas, nas prisões e até no império - e a busca simultânea de autonomia”. A expectativa dos autores é que seu levantamento seja do interesse daqueles que ignoravam a existência de uma classe trabalhadora no século XVIII e “daqueles cuja concepção de nação, raça e etnicidade obscureceram um campo de força em que se desenvolve toda a história e um mundo popular de cooperação e realização vital” (Linebaugh e Rediker, 2010, p. 269).
A partir do estudo de Linebaugh e Rediker, é possível estabelecer relação entre a experiência dos trabalhadores atlânticos e as lutas atuais da composição do trabalho contemporâneo. Se no século XVIII, trabalhadores assalariados, marinheiros e escravos compunham as múltiplas cabeças da hidra, hoje, jovens, desempregados, mulheres, precários, migrantes formam a figura contemporânea do mito.
Heterogênea como a hidra, as múltiplas singularidades da multidão se unem e, na luta, se constituem enquanto classe. Assim, a resistência é o primeiro elemento do processo constituinte da composição de classe. Nessa perspectiva, a classe existe porque luta e não luta porque existe. Dito de outro modo, não existe multidão, enquanto classe, fora da luta.
Metodologicamente, o que se sugere é buscar as lutas para identificar a classe. Merleau-Ponty (1999) fala de um método existencial que não procura as causas de uma tomada de classe, mas suas condições de possibilidade. Trata-se de uma compreensão não abstrata de uma tomada consciência de classe.
Não tenho consciência de ser operário ou burguês porque, de fato, vendo meu trabalho ou porque de fato sou solidário ao aparelho capitalista, e também não me torno operário ou burguês no dia em que me decido a ver a história na perspectiva da luta de classes: mas em primeiro lugar “eu existo operário”
ou “existo burguês”, e é este modo de comunicação com o mundo e com a sociedade que motiva ao mesmo tempo meus projetos revolucionários ou conservadores e meus juízos explícitos: “sou um operário”
ou “sou um burguês”, sem que se possam deduzir os primeiros dos segundos, nem os segundos dos primeiros. Não é a economia ou a sociedade consideradas como sistema de forças impessoais que me qualificam como proletário, é a sociedade ou a economia tais como eu as trago em mim, tais como eu as vivo - e também não é uma operação intelectual sem motivo, é minha maneira de ser no mundo neste quadro institucional (Merleau-Ponty, 1999, p. 594).
As belas palavras de Merleau-Ponty tratam da formação de uma classe e não de insurgência. Nessa perspectiva, e retornando ao conceito de multidão, são os atos coletivos de resistência que constituem a multidão, enquanto conceito de classe, simultaneamente plural e singular. A partir desse duplo lócus, os movimentos conseguem reunir uma multiplicidade de indivíduos, que se aliam por um objetivo comum. Essa é uma das características da multidão. Hardt e Negri (2004, p. 140) definem multidão como um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na diferença), mas naquilo que tem em comum. Como observamos, esses movimentos compartilham uma emoção, a reação indignada diante de algo que parece injusto. A produção biopolítica da multidão tende a mobilizar o que compartilha em comum e o que produz em comum contra o poder imperial do capital global (Hardt e Negri, 2004, p. 142).
A resistência da multidão se expressa nos movimentos sociais recentes. A revolta pacífica dos Indignados espanhóis, a onda revolucionária árabe, as ocupações de praças americanas e turcas e as manifestações brasileiras convergem características que as tornam representativas do movimento da multidão. Cada um desses movimentos com suas reivindicações específicas, ao mesmo tempo globais carregam o projeto político da multidão.
Considerações finais
No Brasil, as jornadas de junho gritaram a crise de representação e também a potência da articulação entre as redes e as ruas. De fato, todos os levantes do ciclo global de lutas expressaram uma recusa radical aos governos e ao modo autorreferencial de fazer política. Em comum, todos os movimentos recusaram as falsas representações. Nossa compreensão é que essa crise de representação pode ser experimentada, pelo menos, de duas maneiras.
Primeiro como desesperança e vazio que deriva da sensação de que as instituições não abarcam as aspirações e interesses da maioria, pelo contrário, torna barganha o que é direito de todos. Ou, de outro modo, a constatação do terrível pode se expressar como os movimentos recentes têm mostrado, nas múltiplas possibilidades de pensar e por em práticas outras formas políticas: autônomas, horizontais, que falam por si mesmas. Isto é, como a multidão que recusa falsas governanças. As mobilizações globais são, nesse sentido, laboratórios de alternativas, que buscam ressignificar a ação política.
Na Espanha, o movimento dos indignados do 15M desdobrou-se em plataformas municipalistas elegendo duas prefeitas oriundas do movimento em Barcelona e Madri. Ada Colau e Manuela Carmera integram, respectivamente, as coalizões cidadãs Barcelona em Comum e Ahora Madri, expressões eleitorais do ciclo de lutas que começaram em 2010, com as revoluções árabes e se intensifica na Espanha a partir do movimento de maio de 2011. As experiências municipalistas são o vislumbre de uma cidade pensada de baixo para cima a partir das lutas constituintes.
No Brasil, o movimento de junho e todos aqueles que se estendem até hoje têm como uma de suas dimensões constitutivas as condições de vida e trabalho na metrópole. De fato, a cidade é o epicentro da problemática das lutas sociais, porque é simultaneamente espaço e razão dos levantes. A luta por transporte público, no Brasil, em defesa de um parque em Istambul, condições de trabalho na França revelam, pelo mundo a fora, o desejo de repensar não só a política, mas outras formas de vida na cidade. O modo de organização e resistência na forma de ocupações e acampadas já são simbolicamente um processo de reapropriação da cidade. Ocupar palácios e assembléias legislativas, montar tendas em praças compõem um discurso que reivindica a posse desses espaços.
Nesse sentido, os movimentos são simultaneamente críticos da supremacia dos interesses privados, isto é, das determinações neoliberais de privatização dos espaços públicos e também das imposições do Estado que age autoritariamente sem consultar a população. Os movimentos de estudantes, moradores e trabalhadores dos grandes centros urbanos e periferias são emblemáticos da resistência frente ao autoritarismo do Estado e da relação promíscua entre poder público e interesses privados. Diante das condições de vida e trabalho na cidade, cada vez mais precária, a metrópole constitui-se também como terreno das lutas por melhores condições de vida e gestão democrática da cidade.
Como vimos, a crise das finanças como modelo de governança do capitalismo expõe as contradições internas ao capitalismo cognitivo que por um lado investe toda a vida e, pelo outro não reconhece como produtivo o tempo de vida. Fumagalli (2011), acerca das contradições internas ao capitalismo cognitivo, defende que - uma vez que o trabalho se dá por fora da relação salarial através de vínculos precários, em relações fragmentadas e precárias, por fora dessa relação - a remuneração do trabalho deve se traduzir na remuneração da vida. Nesse sentido, complementa o autor, a crise convoca à luta não por altos salários, mas, em vez disso “a luta por uma continuidade de renda que prescinda da atividade laborativa formal de algum contrato de trabalho” (Fumagalli, 2011, p. 337).
Isso porque a mera restauração das velhas conquistas fordistas e a reestruturação de normas trabalhistas de fábrica favorece uma porção muito reduzida de trabalhadores e negligencia uma série de trabalhadores precários que não aceitam o lugar que lhes designa o sistema. Por isso, os movimentos põem em cena também a necessidade de criar uma nova agenda política, um novo marco de proteção social, que faça justiça a nova composição técnica do trabalho.
Reconhecer a natureza fragmentada, precária, intermitente das realidades produtivas contemporâneas é o primeiro passo para inventar novos direitos que favoreçam outra relação com a atividade produtiva. No contexto do capitalismo cognitivo, resistir e criar devem ser atividades sincrônicas, isso porque como expõe Lazzarato (2006, p. 219) “a recusa não é mais do que o primeiro plano de uma luta que se trava simultaneamente sobre um segundo plano, onde ela é sempre resistência e invenção”.
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Notas
Autor notes
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