Resumo: O presente artigo tem como tema central estudos sobre o conceito de multidão. Para embasar as análises e elaborações que atravessam esse conceito, inicia-se o artigo realizando uma breve reflexão sobre como a ideia de grandes agrupamentos ou de sujeito coletivo foi vista ao longo do tempo. Para tal, destacam-se os períodos da formação filosófica e da política dos Estados nacionais soberanos (século XVI) e o da formação daquelas que ficaram conhecidas como sociedades de massa (século XIX). Concluindo a primeira sessão deste artigo, reconhecemos a reemergência da multidão na virada do final do século XX para início do XXI, momento em que o debate sobre a multidão reaparece e os contornos extremamente negativos que a noção assumia majoritariamente nos períodos anteriores começam a ser progressivamente desmantelados. A multidão reemerge, assim, enquanto dispositivo capaz de se contrapor ao Império no seu fazer-se. Para nos relacionarmos com essa capacidade da multidão, analisam-se proposições teóricas pós-operaístas, em especial de Antonio Negri, percorrendo três principais trilhas: a multidão enquanto multiplicidade, enquanto classe e sua relação com o comum.
Palavras-chave: multidãomultidão,classeclasse,comumcomum.
Abstract: This article is devoted to studies on the concept of multitude. In order to support the analyzes and elaborations on this concept, the article begins with a brief reflection on how the idea of large groups or collective subject has been seen throughout history, with emphasis on the period of the philosophical and political formation of the sovereign States (16th century) and the period of formation of those that became known as mass societies (19th century). Concluding the first session of this article, we recognize the reemergence of the multitude at the turn of the late 20th century to the beginning of the 21st century, when the debate about the multitude reappears and the extremely negative contours that the notion assumed predominantly in previous periods begins to be gradually dismantled. The multitude, in its making itself, thus reemerges as a device capable of opposing the Empire. To access this capacity of the multitude, we analyze especially the propositions of Antonio Negri in three main axes: the multitude while multiplicity, and while class and its relation with the common.
Keywords: multitude, class, common.
Artigo
Fazer-se multidão: multiplicidade, classe e comum
Making multitude: Multiplicity, class and common
Recepção: 12 Julho 2017
Aprovação: 24 Julho 2017
O presente artigo tem como tema e objetivo tratar e produzir estudos sobre o conceito de multidão. Para tal, propõe-se a realização de uma série de problematizações relacionadas com o “fazer-se multidão” que vão desde como o conceito de multidão foi abordado e desenvolvido ao longo da história, destacando-se especificamente dois períodos de particular relevância para o pensamento sobre o social, a saber, o período da formação filosófica e política dos Estados nacionais soberanos e o período da formação do que ficou conhecido como sociedades de massa, até os desenvolvimentos mais contemporâneos do conceito. Reconhece-se neste artigo que os desenvolvimentos teóricos e conceituais sobre a multidão podem contribuir para o campo das ciências sociais e também das ciências sociais aplicadas ao trazer para o centro da cena uma abordagem inovadora e heterodoxa sobre o social e também sobre as ideias de grandes agrupamentos, ou, ainda, de sujeito coletivo. Acrescenta-se, ainda, que as transformações ocorridas, pelo menos nos últimos 20 anos, nos modos de se produzir e viver, em escala global, são extremamente atravessadas pelos processos de digitalização e de comunicação, cooperação e trabalho em rede. Nesse sentido, a realização de estudos sobre a multidão adquire substancial relevância dado que o conceito de multidão, em seus desenvolvimentos mais recentes, lida e se relaciona diretamente com tais transformações, como veremos.
Contudo, antes de entrarmos no debate, específico, sobre o “fazer-se multidão” na contemporaneidade, objetivo central do presente artigo, como dito, vale retrocedermos de forma breve no tempo. Etimologicamente podemos situar a palavra multidão como derivada do latim multitudo que estaria relacionada com as ideias de “muitos” ou “grande quantidade” seja de pessoas, animais ou coisas, se aproximando assim das ideias de aglomeração e abundância. Entretanto, há outros significados associados a multitudo, onde a multidão assume um caráter de desordenamento e aparece como sinônimo de turba que é uma palavra utilizada para designar entre outras coisas o movimento de torção ou tumulto. Não temos como objetivo particular aprofundarmos o debate da origem dessa palavra. Nesse sentido, ressalta-se que somente o colocamos aqui a título de contextualização geral e para que possamos nos aproximar melhor do significado que a palavra multidão assumiu ao longo da história e também suas apropriações contemporâneas.
Antonio Negri, no livro Cinco lições sobre o Império (2003), descreve uma disputa sobre o conceito de multidão que ocorreu por volta do século XVII. O autor afirma que, antes do aparecimento do conceito de multitudo na obra de Espinosa, a ideia de multidão esteve sempre marcada, no pensamento político que antecede o autor, com uma conotação negativa. Por esse ângulo, a multidão era definida essencialmente como “uma matéria a ser formada, ao invés de como matéria que continha em si um princípio formativo” (Negri, 2003, p. 139). Nessa conotação, a multidão, pode-se dizer, definia a falta de ordem de uma multiplicidade de sujeitos. Aqui, encontramos o conceito de multidão formulado a partir de uma ausência, uma falta e não da abundância e, nesse sentido, a multidão precisaria de uma causalidade externa que lhe formasse, ou seja, precisaria de contornos e limites. Já para Espinosa, o termo multitudo expressaria uma multiplicidade de singularidades que se situam “em alguma ordem” (Negri, 2003, p. 139). Há uma diferença marcante aqui, enquanto em uma visão a multidão seria definida pela “falta da ordem”, na outra, a multidão se organiza em “alguma ordem”, ou seja, é capaz de produzir as suas próprias e singulares organizações. Essa diferença, marcou decisivamente os desenvolvimentos teóricos filosóficos do pensamento sócio-político moderno, e pode ser bem localizada nas disputas e polarizações entre os conceitos de povo e multidão, ou, entre o “fazer a multidão” e o “fazer-se da multidão”.
Hobbes é considerado um dos pioneiros, se não o pai, das bases filosóficas do Estado soberano moderno. Suas famosas teorias sobre o “estado de natureza” e “contrato social”, apesar de já terem sido revisitadas, reformuladas, criticadas e desconstruídas inúmeras vezes, são ainda hoje fortes alicerces do pensamento sobre o social. Um dos principais motivos disso, se dá, exatamente, em torno da sua formulação do conceito de “povo”. Para Hobbes, a grande disputa de sua época se dava na rivalidade entre povo e multidão, pois a esfera pública só poderia ter como lógica de funcionamento a um ou ao outro. O Estado formaria e estaria calcado no povo e com isso poderia lhe atribuir uma vontade única, ou seja, dar-lhe os contornos necessários para a unificação dos sujeitos e interesses dispersos. Nas palavras de Virno: “O conceito de povo, segundo Hobbes, está estreitamente associado à existência do Estado; não é um reflexo, uma reverberação: se for Estado, é povo. Se faltar o Estado, não pode haver povo” (Virno, 2003, p. 5). Nessa visão, a unidade política necessária para romper com o estado de natureza, ou a guerra de todos contra todos, se daria a partir, exatamente, do pacto entre o Estado e o povo. Com isso, nesta perspectiva, seria possível que o homem cessasse de ser o lobo do homem. A questão é que a multidão afasta-se desse pacto, na medida que sua “natureza” seria a multiplicidade incomensurável e, portanto, não seria capaz de realizar a operação de transferência de seus direitos naturais, ou sua liberdade, para o soberano, o Estado, e com isso tornar-se um povo convergindo na unidade estatal. A multidão é, nesse sentido, contra o Estado, um “obstáculo que pode chegar a atolar a ‘grande máquina’” (Virno, 2003, p. 5). Os resultados dessa disputa, todos sabemos: a ideia de multidão foi preterida em favor da ideia de povo, que acabou por constituir um modelo geral de organização da esfera sociopolítica.
No final do século XIX, o aprofundamento da produção industrial e os modos de vida correlatos reformulam as disputas entre povo e multidão. Se antes essas disputas estavam principalmente relacionadas às questões sociopolíticas da soberania, a partir daí elas se difundem pela esfera produtiva e econômica. Nesse contexto, surge o que ficou conhecido como sociedades de massa. A massa assume alguns contornos tanto do povo, quanto da multidão, ao mesmo tempo que não se iguala nem a um, nem ao outro. A massa não é povo, ou seja, não é um conceito de unidade homogênea organizada por um poder central. Contudo, também não é multidão, visto que não é uma multiplicidade incomensurável dotada de uma potência própria. A massa, nesse sentido, reúne a multiplicidade da multidão mas também a necessidade de ser criada e organizada “por fora”, como o povo.
Um trabalho seminal realizado nesse contexto é o livro de Le Bon: The Crowd, publicado originalmente em 1896. Suas análises aproximam a ideia de multidão do que posteriormente ficou conhecido como massa2 e, pode-se dizer, antecipa-a. Para Le Bon, na multidão, os indivíduos subjugam a sua individualidade e valores morais como requisitos para participarem de um grande todo amorfo, ou seja, um conjunto ao mesmo tempo confuso e indistinto. Essa característica da multidão liberaria a parte “selvagem” dos indivíduos, seus impulsos egoístas. O padrão moral das multidões seria muito baixo, visto que são impulsivas, fluídas e estão em um constante movimento de entrada e saída do caos. No rápido movimento da multidão o indivíduo se dissolveria em favor de se tornar uma mera parte de um grande todo. Isso aconteceria através do tremendo efeito contagioso das multidões. Le Bon chega a compará-las a uma epidemia, capaz de infectar aqueles que se aproximam. Em suma, na visão de Le Bon o efeito contagioso da multidão têm três aspectos nefastos: o desaparecimento da consciência individual; a predominância de uma personalidade inconsciente e portanto “selvagem”; e a tendência a incorporar conjuntamente determinadas ideias e sentimentos através de processos de sugestão. O último ponto desse esquema é particularmente interessante pois lida com a questão específica da mobilização e organização da multidão. Para definir a ideia de sugestão Le Bon se utiliza da imagem de uma pessoa hipnotizada, ou seja, que está sujeita ao controle externo de um hipnotizador. Neste aspecto, nos parece que Le Bon está bem próximo da ideia de manipulação.
No pensamento de Le Bon há uma vontade instintiva da multidão de se submeter à autoridade de um chefe, ou, ainda, de um líder. Essa autoridade se utilizaria de técnicas de persuasão para guiar um grande agrupamento, criando-lhe uma identidade coletiva. Nas suas palavras: “Uma multidão é um rebanho servil que é incapaz de agir sem um mestre” (Le Bon, 2001, p. 68, tradução nossa). Nessa condição, por um lado, os indivíduos se tornariam partes de um todo, assim como engrenagens de uma grande máquina, tornando-se autômatos que deixam de ser guiados por sua vontade própria. Por outro lado, segundo Le Bon, a multidão assumiria características da manada ou horda, onde os indivíduos se encrudeleceriam como bárbaros, ou seja, como criaturas que agem por instinto. Haveria, assim, uma regressão civilizatória e entrariam em cena as dimensões de espontaneidade, violência e ferocidade mas também de entusiasmo e heroísmo características dos seres primitivos (Le Bon, 2001, p. 19). As reflexões de Le Bon se desenvolvem no estabelecimento das grandes metrópoles ocidentais e no surgimento de sociedades complexas fortemente articuladas em classes. Tratava-se da aurora de um modo de trabalho e produção que posteriormente foi qualificado como disciplinar. Logo antes das grandes guerras mundiais e antecipando as gigantescas manifestações de massa, tanto americanistas como soviéticas e nazifascistas, Le Bon estava preocupado em produzir um pensamento que apresentasse a necessidade de que a multidão fosse contida, a fim de evitar que as virtudes individuais fossem degeneradas pelo poder dos grandes agrupamentos caóticos e suas lideranças “oportunistas”. Reencontramos aqui, exatamente, a relação expressa anteriormente entre povo, massa e multidão. Hoje, essa relação parece reabrir-se novamente nos apresentando toda uma nova série de questões.
O final do século XX e início do XXI, foi um período histórico-social marcado pela ideia de transição ou, ainda, de revolução - ao menos aquela do digital. As estruturas comuns que antes atuavam simultaneamente nas mais variadas esferas sociais, institucionais e esquemas de pensamento foram colocadas em cheque com o advento de novas formas de produção e comunicação em rede e da exacerbação da dimensão coletiva e difusa dos modos de vida contemporâneos. Foram muitos os nomes e análises que buscavam dar conta das transformações operadas pelo diagrama rede3. Podemos citar como exemplos de tentativas de apreender esse período as ideias de: sociedade de controle; sociedade em rede; sociedade de risco; trabalho imaterial etc. Nesse contexto o debate sobre a multidão reapareceu de forma bastante expressiva. A partir de no mínimo meados dos anos 1990, os contornos extremamente negativos que a noção de multidão assumia majoritariamente nos períodos supramencionados, a saber, séculos XVII e XIX, começam a ser progressivamente desmantelados. Inclusive, aspectos que antes eram vistos como elementos que deveriam ser contidos e expurgados passam por um processo de ressignificação. A multidão reemerge, assim, com força, enquanto dispositivo capaz de se contrapor ao Império4.
O conceito de multidão em Antonio Negri pode ser sintetizado na seguinte formulação: o nome dado para designar, ao mesmo tempo, o sujeito e o produto da práxis coletiva. A multidão, aqui, apesar de ser apresentada no singular, está diretamente relacionada com uma teoria da multiplicidade. Não se trataria de uma diversidade de conjuntos interligados, como uma colcha de retalhos, mas sim um uno que nem por isso deixa de ser múltiplo. Dessa forma, a multidão expressaria potência não apenas como conjunto, mas também como singularidade (Negri, 2004). O conceito de singularidade utilizado nessa definição de multidão parte de um fundo pós-estruturalista, em especial nas leituras espinosistas de Deleuze. Trata-se, portanto, de um conceito de sujeito onde este participa de um todo mas isso não significa que ele seja um produto direto desse todo - já nesse ponto, podemos perceber que nos distanciamos diametralmente tanto de Hobbes quanto de Le Bon. Na multidão negriana as singularidades diferem, ou seja, elas não podem ser identificadas somente no conjunto. Contudo, tampouco contêm consistência enquanto agentes separados ou, ainda, indivíduos. Seguindo essa linha, a multidão seria caracterizada como “conjunto de singularidades”, onde estas não se anulam, pelo contrário, mantêm sua força própria e produzem diferença numa “[...] dinâmica relacional, que permite construir, ao mesmo tempo a si mesmas e ao todo” (Negri, 2003, p. 142). A multidão, nesse sentido, contém um princípio autoformativo, ou seja, a multidão ao criar está ao mesmo passo se criando, assim como se auto-organizando. Portanto, não necessita de uma causalidade externa: na multidão a causa se torna ato, um processo da própria multidão.
Outro ponto de destaque nesse pensamento é que a multidão se caracterizaria por um processo aberto cuja dimensão ontológica se ampara no trabalho. A multidão, nesse sentido, configura também uma teoria de classe, uma tentativa de apreender as dinâmicas e conflitos concernentes à produção realizada pelo sujeito coletivo do paradigma atual do trabalho. Uma tentativa de “repropor o projeto político de luta de classe lançado por Marx” (Hardt e Negri, 2005, p. 146). Vale ressaltar que o conceito de trabalho, aqui, não se restringe a um determinismo economicista ou, ainda, não se limita a ideia de produção de mercadoria mas, sim, se relaciona com as ideias de produção biopolítica, trabalho imaterial e/ou cognitivo. Segundo Lazzarato e Negri (2001), num livro seminal a respeito das recentes transformações das condições da produção, o novo tipo de trabalho tem, do ponto de vista sociológico, sua base material na centralidade da comunicação, do conhecimento, da afetividade e da colaboração como dinâmicas principais da produção, estas organizadas através de redes comunicacionais e informacionais em escala global. Já a ideia de classe, nessa teoria, não se restringe ao operariado e suas formas de organização, uma vez que na passagem da hegemonia do trabalho orientado pelo modelo industrial para esse novo tipo de trabalho descrito, ocorre uma guinada de aceleração, expansão e diversificação das formas de produção. O foco principal passa das relações disciplinares próprias da generalização da relação salarial fabril (valor-tempo de trabalho) e da subordinação ao emprego e suas formas organizacionais (gerências, sindicatos e partidos), para o estabelecimento de uma virada antropológica ou, em outras palavras, para as formas de trabalho difusas nos territórios. O trabalho e a geração de valor, dessa forma, deixam de se concentrar nas estruturas formais de trabalho e se expandem em direção a todos os níveis das relações sociais (Deleuze, 1992). Estaríamos assim diante de um capitalismo cognitivo5 marcado por uma centralidade dos afetos, intelectualização e criatividade nos modos de trabalho, tudo isso conjugado, sobretudo, com a dimensão coletiva, cultural, difusa, em suma, multitudinária, da produção contemporânea. A produção acontece através de uma espiral de criação de formas de vida por meio de formas de vida. Em outros termos, na fábrica social6: não se produz mais-valia como tempo de trabalho excedente, o que se produz é “excedência” - mistura de excedente com existência. Para Negri:
justamente no momento em que a força de trabalho é cognitivo, o desejo de expressão artística apresenta-se em todos os lugares; quando a massa de trabalhadores se transforma em uma multidão de trabalhadores singulares, o ato artístico investe as formas de vida, e estas formas de vida transformam-se na carne do mundo (Negri, 2012, p. 121).
Trabalho, relações afetivas, geração de valor, criatividade, arte, ação política, lazer, consumo, cultura, enfim, produção de subjetividade, tendencialmente, cada vez mais, se entrelaçam e se imbricam. Dessa forma, é a própria vida que é posta a trabalhar, é a própria vida - como obra de arte e carne do mundo - que se torna produtiva e adquire valor dentro do capitalismo contemporâneo.
A multidão enquanto conceito de classe, sem ser aquele dos termos clássicos, nos coloca, ainda, diante de novas indagações. Como apreender o antagonismo e a composição social que está na base do modo de produção contemporâneo? Quando nos referimos a antagonismo, estamos aludindo ao princípio presente no método da crítica da economia política desenvolvido por Marx (2008, p. 48) onde são as “contradições da vida material, o conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção” que podem explicar o funcionamento da existência social, ou seja, a experiência do antagonismo é o princípio do desenvolvimento histórico. Desse modo, Marx (2013, p. 553) afirma que “o desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de produção é o único caminho de sua dissolução e do estabelecimento de uma nova forma”. Pode-se, ainda, acrescentar que:
Para Marx, dizer antagonismo significa […] dizer exploração e divisão do trabalho: antagonismo e exploração são (por assim dizer) homônimos (na oposição absoluta que eles contêm), enquanto exploração e divisão do trabalho são (por assim dizer) sinônimos, porque representam movimentos que no conceito e na realidade convergem (Negri, 2003, p. 253).
Com isto dito, reforçamos, com base no que viemos expondo, que no paradigma atual do trabalho tanto as forças produtivas sociais, quanto as relações de produção contemporâneas, extrapolam os conflitos característicos do “chão de fábrica”, se estendendo por todo os níveis das relações sociais. Afinal, hoje, é por meio da produção de subjetividades, na mobilização da própria vida - como obra de arte e carne do mundo - que a produção e geração de valor, assim como as contradições e conflitos, ocorrem. Nesse sentido, não parece haver lastro na realidade atual nos relacionarmos com uma ideia de antagonismo essencial ou absoluto. Isto é, não parece fazer sentido hoje apreendermos, como no passado, a dinâmica do antagonismo através de um sujeito coletivo privilegiado, o proletário, o qual bastaria tomar consciência de sua condição de explorado para que em um “passe de mágica” rompa e se libere dela. Tampouco reduzir capital e trabalho, proprietários e trabalhadores, a uma antinomia, visto que, nos modos de produção contemporâneos, há passagens e interações difusas e constantes entre eles. Nesse sentido, em parte, para apreendermos o antagonismo e a composição social que está na base do modo de produção contemporâneo, faz-se necessário observar que as singularidades que constituem a multidão não deveriam ser procuradas em um grupo quantificável e localizado. Dessa forma, os instrumentos tradicionais da sociologia parecem não dar conta de apreender a dinâmica multitudinária. Terranova (2004) analisando a questão da classe na cultura de rede, afirma ser um movimento mais interessante ao invés de buscar parâmetros quantitativos baseados em categorias sociais, concentrar as análises diretamente no “trabalho”. Afinal: “o trabalho cognitivo se tornou sujeito político, ou se preferirmos, tornou-se classe, não em termos economicistas, mas classe que se afirma politicamente através da luta” (Roggero, 2012, p. 60). A produção de subjetividade se tornou o terreno fundamental de referência. Nos encontramos, precisamente, num ponto nevrálgico da formulação do conceito de multidão em Negri, pois nesse pensamento a multidão não pode ser entendida como uma categoria sociológica a priori, exatamente porque ela só adquire consistência no horizonte do conflito, por dentro e contra do trabalho contemporâneo, a luta seria a sua dinâmica organizacional. Nesse sentido, as tradicionais categorias socioeconômicas de classe, parâmetros como faixas de renda, faixa etária, regionalização, tipos de inserção nas relações de produção etc., apesar de importantes indicadores sociais, não podem ser compreendidos isoladamente ou, ainda, mais indispensável do que isso, é perceber que a multidão deve ser compreendida em seu fazer-se - que se difunde por toda parte e o tempo todo. Isso significa, em suma, que ela afirma-se politicamente através da efetividade da luta, da pretensão e desejo de ser multidão, da produção de novos e outros valores, de uma própria ética, formando-se, muitas vezes, de modo intempestivo, aleatório e caótico, mas não por isso menos capaz de inventar novas realidades e novos poderes - constituintes. Podemos verificar esse ponto nas palavras de Hardt e Negri: a multidão é “formada por todos aqueles que trabalham sob o domínio do capital, e, assim potencialmente como a classe daqueles que recusam o domínio do capital” (2005, p. 147). Fora de seu próprio processo de constituição, ou seja, da produção de outros valores daqueles do capital, a multidão perde densidade e a realidade sociológica que se impõe é aquela organizada, contínua, extrema e dramática da fragmentação social - balas, sejam perdidas ou não, ricochetes e estilhaços para todos os lados.
Como pode-se verificar, e talvez incorrendo em certa repetição, o conceito de classe e portanto de trabalho, na multidão, está relacionado à ideia de descontinuidade ou, melhor, metamorfose, convergência de movimentos e desejos de transformação, e até contágio. Abrange as lutas por melhores condições de vida e, principalmente, por diferentes modos de vida que se materializem na desconstrução de certos tipos de relações de poder constituídas e codificadas em vetores e valores morais abstratos. Criação de mais liberdade e negação das amarras em um só movimento. Nas palavras de Negri:
[…] quando falamos em multidão nos referimos a uma multiplicidade não esmagada na massa, mas capaz de desenvolvimento autônomo, independente, intelectual. Desenvolvimento das potências do trabalho, que torna a força-trabalho capaz de acabar com a dialética da servidão e da soberania por meio da reapropriação dos instrumentos de trabalho e dos dispositivos de cooperação. Desse ponto de vista, traduzindo o tema em termos políticos, poderemos levantar a hipótese da multidão como potência democrática, porque soma liberdade e trabalho, combinando-os na produção do “comum” (Negri, 2003, p. 146).
Pode-se reconhecer aqui a multidão enquanto afirmação de relações mais democráticas que tem na manutenção e produção da existência em comum suas finalidades e métodos - inseparáveis. Nos encontramos diante de mais um ponto nevrálgico ou, ainda, uma extensão e complementariedade do que viemos tratando. Se a consistência da multidão se dá no horizonte do conflito que atravessa o trabalho contemporâneo, este tipo de produção - biopolítica - só se materializa através das máquinas ontológicas que se formam e se estendem pelas redes de cooperação no plano da produção de mais liberdade ou, com efeito, no “comum”.
Na esteira do pensamento que viemos seguindo, o comum aparece como projeto ou esfera política que se distancia tanto da esfera do privado quanto do público. Tampouco se constitui como uma terceira via, pois o comum se contrapõe às linhas privatista e estatal, comando e exploração, na medida em que estas dependem da “excedência” produzida em comum para se perpetuarem, enquanto “a multidão é um nome ontológico […] de produção contra sobrevivências parasitárias” (Negri, 2003, p. 177). Outro aspecto relevante dessa noção de comum é que, para além de uma visão restrita sobre o comum como “bens”, parte-se de uma perspectiva que engloba tanto recursos naturais como também, sobretudo, o conjunto produtivo e vivo das relações sociais, afetivas, comunicacionais, cooperativas, cognitivas, imateriais, em suma, biopolíticas. Estas duas dimensões não são separadas: no comum as forças materiais e imateriais, natureza e cultura, lobo e homem, são um mesmo e único movimento espiralado. Nesse sentido, o comum nunca é “algo natural”, o comum é e deve ser sempre produzido, constituindo-se como um terreno de disputa.
A questão é que a multidão e o comum não podem ser desarticulados, são conjuntamente partes constituintes da produção biopolítica que “deixa perfeitamente claro que o comum é ao mesmo tempo pressuposição e resultado: não pode haver cooperação sem a vigência de uma partilha” (Hardt e Negri, 2005, p. 437). O fazer-se da multidão projeta o comum em movimentos centrífugos e centrípetos, transversais, em contínua expansão, sendo o principal “resultado” da produção biopolítica o próprio comum e o:
[…] comum que compartilhamos serve de base para a produção futura, numa relação expansiva em espiral. Isso talvez possa ser mais facilmente entendido em termos da comunicação como produção: só podemos nos comunicar com base em linguagens, símbolos, ideias e relações que compartilhamos. Por sua vez, os resultados de nossa comunicação constituem novas imagens, símbolos, ideias e relações comuns. Hoje, essa relação dual entre a produção, a comunicação e o comum é a chave para entender toda atividade social e econômica (Hardt e Negri, 2005, p. 256).
O fazer-se multidão, dessa forma, depende da produção do comum, ao mesmo passo que é ela que tem a potência de produzir as condições e composições em que o comum não é efeito nem transcendência, mas sim uma força viva.
Neste artigo realizamos uma série de estudos sobre o conceito de multidão partindo de reflexões de como este conceito foi sendo apropriado através da história, destacando seus desenvolvimentos no período da formação filosófica e política dos Estados nacionais soberanos (século XVI) e na formação das ditas sociedades de massa (século XIX). Após esta etapa demonstramos a reemergência do conceito de multidão e sua expressão em seu fazer-se enquanto potência que recusa o domínio do capital capaz de se contrapor as amarras da exploração e subjugação no final do século XX e início do XXI. Para tal, percorremos, especialmente na visão de Negri, três principais trilhas sobre o conceito de multidão na contemporaneidade, a saber: aquela da multidão enquanto multiplicidade que contêm um princípio autoformativo; enquanto classe, onde seu fazer-se se difunde por toda parte e, por fim; na sua relação indissociável com a produção do comum.
A problematização proposta neste artigo pretendeu demonstrar a dimensão e as características multitudinárias que emergem na sociabilidade contemporânea. Para tal, demostramos distintas concepções sobre a multidão que podem ser sintetizadas nas disputas e diferenças entre um “fazer a multidão” e um “fazer-se multidão”. Para os propósitos do artigo concentrando-nos, em particular, nas formulações em torno do “fazer-se multidão” enquanto dispositivo capaz de se contrapor ao Império. Dessa forma, pretendeu-se também compor uma “caixa de ferramentas” teóricas e conceituais que possa auxiliar e contribuir no árduo trabalho de se fazer pesquisas no campo das humanidades hoje. Entretanto, mesmo diante de tudo que foi exposto, a guisa de conclusão e como uma possibilidade para maiores desenvolvimentos em outros trabalhos do presente artigo, podemos afirmar, sem rodeios, que a multidão não passou despercebida pelo capital ou, melhor, que há uma constante tentativa de mobilização do trabalho da multidão enquanto vetor de riqueza e valor para acumulação privatista. Com efeito, a configuração presente de diversificação dos modos de mobilização do trabalho e produção de valor(es) - cooperativos e colaborativos em rede - demanda um esforço de complexificação das perspectivas em torno da ideia de multidão, e parece exigir que ultrapassemos a mera afirmação da produção biopolítica, do comum e da multidão como novas condições da produção contemporânea. Afinal, atualmente tudo indica que a cooperação entre singularidades em rede é passível também de ser “organizada por fora”, e não apenas o capital se deu conta da existência do comum e da multidão, como vem tentando, intensamente, mobilizá-los e assim torná-los uma rentável fonte de valorização dele próprio. Temos como fortes exemplos disso os processos de crowdsourcing e também o que se vem denominando de uberização. Assim, reconhecemos que o “fazer-se multidão” não adquire corpo ou, se preferirmos, densidade, se não forem encontradas as maneiras de se efetuar - materialmente - a junção da produção do/em comum com o êxodo das relações de exploração e subjugação. Entretanto, gostaríamos ainda de ressaltar que a inflexão na potência da multidão e em seu “processo interno” de fazer-se apesar de se ancorar na oposição entre trabalho e capital, não se sustenta sem o reconhecimento de que o trabalho multitudinário se efetua, na prática, por dentro do capitalismo e suas redes. Exatamente por isso, não nos parece haver lastro na realidade a afirmação taxativa de que os modos de produção do/em comum são - necessariamente e sempre - contra o capitalismo, ou mais, que se materializam sempre “por fora do capitalismo”. Levando em conta tal observação, a questão em torno do “fazer-se multidão” passaria pela compreensão de que as tendências e inovações nos modos de produção contemporâneos - capitalistas - engendram as novas formas de luta e organização. Assumindo e incorporando tal problemática as teorias acerca da multidão e da produção do comum poderiam vir ancoradas nos movimentos e condições reais presentes no momento histórico atual, ou seja, não se constituiriam por processos dogmáticos ou transcendentes, que podem acarretar em ignorar os impactos que as teorias e práticas capitalistas tem no próprio avanço da multidão.
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