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O Conselho Estadual do Povo de Terreiro: religiões afro-brasileiras e políticas públicas no Rio Grande do Sul
Marcelo Tadvald; Francisco Abrahão Gonzaga
Marcelo Tadvald; Francisco Abrahão Gonzaga
O Conselho Estadual do Povo de Terreiro: religiões afro-brasileiras e políticas públicas no Rio Grande do Sul
The State Council of the People of Terreiro: African-Brazilian religions and public policies in Rio Grande do Sul
Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 2, pp. 253-261, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
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Resumo: Este trabalho procura problematizar a formulação e a aplicação de políticas públicas governamentais nos últimos anos voltadas às religiões afro-gaúchas, a partir do contexto de formação e das recentes ações do Conselho Estadual do Povo de Terreiro (CPTERS) no cenário político local e suas principais diretrizes. A seguir, resgatamos algumas ações persecutórias advindas de parlamentares gaúchos nos últimos anos (2003, 2005, 2015) que procuravam restringir práticas litúrgicas que envolvem o livre exercício das afro-religiões no Rio Grande do Sul. A partir de uma discussão histórica e atual e de referências do campo dos estudos de religião e sociedade, buscamos situar o caso do CPTERS em um quadro maior de análise envolvendo temas como a etnicidade, o racismo e a intolerância religiosa.

Palavras-chave: Políticas PúblicasPolíticas Públicas,afro-religiõesafro-religiões,Rio Grande do SulRio Grande do Sul.

Abstract: This work seeks to problematize the formulation and application of governmental public policies in recent years focused on the Afro-Gaucho religions, based on the formation context and recent actions of the State Council of the People of Terreiro (CPTERS) in the gaucho political scene. Following, we argue about some persecutory actions by local parliamentarians in recent years (2003, 2005, 2015), which sought to restrict liturgical practices that involve the free exercise of afro-religions in Rio Grande do Sul starting from a historical and present discussion and from references from the field of social studies of religion, thus seeking to situate the case of CPTERS within a larger framework of analysis involving themes such as ethnicity, racism and religious intolerance.

Keywords: public policies, african-religion, Rio Grande do Sul.

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Artigo

O Conselho Estadual do Povo de Terreiro: religiões afro-brasileiras e políticas públicas no Rio Grande do Sul

The State Council of the People of Terreiro: African-Brazilian religions and public policies in Rio Grande do Sul

Marcelo Tadvald
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Francisco Abrahão Gonzaga
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 2, pp. 253-261, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 04 Abril 2017

Aprovação: 05 Julho 2017

Introdução

Este trabalho procura problematizar a formulação e a aplicação de políticas públicas governamentais nos últimos anos voltadas às religiões afro-gaúchas. Para isso, traçaremos um breve histórico das relações entre este segmento religioso e o Estado brasileiro além de um panorama de sua presença no Rio Grande do Sul. Em seguida, será exposto o contexto de formação e as recentes ações do Conselho Estadual do Povo de Terreiro no cenário político gaúcho e suas principais diretrizes.

A fim de atualizar as ações deste Conselho no quadro atual de problemas políticos e sociais enfrentados pelas populações afrorreligiosas no sul do Brasil, resgatamos a questão persecutória que ocorreu em 2003 se estendendo até 2005 e que foi recentemente atualizada em uma nova ação parlamentar promovida em 2015 pela deputada estadual e evangélica Regina Becker Fortunati, que procurava restringir certas práticas litúrgicas que envolvem o livre exercício das afrorreligiões no Rio Grande do Sul. A partir de uma discussão histórica e atual, buscamos situar o presente caso num quadro maior de análise envolvendo temas como a etnicidade, o racismo e a intolerância religiosa.

O Estado brasileiro e as religiosidades de matriz africana: breve histórico de uma relação conturbada

As religiões afro-brasileiras são o resultado de um longo processo envolvendo a conservação e a transformação da memória coletiva africana no Brasil. Num contexto marcado pela realidade escravocrata, populações negras traficadas como mão de obra trouxeram consigo crenças, rituais, práticas e visões de mundo que foram adaptadas e rearticuladas de acordo com as demandas desta nova realidade social e geográfica imposta (Gonçalves da Silva, 2005).

Neste processo, a herança cultural africana é inevitavelmente sincretizada com outras formas de religiosidade - especialmente com o catolicismo, com a espiritualidade indígena e, posteriormente, com o espiritismo kardecista, dando origem a manifestações religiosas brasileiras inteiramente novas e que, no curso das últimas décadas, tem se transnacionalizado para outros países (Oro e Tadvald, 2014; Tadvald, 2014).

No que se refere ao campo afrorreligioso, de acordo com Oro (2005, 2008), a expressão “religiões afro-brasileiras” cobre uma variedade de cultos organizados no Brasil e que podem ser condensados, segundo um modelo ideal-típico, em três diferentes expressões ritualísticas. A primeira delas cultua os orixás africanos (nagô) e privilegia os elementos mitológicos, simbólicos, linguísticos, doutrinários e ritualísticos das tradições banto e nagô. Neste grupo se encontram o candomblé da Bahia, o xangô de Recife, o batuque do Rio Grande do Sul (Corrêa, 2006; Tadvald, 2016) e a casa de mina do Maranhão. Cada uma dessas religiões compartilha, portanto de uma mesma matriz religiosa, configurando modalidades regionais e expressões das culturas religiosas africanas espalhadas pelo Brasil e que possuem importantes variações litúrgicas, linguísticas e estruturais entre si.

A segunda forma ritual, que parece ter surgido no Rio de Janeiro no final do século XIX, inicialmente chamada de macumba, recebeu mais tarde nomes diferentes de acordo com as regiões brasileiras, os mais comuns sendo quimbanda, linha negra, magia negra, umbanda cruzada e linha cruzada. Essa expressão religiosa afro-brasileira cultua os exus e pombagiras, entidades de intermediação entre os homens e os orixás. Tais expressões desta segunda forma ritual realizam imolações (“sacralizações”) de animais.

A terceira forma ritual é a umbanda, também chamada em alguns locais de umbanda linha branca, surgida no Rio de Janeiro, no começo do século XX, estruturada de forma sincrética a partir de elementos provenientes das tradições católica, africana, indígena, kardecista, oriental, centrando-se no culto aos pretos-velhos (muitos deles entidades que foram escravos de outra vida) e caboclos (entidades indígenas comumente relacionadas às questões de saúde e de curandeirismo). Esta modalidade não realiza a prática do sacrifício de animais.

Também é chamada de linha cruzada a conjunção entre essas vertentes religiosas, dentro de um sistema interdependente. No caso de algumas religiões, como o batuque gaúcho, por exemplo, muitas casas desta linha cruzada também cultuam pretos-velhos e caboclos, realizando assim rituais e práticas umbandistas de linha branca, havendo inclusive tal reconhecimento. Não é incomum que em um terreiro gaúcho de linha cruzada também se pratique a umbanda, dividindo-se assim o calendário litúrgico segundo termos particulares.

As diferentes formas das religiões de matriz africana no Brasil acompanham, portanto uma lógica complexa, que muitas vezes se estrutura a partir de diferentes referenciais religiosos e culturais de maneira que, atualmente, tais religiões são vivenciadas de forma livre constitucionalmente, ainda que certos grupos busquem ressignificar de formas múltiplas as históricas perseguições a este campo no intuito de modificar a lei no sentido de promover um retrocesso jurídico e social conforme será mostrado adiante.

Durante o período colonial, e especialmente sob a Inquisição no Brasil (1591-1769), as práticas religiosas de origem africana foram vistas como feitiçaria, prática diabólica e enquadradas nos “crimes contra a fé” (Sogbossi e Costa, 2008, p. 134135). Resgatando o Código Criminal das Ordenações do Reino das Filipinas (1603-1830) - o mais amplamente empregado no Brasil durante o período colonial, Silva Jr. (2007, p. 304-305) relatou distintos mecanismos de subjugação do escravo africano ali presentes. Entre eles, destacavam-se as criminalizações da heresia, com punição de penas corporais; da blasfêmia de Deus ou dos santos; da feitiçaria, punindo o feiticeiro com pena capital; de reuniões, festas ou bailes organizados por escravos assim como a punição da “vadiagem”. Verificou-se que todos estes expedientes podiam ser utilizados para o controle da população negra escrava e, consequentemente, para a perseguição às suas formas de culto.

Com a outorga da Constituição de 1824, promoveram-se algumas mudanças, mas o ordenamento jurídico seguiu conduzindo as variadas tipificações criminais das manifestações culturais envolvendo grupos africanos. O código criminal do Império, tomado como símbolo da modernidade e das novas ideias liberais em voga na Europa, apresentou diversas normas destinadas à contenção da rebeldia negra, como as criminalizações da insurreição, da vadiagem, da mendicância e a punição de celebração, propaganda ou culto de confissão religiosa que não fosse a oficial (Silva Jr, 2007, p. 307-308). Para Sogbossi e Costa (2008, p. 135), na Constituição do Império, “as religiões de presença africana eram encaradas como divertimento de negro, sujeitas à autorização e a serem perseguidas como feitiçaria e curandeirismo”.

A partir do processo de abolição da escravidão, no ano de 1888, e da Proclamação da República, em 1889, o Brasil adentrou em uma nova ordem social e política, sendo instituídos um novo Código Penal (1890) e uma nova Constituição (1891). Neste contexto, apesar de alegada a “liberdade de crença”, calcada nos pressupostos positivistas e liberais importados da Europa e em boa medida promovida por setores sociais atinentes às elites, como os maçons (Fausto e Devoto, 2005), foi possível criminalizar atos enquadrados como “curandeirismo”, “espiritismo”, “mendicância”, “vadiagem” e “capoeiragem” a partir de uma lógica própria, mormente racista e intolerante.

Também contraditória é a suposta igualdade legal conferida a brancos e negros, no seio do processo de urbanização e de industrialização do país. O ex-escravizado, agora trabalhador assalariado, migrou rumo às cidades para ocupar posições marginalizadas étnica e economicamente. A rigor, no processo de abolição não esteve cotejado qualquer projeto satisfatório de inserção das populações de origem africanas na sociedade brasileira que lhes garantisse uma possível emancipação do ponto de vista socioeconômico e de prestígio.

Quanto a isso, Fernandes (1965, 1972) mostrou como no Brasil se fomentou uma sociedade de classes em que os negros e os mulatos jamais conseguiram se integrar plenamente, pois sofreram processos de exclusão de diferentes ordens ao longo da história, que lhes impediu de acessar a uma melhor acomodação socioeconômica dentro das estruturas sociais. Para este autor, em certo sentido, tais populações tiveram de aceitar a ordem social vigente, deixando debates de natureza ideológica e utópica mais amplas, leia-se: “contestadoras a esta ordem”, para outras esferas sociais.

Tal perspectiva se mostra particularmente atual, pois todos estes grupos legaram uma espécie de “mito da democracia racial” que se criou por aqui, e que encontrou no trabalho de Freyre (1981, 2005) a sua gênese acadêmica e máxima expressão.

Mas retomando uma expressão de Florestan Fernandes, a ascensão plena como “homens livres” dos negros, mulatos, índios e outras tantas identidades desalinhadas do modelo normativo racista vigente consiste em um dentre tantos elementos pertencentes a este mito da democracia racial brasileira. Conceber o Brasil como um “mosaico de raças integradas” consiste em um falso idealismo, que serve apenas para evitar que um debate mais amplo e contundente se promova na opinião pública e para reafirmar e garantir a hegemonia de grupos sociais determinados.

Numa época em que prevaleciam as teses científicas que explicavam a aparente inferioridade social dos negros devido a suposta inferioridade genética e/ou evolutiva, como era o caso dos estudos de Viana (1959) e, antes dele, de Rodrigues (1932), para quem os negros eram tão somente uma espécie de “objeto da ciência”, paradigmas como o de Freyre que apostavam na harmonia social advinda da miscigenação, não contribuíram no sentido de integrar e harmonizar a nossa diversidade social, antes mascarando a histórica segregação e violência que acomete certos grupos. Neste sentido, Gonçalves da Silva (2005, p. 54) mostrou que, historicamente,

Os valores da ordem, da higiene, da moda, dos hábitos comedidos se chocavam com os da africanidade expressos [...] principalmente, em sua religião, onde os deuses eram recebidos no êxtase do transe produzido por danças sensuais, músicas agitadas e numa alegria estapafúrdia que envolvia o consumo de comidas exóticas e também de bebidas alcoólicas.

Com isto, tem-se que as teorias racistas científicas também ajudaram a legitimar a discriminação das religiões afro-brasileiras neste período da primeira metade do século XX dominado por uma visão evolucionista. Para Prandi (2011, p. 19), as religiões de matriz africana, até pouco tempo atrás (mas que de certa maneira se trata de uma visão que perdura, atualizada em outros discursos), eram tidas como uma “praga” prejudicial ao Brasil e à sua civilização, e que deveria ser erradicada, pois “o preconceito racial, que considerava o negro africano um ser inferior ao homem branco, desdobrou-se em preconceito contra a religião fundada por negros escravos e livres”, servindo de base para a perseguição de autoridades governamentais, da polícia e de muitos órgãos da imprensa que repercutiam e fortaleciam a opinião popular daqueles setores mais bem inseridos na sociedade nacional.

Ainda que o quadro atual, especialmente após a redemocratização em 1985, seja mais favorável às chamadas “minorias” segundo certas políticas afirmativas, prevalece no Brasil uma ordem social que segue reconhecendo a sua pluralidade, mas que, ao seu modo reinventado, perpetua mecanismos não inclusivos desta pluralidade no seio da nação. E, o esforço de consolidação de grupos minoritários nas esferas do poder instituído se configura na abertura de uma nova e importante frente de batalha e de legitimação que merece ser acompanhada enquanto fenômeno salutar na tentativa de emancipação política e social de grupos historicamente marginalizados e perseguidos pela nação brasileira.

Evidentemente, este breve quadro histórico não pretende reduzir as religiões afro-brasileiras a uma simples posição de passividade frente às arbitrariedades do Estado e da sociedade nacional. Antes disso, trata-se de trazer à tona exemplos concretos que evidenciam as dificuldades históricas de reconhecimento pelas quais essas religiosidades passam, tanto a nível legal quanto social.

Conselho do Povo de Terreiro: criação e contextualização

Em junho de 2014 foi decretado pelo governo estadual a criação do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul (CPTERS), com a finalidade de “desenvolver ações, estudos, propor medidas e políticas públicas voltadas para o conjunto das comunidades do povo de terreiro do Estado, caracterizando-se como um instrumento de reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política e cultural e da eliminação das discriminações” (Art.1 do Decreto nº 51.587). Por “Povo de Terreiro”, tal decreto entendeu “o conjunto de mulheres e homens vivenciadores de matriz africana e afro-umbandistas que foram submetidos, compulsoriamente, ao processo de desterritorialização, bem como de desenraizamento material e simbólico [...] de várias partes do continente africano”.

A efetivação deste conselho, junto ao gabinete do governador do Estado, tratou-se de iniciativa pioneira na política nacional e pode ser vista como um marco deveras relevante para as negociações entre os afrorreligiosos e o poder público. Cabe lembrar que a criação do conselho, apesar de pioneira, inseriu-se numa agenda maior de políticas públicas nacionais que visavam a reparação de danos históricos causados à população negra no processo de formação e de desenvolvimento da sociedade brasileira.

Nos últimos anos, tem crescido iniciativas governamentais de combate ao racismo e de valorização da herança cultural africana. Como exemplos, tivemos em governos federais passados a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), além da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares (Lei nº 10.639/2003) e da implementação de ações afirmativas como as cotas raciais em diferentes universidades e concursos públicos.

No entanto, tratar a criação do Conselho nos termos de uma mera “concessão governamental” seria um particular equívoco, na medida em que a mesma é o resultado explícito de um movimento que, pelo menos desde 2011, mantém negociações constantes entre o Povo de Terreiro e o governo do Estado do Rio Grande do Sul. O ano de 2011 pode ser usado como um marco referencial para essa articulação, já que, naquele mês de janeiro, foi entregue um primeiro documento formal ao governo do Estado, contendo reivindicações para a garantia de direitos do Povo de Terreiro e das populações de ascendência africana. Tal documento foi formulado a partir de diversas lideranças de matriz africana que compuseram a Terceira Marcha Estadual pela Vida e a Liberdade Religiosa.

Em novembro de 2011 foi entregue uma nova carta ao governador quando de uma audiência pública realizada no Palácio Piratini, sede do governo sulista, contendo três reivindicações propositivas: (i) o assentamento imediato de uma representação dos Povos de Terreiro no Conselho Estadual do Desenvolvimento Econômico Social (CEDES); (ii) a criação de um Conselho de Políticas Públicas para Povos de Terreiro, vinculado ao gabinete do governador; e, (iii) a transformação da coordenadoria de Igualdade Racial em uma Secretaria com estrutura para o desenvolvimento de políticas voltadas para o Povo Negro, sem deixar de incluir os Povos Indígenas.

A primeira reivindicação foi atendida pelo governador, e a Ialorixá (mãe-de-santo) Sandralí Bueno ocupou uma cadeira no CEDES como representante do Povo de Terreiro, a partir de dezembro de 2011. Como resultado da participação da sacerdotisa Sandralí no CEDES - vulgo “conselhão”, em novembro de 2012 foi enviada uma nota de recomendação geral desta instância ao então Governador do Estado Tarso Genro, do Partido dos Trabalhadores, em diálogo com a Câmara Temática Políticas de Proteção Social. Entre outras propostas, esta nota recomendava que fosse criado um conselho específico para lidar com as demandas do Povo de Terreiro.

Assim é que, em fevereiro de 2013, foi instituído através de decreto o Comitê Estadual do Povo de Terreiro, já com a atribuição de “propor, sugerir, apontar e elaborar políticas públicas voltadas ao povo de terreiro e às populações de ascendência africana, considerando os pressupostos da xenofilia da cosmovisão africana” (Art. nº 1 do Decreto 50.112).

Para Sandralí, a criação do Comitê já apontava para uma conquista única para o povo de terreiro, apesar de enxergar este, antes de tudo, como uma “ferramenta provisória para a criação do Conselho”, reivindicação já expressa anteriormente quando da entrega de uma carta ao governador, no ano de 2011. O Comitê foi composto por vinte e quatro lideranças afrorreligiosas advindas de mais de dez diferentes municípios do Estado e de seis representantes do governo.

Como já previsto pela criação do Comitê, em fevereiro de 2014, foi convocada a Primeira Conferência Estadual dos Povos de Terreiro, com ampla participação de adeptos do “povo de santo” e de setores do governo do Estado. A conferência durou três dias e a partir dela foram elaboradas oitenta diretrizes para a elaboração de políticas públicas voltadas ao povo de terreiro e às populações de ascendência africana.

O olhar mais apurado sobre tais diretrizes revela a importância da conferência estadual acima referida para a posterior implementação do CPTERS, já em junho de 2014. Antes dela, também foram realizadas vinte e sete conferências preparatórias, a nível municipal e regional, que abrangeram, ao todo, quarenta e nove municípios do Rio Grande do Sul.

As Diretrizes do CPTERS

As oitenta resoluções que foram tiradas da Primeira Conferência Estadual do Povo de Terreiro foram agrupadas em quatro eixos, sendo eles: (i) Direitos Humanos; (ii) Marco Legal, Racismo e Intolerância Religiosa; (iii) Desenvolvimento Sustentável e Comunidade Tradicional; e, (iv) Organização Social, Política e Educação. Para os fins deste trabalho, nos limitamos a destacar algumas diretrizes específicas de cada um dos eixos temáticos, buscando relacioná-las com discussões envolvendo a etnicidade, o racismo e a intolerância religiosa.

O primeiro eixo: “Direitos Humanos”, toma como objetivo aprofundar e pactuar elementos filosóficos e teológicos eminentes ao reconhecimento da visão e da prática cultural e civilizatória do Povo de Terreiro. Nele, encontram-se diretrizes como:

  • reconhecimento dos terreiros como entidades educacionais e agentes de transformação social, criando legislação específica para promover sua integração e interface com os direitos humanos e as demais políticas públicas;

  • reconhecimento das comunidades tradicionais de terreiro como espaço de saber permanente e que, como tal, devendo ser respeitada pelo poder público;

  • garantia pelo Estado e município da revitalização, restauração, manutenção e preservação de espaços públicos, históricos e tradicionalmente utilizados pelo Povo de Terreiro em todos os municípios do Rio Grande do Sul;

  • garantia de acesso à tradição de matriz africana nos espaços de mídia, na TV aberta e nas redes de TV públicas;

  • inclusão dos dias 02 de fevereiro (Dia de Iyemonjá) e 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) como feriados estaduais, a exemplo do calendário nacional.

Como segundo eixo, temos “Marco Legal, Racismo e Intolerância Religiosa”. Seu objetivo é avaliar aprimorar e sugerir propostas de leis e instrumentos de combate à Intolerância Religiosa e de reconhecimento à pratica cultural de Matriz Africana. Como exemplos de diretrizes deste eixo, há:

  • fiscalização e exigência junto às autoridades competentes da efetividade na criminalização do racismo, da intolerância religiosa e da homolesbotransfobia [...];

  • fortalecimento dos instrumentos que garantam o direito de resposta às casas de religião de matriz africana nos casos em que forem citadas de modo negativo em todos os meios de comunicação, no mesmo canal e horário;

  • construção de uma cartilha que oriente os terreiros a se tornarem pessoas jurídicas conforme decreto nº 6040/2007, com isenção de custos;

  • criação do Fundo Estadual de Preservação da Tradição de Matriz Africana, no âmbito do Conselho Estadual do Povo de Terreiro;

  • garantia da utilização de todo e qualquer espaço público para a realização de oferendas, rituais, festas de matriz africana e afro-umbandista, considerando e respeitando os valores civilizatórios de matriz africana;

  • proposição de que seja dado livre acesso aos espaços de saúde (hospitais) para as autoridades de matriz africana, e que sejam respeitados os utensílios sagrados pessoais dos pacientes;

  • proposição de que seja respeitada a autonomia para a criação, produção e consumo de animais, ervas e sementes sagradas;

  • efetivação da laicidade do Estado exigindo a retirada dos símbolos religiosos das instituições públicas.

O terceiro eixo, denominado “Desenvolvimento Sustentável e Comunidade Tradicional”, busca estabelecer um conjunto de diretrizes que legitime ações e programas de interesse do Povo de Terreiro. Entre essas diretrizes, se encontram:

  • criação de uma delegacia especializada em violação de direitos e crimes raciais e de intolerância religiosa;

  • garantia e responsabilização quanto à implementação do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável para os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana em todas as esferas: Município, Estado e União;

  • garantia da efetiva implementação da Lei nº 10.639, com a formação continuada de educadores voltada para a história e cultura africana e afro-brasileira de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo MEC;

  • garantia de subsídio público, financeiro e técnico para a criação de escola de educação básica afrocentrada em articulação com o Povo de Terreiro;

  • mapeamento do Povo de Terreiro no Estado do RS, levantando as potencialidades sobre o modo de organização cultural, político e social, suas estratégias de cuidado, utilizando-as como referência para a construção de políticas públicas nas diferentes áreas;

  • subsídio por parte do poder público para restauração/ construção, manutenção e preservação de patrimônios materiais e imateriais do Povo de Terreiro.

Já o quarto e último eixo é o de “Organização Social, Política e Educação”. Seu intuito é: (i) aprofundar os parâmetros jurídicos de organização institucional do terreiro; (ii) estabelecer um modelo de relação e deliberação para com o Estado; e, (iii) estabelecer diretrizes para a formação do Povo de Terreiro. Aqui, inserem-se diretrizes tais quais:

  • construção de núcleos regionais para a capacitação do povo de terreiro, buscando recursos públicos nas diversas esferas do Estado;

  • proposição de que sejam realizadas consultas prévias às comunidades de povo de terreiro antes da implementação de políticas públicas [...];

  • proposição de que seja dada capacitação aos terreiros para boas práticas de preservação do Meio Ambiente, inclusive no que se refere à utilização de materiais biodegradáveis nas oferendas, através de cursos e cartilhas orientados pelo Conselho do Povo de Terreiro;

  • proposição de fomentar capacitações sobre história, filosofia, teologia africana e afro-umbandista para o povo de terreiro, bem como sobre o marco legal relacionado ao povo de terreiro na perspectiva de potencializar e fortalecer os valores civilizatórios africanos e afro-umbandistas inerentes aos terreiros;

  • reconhecimento do terreiro como Organização Cultural, Educacional, Social e Política.

A mais recente perseguição: a reinvenção em 2015 da lei de 2003 contra a imolação ritual no Rio Grande do Sul

Em 2003 uma polêmica tomou conta da sociedade gaúcha em face da aprovação do Código Estadual de Proteção aos Animais, de autoria do então deputado estadual Manoel Maria dos Santos (PTB-RS), pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular. O código foi transformado em lei em 29 de abril daquele ano, e sancionado pelo governador do Estado de então, Germano Rigotto (PMDB) mas continha parágrafos que colocavam em xeque o livre exercício de práticas rituais pelos cultos africanos que imolam animais no Rio Grande do Sul, notadamente as casas de religião da linha cruzada do batuque gaúcho.

A aprovação do código causou indignação da sociedade afrorreligiosa que percebia na iniciativa uma forma de intolerância, constrangimento e de perseguição às suas liturgias ancestrais e fundamentais. A mobilização e a reação foram significativas, especialmente capitaneadas à época pela Comissão/ Congregação em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras, a CDRAB, criada em novembro de 2002.

Além de outras esferas da sociedade civil, somou-se a esta “frente afrorreligiosa” o deputado estadual Edson Portilho (PT-RS), professor da rede pública e afrodescendente católico ligado ao movimento negro gaúcho. Portilho apresentou um projeto de lei (PL nº 282/2003) para estabelecer uma exceção ao artigo 2 do Código de Proteção aos Animais, permitindo a imolação de animais em cultos de religiões de matriz africana.

Segundo mostraram alguns estudos à época (Oro, 2005; Tadvald, 2007), à parte de toda a polêmica gerada, tal projeto de alteração foi aprovado em 29 de maio de 2003 e a lei foi sancionada pelo governador Rigotto, ainda que este tivesse recebido pressões contrárias de certos segmentos sociais, como de evangélicos e ambientalistas. Contudo, a polêmica não terminaria por aí. Em 27 de outubro do mesmo ano o Procurador-Geral de Justiça, Roberto Bandeira Pereira, a pedido de entidades de defesa dos animais, protocolou no Tribunal de Justiça do Estado uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADin) requerendo a “retirada do ordenamento jurídico” do parágrafo único de autoria do deputado Edson Portilho.

A alegação era de que esse dispositivo seria inconstitucional porque se tratava de matéria penal, de competência legislativa privativa da União. Além disso, argumentava que o Estado não poderia desrespeitar as normas gerais editadas pelo Governo Federal, relativamente à proteção da fauna. Por fim, sustentava que o dispositivo ofendia o princípio de isonomia, ao excepcionar apenas os cultos de matriz africana.

Esta nova ação judicial mobilizou mais uma vez a comunidade afrorreligiosa do Rio Grande do Sul que, em 18 de abril de 2005, enfim viu vencida a tese da constitucionalidade da lei. Assim, o governador do Estado sancionou tanto o Código de Proteção aos Animais quanto à lei aprovada na Assembleia Legislativa, de autoria do deputado Edson Portilho. Ao cabo, a Lei nº 282/2003 foi aprovada pelo governador com a ressalva de proibição, nos rituais de matriz africana, do sacrifício de espécies ameaçadas de extinção e de animais silvestres, assim como a indicação de que a prática sacrificial não ocorresse com requintes de crueldade.

Passados dez anos da aparente solução desta querela, em 2015, à época primeira-dama de Porto Alegre e deputada estadual Regina Becker Fortunati (PDT-RS), ligada aos movimentos de proteção aos animais, propôs uma revisão do Código aprovado em 2005 a partir do Projeto de Lei (PL) nº 21/2015 que previa reconsiderar a legitimidade das imolações de animais para fins religiosos (mas não para fins de alimentação, o que comumente segue às imolações sacrificiais). A seguir destacamos parte do discurso proferido na Assembleia em que a deputada argumenta as razões de seu PL (Becker Fortunati, 2015):

Ao se analisar o parágrafo único do artigo 2º do Código Estadual de Proteção aos Animais, desviou-se, ao meu ver, da questão da constitucionalidade e, a partir daí, foi proporcionada uma abertura para ilações e argumentações. [...] Uma cultura da paz significa respeito às ideias, às manifestações políticas, religiosas, culturais, desde que não comprometam a mais importante, que é a vida em si própria, porque a causa da vida é e sempre será a causa mais importante. Isto não significa desrespeitar posições políticas, ideológicas, religiosas. Não é isto que está em discussão e nunca esteve, desde o início da tramitação do PL 21. Sou ecumênica na relação com outras formas de religiosidade, mas posiciono-me firmemente: nenhuma delas pode afrontar a vida, nas suas formas sublimes e divinas, cada uma delas nas suas especificidades. [...] Os religiosos africanistas se juntam para discutir e preservar suas manifestações. Nós, ativistas dos Direitos Animais, queremos a preservação da vida.

Apesar da deputada se considerar “ecumênica na relação com outras formas de religiosidade”, é importante destacar que a parlamentar professa a fé evangélica, partícipe que é da Igreja Batista, na qual é fiel praticante. Contudo, salvo as manifestações dos grupos afrorreligiosos, tanto a parlamentar, quanto os grupos ambientalistas, quanto a grande maioria dos órgãos de imprensa que cobriram o caso, jamais divulgaram ou reconheceram explicitamente a sua pertença religiosa que se caracteriza historicamente como persecutória à liturgia afrorreligiosa.

O quadro que seguiu a proposta do PL da deputada foi muito semelhante ao observado entre 2003-2005, com a diferença de que os afrorreligiosos haviam aprendido com a experiência anterior a reagir de forma mais imediata e organizada a esta nova ofensiva aos seus direitos litúrgicos garantidos pelo princípio laico de nosso Estado de Direito.

Em nota oficial das instituições representativas do Povo de Terreiro e do povo negro do Estado do Rio Grande do Sul sobre o PL nº 21/2015 emitida pela CPTERS e assinada por outras doze organizações governamentais e não governamentais, percebemos argumentadas as questões fundamentais para esses coletivos, conforme o trecho reproduzido a seguir:

No primeiro dia de mandato na Assembleia Legislativa a deputada evangélica Regina Becker Fortunati protocola o Projeto de Lei nº 21/2015 que intenciona derrubar a Lei Portilho (nº 12.131/04) que assegura aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana o direito à alimentação tradicional cujo processo se dá por meio de um rito de sacralização. A justificativa da deputada é de que “a citada prática de liturgias já não se pacifica com a consciência da sociedade em permanente evolução”, ou seja, a deputada afirma abertamente que sua intenção é extinguir nossas práticas tradicionais, o que resultaria na extinção das Tradições Culturais e Religiosas de Matriz Africana como o Batuque, o Candomblé, a Quimbanda e a Umbanda Cruzada. Fica evidente que a deputada não quer proteger os animais. Acreditamos que se fosse a intenção da parlamentar legislar a favor dos animais não se deteria exclusivamente a cercear a liberdade de culto e de práticas tradicionais dos povos e comunidades de matriz africana. Pensamos que ela deveria estar na porta dos frigoríficos, dos rodeios, dos abatedouros, das churrascarias protestando. Mas não está. Certamente o racismo está implícito nesta ação. Entendemos, pois, que o referido PL é um embuste. É inconstitucional, pois fere diversos marcos legais, incluindo os artigos 5º e 19º da Constituição Federal; seu argumento é racista e seu propósito é a intolerância religiosa (CPTERS, 2015).

Assim, a questão da inconstitucionalidade foi a principal estratégia dos coletivos afrorreligiosos para conseguir o parecer contrário ao projeto. Os outros dois principais argumentos foram a denúncia do racismo e da intolerância religiosa, vinculada às figuras dos parlamentares evangélicos como a Regina Becker Fortunati. A articulação das religiões afrobrasileiras em 2015 foi inconteste quando comparado ao caso de 2003-2005.

Segundo foi possível observar, em todos os eventos e debates públicos na Assembleia Legislativa e em suas cercanias se fez presente um grande contingente de afrorreligiosos, a ponto de ficar difícil encontrar um lugar para permanecer dentro do auditório da Casa, Teatro Dante Barone. Foi uma pluralidade muito significativa de entidades, em boa medida ligadas aos “Povos do Terreiro”. O grupo opositor, baseado na “proteção animal” estava realmente em uma situação minoritária em termos quantitativos, o que tais coletivos procuravam compensar levando muitos cartazes, apitos e balões. Com o decorrer do debate, a “proteção animal” aumentou um pouco o seu contingente, mas o sentimento compartilhado nas audiências públicas era de que o PL não ia passar. E, de fato, não passou.

Em meio a muitos protestos e agitação popular, que divisou o Teatro Dante Barone entre seguidores de religiões de matriz africana e defensores da causa animal e de outros setores religiosos (notadamente evangélicos) que se fizeram presentes, tiveram de ser separados por gradis a fim de evitar confrontos físicos diretos. Afinal, em 28 de abril de 2015, a Comissão de Constituição e Justiça analisou o projeto de autoria da deputada que posteriormente foi enfim votado - dado que a votação fora adiada por duas vezes anteriormente - e por onze votos contrários e um a favor, o texto foi considerado inconstitucional pela Comissão. Entretanto, à época a deputada se manifestou contrária à decisão, da qual prometeu recorrer em todas as instâncias legais possíveis, o que, até a finalização deste texto, não havia se concretizado.

Etnicidade, antirracismo e intolerância religiosa

Primeiramente, convém destacar a vinculação completa dessas resoluções com a questão étnica envolvendo a africanidade. À primeira vista, já parece evidente que a identidade étnica de matriz africana reivindicada através destas diretrizes não se limita a uma simples questão racial, mas abarca aspectos mais amplos, como a preservação de uma herança cultural afrobrasileira.

Morais (2012, p. 44) chamou a atenção para o viés culturalista das reivindicações afrorreligiosas, seja enquanto identidade nacional ou identidade negra, pois “nos dois casos, as religiões afro-brasileiras são tratadas como patrimônio cultural e desenvolvem-se ações que buscam preservá-lo e mantê-lo enquanto tal”.

As diretrizes do CPTERS destacadas anteriormente delimitam como público alvo a categoria “Povo de Terreiro”, cujo princípio maior parece estar calcado na preservação de uma cultura ancestral africana e menos em traços fenotípicos que atestariam a pertença a uma raça. De acordo com este princípio, baseado na xenofilia, a “casa de religião” é tomada como um local privilegiado para a constituição e preservação da cosmologia afrobrasileira.

A sacerdotisa Sandralí, que permanece até o fechamento deste texto como secretária executiva do Conselho do Povo de Terreiro, já dizia que: “os princípios civilizatórios de matriz africana estão preservados no terreiro mais do que em qualquer outro lugar” (RENAFRO, 2014). No mesmo sentido, também argumentou Prandi (2011, p. 13) que “a religião africana no Brasil [...] foi capaz de dotar o negro de uma identidade africana, de origem, que recuperava ritual e simbolicamente a família, o grupo étnico e a cidade perdidos para sempre na diáspora”.

O conceito de “Povo de Terreiro”, no entanto, também permite abranger a questão racial em seu público alvo de políticas públicas, para além da devoção religiosa em algum culto de matriz africana. A fala do Babalorixá Diba de Yemonjá, quando da inauguração do Comitê Estadual do Povo de Terreiro, é ilustradora neste sentido. Segundo o sacerdote: “os terreiros são guardiões de toda esta visão de mundo de matriz africana, de todo este processo civilizatório. A partir dos terreiros podemos construir políticas de igualdade racial não só apenas para o povo de terreiro, mas para o povo negro” (RENAFRO, 2014). dos Anjos (2008) também já destacava a filosofia política imanente às religiões afrobrasileiras como um patrimônio cultural africano, que revela em si mesma uma nova possibilidade para as políticas públicas de equidade racial.

Por conseguinte, a questão do antirracismo é indissociável às reivindicações políticas dos afrorreligiosos no Rio Grande do Sul, apesar de grande parte destes não se considerar negros. Para Sandralí, “um grande número de brancos que cultuam as religiões afrobrasileiras sofrem de discriminação por terem escolhido a religião de negros” (RENAFRO, 2014). De certa forma, tal fenômeno está relacionado à visão de Fanon (2008), a qual considera que o racismo primitivo biológico tem sido substituído cada vez mais por um racismo cultural que tem como seu objeto não o ser humano individual, mas certa “forma de existência”. De acordo com esta concepção, o racismo não se dá apenas no nível da discriminação de cor da pele, mas apresenta-se como a “configuração de superioridades intelectuais e civilizatórias do Ocidente em relação às culturas de origem africana ou indígena” (D’Adesky, 2005, p. 70).

No entanto, este ponto de intersecção entre a luta por reconhecimento das práticas religiosas afrobrasileiras e a luta antirracista, apesar de parecer óbvia, nem sempre foi mantida. As políticas públicas de reparação envolvendo essas religiosidades ganharam maior destaque desde que o movimento negro passou a integrá-las ao seu discurso em prol da igualdade de direitos (Morais, 2012). Nota-se que, a partir do momento em que os movimentos sociais negros incorporam as comunidades religiosas de matriz africana em suas narrativas políticas de emancipação histórica, amplia-se o horizonte da identidade étnica africana. E a ancestralidade, como relação entre “negritude/ africanidade”, se converte em lugar de uma tensão inerradicável (Sales Jr, 2009, p. 119).

Também a bandeira da “liberdade” e da “intolerância religiosa” é acionada nas diretrizes do Povo de Terreiro. Neste caso, tal reivindicação pode remeter tanto ao histórico de perseguição veiculado às religiões de presença africana, abordado no começo deste trabalho, quanto aos crescentes casos de intolerância, tornados frequentes no Brasil especialmente por meio das igrejas neopentecostais ou outros segmentos religiosos transvestidos pelo manto político ou ecológico.

Assim, o discurso sobre a laicidade também passa a justificar as ações governamentais que contemplam as religiões afrobrasileiras, ora num sentido de reforçar a identidade nacional, no caso daquelas relacionadas ao patrimônio brasileiro, ora de reforçar a identidade negra, no referente à promoção da igualdade racial (Morais, 2012)

Dessa forma, o caso das reivindicações expressadas pelo Povo de Terreiro parece ir de acordo com o que Sales Jr (2009) constatou. Segundo este autor, a agenda dos movimentos sociais negros que incluem a pauta religiosa, passa a se constituir da conjunção de duas estratégias políticas: (a) a valorização da religião afro-brasileira como patrimônio histórico e cultural regional, nacional e internacional, considerada parte de uma política de reparação ou de promoção da igualdade racial; e, (b) a luta contra a intolerância religiosa, tida como uma modalidade da discriminação étnico-racial.

Considerações finais

Refletimos, ao longo deste trabalho, a respeito do histórico de perseguição do qual as religiões afrobrasileiras são alvos e testemunhas, trazendo a tona uma de suas atualizações no tempo presente. Ora por serem religiões de escravizados e suscetíveis de provocar insurreições, ora por serem símbolos de barbárie e de primitivismo, ou ainda por serem acusadas de promover “culto diabólico”, as religiões de matriz africana apresentam um passado não tão distante de criminalização, que se reflete em sua discriminação social e racial presente até os dias atuais, ainda que estas religiões sejam compostas hoje em dia por representantes de múltiplos grupos sociais nacionais.

No Rio Grande do Sul, atualmente, a força de suas manifestações culminou em um movimento político que articulou diversas lideranças afrorreligiosas do Estado. Buscamos mostrar, ainda que de forma breve, como este movimento intitulado “Povo de Terreiro” tem operado suas recentes negociações com o poder público gaúcho. Essas negociações, resultado de constantes manifestações por parte dessas populações em direção ao governo do Estado, deram origem à conquista de uma instância estadual única, denominada “Conselho do Povo de Terreiro”.

No seio dessas reivindicações, temas como a mobilização de uma identidade étnica de matriz africana, o antirracismo e a intolerância religiosa se misturam, dando origem a pautas de políticas públicas específicas, que buscam atender às demandas do Povo de Terreiro. De certa forma, pode-se afirmar que, neste contexto de luta por reconhecimento, a ancestralidade africana é reinterpretada continuadamente tanto pelos praticantes das religiões afrobrasileiras quanto por aqueles que se apropriam delas na construção de políticas públicas de promoção da igualdade racial (Morais, 2012).

Ao longo dos anos, o processo de relativa aceitação e legitimação das religiões de matriz africana na sociedade brasileira e em particular na gaúcha, historicamente jamais se construiu sem diferentes tensões e negociações, das quais participaram os poderes públicos e diversos coletivos religiosos.

Ainda assim, revela-se que os princípios de “liberdade de culto” e de “liberdade de crença”, já previstos na Constituição de 1891 e reforçados pela vigente Constituição de 1988, continuam não encontrando o terreno fértil para seu desenvolvimento na sociedade nacional, sendo, portanto, imprescindível a organização de movimentos sociais localizados que busquem assegurar certos direitos fundamentais constantemente desrespeitados.

Material suplementar
Referências
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Notas
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