Artigo

Globalização contra-hegemônica e instituições participativas: características das cidades com orçamentos participativos no Rio Grande do Sul

Counter hegemonic globalization and participatory institutions: Characteristics of the cities with participatory budgeting in Rio Grande do Sul, Brazil

Alfredo Alejandro Gugliano
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Globalização contra-hegemônica e instituições participativas: características das cidades com orçamentos participativos no Rio Grande do Sul

Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 2, pp. 309-316, 2017

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 05 Janeiro 2016

Aprovação: 29 Junho 2017

Resumo: A proposta deste artigo é apresentar uma análise sobre o perfil socioeconômico das cidades que realizaram orçamentos participativos no Rio Grande do Sul (2009-2012). Contextualizando a proposta no campo dos efeitos da expansão de uma globalização contra-hegemônica, o trabalho visa aprofundar o debate sobre o desenvolvimento do orçamento participativo no mencionado estado brasileiro, assim como contribuir para a discussão nacional sobre as características das cidades que executam essa política pública.

Palavras-chave: orçamento participativo, democracia participativa, globalização contra-hegemônica, cidadania, políticas públicas locais.

Abstract: The proposal of this article is to present the socioeconomic profile of cities that have accomplished participatory budgeting in Rio Grande do Sul (2009-2012). Contextualizing the analysis in the field of counter hegemonic globalization process, this research aims to discuss the characteristics of cities that implement participatory budgeting in Brazil and the development of this public policy in this country.

Keywords: participatory budgeting, participatory democracy, counter hegemonic globalization, citizenship, local public policies.

Introdução

A inclusão dos cidadãos na administração direta ou semidireta do Estado é bastante presente no Brasil, país onde existem inúmeras experiências de gestão participativa. Por essa denominação se entende a formulação de políticas públicas via canais institucionalizados nos quais cidadãos ou entidades representativas têm participação ativa. Isto é, existe um debate popular desembocando frequentemente numa deliberação pública e, consequentemente, num encaminhamento dessas definições pelos governos.

Via de regra a gestão participativa pode ser considerada como uma alternativa diante de algumas perspectivas tradicionais de administração estatal, como no caso do modelo gerencial e o da nova gestão pública, considerando que cria um conjunto de espaços para que novos atores sociais possam interferir diretamente no processo de planejamento e definição de políticas públicas2.

No amplo espectro de políticas que fazem parte do referido modelo de gestão, os orçamentos participativos representam apenas uma das experiências consideradas como instituições participativas (Avritzer, 2008). Eles possuem como marca registrada a inclusão dos cidadãos na resolução de temas relacionados com a democratização da aplicação do orçamento da administração estatal, algo que tem muitas implicações e envolve desde aspectos relacionados com o cotidiano das ruas e bairros de uma cidade, até assuntos referentes à estrutura governamental e seus quadros3.

Nos últimos tempos vários autores se dedicaram a distinguir mais detalhadamente esses orçamentos participativos (Avritzer, 2002; Vitale, 2004; Marquetti, 2007; Wampler, 2008). Em geral a proposta é caracterizada, entre outras coisas: (a) pela inclusão dos cidadãos na definição dos investimentos públicos; (b) pela constituição de fóruns de debate e deliberação política - presenciais ou virtuais - englobando a democratização da informação, o controle social e a participação política dos cidadãos na gestão orçamentária estatal; (c) pelo reconhecimento da legitimidade das instâncias de participação popular pelos governantes.

O Rio Grande do Sul é conhecido em termos dessa temática devido a Porto Alegre ser o berço da proposta. O orçamento participativo da capital gaúcha completou, em 2014, vinte e cinco anos de atividade, sendo uma das experiências municipais mais perscrutadas no país4. Contudo esse é um assunto sobre o qual ainda há muito que estudar, considerando a necessidade de entender a expansão dessa proposta para outras cidades, regiões e países.

Visando incidir nesse debate o presente texto está dividido em três partes centrais. Na primeira abordará a relação entre globalização contra-hegemônica e democracia participativa partindo da compreensão do papel dessa interação enquanto uma chave-mestra para entender a profusão nacional e internacional de tentativas de ampliação do poder dos cidadãos sobre o Estado. A seguir serão destacados alguns estudos sobre os orçamentos participativos no país e nos estados da federação, elementos que podem ser considerados como referências em termos da análise da expansão da proposta no Brasil. Por fim, na terceira parte, serão exibidos dados sobre o perfil socioeconômico das cidades com orçamentos participativos na legislatura 2009-2012 no Rio Grande do Sul. Esses dados visam demonstrar o enraizamento e as peculiaridades da proposta na região.

Neste trabalho apresento dois argumentos que considero importantes para o debate. O primeiro é uma tentativa de buscar explicações para o surgimento dos orçamentos participativos desde um plano que extrapola questões locais. Nesse sentido, democracia participativa e globalização contra-hegemônica, no meu entender, são fenômenos inter-relacionados. O segundo argumento visa apontar - por meio do estudo da experiência gaúcha - para o fato de que, mesmo os orçamentos participativos sendo eficientes no tocante à democratização da gestão pública, até o momento o seu desenvolvimento se restringe notadamente às cidades com características bem específicas e delimitadas. Isto é, ainda não podem ser considerados enquanto políticas de estado universalmente aplicadas.

O trabalho ora apresentado é fruto de pesquisa inicialmente realizada na totalidade dos municípios gaúchos, mas posteriormente focada naqueles casos onde foram desenvolvidos orçamentos participativos no período proposto. Principalmente a partir da coleta de documentos e dados secundários, aplicação de questionários e entrevistas junto a dirigentes políticos, foi possível estabelecer um quadro com as principais características socioeconômicas das cidades detentoras de orçamento participativo na região, elementos a serem expostos mais detalhadamente a seguir.

Globalização contra-hegemônica e Orçamentos Participativos

As origens do orçamento participativo são frequentemente relacionadas com condições locais, como a força do associativismo urbano ou convicção dos governantes sobre a necessidade de abrir espaços para a participação cidadã. Essa é uma explicação consistente, porém, não ajuda a entender os motivos pelos quais a proposta se expandiu rapidamente em nível internacional, em muitos casos consolidando-se em condições distintas daquelas encontradas, por exemplo, em Porto Alegre.

Tão importante quanto os condicionantes locais, a explicação para a expansão de experiências participativas também reside no fenômeno da globalização. Enquanto, no século XX, o crescimento da democracia representativa foi fruto da modernidade, do estado-nação e da racionalização jurídica dos espaços públicos, a democracia participativa renasce como consequência do movimento gerado pelo descontentamento com a desigualdade social e a mercantilização das relações sociais acirrado pela globalização.

Milton Santos (2000) definiu a globalização como uma fábula, um modelo de mundo que apresenta a expansão do mercado econômico como esteio da felicidade geral, e reverberou a necessidade de outra globalização onde condições técnicas e materiais, absorvidas essencialmente para satisfazer expectativas de setores economicamente dominantes, possam ser utilizados para o bem-estar universal. Na perspectiva explorada por Santos (2000) a atual, assim como a outra globalização, são duas faces de uma mesma moeda, ocupam espaço social comum. Não obstante, refletem visões de mundo antagônicas e conflitantes: o choque entre uma concepção hegemônica que esbarra num movimento de contra-hegemonia gerado por diferentes formas de mobilização social da cidadania5.

O despertar de experiências participativas, na transição para o século XXI, está contido no conjunto de experimentações políticas identificadas enquanto uma globalização contra-hegemônica, um movimento de ruptura com a lógica neoliberal visando a formação de novos espaços de poder político e a produção inovadora de conhecimentos críticos. Trata-se de uma opção retroalimentada tanto pela manifestação de inconformismo diante dos efeitos perversos da globalização econômica, quanto pela afirmação da produção de novas alternativas ao sistema dominante baseadas nas práticas da sociedade civil global e segmentos insurgentes (Evans, 2005; Santos, 2006; Quijano, 2011).

Se, inicialmente, a onda neoliberal construiu um fino consenso sobre a necessidade de desmonte do Estado nacional, assumindo os riscos do enfraquecimento da democracia frente ao empoderamento dos mercados, posteriormente, o caráter conflitante das novas relações sociais globais veio a alimentar reflexões na direção oposta.

Reforçado essa ideia, Guillermo O’Donnell (1996) reiterou que a globalização não significava tão-somente a expansão dos mercados econômicos, pois acarretava em intensidade equivalente o fortalecimento de estruturas estatais e o crescimento de uma cidadania ativa cada vez mais consciente dos seus direitos. Outros autores de forma semelhante ressaltaram a heterogeneidade do mundo global e o nascimento de modelos de desenvolvimento baseados num maior envolvimento da sociedade civil com a política institucional (Beck, 2000; Giddens, 2002; Munck, 2007).

Da constatação dos efeitos perversos da globalização à defesa da necessidade de radicalizar a democracia foi apenas um passo. O projeto de uma globalização contra-hegemônica estimulou o debate sobre a ampliação da inclusão dos cidadãos na gestão pública possibilitando a implantação de projetos de transformação das estruturas políticas tradicionais em diferentes âmbitos, envolvendo estruturas nacionais e subnacionais. Esse seria o caso da multiplicação internacional de orçamentos participativos e seu impacto sobre as políticas orçamentárias, uma área da gestão pública tradicionalmente definida via procedimentos técnico-burocráticos e interesses corporativos de cada governo6.

Na diversidade demoparticipativa atual os orçamentos participativos ainda são casos emblemáticos, tanto em termos do envolvimento direto dos cidadãos no processo deliberativo, quanto no que diz respeito ao impacto dessa participação enquanto transformação das condições de vida, especialmente, das populações alojadas na periferia dos grandes centros urbanos. Os estudos sobre essa proposta serão o foco da seção a seguir, parte do artigo na qual destaco algumas pesquisas nacionais e regionais sobre o orçamento participativo no Brasil.

Os orçamentos participativos no Brasil e nos estados brasileiros

A sociedade brasileira foi inserida na globalização e sofreu conturbações semelhantes àquelas vivenciadas em outras partes do planeta, envolvendo estratégias tipicamente neoliberais, como foram as privatizações de empresas e serviços públicos. Igualmente nesse país foram se engendrando novas formas de organização social, envolvendo tanto o Estado quanto a Sociedade Civil, cujo fruto mais visível é o orçamento participativo. Uma proposta nascida no Brasil, mas, subsequentemente expandida pra região fronteiriça, com experimentações na Argentina e Uruguai. Mais tarde pelo resto dos continentes.

Mesmo com essa influência de fatores globais, as investigações sobre o desenvolvimento do orçamento participativo muito frequentemente estiveram voltadas para a esfera local, sem maior ênfase no que paralelamente estava ocorrendo nos âmbitos nacional e regional7.

Todavia, houve diversas pesquisas com um enfoque mais amplo. Entre um conjunto de trabalhos que, no contexto brasileiro, abordaram a questão nacional é possível destacar as pesquisas promovidas pelo Fórum Nacional de Participação Popular de 2003, cujos dados foram publicados por Ribeiro e Grazia (2003); o projeto: OP Brasil coordenado por Avritzer (PRODEP, 2007) em 2007; a pesquisa: Evaluating Empowerment: Participatory Budgeting in Brazilian Municipies (2005) de Baiocchi et al.; e, finalmente, a investigação: A expansão dos orçamentos participativos no Brasil, dirigida por Wampler e Avritzer no ano de 2004. Esses estudos, entre outros, possibilitaram aos especialistas compor um quadro bastante apurado sobre a evolução do orçamento participativo no Brasil, principalmente entre 1989-2008.

Na maioria dos casos essas pesquisas apresentaram pouco detalhamento no tocante às características dos orçamentos participativos em nível estadual, apontando no máximo para a dimensão regional onde se inserem as cidades pesquisadas. Por exemplo, Ribeiro e Grazia (2003) distinguiram casos de orçamentos participativos de acordo com as regiões brasileiras (Quadro 1), mas não publicaram informações sobre os estados da federação.

Quadro 1
Distribuição dos orçamentos participativos por região (1997-2000.
RegiãoNúmero de municípios%
Sudeste4745,6
Sul3937,8
Nordeste1413,6
Norte0303,0
Total103100
Fonte: Ribeiro e Grazia (2003, p. 28).Chart 1, /Distribution of participatory budgeting by region (1997-2000).

O pequeno volume de dados sobre casos estaduais é em parte consequência do baixo número de pesquisas que se dedicam a entender os orçamentos participativos nessa dimensão. Entre os estudos sobre os estados da federação brasileira destaco o projeto que analisou orçamentos participativos em São Paulo, realizado pelo Instituto Pólis (Carvalho et al., 2002), mapeando vinte e três casos analisados, principalmente, a partir dos seguintes temas: número de habitantes; partido político hegemônico na prefeitura; ano de inauguração e número de anos de funcionamento da proposta. Outra pesquisa importante foi desenvolvida sobre o estado de Santa Catarina, sob a organização de Borba e Luchmann (2007), focada em seis municípios nos quais os autores analisaram especialmente três fatores: compromisso governamental; tradição associativa e desenho institucional.

A respeito do Rio Grande do Sul o maior montante dos trabalhos publicados até hoje se direcionou naturalmente à análise da experiência municipal brasileira mais bem-sucedida, o caso de Porto Alegre, sendo alguns estudos estaduais dedicados ao orçamento participativo regional organizado na gestão de Olívio Dutra no Governo do Estado (1999-2002), experiência extinta logo após a derrota política desse partido nas eleições para governador do estado em 2002 (Faria, 2006).

Tendo como meta contribuir para ampliação dessa informação estadual, desde 2009 vem sendo realizada investigação visando oferecer dados sobre os orçamentos participativos nas cidades do Rio Grande do Sul, foco que será tratado a seguir.

Orçamentos participativos no Rio Grande do Sul

De acordo com a pesquisa realizada, trinta e nove municípios desenvolveram orçamentos participativos no Rio Grande do Sul, entre os anos de 2009 e 2012, totalizando aproximadamente oito por cento das cidades do estado8. Notadamente o orçamento participativo é expressivo em cidades que podem ser consideradas estratégicas no Rio Grande Sul, municípios que são referência no seu entorno em função do seu nível de desenvolvimento socioeconômico e concentração populacional. Em contrapartida essa evolução é menor em cidades mais empobrecidas, onde a ausência de maior pujança econômica parece restringir a execução da proposta.

Para explicitar essa relação vamos explorar três características das cidades que aplicam orçamentos participativos no estado mais ao sul do Brasil: população; indicadores econômicos e indicadores sociais.

Em termos populacionais ocorre uma mudança no padrão dos municípios que desenvolveram orçamentos participativos no sul se comparado aos dados de Ribeiro e Grazia (2003) que apontavam para um predomínio, na execução do orçamento participativo nas regiões do extremo sul do Brasil, de cidades com menos de vinte mil habitantes. No caso das informações coletadas, a maior parte das cidades que programaram orçamentos participativos no período analisado possuía entre 20 mil e 500 mil habitantes9.

Tal percepção reforça fenômeno apreendido por outras pesquisas nacionais. Costa (2010) estimou uma população entre 20 mil e 500 mil habitantes na maioria das cidades com orçamentos participativos no período 2000-2004. Semelhantemente Pires e Vaz (2010) encontraram praticamente 47% das experiências de orçamentos participativos brasileiras em cidades com mais de 100 mil habitantes. E de modo análogo o estudo de caso sobre o estado de São Paulo, no período 1997-2000, apontou para o fato das cidades, promotoras de orçamento participativo, terem uma população variável entre 50 e 200 mil habitantes (Carvalho et al., 2002).

Mesmo representando um universo pequeno, não é menosprezável o fato de que quase a metade da população do Rio Grande do Sul habitou uma cidade na qual estava em funcionamento alguma modalidade de orçamento participativo no período 2009-2012.

Desde uma perspectiva econômica, a relação entre a prosperidade das cidades e a implantação de orçamentos participativos pode ser ilustrada, em primeiro lugar, pela especificidade das regiões nas quais prospera a aplicação da proposta; complementando esse dado, em segundo lugar, por meio de um dos principais indicadores utilizados para totalizar a riqueza de, por exemplo, municípios: o produto interno bruto (PIB).

Sob a ótica sub-regional, as experiências analisadas estão concentradas em dois (02) dos vinte e oito (28) Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES) atualmente existentes, totalizando quase cinquenta por cento dos casos encontrados. Os CORE-DES são unidades sub-regionais, criadas no Rio Grande do Sul em 1994, com a função de articular as prefeituras visando uma melhor distribuição de recursos e planejamento de ações conjuntas.

A primeira sub-região em concentração de números de orçamentos participativos é o COREDE Serra, formada por trinta e um municípios e mais de oitocentos mil habitantes. Agrupa parte importante da imigração italiana do estado e se caracteriza pela sua pujança econômica - é o terceiro maior Produto Interno Bruto (PIB) do estado e o segundo polo metal-mecânico do Brasil - com atividades econômicas centradas na produção industrial e turismo. A segunda sub-região em número de casos de orçamento participativo é o COREDE Vale do Rio dos Sinos, lá vivem mais de um milhão e trezentos mil habitantes em quatorze municípios que somados possuem o maior PIB do estado, além de representarem um dos maiores clusters calçadistas do mundo. Ademais, a região detém o segundo polo industrial estadual nos setores petroquímico, calçadista e do couro.

Conforme essas informações, a concentração dos casos analisados se dá em cidades localizadas especialmente na metade norte do estado, precisamente aquela região com maior aglomerado industrial e melhores indicadores socioeconômicos do estado. Pelo contrário, na região sul onde a economia está centrada na agricultura e serviços, com grande concentração fundiária e de renda, as experiências de orçamentos participativos são escassas. Em termos do perfil socioeconômico aproximadamente setenta por cento das cidades promotoras de orçamentos participativos possuem um PIB per capita superior ao patamar atingido em nível estadual. E para complementar esse quadro cabe ainda sinalizar: seis das dez cidades com maior PIB do Rio Grande do Sul desenvolveram a proposta em questão (Porto Alegre, Canoas, Caxias do Sul, Gravataí, Novo Hamburgo e Passo Fundo)10.

Para entender melhor a relação apresentada é conveniente complementar esses dados com alguns indicadores sociais que nos auxiliem a desenhar o tipo de cidade na qual se estruturaram os orçamentos participativos.

População cidades com orçamento participativo no RS.
Figura 1
População cidades com orçamento participativo no RS.

Em termos sociais um indicador importante para estabelecer um quadro sobre as características das cidades com orçamentos participativos no período é o IDESE. Criado pela Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE-RS), com o fim de analisar o desenvolvimento social em nível municipal, é composto por doze itens divididos em quatro blocos temáticos: educação; renda; saneamento e domicílios; e saúde (FEE, 2011).

De acordo com os dados do Quadro 2, entre as dez cidades com maior IDESE do estado oito executaram orçamentos participativos em 2009. Ademais, sessenta e dois por cento das cidades com orçamentos participativos no período analisado estão entre os 100 melhores IDESE do Rio Grande do Sul no referido ano. Esses dados, se por um lado não possibilitam estabelecer uma relação causal entre orçamentos participativos e bons indicadores sociais, representam um elemento importante para caracterizar as cidades em questão.

Quadro 2
Dez cidades com maior IDESE do Rio Grande do Sul (cidades com orçamento participativo em destaque).
CidadeIDESE 2009Posto geral no RS
Caxias do Sul0,85801
Esteio0,84602
Canoas0,84003
Porto Alegre0,83804
Cachoeirinha0,82705
Cruz Alta0,82206
Vacaria0,82107
Cerro Largo0,81908
Ijuí0,81909
Rio Grande0,81310
Chart 2, Ten cities with the highest IDESE of Rio Grande do Sul (cities with participatory budgeting in bold).

Conclusões semelhantes podem ser alcançadas analisando a questão sob o prisma do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), aplicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). À luz desse parâmetro é possível reforçar a ideia de que as cidades analisadas possuem uma situação privilegiada em termos de indicadores sociais considerando o fato de cinquenta e seis por cento das mesmas possuírem IDH-M superior à média do Rio Grande do Sul e setenta e quatro por cento à media nacional. Em termos gerais, noventa e três por cento das cidades cujas administrações promovem orçamentos participativos possuem IDH-M alto e sete por cento IDH-M médio11. Como uma última informação, visando completar a descrição do perfil proposto, cabe destacar que oitenta e quatro por cento das cidades com orçamento participativo tiveram menor índice de pobreza do que a média do Rio Grande do Sul. Em termos nacionais noventa e dois por cento desses municípios têm indicadores de pobreza inferiores à média do país.

Pode-se constatar na Figura 2 que, em geral, as cidades na quais se implementa o orçamento participativo possuem IDH-M superior às que não executam semelhante proposta. Contudo, essa diferença começou a cair a partir do segundo Governo Lula, o que poderia ser relacionado com os frutos das políticas sociais aplicadas em nível nacional naquele período.

IDH-M das Cidades com Orçamento Participativo e sem Orçamento Participativo (1989-2013).
Figura 2
IDH-M das Cidades com Orçamento Participativo e sem Orçamento Participativo (1989-2013).

Reflexões finais

Neste texto inicialmente busquei situar o debate sobre os orçamentos participativos no campo das discussões sobre a globalização contra-hegemônica e seus efeitos. Isto é, defendi a ideia de que os orçamentos participativos não são simplesmente uma moda passageira, mas expressam um processo histórico no qual a cidadania é emergente e reivindica ocupar espaços na estrutura de poder do estado. Por conseguinte, considerei que a mesma seiva que alimentou movimentos de protesto mundiais nas primeiras décadas do século XX, como as manifestações do 15-M que repercutiram em diversas cidades europeias, também vem levando a centenas e milhares de cidadãos a participarem de longos e complexos processos de debate público em assembleias e reuniões do orçamento participativo no Brasil, assim como em outros países.

Além disso, visando demonstrar a permanência da proposta, o atual trabalho pretendeu trazer à tona alguns dos resultados de pesquisa sobre os orçamentos participativos no Rio Grande do Sul, destacando principalmente o perfil socioeconômico das cidades nas quais essa proposta se estabeleceu entre 2009-2012. Mesmo havendo oscilações na trajetória dessa política pública é possível concluir que os orçamentos participativos prosperam. Afinal de contas, no início eram apenas dois municípios a levar adiante a proposta e, vinte e cinco anos mais tarde, essas experiências aumentaram muito em termos de número de casos.

Porém, esse crescimento tem suas particularidades. O presente texto assinala, por exemplo, o fato de essa expansão estar concentrada em determinadas regiões e municípios com indicadores socioeconômicos diferenciados em relação à média estadual e até mesmo nacional. Em síntese, a maior parte das cidades que executaram orçamentos participativos no período estudado possuía entre 20 mil e 500 mil habitantes, se localizava nas regiões economicamente mais prósperas do estado e detinha indicadores sociais de muito boa qualidade.

Afirmar a especificidade dos indicadores socioeconômicos das cidades estudadas pode ser interpretado de diferentes maneiras. Por um lado, é possível inferir que a união entre desenvolvimento social e econômico é um parâmetro que está presente nos municípios que executaram a proposta em questão. Em outras palavras, em cidades com orçamentos participativos a articulação entre políticas sociais e econômicas, isto é, o caráter redistributivo das políticas públicas, pareceria ser importante na estratégia da gestão municipal.

Por outro lado - desde uma ótica menos otimista do que a anterior - também se poderia pensar sobre a tendência do orçamento participativo fincar raízes somente em cidades com certa base socioeconômica pré-constituída. Desde esse prisma não seriam os orçamentos participativos responsáveis pela potencialização de bons resultados econômicos e sociais das gestões que aplicam a proposta, mas estranhamente seriam as cidades com indicadores socioeconômicos elevados o terreno fértil para a expansão dessa política pública.

Os dados obtidos não possibilitam saber se é uma coisa ou se é outra, até porque entender o impacto do orçamento participativo sobre indicadores socioeconômicos exigiria um universo analítico maior. Entretanto, é necessário grifar a importância da questão em termos do estudo dos impactos sociais da participação popular.

Olhando para esses resultados desde outro horizonte, por exemplo, o do ponto de vista da teoria democrática, um aspecto positivo parece ser o fato de tanto eleitores quanto governantes estarem deixando de ver a democracia apenas como um método de escolha de dirigentes - a última fronteira schumpeteriana - e apostando na constituição de espaços públicos capazes de uma maior oxigenação da gestão do Estado. Ademais, a ideia de que a ampliação da participação cidadã somente poderia funcionar em pequenas comunidades com contato pessoal direto, corolário que foi repetido por autores distintos como Norberto Bobbio, Robert Dahl ou John Rawls, igualmente parece estar desmoronando diante de orçamentos participativos realizados em cidades cada vez maiores.

Uma novidade nas pesquisas recentes sobre o tema, referendada pelos dados utilizados aqui, é que a expansão dos orçamentos participativos não representa um fenômeno ideologicamente homogêneo, considerando que hoje existem propostas participativas de todas as cores e para todos os gostos, envolvendo uma gama ampla de partidos políticos.

Em especial, o crescimento desses fóruns cidadãos é uma boa nova para ativistas sociais, assim como para alguns acadêmicos, que nos últimos anos acumularam críticas ao sistema político dos países ocidentais, denunciando antagonismos e limitações na democracia liberal representativa. Porém, boas novas nem sempre são prelúdio de um final feliz. Se os dados apresentados expressam indícios da ampliação da proposta, ainda é necessário expandir estudos sobre a qualidade dos orçamentos participativos ultimamente realizados, perscrutar suas estruturas e principalmente detalhar o impacto social das políticas deliberadas pelas assembleias populares.

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Notas

2 Sobre os modelos de gestão pública sugiro: Levi-Fahur (2012).
3 Porto Alegre é um bom exemplo dessa abrangência, considerando que especialmente entre 1990-1995 houve diversas mudanças em órgãos governamentais visando potencializar o orçamento participativo, como seria o caso da criação do Gabinete de Planejamento (GAPLAN) em 1990.
4 Interrompendo essa dinâmica, o orçamento participativo de Porto Alegre foi suspenso no inicio de 2017 pelo Prefeito Nelson Marchezan Jr.
5 A possibilidade de coexistência de várias globalizações é uma constatação recente. Há poucos anos atrás o principal debate sobre a globalização estava centrado na percepção desse fenômeno enquanto coroamento das relações de mercado em nível internacional e, consequentemente, nas reações positiva ou negativa diante das suas principais diretrizes: reordenamento do papel das fronteiras; estímulo a transações comerciais internacionais privadas; redução da intervenção estatal sobre a economia e a sociedade, entre outras. Mais recentemente houve um giro na discussão desse tema gerado pela percepção da incorporação no interior da globalização tanto de movimentos sistêmicos quanto de anti-sistêmicos, levando ao reconhecimento das características híbridas desse fenômeno social. Sobre o tema ver: Gugliano (2000); Giddens (2003); Sampedro (2002).
6 Primeiro veio o orçamento participativo de Porto Alegre, criado em 1989, quase na mesma época a descentralização participativa de Montevidéu, fundada em 1990, expressões de uma inovação democrática restringida a somente três ou quatro casos locais. Nos dias atuais esse número se multiplicou. Em todos os continentes há diversas propostas com a finalidade de incorporar os cidadãos na gestão governamental, colocando em xeque a existência de democracias restritas a horizontes eleitorais (Goldfrank, 2006; Gugliano, 2008; Sintomer et al., 2012).
7 Já foram publicadas várias revisões bibliográficas sobre os orçamentos participativos no Brasil que referendam essa constatação. Para ilustrar o tema aponto: Gugliano (2005); Pires e Martins (2010).
8 As cidades analisadas foram: Alecrim, Bagé, Barão, Barra do Quaraí, Bento Gonçalves, Cachoeirinha, Campo Bom, Canoas, Capão da Canoa, Casca, Caxias do Sul, Charqueadas, Cruz Alta, Erechim, Erval Seco, Esteio, Flores da Cunha, Garibaldi, Gravataí, Ijuí, Novo Hamburgo, Novo Tiradentes, Paim Filho, Palmeira das Missões, Paraí, Passo Fundo, Pejuçara, Porto Alegre, Santa Rosa, Santiago, Santo Antônio do Palma, São Leopoldo, São Lourenço do Sul, Sapucaia do Sul, Serafina Corrêa, Soledade, Vacaria, Venâncio Aires e Viamão.
9 Sobre isso cabe matizar que, no referido estado, quase 80% do total de municípios possuem até 20 mil habitantes.
10 A partir de 2014 Rio Grande também inaugurou seu orçamento participativo, o que significa que as cidades com os cinco maiores PIB do estado desenvolvem a proposta.
11 Deve-se sublinhar que todos os municípios que desenvolveram orçamentos participativos melhoraram esse indicador social no período 2009-2012. Ver: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (2013).

Autor notes

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