Resumo: Este artigo analisa narrativas de docentes inseridas no contexto do ensino da teologia católica, em um espaço tradicionalmente masculino, estruturado como não inteligível para as mulheres. Objetiva-se evidenciar como as docentes, que atuam no campo do saber teológico, se constituem e se afirmam positivamente como sujeitos femininos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, baseada na interpretação das narrativas de quatorze docentes, inseridas em três instituições católicas, localizadas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Para analisar como as mulheres teólogas se tornam sujeitos em suas posições e em suas estratégias políticas, adotamos os pressupostos teóricos do feminismo e dos estudos de gênero e, especialmente, a noção de diferença sexual de Rosi Braidotti, como um dos campos epistemológicos das teorias feministas. O estudo mostra que as docentes desessencializam os conteúdos da diferença a partir de sua ação situada como estratégia política na produção de uma ética de si. Tal situação denota que a ressignificação da diferença sexual e da subjetividade de gênero, neste contexto, funciona de maneira positiva, ainda que permaneça marcada por uma estrutura simbólica, hierárquica, celibatária e masculina, na qual a diferença, frequentemente, segue sendo acionada como negativa e significada pelas essencializações referidas a competências menores em relação às mulheres.
Palavras-chave: diferença sexualdiferença sexual,sujeitos femininossujeitos femininos,instituições católicasinstituições católicas.
Abstract: This article analyzes narratives of women teachers inserted into the context of teaching Catholicism in a traditionally masculine space structured to be unintelligible to women. The aim is to show how these teachers, who work in the field of theological knowledge, are formed and assert themselves positively as feminine subjects. The study is qualitative, based on the hermeneutic interpretation of the narratives of fourteen teachers, inserted into three Catholic institutions located in the South and Southeast regions of Brazil. In order to analyze how women theologians become subjects in their positions and policy strategies, we adopt theoretical presuppositions of feminism, gender studies and, especially, the notion of sexual difference of Rosi Braidotti, as one of the epistemological fields of feminist theory. The study shows that the teachers deessentialize the content of difference from its situated action as a political strategy in the production of an ethics of the self. This situation indicates that the redefinition of sexual difference and gender subjectivity, in this context, functions positively, even if it remains marked by a symbolic, hierarchical, celibate and masculine structure in which difference frequently continues being driven, in a negatively meaningful way by the aforementioned essentializations, to lower levels of competence regarding women.
Keywords: sexual difference, feminine subjects, Catholic institutions.
Artigo
A diferença como política de resistência e de ressignificação da subjetividade feminina em campos de saberes masculinos
Difference as a policy of resistance and redefinition of feminine subjectivity in fields of masculine knowledge
Recepção: 16 Maio 2016
Aprovação: 11 Maio 2017
A marcação dos corpos, dos sexos, dos gêneros com a diferença constitui-se como evento ou acontecimento a partir da metade do século XVIII e durante o século XIX. Como diria Foucault (1999b), trata-se da instituição de enunciados de verdade, vinculados a novos saberes e da emergência de sujeitos instituídos por uma nova formação discursiva. A percepção da diferença performata uma relação teórica e prática que é intrinsecamente ligada aos processos de exclusão institucional, social, moral e jurídica, com consequente exclusão e dominação. As motivações e os efeitos desses processos se diversificaram em muitas formas, ao longo do tempo, isto é, detalharam as deficiências e as estranhezas, instituíram hierarquias sociais e se subjetivaram nos sujeitos. Foram produções de verdade nas quais se utilizou politicamente, ideologicamente e culturalmente dos marcadores do determinismo biológico dualizado, para classificar, ordenar e construir as desigualdades de posição dos corpos, em relação ao sexo, a raça e ao ser masculino e feminino. A normatização dos corpos e da sexualidade como opostos e hierárquicos, tanto na sua institucionalização heteronormativa, quanto na patologização da homossexualidade, trouxe embutido o princípio fundamental do mundo moderno, em que o conhecimento do eu adquiriu uma importância crescente como primeira etapa da teoria do conhecimento e resultou em produção da desigualdade e da inferioridade das mulheres em relação aos homens.
A diferença presente nas metáforas e nas analogias políticas, sociais e culturais, também fundamentou o discurso científico e consolidou representações, signos e práticas sobre a desigualdade dos chamados povos primitivos e civilizados. Impôs-se com sua rede de significados conectados ou justapostos para fundamentar moralmente os comportamentos femininos e masculinos da sociedade burguesa. Essa demarcação pela diferença e suas antinomias se estendeu e se completou historicamente com contraposições, espacializações e valorações desiguais entre norte e sul, oriente e ocidente, negros e brancos e, semanticamente, manteve seu núcleo original de sentidos, baseado na desigualdade jurídica, nas noções sobre complementaridade natural entre homens e mulheres. Em sua execução, institui-se competente demarcação entre o público e o privado, ao mesmo tempo em que se dava suporte aos julgamentos das condutas morais privadas. Mesmo se considerarmos que, ao longo do tempo, os enunciados de verdade sobre a diferença tenham aberto lugar para variações e tenham se mostrado aptos a incorporar novos sentidos como conjuntos singulares de práticas. O fato é que se mantiveram modelos generalizantes e constituidores de sujeitos como contrapostos e desiguais, produzindo-se poucos lugares de enunciação que pudessem escapar às adscrições essencialistas, como transgressão das fronteiras culturais, traçadas pelo pensamento colonial, cujos aspectos atingem de maneira particular as mulheres, em muitos contextos.
No pensamento moderno, o universo dos gêneros masculino e feminino, uma vez demarcado pela biologia da diferença, foi instituído por meio de discursos jurídicos, científicos, culturais e religiosos como sexos diferentes, mas, sobretudo, como opostos no corpo, na alma e nos aspectos jurídicos e morais (Laqueur, 2001; Rodhen, 2001). O sujeito mulher foi instituído como sujeição e, desta maneira, a fim de justificar o estatuto do ser homem e do ser mulher, se produziu uma ordem simbólica tal, que legitimava a superioridade das subjetividades masculinas em relação às experiências e ao lugar do feminino. A materialização dos corpos e de suas condições de possibilidades era dada dentro de estatutos morais e jurídicos, de significados de linguagem e de inflexões normativas não apenas categorizadas pela diferença, mas, sobretudo, marcada pela desigualdade.
Com o surgimento de novos atores sociais e do movimento feminista, nos anos 1970, reposicionou-se o conceito de diferença. Deu-se enfoque às características de positividade social e política no cenário das discussões teóricas, como uma operação de reconfiguração do campo discursivo e de práticas que permitiram problematizar os binários para sexo e gênero e para o lugar dos sujeitos, no contexto da globalização econômica, das culturas transnacionais e das discussões descoloniais. Isso porque, viu-se emergir a proliferação de discursos sobre a produção de tantos “outros”, sujeitos descontínuos e provisórios e não contrapostos, fora, portanto, dos padrões e das estruturas pré-moldadas. Essas dinâmicas invertem as posições a respeito dos jogos da finitude do saber e, é nesta perspectiva que a diferença se volta para o espaço e o lugar de enunciação e de novas práticas, que não serão apenas definidas pelo estar dentro ou fora da representação, mas por estar situadas nos entremeios e nas fronteiras que definem as problematizações das identidades coletivas e a posição de sujeitos e, para o nosso caso, de um lugar de saber considerado “não lugar” para mulheres, como é o campo do saber teológico.
No universo da teologia, ao longo dos séculos, o sujeito enunciado e reconhecido foi o masculino, cuja legitimidade se fundava em discursos simbólicos com base no sagrado, instituídos como parte de uma razão ocidental, centrada na lógica androcêntrica. Isto é, um sujeito constituído por meio de relações e tramas da estrutura e de toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas, as quais os acontecimentos pertencem. Para tal, também se produziu a diferença com fins a dar suporte ao entendimento que o saber advindo do feminino era inferior e desqualificado para o significado da razão teológica e para o lugar do exercício de liderança, nas estruturas eclesiais. Trata-se de uma episteme que torna historicamente a fala e a experiência das mulheres, de antemão silenciada, vale dizer, desqualificada. Situação que, somente a partir da década de 1970, será, aos poucos, problematizada com a inserção de teólogas nessa área de saber3. Período este, em que as mulheres, em diferentes cenários da sociedade, começaram a ter acesso a maior participação social, cultural, econômica, o que, não foi diferente com o ensino superior, cuja qualificação lhes permitiu assumir, gradativamente, a docência nas universidades, em diferentes áreas acadêmicas.
Portanto, neste artigo, apresentamos parte da discussão teórica e dos resultados da tese de doutorado Relações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do universo do ensino superior em teologia Católica (Furlin, 2014), onde evidenciamos como as docentes, que atuam no campo do saber teológico, se constituem e se afirmam positivamente como sujeitos femininos, em um lugar instituído discursivamente como não inteligíveis para as mulheres. Ou seja, como elas fazem da diferença uma estratégia política de ressignificação da subjetividade feminina.
Este estudo é realizado segundo a abordagem da pesquisa qualitativa, com foco na interpretação hermenêutica4 dos relatos apreendidos por meio da entrevista de quatorze docentes, inseridas nos contextos de três instituições católicas. Os critérios para essa escolha foram: docentes com formação teológica; que ministrassem aulas no curso de graduação em Teologia5; que tivessem produção na perspectiva feminista ou de gênero ou que tivessem tido algum contato com as teorias de gênero e do feminismo, durante o processo de sua formação acadêmica; que fossem professoras de instituições com o curso de Teologia, autorizado ou reconhecido pelo MEC, localizadas geograficamente nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. A escolha por interlocutoras de instituições dessas duas regiões se deve, primeiramente, porque nelas se encontrava a presença mais significativa de docentes que produziram e publicaram artigos e livros utilizando as abordagens de gênero e do feminismo6. Também, porque, evidenciamos, por meio dos dados quantitativos, que essas regiões eram as que concentravam, em termos numéricos, grande parte das instituições que ofereciam o curso de Teologia e onde estavam situadas as instituições com maior reconhecimento, em termos acadêmicos7.
As narrativas das mulheres docentes colocam em cena os discursos e a consagração de saberes que são parte da história e da experiencia vivida nos seus próprios corpos e que contempla toda a trajetória do seu devir sujeito no campo do saber teológico. Contudo, nesse estudo, priorizamos as narrativas que traziam conteúdos em relação à diferença. Para visibilizar esses conteúdos tomamos aspectos históricos, segundo a perspectiva genealógica, inspirada em Foucault (1999a) e Lauretis (2000), o que nos permitiu pensar as condições nas quais os processos de subjetivação feminina ocorreram no universo da teologia. Assim, as narrativas das docentes foram apreendidas, não no sentido cronológico, mas a partir da singularidade dos acontecimentos, em aspectos que envolvem o cotidiano da profissão e as relações estabelecidas com seus pares, nas quais buscamos compreender a ação e os significados contidos nas memórias relatadas, sobre as suas trajetórias acadêmicas e a respeito de suas experiências situadas no universo do saber teológico.
Consideramos as descontinuidades e as recorrências dos fatos e dos discursos e, como são acionados ao longo das séries em que eles emergem, como partes do processo do seu constituir-se. No sentido de Lauretis (2000), trata-se de visualizar como as mulheres teólogas se autocompreendem, como ressignificam suas subjetividades e como se produzem na qualidade de sujeitos femininos do saber teológico. São narrativas que expressam experiências de vida situadas, discursivamente mediadas, e que não aparecem meramente como memórias individuais, mas se constituem como experiências compartilhadas. Contam, portanto, seus conjuntos singulares de práticas para fazer com que apareçam como regimes diferentes de normatizações e de verificações, e que sejam possibilidades de ser sujeito e objeto de seu próprio conhecimento, o que implica em narrativas de si, capazes de inverter o jogo da finitude do saber, conforme pensa Foucault (1977).
Para analisar os conteúdos das narrativas, adotamos os pressupostos teóricos do feminismo e dos estudos de gênero. Vale enfatizar que a perspectiva do feminismo da diferença é transversal para toda a análise, demarcando o lugar que este texto ocupa nos estudos de gênero. Contudo, daremos ênfase à abordagem da diferença sexual elaborada pela filósofa feminista Rosi Braidotti (2004), como um dos campos epistemológicos das teorias feministas sobre a diferença.
A compreensão da diferença no campo dos estudos feministas têm assumido posições teóricas distintas. Contudo, segundo Cláudia Costa (2002), a heterogeneidade dos discursos não fragmenta e nem enfraquece a importância política do feminismo, uma vez que se faz necessário a construção de articulações entre as diversificadas posições de sujeito o que, por sua vez, compõe a força específica do feminismo diante dos outros movimentos ou dos discursos sociais. Tais articulações possibilitam ao sujeito algum espaço de agenciamento e de resistência e, por isso, de acordo com Costa (2002), o feminismo tem sido considerado, por vários teóricos vinculados as tendências pós-estruturalistas, como prática e discurso contestatório genuíno ou mesmo suficiente da teoria social atual. Desse modo, não nos interessa aqui, aprofundar o amplo e complexo debate histórico sobre a diferença que ocorreu no interior do movimento e da teoria feminista, uma vez que essas questões podem ser encontradas em uma vasta literatura dos estudos feministas. Apenas fazemos referência à alguns aspectos dessa variedade de significados, com base nos estudos de Hita (2002) e Pierucci (1999), no intuito de situar a perspectiva que adotamos para este estudo.
De acordo com Pierucci (1999), uma primeira compreensão se situa no contexto dos anos de 1960, em que o feminismo lutava pela igualdade, que era associada aos ideais revolucionários liberais de “igualdade, fraternidade, liberdade”, o que gerou uma tendência de apagamento das diferenças, consideradas naturais entre homens e mulheres. A mulher e o homem eram englobados na categoria de “sujeito humano” e, sendo humanos, se consensuava que eram iguais. Havendo somente o “gênero humano”, cuja representatividade era o homem branco, de classe média, heterossexual e ocidental, e a mulher era irrepresentável, isto é, o “outro” do homem. Nesse contexto, segundo Hita (2002), quem defendia argumentos da diferença era considerado “conservador”. Assim, a diferença foi vista como o oposto da noção de igualdade e (ou) de identidade.
Em um segundo momento, na década de 1970, Pierruci argumenta que a diferença começou a ser compreendida como oposta ao seu contrário, ou em binômios dicotômicos (sexo/gênero; mulher/homem), isto é, a diferença feminina com seu sujeito no singular e com consequente produção de oposição ao masculino, desconsiderando outros marcadores da diferença dentro da diferença, nas experiências das mulheres, como raça, etnia, classe, idade. Essa concepção foi alvo de muitas críticas, sobretudo, por feministas negras, lésbicas, judias e de grupos minoritários, que não compartilhavam da experiência do feminismo branco, de classe média e heterossexual. De acordo com Hita, a noção de diferença será, neste contexto, utilizada para se referir as muitas diferenças de experiências femininas dentro da diferença de gênero, as quais não se suporta em uma única noção de identidade, mas está eivada de complexidades. As construções feministas incorporaram as diferenças intragênero, em que já não se concebia pensar na existência de uma identidade feminina universal e unificada na categoria “Mulher”, devido à fragmentação dos interesses atravessados por marcadores e vivências relativas a classe, raça/etnia, cultura, religião, orientação sexual. Por último, nos anos de 1990, a noção de diferença é pensada como referência à pluralidade feminina ou multiplicidade de posicionalidades relacionais, e as interseccionalidades constituem-se nos grandes desafios teóricos no trabalho de diluição das dicotomias e dos seus poderes.
Para Hita (2002, p. 340), essa nova perspectiva do debate feminista leva a um afastamento das concepções tradicionais de identidade e permite o surgimento de novos tipos de arranjos com novas formas de coalizão8, as quais se traduzem em novos modos de fazer política e teoria. Nos processos de constituição das subjetividades femininas, se argumenta que não existem somente diferenças entre as mulheres, mas também dentro de um mesmo sujeito, cuja subjetividade é atravessada por camadas de diversas experiências situadas em contextos concretos. Ou no sentido de Braidotti (2004), trata-se de uma subjetividade que não é fixa, mas se coloca em um processo contínuo de devir, como acontecimento que emerge de descontinuidades. Na visão de Hita (2002), essas distintas posições em relação à diferença permitiram avançar na compreensão das mesmas e na construção de ferramentas teóricas críticas, que desnaturalizaram argumentos essencialistas e universais.
Constata-se que o discurso feminista construiu distintas abordagens sobre a diferença, como categoria teórica e política. Contudo, isso não significa dizer que as posições mais atuais tenham superado as tradicionais. Algumas são reconstruídas com novos significados e, muitas vezes, aparecem de formas difusas e contraditórias, como se pode observar na noção da diferença sexual de Rosi Braidotti (2004), cuja teoria se constituiu em uma ferramenta útil para compreender as narrativas das docentes, sobre suas experiências vividas no universo da teologia, no processo de se constituírem sujeitos femininos de saber, no interior ou nos entremeios de estruturas acadêmicas masculinas.
Dada a importância da abordagem sobre a diferença sexual de Rosi Braidotti, para este estudo, damos destaque à alguns de seus pressupostos que, segundo a própria autora, integra os estudos pós-estruturalistas. Braidotti pertence ao grupo das que são representantes da segunda geração de teóricas da diferença sexual e, entre elas, encontramos Drucila Cornell e Elizabeth. Segundo Rita Felski (1999), essas escritoras estão mais conscientes do que suas predecessoras sobre as armadilhas na teorização da categoria de mulher e assumem uma consciência mais aguda das complexidades em relação à construção dessa categoria.
Para Braidotti é fundamental repensar a “diferença” para não deixar nas mãos de intepretações facistas, sobretudo quando essa categoria voltou a ser central nos discursos da globalização, em cujo contexto se produzem muitas “diferenças”. Ela recorda que o conceito de diferença tem suas raízes no facismo europeu, colonizado e adotado por modos de pensamentos hierárquicos e excludentes. Assim, no passado, este conceito se fundamentou sempre em relações de dominação e exclusão, de modo que “ser diferente de” chegou a significar “ser menos que”, “valer menos que”. Em consequência, a diferença adquiriu historicamente conotações essencialistas e letais, o que, por sua vez, construiu categorias inteiras de seres descartáveis, isto é, igualmente humanos, mas levemente mais mortais que aqueles que não estão estigmatizados como “diferentes”. Sua posição é de luta política por desconstruir os pressupostos de uma subjetividade homogênea e dos discursos éticos e políticos tradicionais, que tomam as mulheres como o “alter”. A autora reclama a reapropriação do imaginário feminino e formula sua teoria sobre a diferença sexual, contendo um sentido ativo e desconstrutor dos humanismos universais a respeito da subjetividade. Toma como ponto de partida a vontade política de afirmar o vivido e a experiência da mulher encarnada. Tal caminho apela para uma margem de não pertencimento ao falogocentrismo. Sua formulação abre espaço à posição do sujeito, que não apaga o significante “mulher”, mas negocia todas as formas de subjetivação e implementação social de novas posições de sujeito.
Segundo Braidotti (1999), a sua abordagem sobre a diferença sexual se conecta com as discussões contemporâneas do feminismo, uma vez que contempla tanto as diferenças dentro de cada sujeito (entre os processos conscientes e inconscientes), como as diferenças entre o sujeito e seus outros/as. A sua concepção é tomada como uma prática política que continua produzindo a diferença, porém, com novos conteúdos de gênero, explorando as margens de resistência em relação às visões de feminidade que foram reproduzidas na cultura patriarcal, de modo que, para além de uma filosofia, a diferença sexual é pensada como uma estratégia intelectual/analítica, política e utópica. Nesse sentido, esse conceito foi produtivo para a compreensão das experiências e ações acadêmicas de mulheres inseridas no universo do saber teológico, cujo discurso produziu o feminino como desqualificado para a razão teológica.
A noção de diferença sexual em Braidotti trabalha para a atualização da legitimidade como projeto político da afirmação alternativa da subjetividade feminina, a partir de práticas incorporadas em contextos situados, as quais funcionam como contramemória ao modelo de feminilidade produzido, abstratamente, do ponto de vista dos sujeitos masculinos. Nesse sentido, a autora retoma o conceito de mimese proposto por Irigaray (2010) por acreditar que ele permite a apropriação de um imaginário que inferiorizou o feminino, no sentido de ressignificar e transformá-lo em um sistema simbólico alternativo. Ou seja, por meio da mimese ela considera ser possível revisar, reaprender e ressignificar o feminino produzido, ao longo da história, como pejorativo. Segundo Braidotti (1999, p. 15), a mimese é definida como a política do “como si”, isto é, “como um cuidadoso uso das repetições que confirma as mulheres em uma relação paradoxal com a feminilidade e, ao mesmo tempo, fortalece o valor subversivo da distância paradoxal que as mulheres (feministas) têm com essa feminilidade”.
Para a autora, o “novo se cria revisando e queimando o velho”, de modo que pela mimese, em sua concepção, é possível revisitar os lugares discursivos e materiais de onde “a mulher” foi essencializada, desqualificada ou simplesmente excluída. E, desde aí, reelaborar a genealogia das redes de eventos, enunciados e definições discursivas da “mulher” que sejam úteis tanto para a desconstrução de um modelo de subjetividade feminina, mas também para colocar em prática, aqui e agora, um modo de representação, em que o fato de ser “mulher” tenha a conotação de uma força política positiva e auto-afirmante. Para Braidotti (2004, p. 45), “trata-se de um ato de legitimação em virtude do qual o ‘si mesmo-mulher’ misture o seu desejo ontológico de ser como devir - consciente e desejado - de um movimento coletivo”.
O projeto político da diferença sexual, defendido por Braidotti, aparece baseado no uso estratégico das repetições na forma de contramemória, mesmo que, ainda, não tenha desvinculado certas imagens, formas de comportamento e expectativas que são constitutivas da feminilidade hegemônica. Ela insiste em um significante não essencializado de “mulher” como um coletivo, que leva em conta a diversidade entre as mulheres e dentro de cada uma. Nessa diversidade, o desejo por devir sujeito Mulher tem pontos de conexão ou se constitui em uma unidade generizada universal. O seu projeto político se torna considerável, porque redefine o gênero por meio da política de localização do sujeito e das experiências encarnadas em contextos situados. Nesse processo, as genealogias das mulheres são ativadas politicamente como contramemórias, no sentido de sentir, de pertencer a uma história, mesmo que não a tenha vivido, mas essa é a “sua” história, que desde sempre está feita por vínculos imaginários. Aqui, o imaginário é uma forma de mediação, de recompor as partes de uma história complexa que é também muito local, global e contextual. Assim sendo, ela afirma que esse projeto político é também utópico, um contínuo devir ou “tornar-se”, que aponta para um processo de ressignificação que já começou e, no entanto, está sempre se produzindo. Tais questões se evidenciaram no estudo que realizamos com mulheres docentes, as quais produziam as suas condições para uma afirmação positiva do feminino na teologia, como estratégia política do seu devir sujeito de saber em um espaço que, ao longo de muitos séculos, foi estruturado como um não lugar para as mulheres, conforme passamos a descrever no ponto que segue.
O campo do saber teológico, mesmo em suas descontinuidades históricas, constitui-se exclusivamente como masculino, não só pela representatividade de seus sujeitos, mas também por sua estrutura simbólica. Consequentemente, os discursos da teologia tradicional performatizaram estruturas hierárquicas, produzindo a mulher como o “outro” do sujeito masculino e, por consequência, desqualificada para as atividades intelectuais e para lugares de liderança no espaço eclesial (Furlin, 2016).
Relegada a maternidade, a mulher é contraposta aos valores e a visão da subjetividade masculina e os homens são instituídos e se instituem como sujeitos históricos da produção do saber teológico. Da mesma forma que em outras áreas do conhecimento, esse saber se constituiu em um canal político de reprodução dos valores e interesses da cultura patriarcal. Segundo Schienbinger (2001), a visão masculina instituiu o conhecimento, moderno, desvalorizando e negligenciando a participação histórica das mulheres nos processos socioculturais, uma vez que as dinâmicas de gênero estabeleceram prioridades científicas, estruturando silenciosamente teorias e práticas sociais. Tanto os discursos filosóficos e científicos da modernidade como os da teologia histórica e tradicional legitimaram a universalização e a institucionalização de estruturas sociais hierárquicas e androcêntricas. Isso levou as teólogas e cientistas feministas a criticarem tais discursos, produzidos e instituídos como verdadeiros e cujo conteúdo atendia a subjetividade masculina.
A trama histórica que filtrou os enunciados, os saberes, as estratégias e a parte inteligível e não inteligível dos discursos e das práticas fez com que eles funcionassem como tecnologias de gênero, com poder de materializar processos de exclusão das mulheres das instâncias significativas de poder, formatando a invisibilização de suas contribuições, bem como de outros sujeitos considerados “subalternos”9, nos processos históricos e culturais.
As mulheres começaram a ter acesso à formação teológica e, posteriormente, assumiram a função de docentes somente a partir da década de 1970, cujo fenômeno foi movido pelas mudanças socioculturais que estavam acontecendo nesse período (Furlin, 2011). Ou seja, foi a época em que as mulheres, em geral, influenciadas por mudanças sociais, pelas mobilizações feministas foram buscando o seu lugar na sociedade. Elas adentraram ao ensino superior e, gradativamente, assumiram a docência nas universidades, em diferentes áreas do saber acadêmico.
Embora no campo do saber teológico as portas tenham sido abertas para as mulheres, os dados do Censo de 200510 sobre a docência superior mostram que o curso de teologia11, entre os que integravam a grande área das humanidades e artes, era o que apresentava uma assimetria maior em termos da participação feminina e masculina na docência do ensino superior. Nossa pesquisa tomou como recorte o universo da teologia católica12, e nela essa assimetria apareceu em índices maiores, de modo que consideramos que esse diagnóstico tem conexão com as dinâmicas de poder altamente generizadas13 em uma instituição, cujas estruturas continuam impregnadas de práticas sexistas e de um sistema simbólico de gênero que ainda produzem barreiras para a subjetividade das mulheres e para a sua ação no ensino e na produção do conhecimento. Por outro lado, não podemos negar que a inserção de mulheres na docência, ainda que reduzida, veio desafiar os códigos convencionais deste universo acadêmico14. Ou seja, trata-se de uma presença que é ao mesmo tempo simbólica e política, porque transgride uma convenção social estabelecida, de um lugar estruturado, ao longo dos séculos, como não inteligível para as mulheres e mostra que elas estão superando barreiras de gênero ao se integrar em uma carreira profissional de reduto masculino e celibatário (Furlin, 2011). Em outras palavras, elas fazem do lugar que as produziu como o “outro” desqualificado, um lugar de transgressão, de resistência política e da emergência ética de si. Nesse sentido, é iluminativo o pensamento de Maria Luisa Femenías:
A ausência das mulheres em alguns espaços foi vinculada, tradicionalmente, com a incapacidade, a inferioridade, a imaturidade, o defeito, a carência ou a impotência e, portanto, esses lugares ficaram marcados como aqueles em que as mulheres não devem estar e esse tem sido o mandato histórico, visto como justo. Então, de forma paradoxal, não será acaso a maior transgressão ocupar o lugar proibido, o lugar do sujeito, o ponto de inflexão que faz da resistência o espaço do qual emergirá o reconhecimento de um sujeito (mulher) político, ético, filosófico, legal, de direito e de necessidade? (Femenías, 2000, p. 90).
Assim, constatada que a presença reduzida das mulheres na docência em teologia se conecta diretamente com as práticas, discursos e representações simbólicas da ordem social masculina, a seguir apresentamos alguns resultados do nosso estudo, quando buscamos compreender, por meio do conteúdo das narrativas das docentes, como elas se constituem sujeitos femininos de saber dentro dessa estrutura que, ao longo de muitos anos, foi considerada não inteligível para elas e que as produziu como um ser inferior e desqualificado para a razão teológica.
O tornar-se sujeito de saber teológico, extraído das narrativas das docentes, visibiliza um processo de ressignificação dos conteúdos de gênero, impregnados na estrutura e nas práticas acadêmicas e, também, uma posição de sujeito que é construída por meio da ética de si. Ou seja, são sujeitos femininos que transformam o espaço limitador e de hegemonia masculina em um lugar da emergência de si, produzindo-se eticamente e politicamente pela estratégia de positivar o feminino, partindo da ação incorporada em situações e contextos concretos.
Nesse sentido, analisamos fragmentos de narrativas sobre diversos aspectos da trajetória acadêmica das docentes, tais como: a motivação para o ingresso no curso de teologia, as relações de poder que foram estabelecidas com seus pares masculinos no processo de formação, de inserção e de permanência nas instituições de ensino teológico, bem como os seus relatos sobre as atividades acadêmicas e as ações “inovadoras” que inauguraram no campo do saber teológico.
São narrativas que expressam que o tornar-se sujeito feminino de saber/poder ocorre em tensão com as convenções normativas de uma estrutura hierárquica e masculina, que se reproduz nas relações cotidianas, no imaginário dos sujeitos e nas práticas institucionais.
Praticamente a metade das docentes entrevistadas, quando ingressarem na formação teológica, já tinham uma experiência de vida pessoal e profissional e, muitas delas, já possuíam outro curso superior. Algumas narrativas sinalizam que ao ingressar na teologia, como estudantes, elas foram bem acolhidas pelos colegas e professores, que as valorizavam pela diferença de identidade, “por serem mulheres casadas com filhos”. Trata-se de uma diferença essencializada pelo valor da mãe, perpassada por um acolhimento que não é expressão de igual reconhecimento. Nessa concepção, elas não se instituem e não são instituídas como pessoas que têm direito a esse saber e como portadoras de capital intelectual. Essa admiração à diferença feminina, por parte do universo masculino, mais do que uma possibilidade de mudanças nas relações hierárquicas, opera na dimensão simbólica. Faz parecer que existe renovação institucional e que as mulheres estão inseridas no campo teológico, mas de fato não são criadas as condições na estrutura e as representações para tal. Todavia, ainda que este contexto não as reconheça fora das essencializações vinculadas à maternidade, uma vez que parte de seus pares valorizam o seu ingresso unicamente pela diferença indenitária, para estas mulheres o espaço da formação teológica se volta à construção de outra ordem, ou seja, para o lugar de si, da busca de ferramentas necessárias para esculpir a própria existência e fazerem-se visíveis, tornando-se sujeito feminino de saber, dentro de um reduto masculino. De maneira ambígua, elas aproveitaram dessa representação da diferença, recompondo-a em um contexto situado e como estratégia de inserção e reconhecimento de sua existência e do seu direito de estar ali. Assim, a diferença não pode significar que as mulheres sejam instaladas no espaço intocável da feminilidade masculinista; na voz do outro sobre elas. Na medida em que elas acessam o saber teológico, também passam a se afirmar como sujeitos pensantes. Desse modo, pode-se dizer que estar aí se afirmando como sujeito “mulher”15 é uma posição política, sobretudo quando ocupam um lugar de saber em que elas “não existiam”. Aqui, o que parece estar em questão não é a negação da diferença (que poderia confirmá-las na lógica de gênero da ordem simbólica masculina, na qual seriam o “outro”), mas o “restabelecer do feminino dentro da diferença sexual e instituir outro lugar para um novo imaginário feminino autônomo e alternativo, para além dos estereótipos de mulher existentes” (Felski, 1999, p. 36).
Irigaray (2010) acredita ser possível uma ética da diferença sexual que não derive de uma diferença essencializadora, mas da questão política e emancipatória que é colocada por essa diferença. Essa ética, em primeiro lugar, seria uma forma crítica ao status quo e à transformação das estruturas construídas sob a ideia de um sujeito único, da ordem discursivo-normativa masculina (Beltran e Peiró, 2010), que é tão evidente dentro das estruturas teológicas. Para Irigaray, a ética como uma positivação do feminino tem o sentido de respeito, de fazer justiça, de deixar ao outro a sua liberdade e o seu sexo. Nesse caso, de deixar as mulheres serem aquilo que elas não puderam ser, porque haviam sido condenadas ao silêncio e à não participação, na ordem religiosa, política e ética, justamente porque se considerava que elas tinham um “corpo inferior”, cuja função primeira era a maternidade. Nesse lugar de enunciação, as docentes estão justamente reivindicando o direito do seu sexo, o direito de ser sujeito feminino, com igual capacidade de saber e de poder.
Outros relatos reportam que tanto seus colegas estudantes como lideranças da hierarquia eclesial, em situações específicas, inicialmente, avaliavam a presença das mulheres nos cursos de teologia com discursos pejorativos e sexistas, como se sua presença fosse um fator de desqualificação da capacidade reflexiva e intelectual, necessária ao acompanhamento da teologia. Nesses momentos, reativava-se um imaginário social em torno de um modelo de feminino, produzido pelos discursos teológicos tradicionais, fundados em concepções dualistas e desiguais. Amparados nesse imaginário, esses homens julgavam que a presença de mulheres “abaixava o nível” da teologia, lugar de onde a racionalidade, como capacidade intelectual de reflexão, era considerada, a priori, um atributo masculino. Contudo, a presença e as práticas situadas dessas mulheres, que já haviam cursado uma graduação, que sabiam outras línguas e os excelentes resultados acadêmicos que apresentavam, desnaturalizavam os discursos de um modelo de feminilidade despossuído de razão teológica, e isso, politicamente funcionava como contramemória, no sentido de dar um novo conteúdo para o feminino. Evidentemente, estes aspectos denotam que as “verdades de si”, que eram apresentadas por elas, as mantinham na diferença de saberes, de idade e de condições que se impunham. E isso, necessariamente, não eram elementos forjadores de igualdades nas dimensões das decisões e do real reconhecimento.
Nas experiências narradas pelas mulheres desta pesquisa, alguns dos seus conteúdos as aproximam dos referenciais teóricos do feminismo da diferença. Elas reforçam a importância de sua presença como um sujeito de saber, que tem uma contribuição específica a dar para a teologia, não somente por sua qualificação profissional, cujo critério lhes dava mérito neste lugar, mas também pelas experiências que vinham das diferentes posições identitárias que elas ocupavam no espaço privado (mulher e mãe) e que tem a ver com o cuidado da vida, com o afeto, com o cotidiano, com as relações dialógicas, experiências que antes as desqualificavam para atividades intelectuais, como se constata nesse fragmento de narrativa: “O olhar feminino de quem faz teologia é diferente. As mulheres ensinam de outro modo. É muito diferente. Eu acho que as mulheres fazem a diferença e a gente tem essa fala dos alunos” (Madalena, 55 anos).
Essa narrativa ilustra substratos também presentes nas estruturas de outras narrativas, sobre o sentido de “fazer a diferença” no universo teológico. Seus sentidos de diferença cresciam e se visibilizavam a partir do seu olhar e de sua subjetividade feminina, que fazia com que fossem levantados aspectos não pensados pelos homens, tanto na organização das disciplinas como na produção dos saberes, nesse caso da teologia, que elas nomeiam de feminista, cujo pensamento toma como referência os conceitos dos estudos de gênero e leva em conta as experiências situadas das mulheres. Deste lugar, elas também se apropriavam do poder de um discurso recorrente nesse meio e a todo o tempo o reiteravam. Trata-se do discurso de que elas “fazem a diferença”, por meio das suas experiências que vem do cotidiano da sua vida. Desse modo, as experiências, que no discurso tradicional da teologia as desqualificavam para as atividades intelectuais, agora funcionam como uma estratégia política de afirmação positiva do feminino, porque são legitimadas pelas ações situadas que elas protagonizam no meio acadêmico.
Essas “experiências diferentes”, que vêm do cotidiano da vida, de ações corporificadas e, portanto, não abstratas, indicam que essas mulheres compartilham de uma visão de mundo que é um lugar político e que assumem essa posição como uma estratégia para ocuparem um lugar entendido como de seu direito. Para elas, ser docente na teologia, mais do que marcar o lugar com uma disciplina ou estar ali por causa de uma capacitação profissional, aparece como o lugar da possibilidade de si e do seu agenciamento, aspecto que emerge do desejo de construir um “mundo novo”, marcado por novas relações e novos valores.
Tal situação, entretanto, não parece ameaçar a estrutura androcêntrica, porém, considerando as concepções de Braidotti (2004), das quais nos apropriamos, trata-se de uma estratégia política que pretende dar visibilidade e legitimidade às mulheres, na posição de sujeitos do ensino e da produção de saber. Utopicamente, trata-se de um feminino alternativo, que não seria desqualificado e nem irrepresentável. Contudo, paradoxalmente, essa posição parece retomar as essencializações de um feminino produzido pelo sistema simbólico masculino, que justificou e legitimou processos desiguais. Se as mulheres não estão no centro do poder dessa ordem simbólica, então, segundo Braidotti (2004), é a partir das margens que elas podem experimentar formas alternativas de legitimação e isso começa pela desconstrução dos significados produzidos pelo discurso hegemônico, reconhecendo o paradoxo de estarem presas ao código simbólico ao qual pretendem se opor. Nesse processo, Braidotti (2004) aceita que é preciso ter presente a relativa pertença das mulheres ao mesmo código que as inferioriza ou a sua cumplicidade com aquilo que elas mesmas internalizaram e querem desconstruir. A consciência de estarem implicadas nesse jogo de poder seria o ponto de partida para uma política de resistência livre de exigências de pureza ou de culpa. Nesse caso, a subjetividade alternativa ou a positivação da diferença sexual é uma forma de resistência ao próprio poder que as constituiu e, no sentido de Foucault (2007) e de Butler (2009), isso se constitui em agência.
Os discursos da teologia tradicional haviam construído o feminino como negativo, inferior, enfim o “outro”. Agora elas entram nesse espaço de saber posicionando-se como “mulher” e como sujeito de enunciação do conhecimento teológico, o que, de certo modo, produz o efeito de diagnóstico/analítico, isto é, acaba denunciando o falso universalismo que coloca o sujeito masculino como único agente racional, cuja questão é parte da agenda política das teólogas docentes. Poder-se-ia também interpretar essa postura como uma espécie de “essencialismo estratégico”, defendido por Spivak (1989 inCosta, 2002), a qual, consciente da necessidade da vigilância, para não cair na armadilha do essencialismo, adverte que seu interesse agora, “como professora e, de certa forma, como ativista é pela ‘construção para a diferença’ (build for difference), em outras palavras, significa pensar sobre o que se poderia estar fazendo ou dizendo estrategicamente, às vezes taticamente, dentro de uma estrutura institucional bastante poderosa” (Spivak, 1989inCosta 2002, 73). Essa mesma realidade parece nos remeter à posição das teólogas que se nomeiam professoras e mulheres em um lugar acadêmico, historicamente configurado para o sujeito masculino “vocacionado” à vida clerical.
A partir dessa perspectiva, pode-se dizer que as docentes que participaram do nosso estudo constroem estratégias políticas que legitimam a sua ação de ensinar e de produzir saberes, partindo das experiências das mulheres. Experiências corporificadas, que têm sido enunciadas como potencialidades para mudanças e reivindicadas por muitos estudos feministas16 para dar voz aos processos de produção da subjetividade e de conhecimentos situados, em contraposição crítica aos saberes universais e abstratos. Muitas vezes, as experiências femininas sobre o vivido em diferentes circunstâncias da vida são apresentadas pelas docentes como se estas fossem de uma singularidade universal, dada pela diferença sexual. Contudo, suas narrativas apontam que elas se constituem sujeitos por experiências múltiplas, tanto pelas condições socioculturais e normativas que incorporaram nos processos de socialização, como pelos discursos e práticas cotidianas que elas ressignificam a partir de suas experiências situadas, como estudantes, professoras, mães e/ou religiosas.
Ao enfatizarem a importância dos atributos femininos, para o universo do pensamento teológico, elas parecem valorizar e dar visibilidade a um sujeito que é “mulher”, cujo efeito é a criação de um simbólico alternativo do feminino, nas palavras de Braidotti (2004). Judith Butler (2003) e outras feministas têm criticado essa vertente por considerarem que facilmente ela tenderia a postular uma “mulher universal”. Entretanto, em muitos espaços, como é o caso do universo da teologia, parece ser necessário viabilizar a demarcação da positividade da diferença, mesmo que, para as relações contemporâneas, tal posição seja criticada pela sua dicotomização. Em muitos grupos sociais, a posição sobre fazer a diferença, ser diferente, se tornou a única estratégia política de luta pelo reconhecimento e pela visibilidade de condições.
Nesse sentido, Scott (1990) tem ressaltado que a igualdade também reside na diferença, porque considera que as diferenças, que são inerentes à subjetividade das mulheres e de sua própria posição no feminino, precisam ser levadas em conta, quando entra em jogo as lutas políticas por igualdade social entre os gêneros.
Não só a presença de mulheres nas instituições teológicas, mas, sobretudo, quando elas se capacitam em áreas teóricas que foram exclusivamente masculinas, se constituem fatores que acabam exercendo um poder desestabilizador da “ordem” já posta no campo desse saber, o que tende a provocar tensão e resistência ou manifestações de preconceito e desqualificação do pensamento e da produção acadêmica feminina. Tal realidade pode ser observada no conteúdo da narrativa de Priscila (60 anos).
Quando eu participei pela primeira vez do Congresso da Sociedade Brasileira da Teologia Moral, que foi em Curitiba, eu tinha concluído minha dissertação de mestrado. No grupo em que fui fazer minha comunicação, participavam uns trinta e poucos homens da área da teologia moral. Quando comecei a comunicação sobre o tema do meu mestrado, dois professores que lecionavam moral por lá, começaram a me fazer perguntas: ‘Quem foi seu orientador’? Eu respondi, e um deles me perguntou: ‘esse trabalho seu tem bibliografia’? Eu falei: ‘olha, eu fiz uma dissertação de mestrado e nunca ouvi dizer que alguém tenha feito uma dissertação sem bibliografia e que não tenha pesquisado. Não entendo porque está me perguntando isso’. Ele começou a perguntar outra coisa. Então, eu falei assim: ‘olha aqui, antes de continuar preciso saber se estou fazendo uma comunicação ou se estou passando por uma outra banca’ (risos). ‘Porque, se eu estiver passando por outra avaliação de banca, não preciso falar nada, porque já defendi a minha dissertação e tirei nota dez, ou seja, não vou responder mais nada. Se eu puder fazer a comunicação, farei, caso contrário vou parar por aqui. Então eles disseram: ‘não, pode falar’! Quando terminei, pedi a palavra para falar mais uma coisa. Eles disseram que o meu tempo havia terminado. Eu disse, ‘vou falar mais um minuto’. Vou falar, porque eu preciso dizer isso. Estou vindo da área da medicina e lá e eu ficava muito impressionada, porque na área acadêmica e no espaço profissional em que trabalhei, havia muitos ‘pavões de asas abertas’. E isso era muito constrangedor, mas aqui na teologia, eu não pensei que fosse encontrar a mesma coisa. Estou profundamente incomodada (risos). Essa foi a minha primeira experiência em congresso da Teologia Moral. O padre que foi comigo, arregalava os olhos e me disse: ‘maluca o que você está falando? Dizer para os teólogos que eles são pavões de asas abertas’. Este meu primeiro contato acabou impondo algum respeito. Sabe, porque a primeira vez em que eles começaram a me tratar assim, como se eu fosse nada, porque era mulher, eu reagi imediatamente. Então, daí em diante, eles começaram a me respeitar. Assim, acredito que a gente precisa ir abrindo espaço e construindo. Não deixar que as pessoas façam de você uma coisa qualquer. Eu acho que a gente precisa agir na hora certa, sem agressões maiores, dizer que a gente também tem conhecimento e é importante para o campo.
Nessa narrativa identificam-se formas de expressão e de posição como explicitação do lugar de fala e da consciência de si. Priscila deixa claro que estava somando nos processos da produção de saber, que não necessitava de um aval externo a si mesmo ou de permissão para o seu ato enunciativo, não depois de já ter sido avaliada em banca. É a coerência com a própria trajetória, diante do posicionamento de conflito e de confronto com alguns teólogos, que se reservam o direito exclusivo do conhecimento da Teologia Moral. Ela se produz por meio de uma ética discursiva da diferença sexual, que fragmenta as imposições e a estrutura unitária masculina, ou seja, sua atitude desconstrói um contrato simbólico que se sustenta sobre a inferioridade intelectual e a ausência feminina dos lugares da produção de saber, produzindo uma afirmação de si, como um sujeito feminino, no sentido de Irigaray (2010) e de Braidotti (2004).
Certamente, a consciência dos limites que eram impostos às mulheres faz com que Priscila, agora portadora de um saber qualificado academicamente, tenha a coragem de resistir e de romper os tabus, as prescrições e proscrições que se encerram na feminilidade tradicional (Llanos, 2006). Esses limites se convertem em estímulo e potência para produzir certa transgressão aos códigos normativos e tradicionais de gênero, colocando a possibilidade de novos significados da subjetivação feminina. A postura de Priscila não é somente de resistência ao preconceito claramente exposto. Ela também aciona a sua experiência situada, sua autonomia profissional e seu lugar de fala como merecido, porque já avaliado, dentro de critérios acadêmicos, que os pares já não podiam negar.
Ao fazer a memória de como ela se posicionou diante dos preconceitos de um imaginário masculino em relação ao feminino, ela produz uma narrativa de si e delimita formas políticas de ação. Demonstra como as mulheres podem ressignificar os conteúdos das relações de gênero do sistema simbólico masculino, posicionando-se com estratégias de enfrentamento que, para ela, precisam ser assumidas na “hora certa”, cuja ferramenta é o saber apropriado. Ao afirmar-se como um sujeito racional, Priscila realiza uma espécie de mimese, no sentido de Braidotti (2004), e esta posição ressignifica o feminino tomando como base a experiência encarnada no universo do saber teológico. Por meio da mimese, segundo Braidotti, se torna possível revisitar os lugares discursivos e materiais de onde “a mulher” foi essencializada, desqualificada ou simplesmente excluída. E, desde aí, reelaborar as redes de definições discursivas da “mulher”, que sejam úteis tanto para a desconstrução de um modelo de subjetividade feminina, quanto para colocar em prática, na história presente, um modo de representação, em que o fato de ser “mulher” tenha a conotação de uma força política positiva e auto-afirmante, como se observa no relato de Priscila.
Outras narrativas mencionam que há diferenças evidentes sobre o fato de alguém ser um sujeito homem ou mulher, dentro dessas instituições de ensino. Tais diferenciações resultam das representações simbólicas, discursos normativos e práticas institucionais e, segundo Scott (1990), exercem poder na construção das relações de gênero. Cria-se, assim, dentro dessa representação, um sentido de hierarquia de posição e de reconhecimento, que não é dado sempre pela formação, mas que opera simbolicamente pela presença e ação das mulheres. Ainda que das mulheres se exija um duplo esforço, uma vez que elas relatam que, apesar de possuírem o nível de formação profissional necessário para a função, precisam fazer tudo mais e melhor do que seus pares, no sentido de comprovar que são portadoras de racionalidade e que merecem estar neste lugar de saber. No que tange ao fato de que as docentes tenham consciência desse jogo de poder, paradoxalmente, elas também são cúmplices dessas relações instituídas, porque como bem analisa Foucault (1999a), o poder também institui subjetividades compatíveis com a utilidade que ele almeja. Desse modo, as docentes se produzem sujeitos femininos de saber em uma relação paradoxal, a de estarem, ao mesmo tempo, dentro e fora da lógica de gênero do sistema simbólico masculino, no sentido de que, voluntariamente ou não, elas são cúmplices daquilo que buscam desconstruir. Isto é, de uma subjetividade feminina constituída por processos de assujeitamento, tanto pelas convenções sociais internalizadas ao longo da história, como pela postura de uma relativa submissão às normas acadêmicas do campo de saber em que elas estão inseridas. Por outro lado, é uma subjetividade também constituída por processos de resistência, de modo que o agenciamento de si ocorre de maneira paradoxal, pois ao mesmo tempo em que as mulheres se submetem à lógica masculina de gênero e à uma estrutura desigual de trabalho e de condições, elas também produzem uma afirmação positiva de si, de um sujeito (mulher) capaz de exercer liderança e ressignificar, ao mesmo tempo, o sistema simbólico masculino. Essas questões, de certa maneira, confirmam a teoria de Judith Butler (2009) de que a condição de potência ou da agência, compreendida como capacidade de produzir novos efeitos, emerge da própria condição de subordinação.
Certamente elas permanecem nesses espaços não por necessidade de sobrevivência, porque muitas delas já tinham uma profissão, mas porque estão motivadas por uma espiritualidade, que faz com que elas acreditem e alimentem um imaginário ético, de que, apesar de tudo, elas podem contribuir com a construção de um mundo melhor. Ou seja, elas produzem uma ética de si, como um indivíduo-sujeito que tem consciência de sua responsabilidade ou do seu dever moral para consigo mesmo e com os outros e, para isso, se pré-dispõem a ultrapassar limites e barreiras, mesmo que isso lhes exija “um duplo esforço” de trabalho. Outrossim, permanecendo nesse lugar, as suas práticas acadêmicas, situadas no campo da ação intelectual, permitem desnaturalizar certas representações de gênero, que inferiorizavam e desqualificavam as mulheres, em favor da positivação da diferença. Sem dúvida, essas estratégias produzem novos significados para suas vidas ou deslocamentos subjetivos, como parte de um projeto de reinvenção de si e, consequentemente, contribuem para ressignificar o sistema simbólico de gênero, conforme nos inspira a pensar a teoria da diferença sexual de Braidotti (2004).
No sentido de Foucault (1999a), isso não pode ser entendido como uma simples oposição ao poder, mas como uma capacidade de identificar os “jogos de verdade” inscritos nas práticas institucionais que limitam as mulheres na sua possibilidade de ação e no seu devir sujeitos femininos de saber. Por meio dessa consciência e desde dentro dos “jogos de poderes”, elas podem construir as suas possibilidades do vir a ser, a partir de uma ética de si, como se pode ler na seguinte narrativa.
Ser homem e ser mulher na área do saber teológico não é a mesma coisa, porque para o homem é como que se já fosse uma coisa certa, como se ele estivesse num lugar determinado e certo para ele. A mulher está ali numa constante conquista de espaço, de aprovação. Não de aprovação, por aprovação, mais enfim, de mostrar que se é capaz, de mostrar que se pensa, que a razão não é território masculino, enfim, dessa troca. Essa é a diferença, nessa constante conquista de espaço e de reafirmação desse espaço. É quase escatológico, ‘já e ainda não’ (risos), como aquelas coisas bem assim... É uma coisa bem escatológica porque já se tem o espaço, mas ainda não. Sabe, é uma constante, dia a dia. Porque é no dia a dia que você tem que mostrar que é capaz, que é competente, que tem que garantir confiança, essas coisas assim, na relação com os homens e com as mulheres também. (Lídia, 39 anos).
No desejo do devir sujeito mulher no universo teológico, o conteúdo da narrativa de Lídia demonstra que as docentes interagem com as dinâmicas institucionais e, de forma ambígua, se fazem cúmplices da mesma ordem instituída que lhes impõe um peso maior no processo de tornarem-se professoras de teologia. Essa cumplicidade, mais do que submissão à ordem simbólica masculina, é uma posição de resistência política, em que muitas vezes um indivíduo necessita se adequar a certas convenções sociais, como estratégia de subjetivação ética e para extrair desse lugar suas condições de possibilidades. Nesse sentido, pode-se pensar que esse esforço de construção contínua de espaços a que elas se submetem, esteja sustentado pelo desejo consciente de ser um sujeito feminino pensante e, portanto, não se trata de uma submissão passiva, mas ativa. Essa posição aparece expressa na frase de Lídia (39 anos): “Não é buscar aprovação por aprovação, mas enfim, de mostrar que se é capaz, de mostrar que se pensa, e que a razão não é território masculino, [...]”. Observa-se expressamente a existência do desejo de marcar o lugar do saber teológico por meio de uma afirmação positiva da alteridade.
A estratégia política de afirmação de si aparece como uma constante e se realiza por meio de práticas e experiências cotidianas, como Lídia (39 anos) acena: “porque é no dia a dia que você tem que mostrar que é capaz, que é competente, que tem que garantir confiança, na relação...” De certa forma, essa é uma posição política porque, sutilmente, vai questionando a legitimidade do sujeito masculino, como o único detentor de razão e de saber teológico e produz nas mulheres uma ética de si, no processo do vir a ser sujeito feminino. Isto é, na relativa submissão à norma social masculina, que as produziu como seres desqualificados para o pensamento, elas desconstroem um imaginário fixo sobre o feminino, por meio de uma contramemória e da afirmação de si, que ocorre concretamente pelas suas experiências incorporadas em situações concretas, segundo o argumento de Braidotti (2004). Assim, nessas experiências, e no sentido que elas dão para as suas práticas, podemos dizer que ocorre a genealogia do sujeito mulher no aqui e no agora da história, para além da linguagem dos homens, como afirma Lauretis (2000). Mas, também, como algo que permanece sempre como um projeto utópico de um devir, que se traduz nessa expressão: “uma coisa bem escatológica porque já se tem o espaço, mas ainda não” (Lídia, 39 anos). Esta posição é, no dizer de Braidotti (2004), um processo de ressignificação que já começou e, no entanto, está sempre se produzindo, tanto em relação à própria subjetividade como na construção de espaços de agenciamento.
As docentes narram que realizam diferentes práticas acadêmicas, as quais tem expressividade no campo acadêmico, ou seja, lecionam disciplinas consideradas centrais na grade do curso de teologia, ocupam alguns espaços de lideranças, pesquisam e publicam artigos e livros, fazem parte de conselhos editoriais de revistas, entre outras. Tais práticas mostram como elas, estando em um lugar em que a lógica de gênero é ainda masculina, tecem seus lugares e suas possibilidades de ação por meio de um processo que envolve estratégias de poder, afirmação positiva de si, autoconsciência, reflexividade e desejo de equidade e igualdade, confirmando-se como sujeitos de razão teológica. Elas ainda relatam que orientam muitos alunos.17
Os alunos e alunas me procuram muito para a orientação de trabalho acadêmico. Oriento na área de moral, também na sistemática, porque eu trabalho com disciplinas de Antropologia Teológica, Escatologia e Tratado da Graça. Então os alunos me procuram também nessas áreas. Olha que eu tenho orientado quase mais que os homens, se não mais (Priscila, 60 anos).
Essa constância aparece no relato de docentes de diferentes instituições. “Os alunos pedem muito. Eu estou com o maior grupo de orientação de trabalhos interdisciplinares. As orientações vão desde as linhas bíblicas até da Teologia Feminista” (Maria, 61 anos). Considerando que o signo Mulher no imaginário deste lugar ainda está atravessado por noções pejorativas, a procura maciça de alunos, sejam quais forem os seus interesses, acaba lhes conferindo afirmação profissional e legitimidade, porém com sobrecarga18. Pode-se dizer que as práticas acadêmicas se tornam um dispositivo de poder que as legitima no campo como um sujeito “Mulher”, que possui capacidade intelectual e poder de ação dentro das instituições acadêmicas. Ou seja, produz um efeito de contramemória no sentido de desconstruir a imagem desqualificada da “mulher”, do sistema simbólico masculino, e produzir uma nova imagem de si, que é positiva. Dito em outras palavras, produz um deslocamento subjetivo, porque elas não se reconhecem mais da maneira como foram instituídas pelos discursos normativos, fundados em uma visão androcêntrica.
Todas essas práticas se realizam em meio a tensões com os seus pares. Contudo, o conteúdo das narrativas das docentes tem mostrado que as práticas que tem gerado mais conflitos são as que incorporam a abordagem de gênero ou do feminismo, como é o caso da produção da teologia feminista, das disciplinas que elas criam, dos núcleos de estudos e dos congressos que realizam e que colocam em cena as temáticas de gênero, justamente porque essas ações exercem poder na desconstrução de práticas que sustentam a ordem social masculina. Assim, de um lado, estão os sujeitos hegemônicos - homens clérigos - que procuram manter uma determinada lógica de gênero, fundada em estruturas hierárquicas e, de outro, os sujeitos femininos que, por meio de ações situadas, neste mesmo contexto, produzem novos significados que permitem a reinvenção de si e a desestabilização do sistema simbólico masculino. Contudo, ainda que as docentes produzam deslocamentos subjetivos, em uma espécie de nomadismo na compreensão de si, e para o coletivo das mulheres, elas não conseguem mudar as estruturas, uma vez que as instituições de ensino superior em teologia católica continuam reproduzindo processos de discriminação sexual.
Considerando a história de invisibilidade e de ausência feminina em uma estrutura hierárquica e masculina, como é o caso das instituições de teologia católica, não resta dúvida de que a presença de mulheres docentes, ainda que em número reduzido, é culturamente significativa pelo poder que passam a exercer. Desde esse lugar, elas produzem uma ética de si e se constituem sujeitos de razão teológica, de enunciação e de produção de novos significados de gênero, reconstituindo o imaginário sobre o feminino, presente nas práticas institucionais e nos discursos da teologia tradicional. Isso porque, ao se aproximarem ou, explicitamente, assumirem o feminismo da diferença como uma posição política de afirmação dos valores que vem do universo feminino, elas rejeitam a lógica da identidade feminina negativa, produzida pelo sistema simbólico masculino que as inferiorizou e, ao mesmo tempo, reivindicam a necessidade da igualdade na justa distribuição do poder.
Como enfatizamos em nosso artigo, a perspectiva teórica que toma a diferença sexual como uma posição política é, sem dúvida, importante para compreender as ações protagonizadas pelas docentes no processo de seu devir sujeito feminino de saber dentro de estruturas masculinas. É uma posição que permite desfazer os discursos éticos e políticos tradicionais sobre a alteridade, libertando nas mulheres o seu desejo pela liberdade, pela justiça e pelo direito de ser sujeito pensante. Trata-se de um projeto político que, em si, não glorifica e nem essencializa o feminino, mas permite, a partir das experiências concretas ou das práticas situadas das mulheres, ressignificar, atualizar e dar legitimidade a uma posição de sujeito, em cuja base está a reinvenção da subjetividade feminina, de modo que a constituição de um sujeito ético, que resulta da reflexividade crítica e resistente aos códigos normativos de gênero, também ocorre pelo processo de ressignificação do sistema simbólico masculino, inscrito nos discursos da moral cristã católica, que outrora produziu o feminino como pejorativo.
É um agenciamento de si que ocorre no cotidiano das experiências vividas pelas mulheres em relações perpassadas por tensões com os discursos e as práticas de uma estrutura masculina e celibatária. Isto é, de uma estrutura que não produz apenas limites para as mulheres, mas também possibilidades para iniciativas autônomas e criativas que emergem desde as margens do poder central. Nesse processo de agenciamento ético, em que as docentes reivindicam o direito de ensinar e de produzir saber e o reconhecimento de seu potencial, elas não enfatizam apenas o critério da formação profissional adquirida, mas também as experiências cotidianas, de um sujeito que é “mulher” e que tem uma contribuição a dar ao universo da teologia, de modo que existe uma reivindicação pelo reconhecimento positivo da alteridade e por igualdade de direitos.
De certa maneira, este estudo aponta que nem sempre a diferença sexual tende a desvalorizar as lutas políticas, uma vez que, em contextos fortemente marcados por uma estrutura poderosa, hierárquica e masculina, como são as instituições católicas, ela continua sendo uma postura política estratégica. Nessas estruturas, perpassadas por representações simbólicas de gênero e dinâmicas de poder que inferiorizam as mulheres, ainda parece ser importante uma afirmação positiva da diferença sexual que negue o conteúdo substantivo de um sistema simbólico negativo. Isto é, de um feminino que resiste a uma determinada definição e encarna novas possibilidades de alteridade, também em sua forma múltipla.
Na teologia, a postura assumida pelas docentes entrevistadas, em favor da diferença, aparece como uma luta, no sentido de esvaziar a feminilidade de um conteúdo essencialista e negativo. Outras vezes, para além de uma postura de sujeito “mulher” universal, em contraposição a um sujeito masculino também universal, as narrativas apontam que elas se constituem por diferentes experiências situadas e contextuais, que fazem da “mulher” um sujeito múltiplo, atravessado por distintas experiências, que emergem de diferentes posições indentitárias que elas assumem no cotidiano da vida pessoal e profissional, como mãe, esposa, professora, religiosa, teóloga... Essa compreensão da mulher como sujeito múltiplo é recorrente nas posições das feministas contemporâneas pós-estruturalistas e, aqui, de modo específico, de Rosi Braidotti, para qual a diferença sexual inclui todas as diferenças. Assim, para além das críticas que são feitas às correntes do feminismo da diferença sexual e, apesar de suas possíveis contradições teóricas, essa posição, assumida como estratégia política, ainda parece ser necessária para compreender a ação dos sujeitos em determinados contextos sociais, como é o caso das instituições católicas de teologia.
Desse modo, não se pode generalizar ou desprezar formas de ação política, mesmo que elas possam parecer contraditórias. Isso porque, o feminismo tem sido protagonista na posição de que se faz necessário pensar a partir de contextos distintos e situados. Nessa lógica, nota-se que em muitos momentos as docentes parecem apelar para uma diferença essencializada, como contramemória, no sentido de demarcar um lugar social no universo religioso e, ao mesmo tempo, sobrevalorizam a diferença sexual, como uma forma de resistência política a um determinado modelo de feminino, para, desde aí, fortalecer uma imagem positiva desse feminino. Assim, tratando-se do universo acadêmico de teologia, parece mais justo considerar o contexto histórico desse lugar social e os dispositivos de gênero e de poder envolvidos na produção do feminino e do masculino, antes de tirar conclusões inadequadas.
Diante de uma história de discriminação e de ausência feminina, pode-se dizer que as práticas de reflexividade, de resistência e de agenciamento que elas produzem, por menor que sejam, tornam-se importantes, porque estabelecem certa autonomia em relação a uma estrutura hierárquica e masculina. Aqui, as docentes se produzem sujeitos não apenas pelo processo de resistência e de reflexividade aos códigos normativos de gênero que perpassam as instituições católicas, mas também pela capacidade de ação, de decisão e de se reinventar produzindo novos significados para a própria subjetividade, de modo que elas não só transformam as relações no espaço em que vivem e atuam, mas também a sua própria existência, que tem a ver com um novo modo de viver, se constituir e de se reconhecer sujeito feminino de saber.
Considerando que o contexto em que as docentes atuam é regido por convenções sociais e normativas de gênero, segundo uma estrutura simbólica, hierárquica, celibatária e masculina e levando em conta as perspectivas teóricas do feminismo pós-estruturalista, temos usado, no corpo deste trabalho, o termo sujeito feminino de saber como uma categoria que engloba muitos conceitos teóricos, que atravessam a análise de nosso estudo. Isso porque as docentes que participaram desta pesquisa assumem uma posição clara de gênero (mulher/diferença). Isto é, elas falam a partir dessa posição política e crítica, em termos de contramemória, de resistência, de práticas e saberes acadêmicos situados e de uma política de localização. Se o feminino foi construído, no imaginário masculino e celibatário, como inferior e desqualificado, agora ele sofre um deslocamento, em termos de afirmação positiva, não somente porque os atributos femininos passam a ser considerados valores importantes para o universo de saber, mas porque, por meio de suas experiências e ações situadas, elas produzem novos significados para o feminino, subvertendo uma ordem fixa de gênero, que fora naturalizada a partir de uma leitura masculina da diferença sexual. Essa compreensão foi possível a partir da experiência de pesquisa empírica e dos campos teóricos feministas, particularmente das concepções de Rosi Braidotti (2004), para a qual o fato de o signo “mulher” ter sido construído, ao longo da história, com um sentido negativo, torná-lo positivo já é uma forma de transgressão. No campo teológico, existem estratégias, posições e conexões várias, que se interseccionam com um desejo de ser sujeito do saber teológico ou de apropriar-se, de ensinar e de produzir saber, partindo de uma posição política de sujeito (mulher).
Na categoria sujeito feminino de saber, como uma posição política de afirmação positiva da diferença sexual, compreendemos que se trata de um sujeito múltiplo, porque as subjetividades dessas docentes estão atravessadas por diferentes experiências, que também as diferenciam umas das outras. É, ainda, um sujeito ético, na medida em que elas resistem ao sistema simbólico masculino de gênero, propondo um simbólico alternativo, por meio de práticas acadêmicas contextualizadas. É um sujeito nômade, porque os deslocamentos subjetivos são construídos no “aqui e agora” da história presente, por meio de práticas situadas, mas também um sujeito sempre em devir, porque continua envolvendo empreendimento de energias por reconhecimento, que se alimenta por um imaginário utópico, com base em um sistema simbólico de gênero alternativo, segundo os argumentos da teoria que assumimos para este estudo. É um sujeito contraditório, porque se constitui dentro da ideologia masculina de gênero, pela apropriação do simbólico, mas, ao mesmo tempo, fora, porque elas imprimem significados novos, não imaginados no sistema cultural androcêntrico. É um sujeito individual que se remete ao coletivo, um “si mesmo para todas as mulheres”, que se articula por afinidades ou pontos nodais que, neste caso, trata-se da consciência de uma história comum de desqualificação do feminino e de discriminação sexista, de ausência histórica nos processos de produção do saber, em um espaço em que o normativo é o masculino, de uma espiritualidade compartilhada no sentido de sentirem-se vocacionadas para uma missão na teologia e do desejo de marcarem este universo de saber por uma alteridade positiva e de um imaginário utópico do devir sujeito feminino de saber teológico com reconhecimento acadêmico, que mobiliza ações no presente na esperança de um futuro melhor.
Para concluir, gostaríamos de acenar que essa luta situada e contextual das mulheres docentes no processo de se constituírem sujeitos femininos de saber teológico, evidentemente, embora seja específica e distinta, se une a luta de outras mulheres inseridas em tantos outros campos profissionais e de saberes que foram considerados masculinos, ao longo da história. Isso porque, apesar dos processos de mudanças socioculturais que já ocorreram, ainda convivemos em um sistema com fortes resquícios da cultura patriarcal, que continua necessitando da desigualdade, da hierarquia e da violência simbólica para subsistir. Trata-se de um sistema que produz mecanismos de poder e de gênero que tende a se perpetuar também para dentro das instituições teológicas. Talvez, a luta dessas mulheres pelo agenciamento ético de si, no sentido de uma afirmação positiva da subjetividade feminina, pelo reconhecimento profissional e pela produção de novas simbologias e significados, como uma maneira de modificar o imaginário coletivo, nos faça acreditar que “a transformação do mundo começa com a transformação de nossas mentes e a renovação de nossas mentes começa com a transformação das imagens que introduzimos nela, isto é, as imagens que penduramos em nossas paredes e as que levamos em nosso coração” (Ward L. Kaiser ).19
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