Resumo: O artigo apresenta uma reflexão introdutória sobre o uso da pesquisa como ferramenta de ensino em sociologia, premissa que consta em documentos normativos como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio e a inconclusa Base Nacional Comum Curricular. O objetivo do artigo é refletir sobre as possibilidades de utilização dessa ferramenta, que vem sendo apresentada como um ideal perseguido no campo de ensino em sociologia. A partir da exposição dos sentidos associados a ela, o trabalho analisa as propostas de pesquisa de dois manuais didáticos, bem como sua interpretação por professores entrevistados em uma escola considerada de excelência (CAp-UERJ). Dentre os resultados, destacam-se: a distinção entre os tipos de pesquisa mais informativos e os mais sistemáticos e metodológicos, a existência de um aparente consenso quanto à importância da pesquisa no ensino de sociologia e a polissemia com que professores identificam o termo “pesquisa”. Além disso, foram identificados obstáculos estruturais para a rotinização do uso didático da pesquisa sociológica, como: o tempo exíguo destinado à disciplina na grade curricular; a ausência de um clima escolar que estimule e crie mecanismos propiciadores de inovação pedagógica; deficiências na formação de professores, que não privilegia a pesquisa enquanto princípio de ensino; e a necessidade de um quantum de capital cultural dos alunos para a utilização profícua dessa ferramenta didática.
Palavras-chave: ensino de sociologiaensino de sociologia,livro didático de sociologialivro didático de sociologia,pesquisa e ensinopesquisa e ensino.
Abstract: This article presents an introductory reflection on the use of research as a teaching tool of Sociology. This premise can be found in normative documents such as the Curricular Guidelines for High School, and also in the National Common Curricular Basis. Its goal is to reflect upon the possibilities of use of this tool, which has been shown as an ideal to be pursued in the field of sociology teaching. From the exposure of the senses associated with it, the work analyzes the research proposals of two textbooks, as well as interpreting the interviews of teachers from a school considered excellent (CAp-UERJ). Among the results, the following can be highlighted: the difference between the most informative and the most systematic and methodological types of research, the apparent consensus regarding the importance of research in teaching sociology, and the polysemy in which the teachers identify the word “research”. Furthermore, structural obstacles were identified for the routine didactic use of sociological research, such as: the short time allocated for the subject in the curriculum; the absence of a school climate that stimulates and develops mechanisms to facilitate pedagogical innovation; deficient teacher training, which does not emphasize research as a teaching principle; and the need for a quantum of cultural capital from students to a profitable use of this teaching tool.
Keywords: teaching of sociology, sociology textbook, research and teaching.
Artigo
A pesquisa como ferramenta de ensino em sociologia: sentidos, obstáculos e potencialidades em livros didáticos e em práticas docentes
Research as a teaching tool in sociology: Meanings, obstacles and potentialities in didactic books and teaching practices
Recepção: 14 Dezembro 2016
Aprovação: 05 Julho 2017
Desde a promulgação da lei nº 11.684/2008 (Brasil, 2008), que tornou obrigatória a inclusão da disciplina sociologia no currículo das escolas brasileiras, assiste-se a uma crescente estruturação do campo de ensino e de pesquisa em sociologia escolar. Reflexos visíveis dessa mudança são observados na reformulação de cursos de licenciatura pelo país, na publicação de novos livros didáticos, no aquecimento do debate em congressos da área, no aumento expressivo de dissertações e de teses sobre a temática e no surgimento de novos cursos de especialização, entre outros.
Esse movimento, que vem buscando consolidar a posição da disciplina em âmbito escolar, tem estimulado um profícuo debate acadêmico acerca do currículo de sociologia para o Ensino Médio, chamando atenção para questões sobre planejamento, seleção e avaliação de conteúdos, assim como para estratégias didáticas que contribuam para a construção e para a consolidação de uma disciplina de qualidade.
Neste contexto, vem ganhando considerável importância no debate o tema da utilização de atividades de pesquisa como ferramenta didática (Oliveira e Cigales, 2015), inclusive com a intenção de reproduzi-las no espaço da escola (Brasil, 2006). A escola passaria, nesse caso, a ser locus empírico para o desenvolvimento de pesquisas sociológicas por professores e alunos. Em documentos oficiais, como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) (Brasil, 2006) e a ainda não finalizada Base Nacional Comum Curricular2 (BNCC), a utilização da pesquisa sociológica como ferramenta de ensino ganhou também considerável destaque em seus textos.
Entretanto, a utilização de pesquisas no processo de ensino-aprendizagem é ainda um elemento estranho à cultura escolar brasileira. Isso ocorre não apenas no caso da sociologia. O currículo da escola básica dá pouca ênfase para questões acerca da cultura científica e das construções individual e coletiva, sob as quais ocorre propriamente a atividade científica, valorizando, ao contrário, a utilização de conceitos e de fórmulas prontas (Kosminsky e Giordan, 2002). Em sociologia, seguindo a tendência mais geral das disciplinas escolares, desenvolve-se maior ênfase em conteúdos e em resultados de pesquisa do que em métodos e processos de construção do conhecimento sociológico.
Diante desse quadro, e considerando que a importância conferida pelos documentos normativos (OCNs, BNCC) às atividades de pesquisa reflete também um movimento geral de construção da identidade da disciplina, este artigo pretende identificar alguns sentidos conferidos à utilização da pesquisa no ensino de sociologia, bem como os obstáculos e potencialidades reais e imaginados, a partir da análise de dois livros didáticos e de entrevistas realizadas com professores de um Colégio de Aplicação quanto à utilização dessa ferramenta nas aulas de sociologia.
O artigo é dividido em três seções. Na primeira, analiso como o tema da pesquisa no ensino de sociologia engloba pelo menos três sentidos concorrentes para a construção da identidade da disciplina e sua legitimação, os quais denomino respectivamente de pedagógico-cognitivo; de construção de um ethos democrático e de neutralidade epistemológica defensiva na sociologia. Na segunda seção analiso as propostas de atividades de pesquisa existentes em dois livros didáticos de sociologia que fazem parte do conjunto de títulos aprovados no Plano Nacional do Livro Didático, do ano de 2015. Essa mirada nos manuais se torna importante uma vez que o livro didático é ainda hoje um dos principais instrumentos de construção do currículo básico desta disciplina (Santos, 2012). Na terceira seção, apresento potencialidades e obstáculos identificados pelos professores na utilização da pesquisa como ferramenta de ensino em sala de aula.
O ideal de utilização da atividade de pesquisa como ferramenta didática no espaço escolar é movido pelo reconhecimento tácito das limitações pedagógicas existentes nas formas tradicionais de ensino. Crê-se, portanto, em um incremento da qualidade da aprendizagem a partir da utilização de atividades que promovam a experimentação do aluno na prática científica das disciplinas. Esse parece ser o primeiro sentido a tornar a atividade de pesquisa tão desejada como parte do método de ensino na escola, ideal presente no campo das teorias curriculares, bem como no campo educacional, em geral3.
Em quase todas as outras disciplinas a pesquisa surge como um ideal a ser perseguido pelos educadores (Moraes e Lima, 2012). A atividade de pesquisa em âmbito escolar vem demonstrando portar elementos enriquecedores ao processo de aprendizagem (Bagno, 2003), enquanto os processos didáticos mais tradicionais, exclusivamente centrados na transmissão de conteúdos, demonstram há muito seus limites pedagógicos. Denomino esse sentido, que apresenta graus elevados de consenso no campo educacional, de sentido pedagógico-cognitivo, e advogo que as representações associadas a ele tornam a pesquisa na escola básica um ideal permanente, embora pouco operacionalizado e sistematizado.
Outro sentido para a utilização de pesquisa em sala de aula em parte se apoia em críticas similares às realizadas por Freire (1970) quanto à prevalência de uma educação bancária, pouco atenta às idiossincrasias dos estudantes. Seriam, segundo sua concepção crítica, as práticas pedagógicas mais comuns baseadas em aulas expositivas, cujo pressuposto assenta-se na autoridade do saber docente. Segundo tais intepretações, essa relação autoritária baseada em uma crença equivocada do aluno como uma espécie de depósito de saber afetaria negativamente a construção de um ethos democrático e científico, ambos ideais e valores implícitos no modelo de escola republicana.
Os processos de aprendizagem centrados exclusivamente na transmissão de conteúdos fortaleceriam aquilo que denomina Dubet (2011) como o programa institucional da escola, um programa paradoxal, porque embora movido por ideais de igualdade moderna democrática, é operado sob a lógica de uma dominação de caráter protoreligioso e tradicional, manifestada na desigualdade abissal entre a autoridade de um detentor do saber e a resignação passiva de um aprendiz (Dubet, 2011, p. 293).
Nesse sentido, pode-se advogar que a apropriação da pesquisa como método de ensino ofereceria possibilidades de construção associadas à autonomia do conhecimento, valorizando não apenas seus resultados, mas um processo de construção ativo e participativo, em detrimento da reprodução dos inquestionáveis argumentos de autoridade. Esse confere um segundo sentido implícito ao uso da pesquisa em sala de aula, e que denomino, neste trabalho, construção de um ethos democrático.
Um terceiro sentido que concorre para o fortalecimento das atividades de pesquisa como ferramenta didática em sociologia surge diante de uma preocupação mais ou menos difundida sobre os resultados políticos que a disciplina pode produzir no tecido social.
Há representações coletivas correntes que identificam a sociologia do ensino médio como ideológica, engajada ou doutrinária, embora, como advirta Oliveira (2013), bastasse uma breve mirada na história da disciplina para desconstruir essa associação.
Desde os primeiros manuais de sociologia na década de 1920, a mesma assumiu em algumas ocasiões feições bastante conservadoras4. A questão é que sob o peso histórico de sua intermitência no currículo, por vezes identificada como reflexo das condições político-ideológicas de cada época, busca-se nos debates no campo de ensino de sociologia a construção de uma disciplina mais rigorosa, com resultados educacionais discerníveis e legitimáveis, de forma a protegê-la de velhas acusações normalmente imputadas a ela.5
Dessa forma, construir didaticamente experiências de pesquisa em sala de aula pode, nesse sentido, significar a reafirmação do leitmotiv da sociologia, o de produzir conhecimentos científicos rigorosos, baseados em dados verificáveis do universo social (Bourdieu, 1983; Lahire, 2013). Denomino esse sentido corrente de neutralidade epistemológica defensiva, na medida em que o processo de construção de formas didáticas manifesta não somente uma preocupação pedagógica, mas uma forma de construir argumentos legitimadores para uma disciplina que vive sob constante ameaça, cujo histórico demonstra sua presença pouco consolidada no currículo escolar.
Nesse contexto de legitimação da sociologia, a presença de atividades de pesquisa em seu currículo manifesta um compósito desses sentidos legitimadores que, por um lado, pretensamente tornariam o ensino da disciplina mais eficaz e, por outro, contribuiriam para definir sua nova identidade e seus objetivos, com efeitos evidentes de legitimação e consolidação de sua posição no campo educacional e curricular.
Se esses três sentidos são presentes na defesa de um ideal - o ensino a partir das atividades de pesquisa - aparentemente consensual, na prática há um longo caminho a percorrer em direção à construção de formas acessíveis, factíveis e replicáveis de operacionalização dessa ferramenta pelo professor em sala de aula.
Posto isso, vejamos na próxima seção uma breve análise das propostas existentes em dois importantes livros didáticos, compreendendo-as como parte das tentativas de operacionalização desse ideal.
Desde que se tornou obrigatória, em 2008, a disciplina sociologia não obteve, nem nas Diretrizes Curriculares (DCN) nem nas OCEMs, indicações de conteúdo que conformassem um currículo mínimo consolidado. Na prática, o currículo de sociologia vem se constituindo a partir de vários centros de referência: diretrizes e orientações normativas federais e estaduais; cursos de formação de professores; programas governamentais como o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), entre outros. Embora atualmente haja um processo de construção e definição de conteúdos comuns mediante a Base Nacional Comum Curricular, não se pode enublar o protagonismo da participação dos autores de manuais didáticos nessa construção.
Esse protagonismo não surgiu recentemente. Conforme asseveram Oliveira e Cigales (2015) e também Meucci (2011), a constituição de um primeiro espaço de rotinização do conhecimento sociológico se opera sobretudo a partir da década de 1920, época marcada pelo fortalecimento do movimento da Escola Nova e pela expansão das editoras no Brasil, quando passam a ser produzidos diversos manuais de Sociologia.
O livro didático assume, assim, centralidade no cotidiano da educação escolar no Brasil (Freitag et al., 1989). Duas consequências podem ser destacadas desse fato: a primeira é que se opera um efeito homogeneizador do currículo, uma vez que o livro didático vincula conteúdos e práticas nas mais distintas escolas e regiões do país. A segunda consequência é que o livro didático passa a funcionar como um roteiro de procedimentos docentes, possibilitando a rotinização da atividade dos professores e diminuindo o rol das inúmeras decisões de que o professor precisa dispor em sala de aula (Perrenoud, 1999). Para uma disciplina cujo quadro docente ainda é preponderantemente composto por profissionais de distintas formações universitárias, o livro didático representa uma espécie de formação docente à distância.
Dada a centralidade do livro didático no processo de rotinização de conteúdos e práticas em sociologia, é importante refletir como se apresentam as sugestões e as orientações para a utilização da pesquisa nos principais manuais. Nesta seção me aproximo da questão com a análise de dois livros didáticos aprovados no PNLD: o livro Sociologia para o ensino médio (Tomazi, 2013) e o livro Sociologia em Movimento (Silva et al., 2013).
A escolha desses dois manuais envolveu critérios como a presença no PNLD de 2015 e a relativa consolidação no mercado editorial. O primeiro é um dos mais tradicionais e utilizados manuais didáticos em todo o país, está em sua quarta edição, seu autor é considerado uma referência em livros didáticos de sociologia e, o segundo, embora também aprovado no PNLD, representa um livro recente, ainda em sua primeira edição, todavia com boa aceitação pelas escolas e pelos professores, organizado por quinze autores, todos profissionais atuantes no ensino médio.
Para a análise dessas publicações é importante matizarmos o que se entende pela categoria pesquisa. Nesse sentido, retomamos uma distinção organizativa presente nas Orientações Curriculares do Ensino Médio (Brasil, 2006) para classificar a qualidade das sugestões de pesquisa existentes nesses instrumentos.
Trata-se da diferenciação entre as pesquisas voltadas para um mínimo de comprometimento com um roteiro de procedimento metodológico-científico - construção de um problema, coleta de dados, formulação de hipóteses, comparação, apresentação de resultados etc. - e as pesquisas menos sistemáticas, cuja função é meramente informativa e demonstrativa (Oliveira e Cigales, 2015).
Essa diferenciação apresentada nas OCEMs é retomada no trabalho de Oliveira e Cigales (2015) que, com o objetivo de facilitar a análise dos livros didáticos, classificam em duas categorias as propostas de pesquisas existentes nos seis livros didáticos aprovados no PNLD-2015, as quais denominam de pesquisa metodológica e pesquisa informativa.
A pesquisa metodológica é aquela que propõe a utilização de ferramentas metodológicas das ciências sociais explicitando seus fundamentos, tais como: questionário, entrevistas, pesquisas de opinião, ou seja, a que mais se aproxima dos recursos metodológicos da pesquisa sociológica; e a pesquisa informativa é aquela que se direciona no sentido de buscar por informações em sites da internet, dicionários, livros, rótulos de produtos, charges, filmes, músicas, etc., podendo ter maior ou menor grau de especificação dos procedimentos a serem adotados (Oliveira e Cigales, 2015, p. 284).
Tendo como referência essa distinção inicial, na próxima seção analiso algumas sugestões de pesquisa existentes nos dois livros mencionados. Passemos a elas.
Já em sua introdução, o livro Sociologia no Ensino Médio se inicia com um subitem denominado “A pesquisa como fundamento do conhecimento sociológico”. Nele adverte-se o leitor de que o corolário básico do conhecimento sociológico “é constituído com base em muita pesquisa”. Afirma-se que as interpretações sociológicas são baseadas em investigações históricas, documentais e bibliográficas, em coleta e em organização de dados observáveis, para só então serem formuladas como interpretações, ou leituras baseadas nesses dados.
Dessa forma, o texto enfatiza que mesmo se tratando de interpretações, tampouco consensuais, os trabalhos, conceitos e teorias em ciências sociais são e devem ser necessariamente baseados em dados. Termina, ainda, com a seguinte conclusão: “aprender a pensar sociologicamente implica assim fazer pesquisas, mesmo que sejam pequenas” (Tomazi, 2013, p. 19).
Em algumas partes, o livro trabalha com o uso de técnicas de coleta de dados, como entrevistas formais, mas, ainda assim, com o intuito de informar e enriquecer com algum nível de experimentação o conhecimento sobre determinado tema. Ou seja, mesmo se utilizando de algumas técnicas metodológicas, as propostas não se preocupam com a construção de um problema sociológico a resolver, mas tão simplesmente o de informar ou prestar-se como uma observação ilustrativa, confirmatória de algum tema tratado em aula.
No capítulo 3, por exemplo, o autor solicita que seja construída uma biografia e que para isso o leitor ou a leitora entreviste seus pais e parentes, a partir de questões previamente pensadas com o professor. Essas questões seriam exatamente o leit motiv da pesquisa, mas são pouco problematizadas.
Em suma, podem-se definir as propostas de pesquisa desse livro como informativas e ilustrativas (Oliveira e Cigales, 2015). O modelo do exercício é o seguinte: apresenta-se o conteúdo de uma teoria e a utilização da pesquisa serve para ilustrar e exemplificar a teoria com fatos, enriquecendo o processo de ensino-aprendizagem.
Da mesma forma ocorre no capítulo 9, em que se solicita ao aluno realizar uma pesquisa de opinião a partir do levantamento das múltiplas explicações que as pessoas de diferentes classes sociais, idades e gêneros costumam fornecer sobre a existência de desigualdades no Brasil. A intenção é identificar, de modo ilustrativo, recorrentes preconceitos de senso comum quanto à classe, ao gênero e à raça, já discutidos e apresentados por meio de tabelas, gráficos e seus intérpretes no livro-texto.
Aparece aqui o uso da entrevista como uma técnica de coleta de dados, no entanto o objetivo da pesquisa não é necessariamente procurar responder a uma questão, mas ilustrar conteúdos trabalhados em sala de aula.
Outra característica que se observa nas atividades desse manual é a apresentação compartimentada de etapas do método científico. No capítulo 20, por exemplo, a proposta é a de que um grupo selecione peças publicitárias (cartaz, outdoor, TV, revista, clipe etc.) e indique o que, no material pesquisado, contribui para a padronização de opiniões, gostos ou comportamentos. Evidentemente, não se trata apenas de ilustrar uma ideia, mas também de aprender a exercitar um olhar analítico de peças e artefatos culturais.
Da mesma forma, pede-se que observem em uma novela da TV alguns elementos de seu roteiro que induzam à discussão pública de um problema social. Essas sugestões de pesquisa, embora não sejam sistemáticas, no sentido de produzir um “esboço de um projeto de pesquisa”, como consta nas OCEMs, tampouco devem ser consideradas apenas informativas. Talvez sejam, mais propriamente, simulações de atitudes científicas.
O Manual do Professor trata muito brevemente sobre a necessidade de utilização da pesquisa no ensino. Sua concepção de pesquisa se traduz da seguinte forma:
Pode-se iniciar o trabalho com teoria, por exemplo, solicitando aos alunos uma pesquisa bibliográfica sobre os autores que serão citados nas aulas. Desse modo, é possível integrar a história dos autores e suas obras às teorias estudadas, as quais são históricas e muitas vezes vão se modificando. Pesquisa bibliográfica sobre conceitos em dicionários da língua portuguesa, de filosofia e sociologia. Pesquisa exploratória sobre temas (Tomazi, 2013, p. 236).
Por último, o texto faz menção à pesquisa social e, embora afirme ser excelente recurso didático, enfatiza a necessidade de ter muito cuidado com seu uso. Pois, “a solicitação de uma pesquisa social sem orientação prévia pode trazer mais problemas que soluções” (Tomazi, 2013, p. 237).
O único momento em que o livro apresenta de forma mais sistemática a pesquisa social como ferramenta didática aparece em uma seção do manual do professor intitulada “Anexo a pesquisa como forma de ensino”. É a primeira vez que surge menção à construção de um projeto de pesquisa em sala de aula. Embora apresente um breve roteiro de construção desse projeto, o mesmo é generalista e abstrato, não há indicações mais concretas de atividades.
Conforme anunciam Oliveira e Cigales (2015), a questão passa por ensinar e orientar o professor na difícil tarefa de conduzir uma pesquisa. A tarefa de um livro didático ao provocar a construção de uma pesquisa me parece tanto mais interessante na medida em que possa oferecer modelos de pesquisa a serem seguidos, copiados e transformados, dadas as idiossincrasias de cada escola, região, alunos e as escolhas do professor.
O livro Sociologia em Movimento
O segundo livro analisado, Sociologia em Movimento (Silva et al., 2013), apresenta ao final de cada um de seus 15 capítulos uma seção intitulada “Atividades”, dentro da qual surge na maioria dos capítulos um item denominado “Questões para a pesquisa”. Tal como discorre o texto no suplemento do professor:
A prática de pesquisa é fundamental para a realização dos objetivos do ensino de sociologia, já que coloca os estudantes em contato com uma prática profissional do campo das ciências humanas, ao mesmo tempo em que envolve a construção de um olhar sociológico por meio da análise metódica dos fenômenos sociais. A pesquisa também propicia mais uma experiência de trabalho em grupo e de construção da autonomia para a realização de tarefas que vão além dos muros da escola (Silva et al., 2013, p. 311).
A atividade de pesquisa proposta no capítulo 2 parece ainda mais bem sistematizada para utilização do professor em sala de aula. A temática é a das transformações dos comportamentos sociais a partir da difusão das redes sociais online. O tema é apresentado a partir de um pequeno texto que chama atenção para as diferentes opiniões, otimistas e pessimistas, em relação às redes sociais. Pede-se para o aluno pesquisar aleatoriamente informações sobre as redes sociais em diferentes fontes: textos, artigos, palestras e debates. Após essa pesquisa prévia, juntamente com seu professor o aluno irá elaborar um questionário para aplicá-lo na escola em uma pesquisa sobre a utilização das redes sociais online pelos alunos e professores. Por fim, os estudantes devem apresentar os dados coletados na escola e compará-los com as informações e com os dados coletados naquelas fontes secundárias.
A atividade proposta demonstra um esforço exemplar de construção de um roteiro, perpassando todas as etapas de uma pesquisa social, de forma adaptada ao nível de ensino. Nesse pequeno roteiro, o objetivo da pesquisa se torna claro: compreender como os comportamentos dos indivíduos de sua escola se relacionam com o fenômeno da participação em redes sociais online.
Há nessa proposta passos bastante similares a um modelo de pesquisa social: a busca de informações de forma exploratória; uma revisão bibliográfica simples, sem grandes preocupações com normas; o estabelecimento de hipóteses a nortear a construção de um instrumento de coleta de dados, como o questionário, a “ida a campo” com aplicação de questionários junto a alunos e professores; a apresentação dos resultados, com o exercício de comparação entre os dados etc. Ao final desse roteiro de pesquisa, os alunos certamente poderão realizar um debate sobre as redes sociais online e seus impactos, mas com o diferencial de terem obtido dados mais rigorosos e próximos de sua realidade, o que diminui o peso retórico em debates de opinião.
Outra sugestão de pesquisa digna de nota ocorre no capítulo 10. Mais uma vez a atividade é iniciada com um pequeno texto de abertura. O texto apresenta um balanço do Governo Federal sobre a relação entre políticas públicas e a redução da desigualdade social, a partir de dados do Censo IBGE do ano de 2010. Solicita-se que o aluno leia o texto com olhar crítico, no sentido de que as informações nele veiculadas precisem gerar dúvidas quanto à reprodução daquelas conclusões em suas realidades próximas.
O objetivo da pesquisa realizada pelos alunos é, então, verificar como os elementos destacados no texto (indicadores sociais, como renda domiciliar, taxa de mortalidade infantil, frequência escolar e taxa de fecundidade) se apresentam em sua cidade, em seu bairro ou na escola. Para isso, esse material didático sugere construir um questionário, sob a orientação do professor, selecionando os elementos/indicadores a serem pesquisados, definindo o universo e as estratégias de pesquisa a serem adotados, como população-alvo e espaços de abrangência e, depois, procedendo a tabulação dos resultados. Por último, propõe que os alunos apresentem os painéis comparando os resultados obtidos com a pesquisa no microcosmo da escola com aqueles apresentados no texto sobre a realidade brasileira.
Ao iniciar várias sugestões de pesquisa com um breve texto introdutório, esse livro didático possibilita a construção de uma problemática em conjunto, criando nos alunos a motivação para a pesquisa a partir de uma leitura individual e da problematização coletiva dessa leitura. Cria, também, como no caso desse exemplo, a possibilidade de comparações de dados, resultados e interpretações.
Muitos desses textos introdutórios trazem os resultados de uma pesquisa realizada em dimensão macro, em âmbito nacional ou regional, para então solicitar que o aluno realize a confirmação de seus resultados em nível micro, em sua escola, seu bairro ou sua rua. Com isso, o livro não apenas fornece modelos gerais de pesquisa, como estimula a busca pelo conhecimento mais rigoroso do aluno quanto a suas realidades locais.
Ao fornecer roteiros de pesquisa mais estruturados e concretos, o livro Sociologia em Movimento possibilita, enfim, que essa atividade, pouco rotinizada nas práticas pedagógicas da disciplina, ganhe um suporte programático. Resta saber se e como tais atividades serão apropriadas por professores e alunos em sala de aula.
Os professores entrevistados6 para a pesquisa lecionam no CAp-UERJ, escola pública considerada de excelência localizada na cidade do Rio de Janeiro. Embora muitos desses professores trabalhem exclusivamente nessa instituição, sob o regime de dedicação exclusiva, suas experiências ultrapassam a participação nessa escola, uma vez que há passagens em suas trajetórias profissionais por instituições públicas estaduais e privadas. Por esse motivo, em suas narrativas encontramos comparações entre os distintos contextos escolares, suas estruturas físicas e profissionais, os tipos de alunos, bem como as potencialidades e os obstáculos no uso de metodologias de ensino inovadoras.
As entrevistas realizadas com esses profissionais seguiram o objetivo de esclarecer como o ideal ou o princípio praticamente consensual de utilização da pesquisa como ferramenta de ensino em sociologia se operacionalizava em suas aulas. As categorias de análise utilizadas nessa pesquisa foram construídas de forma a abarcar concepções gerais que indicassem: suas interpretações sobre a função/utilidade da sociologia na escola básica; a relação da sociologia e de seus professores com outras disciplinas; o processo de ensino-aprendizagem nas aulas de sociologia, em especial os modelos didáticos principais utilizados; a relação entre as estruturas escolares e a disciplina, tais como seu contexto socioeconômico, os capitais culturais de seus alunos etc. Os principais resultados apresentamos em sete itens, a seguir.
Seguindo as interpretações que os professores entrevistados conferem à atividade de pesquisa, ela se apresenta como assunto não-adverso, isto é, representa tema contra o qual ninguém se coloca manifestamente contrário. A atividade de pesquisa é compreendida como necessária e desejável, embora por trás desse aparente consenso essas atividades pedagógicas não sejam usuais. Além disso, esse aparente consenso parece esconder uma indefinição do que seja a atividade desejada. A categoria da pesquisa se torna polissêmica ao englobar no mesmo termo um gradiente de atividades didáticas de natureza experiencial.
Assim, quando solicitados a relatar suas experiências com pesquisa na escola, os professores entrevistados citam exemplos de pesquisas “informativas” (Oliveira e Cigales, 2015), aquelas que, como advertimos na segunda parte deste artigo, prescindem da construção de um problema sociológico, e não manifestam algum nível de rigor metodológico. Por vezes, os profissionais mencionam experiências, dinâmicas de grupo, teatro etc. A categoria da pesquisa para eles pode abarcar desde uma atividade externa, como a produção de fotografias a partir de um tema trabalhado em sala de aula, ao uso de dinâmicas de grupo, encenações, jograis etc., sem que apresentem objetivos investigativos bem definidos.
Professor 1: No Pedro II eu dava aula sobre trabalho. Cada aluno devia escolher uma pessoa que desempenhasse um trabalho e o aluno faria uma entrevista com essa pessoa. Um entrevistou a dona de um sexshop, outro um imigrante ilegal boliviano, foi muito enriquecedor.
Professor 2: A gente trabalhava com a noção de nova classe média. Bolei um questionário e pedi para que entrevistassem os pais em casa. Qual a renda etc. e dizer se as pessoas se sentiam naquela condição.
Embora o termo “pesquisa” comporte uma gama de possibilidades de atividades, há uma concordância de que a utilização de atividades experienciais são fundamentais em face das limitações de uma didática principalmente baseada nas aulas expositivas. Identifica-se aqui a precedência do sentido pedagógico-cognitivo para o uso da pesquisa no ensino de sociologia.
Professor 3: A pesquisa quando você consegue fazer, você vê resultados muito mais nítidos, muito mais consolidados no aluno que os outros métodos. É a questão de ele pegar mesmo e fazer.
Professor 1: Como eu fiz pesquisa na faculdade e foi um dos momentos em que mais aprendi, então quando entrei como professor eu pensei: “vai ser por esse caminho”.
Embora haja um consenso das vantagens didáticas desse tipo de atividade, há também, como outro lado da moeda, a percepção de uma impossibilidade real de se trabalhar com esses mecanismos, sobretudo no espaço e no tempo destinados para a disciplina no conjunto curricular do ensino médio.
Nas escolas estaduais no Rio de Janeiro há apenas um tempo semanal de sociologia, enquanto as escolas públicas de excelência, como CAp-Uerj e Colégio Pedro II, reservam dois tempos semanais. Segundo a percepção dos professores entrevistados, esses dois tempos tampouco são considerados suficientes para realização de um trabalho inovador como requer a pesquisa. Um tempo por semana, como se reconhece na prática dos docentes da escola básica, não representa sequer aqueles 50 minutos previstos em uma hora-aula.
Na melhor das hipóteses, consegue-se atingir 30 a 40 minutos de trabalho efetivo com a turma, o que, segundo suas interpretações, inviabilizaria a produção de atividades que exigissem maior disponibilidade de tempo e concentração por parte do alunado.
Professor 1: [Estimular a realização de pesquisas] com um tempo só? Impossível! Os alunos demoram para entrar, sentar etc.
Professor 2: Comecei numa escola privada na Baixada Fluminense. A maioria era analfabeto funcional. Não tive muito êxito na escola privada. Um só tempo de aula também... Um tempo só de aula, realmente não dá.
O tempo exíguo reservado para a disciplina inviabiliza o uso de métodos diferenciados de ensino, mas não somente isso. Interfere também na capacidade produtiva desse professor, que em virtude de dispor de pouco tempo com cada turma terá necessariamente uma quantidade maior de turmas, de forma a completar sua carga horária individual. Um professor que trabalha num regime de vinte horas, por exemplo, terá pelo menos doze tempos em sala de aula, o que significa a gestão de doze turmas diferentes, provavelmente em séries variadas, e em escolas diferentes, o que dificulta abordagens mais inovadoras, que quebrem a rotina mecanizada das aulas expositivas e dos debates, típicos da disciplina.
Professor 3: No estado, no primeiro e segundo ano temos um tempo só de sociologia. Com turmas de até cinquenta alunos no diário. Ano passado eu tinha doze turmas no segundo ano. Doze turmas de quarenta, cinquenta alunos, como eu vou dar prova? Como eu vou administrar isso?
Professor 2: Fazer esse projetinho demanda tempo. E é justamente o que a gente não tem.
Parece evidente que a falta de tempo deve ser um elemento complicador para a construção de abordagens mais experienciais em sociologia, todavia devemos nos perguntar: em que medida a rotinização desse tipo de atividade, a partir de uma boa formação docente, da publicação e replicação de metodologias de pesquisa no ensino, não seria um elemento minimizador a contrabalancear a recorrente queixa da falta de tempo?
Clima escolar e valorização do professor
A estrutura escolar, as práticas dos professores, sua valorização, todos esses elementos são compreendidos como fatores essenciais na produção de inovações didáticas pelo profissional da educação. Parece que um clima escolar7 propício (Brito e Costa, 2010) tende a estimular a iniciativa e a criatividade do professor, estimulando a criar novos e diferenciados materiais e novas técnicas didáticas.
Professor 1: O Colégio Pedro II tem uma tradição de produção de material didático. O Pedro II tem uma estrutura. São dezoito horas em sala de aula e o resto para produzir seu material etc. Essa estrutura que se dá ao professor é muito importante.
A importância de uma boa equipe de professores, funcionando harmonicamente, com encontros regulares, com uma estrutura de grupo temporalmente consolidada, com a presença de um coordenador atuante, tudo isso gera maior coesão escolar, produzindo laços profissionais e maior exigência desses profissionais.
Professor 1: Nessas escolas, CAp e CPII, há reuniões semanais. Reuniões semanais da equipe. Há um acompanhamento do coordenador, do que está sendo feito, e há uma cobrança implícita do próprio grupo. Você encontra o professor e diz: “tô com o primeiro ano também, o que que você está fazendo?” E isso fala-se em reunião. Ele vai dizer “eu não tô fazendo nada”? Não, não tem como. Não fica a coisa solta. Implicitamente cria-se um grupo. E num grupo qualificado, as opiniões dos colegas acrescenta muito né?
Estudos com referência ao clima escolar buscam analisar padrões de interações sociais presentes no contexto do ambiente da escola que podem facilitar ou dificultar o trabalho coletivo e o diálogo entre os diferentes atores do processo pedagógico, aspectos fundamentais na dinâmica educativa (Brito e Costa, 2010). Para Cunha e Costa (2009), a definição do clima escolar que explicita melhor o conceito corresponde ao conjunto das expectativas recíprocas compartilhadas pelos indivíduos em um ambiente institucional.
É exatamente isso que nos narram os professores entrevistados, demonstrando que a possibilidade de inovações didáticas e da utilização da pesquisa em sala de aula está diretamente ligada ao clima escolar de cada instituição.
Um dos professores entrevistados definiu como problemático o fato de que muitos temas de sociologia não são agradáveis para os alunos e que determinados trabalhos sugeridos, tais como atividades de pesquisa ou demais tarefas experienciais, podem desencadear sensações desagradáveis neles e em outros participantes da comunidade escolar. Essas descobertas podem estimular a construção de comportamentos raivosos, oriundos dos efeitos produzidos pelo desvelamento de suas condições sociais de dominados, pela percepção da injustiça social com que muitos deles, oriundos de camadas estigmatizadas e de baixo poder aquisitivo são tratados, realidades que, embora vivenciadas em seus cotidianos, podem permanecer como estados irrefletidos, pré-reflexivos, sublimados, naturalizados.
Parece se confirmar a afirmação de Bourdieu (1983) de que a sociologia pode criar problemas por revelar questões ocultas, muitas vezes reprimidas, tanto para aqueles em condições dominantes como para os que estão sob dominação. Esse mecanismo sugere que sejam nuançados os presumidos efeitos acalentadores daquilo que Wright Mills denominou imaginação sociológica (Mills, 1969), isto é, a capacidade que a sociologia teria de propiciar ao indivíduo construir associações entre sua biografia e as realidades e estruturas sociais mais abrangentes, possibilitando por conseguinte uma avaliação mais adequada entre o peso de sua responsabilidade, ou mérito, e do contexto social que marcam sua trajetória de vida.
Nesse sentido, o professor entrevistado lembrou da dificuldade que sentia em falar de questões como desigualdade de renda e de raça para pessoas pobres, negras e moradores de favelas. Certa vez, uma aluna teria lhe dito que não gostava de suas aulas, exatamente por que ele “tocava em suas feridas”, isto é, por desvendar e despertar para ela o arbitrário de suas condições sociais, que permaneciam, até então, pacificamente aceitas.
Da mesma forma, essa parece ser uma limitação às possibilidades de uso da pesquisa realizada por estudantes no interior da própria escola. Dependendo do tema que se desenvolva, tais como relações de poder entre a direção, professores e alunos; bullying; desvio; violência; gênero; sexualidade etc., pode-se produzir níveis de mal-estar e tensões imprevistas.
As dificuldades para a utilização da atividade de pesquisa como ferramenta didática se colocam também na falta de hábito desse professor em trabalhar com projetos mais ou menos estruturados, como aqueles apresentados nos livros didáticos.
Professor 3: Eu acho que a pesquisa precisa ser mais trabalhada no Ensino Médio. Nossos colegas não têm esse hábito, embora tenham vontade. A necessidade de apoio do pessoal da licenciatura também é necessário. A licenciatura precisa melhorar isso no próprio curso.
Esse parece ser um ponto essencial: desde a formação de professores, não há investimentos na construção de um habitus de professor-pesquisador que se utilize com alguma desenvoltura do expediente da pesquisa em sala de aula, que beneficie também processos de rotinização e de mecanização dessas ferramentas pedagógicas.
Tal desafio se torna maior se o colocarmos frente a três dificuldades estruturais que se apresentam à reflexão: (i) há parca formação em investigação empírica nos cursos de graduação, sendo que as disciplinas de metodologia e técnicas de pesquisa na maior parte das vezes realizam uma apresentação do repertório metodológico das ciências sociais, não estimulando a participação em atividades investigativas. Esse quadro provavelmente se apresenta de maneira similar nos cursos de bacharelado e nos de licenciatura; (ii) há relativa ausência de experiências compartilhadas sobre a utilização de pesquisa como ferramenta didática e de suas possibilidades de replicação no espaço escolar; (iii) soma-se a isso um quadro em que a grande maioria dos professores atuantes de sociologia sequer são graduados em Ciências Sociais.
Os professores entrevistados mencionaram a dificuldade em utilizar ferramentas didáticas que exijam maior abstração dos alunos, dentre elas o envolvimento em atividades de pesquisa, sobretudo em contextos escolares precarizados.
Eles citam as dificuldades em movimentar habilidades de pesquisa em virtude da incapacidade dos alunos com leituras simples, necessárias para a apresentação da problemática de pesquisa e, nesse sentido, apontam grandes diferenças entre a capacidade de leitura e de compreensão textual de alunos das escolas públicas consideradas de excelência (Colégios de Aplicação, Colégio Pedro II e Institutos Federais) e dos alunos das escolas públicas comuns.
Dadas as condições estruturais diferenciadas de cada escola e as capacidades desenvolvidas nos alunos das escolas públicas de alto nível, os objetivos do professor de sociologia também tenderiam, segundo suas visões, a se adaptar aos distintos contextos.
Professor 2: Até porque qual o objetivo da sociologia? Não é formar sociólogos. Não faz sentido você aprofundar certas leituras até chegar à teoria. O objetivo é variável de acordo com a instituição em que você está trabalhando. Os nossos objetivos são muito audaciosos no CAp, com uma carga de leitura maior, uma estrutura melhor, dois tempos etc. Então lá nós ousamos um pouco mais. Usa-se mais pesquisa de campo, e a questão da Dedicação Exclusiva para o professor é fundamental. (Em) trabalhos interdisciplinares, os alunos têm uma facilidade absurda. Você é convidado toda a hora a fazer parte de um projeto.
Professor 1: Os objetivos da sociologia numa escola do estado? Se conseguir romper com o senso comum, está lindo! Esse é o nosso objetivo. Não romper, porque seria muito radical, mas diminuir ao máximo aqueles preconceitos, aqueles mais enraizados no cotidiano deles. Não sei se isso pode ser quantificado ou nomeado. A gente vai com uma expectativa um pouco menor de solução dos problemas.
Vê-se que o sentido do ethos democrático, associado à imagem da sociologia como ciência libertadora e universalizante, a partir do desvelamento das relações de autoridade é aqui matizado. Na medida em que a sociologia é uma ciência que desconstrói pré-noções, ela naturalmente serve para desconstruções do senso comum, mas dados seus contextos e os capitais culturais diferenciados, essa função pode ser mais ou menos desenvolvida e estimulada.
Para alguns alunos é possível construir elos causais, hipóteses, formas de experimentação e comparação, enquanto em outros realiza-se o que é possível, isto é, desconstruindo o peso de preconceitos e categorias arraigadas do senso comum. Pode-se assim evidentemente argumentar que o estímulo ao ethos cientifico e democrático presente no ideal de utilização da pesquisa depende de um capital cultural acumulado, com desvantagens evidentes para alunos das classes populares.
Dessa forma, dadas as precárias condições de trabalho, professores tendem a adequar suas expectativas aos distintos capitais do corpo discente com que interatuam. Uma vez que a sala de aula é antes de mais nada marcada por um processo de interação, essas formas didáticas adequadas a cada contexto podem significar o caráter estratégico e pragmático desses professores, mas objetivamente produzem um efeito “bola de neve” nas desigualdades educacionais, estimulando mais qualidade para alunos melhores e menos qualidade para alunos de camadas socioeconômicas mais carentes.
Segundo um dos entrevistados, o currículo de sociologia é excessivamente extenso e diretamente centrado em conteúdos, não privilegiando questões sobre o método científico das ciências sociais. Embora reconheçam que a disciplina não tem por objetivo “produzir sociólogos profissionais”, e que por isso trabalhos sobre metodologia científica representariam um “excesso desnecessário”, afirmam por outro lado que a utilização sistemática de pesquisas pode produzir um aprendizado mais consistente, mais direto.
Pesquisador: Você acha factível realizar um esboço de projeto de pesquisa, como afirmam as OCEM?
Professor 2: Muito difícil, porque você não pode esquecer o seu planejamento. Dificilmente você consegue fugir do conteúdo. O ensino disciplinar na escola básica não é um ensino que privilegie método. E aí eu tô falando de todas as outras disciplinas. Para nós isso é muito caro. Como falo de uma pesquisa para o menino sem falar de método? Tem que falar minimamente de método.
Professor 3: A questão da ideologia na escola está mal colocada. Não existe neutralidade, mas sem dúvida fazer pesquisa pra esse aluno é descobrir que a informação pode ser buscada de forma mais direta.
Todavia, pode-se afirmar que esse sentido de neutralidade epistemológica defensiva em sociologia não parece ser tão presente nos professores entrevistados quanto poderíamos imaginar. Talvez essa seja uma preocupação maior dos atores que procuram definir o currículo de sociologia nas universidades, nos cursos de licenciatura, na formação de professores.
Neste artigo, elencamos alguns elementos introdutórios para pensar a prática escolar em relação ao uso da pesquisa como ferramenta didática em sociologia. Tanto as OCEMs como a BNCC determinam a utilização de pesquisas em sala de aula enquanto um princípio fundamental para a construção da identidade e para a consolidação da disciplina no currículo da escola básica. Percebe-se no espírito dessas normativas - bem como no caráter consensual, que professores proferem sobre a pesquisa em sala de aula - pelo menos três sentidos legitimadores que concorrem para a conservação desse ideal: o sentido da pesquisa como um incremento de eficiência didática, que denominamos aqui sentido pedagógico-cognitivo, o sentido de fortalecimento de um ethos democrático na escola, e (c) o sentido baseado na defesa de uma disciplina com caráter científico, menos informada por ideologias políticas, sentido que denominamos da neutralidade epistemológica defensiva.
Para interpretar a distância entre esse ideal aparentemente consensual e as possibilidades práticas de sua realização, analisamos alguns elementos, como as propostas de pesquisa contidas em dois manuais didáticos. Nesse item, embora as atividades de pesquisa propostas pelos manuais não tenham sido cotejadas com sua utilização prática por professores, a análise textual possibilitou uma visão comparativa dos dois livros, demonstrando as diferenças entre modelos de pesquisa que denominei informativos e metodológicos, em conformidade com a classificação de Oliveira e Cigales (2015).
Demonstrou-se também uma aparente vantagem didática para as pesquisas metodológicas, sobretudo por serem mais afinadas com os principais sentidos legitimadores associados ao papel da pesquisa no ensino de sociologia.
Embora importantes do ponto de vista da construção do currículo de sociologia, as propostas de pesquisa contidas nos manuais dependem, em última análise, do ethos docente, de suas interpretações sobre o papel da sociologia na escola e do lugar da pesquisa em suas práticas didáticas. O terceiro item do artigo abordou exatamente essa questão, mediante entrevistas realizadas junto a professores do CAp-UERJ. Nele, surgiram algumas pistas de como professores entendem tais questões. Elenquemo-las, sumariamente.
O expediente da pesquisa é polissêmico e manifestado em práticas docentes que, no limite, representam tudo aquilo que não seja uma aula expositiva: dinâmicas de grupo, representações teatrais, passeios temáticos etc. Há um consenso quanto à importância da utilização de pesquisa no ensino de sociologia, mas os professores também advertem para alguns obstáculos estruturais, tais como: o tempo exíguo destinado à disciplina na grade curricular; a ausência de um clima escolar que estimule e crie mecanismos propiciadores de inovação pedagógica; a baixa sistematização e a pouca rotinização de práticas pedagógicas no campo de ensino em sociologia; o problema da formação de professores, que tampouco cultiva a pesquisa enquanto princípio de ensino; os diferentes objetivos práticos que professores se impõem, dados os diferentes contextos socioeconômicos da escola; e os capitais simbólicos diferenciados de seus alunos.
Em suma, percebe-se que, embora o ideal de utilização da pesquisa no ensino permaneça presente junto aos professores, ainda pouco sem tem avançado no sentido de produzir uma rotinização de suas práticas pedagógicas associadas à pesquisa.
Embora esse seja um tema pouco explorado na literatura especializada, parece-nos candente, sobre o qual vale maior atenção do campo, sobretudo em um contexto macrossocial em que se tem (re)constituído um problema público no Brasil, baseado em uma velha aporia das ciências sociais: a clivagem entre neutralidade epistemológica e sectarismo ideológico, e todos os seus rebatimentos na educação de jovens. Essa questão social ganhou corpo nos recentes projetos de Lei nº 867/2015 e nº 193/2016, denominados Projetos Escola sem Partido (Brasil, 2015, 2016a), que tramitam respectivamente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, como também na Lei nº 13.415/2017, responsável pela mais recente reforma do Ensino Médio (Brasil, 2017).
Quanto aos projetos de lei, embora não tratem de um problema público propriamente novo no campo educacional8, sua repaginada, sob as novas condições sociopolíticas do Brasil, tende a produzir significativos reflexos no campo de ensino em sociologia, dentre os quais, o ter de responder de forma ainda mais consistente ao incessante afrontamento quanto à sua cientificidade.
Já a reforma do Ensino Médio (Brasil, 2017) mantém a obrigatoriedade da sociologia, abrindo-a contudo a uma sorte de transformações que unicamente a partir do escrutínio de seu texto ainda não podem ser completamente dimensionadas. Tem-se dúvidas quanto à manutenção de sua característica disciplinar (com tempo próprio, corpo docente habilitado etc.) na grade do Ensino Médio.
Na nova lei, apenas matemática, português e inglês são consideradas disciplinas obrigatórias, enquanto todas as outras, inclusive sociologia, são consideradas “componentes curriculares obrigatórios”, cujos conteúdos serão elaborados na terceira versão da BNCC, ainda em andamento. Mas é exatamente neste momento de construção do currículo que as pesquisas em torno do aperfeiçoamento do processo de ensino-aprendizagem podem fornecer relevante contribuição não só para a construção de maior eficácia didática da disciplina, mas para a consolidação de sua identidade e de sua importância nos embates em torno da nova proposta do Ensino Médio.
davidsoares1234@gmail.com