Resenha
A diversidade das desigualdades em questão: a problematização dos abismos sociais no âmbito da teoria política
The diversity of inequalities in question: The problematization of the social abysses in the framework of political theory
A diversidade das desigualdades em questão: a problematização dos abismos sociais no âmbito da teoria política
Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 2, pp. 393-396, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
| MIGUEL L.F.. Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. 2016. São Paulo. Editora Unesp. 440pp. |
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Recepção: 04 Abril 2017
Aprovação: 09 Maio 2017
De que maneira as sociedades democráticas contemporâneas, resultantes da evolução de um longo histórico de processos de abertura e refluxos para a contestação e a liberalização, tem lidado com a questão das desigualdades? E como essas mesmas desigualdades, que podem ser das mais variadas matrizes, vem sendo problematizadas não apenas nas diversas correntes da teoria política, mas no âmbito da ciência política em geral?
Essas são perguntas que conduzem os encadeamentos argumentativos do último livro organizado por Luís Felipe Miguel2 e lançado em setembro de 2016, e que tem a participação de uma gama de autores que nos últimos anos tem contribuído de maneira inequívoca para os avanços nas pesquisas da área: Ricardo Silva (UFSC), Adrian Gurza Lavalle (USP), Flávia Biroli (UNB), Ricardo Fabrino Mendonça (UFMG), Daniel de Mendonça (UFPel), Luciana Ballestrin (UFPel), Carlos Machado (UNB) e Danusa Marques (UNB).
O livro é dividido em doze artigos que irão apresentar onze perspectivas distintas da teoria política e o modo como essas correntes de pensamento trazidas à tona pelos analistas que compõem a edição, problematizam de maneira diferenciada a questão das desigualdades, sejam essas econômicas, de gênero, étnico-raciais etc. São as vertentes apresentadas: o liberalismo, o marxismo, o elitismo, o republicanismo, o participacionismo, o feminismo, o deliberacionismo, o multiculturalismo, a teoria do reconhecimento, o pós-estruturalismo e o pós-colonialismo.
Nos textos cada autor busca seguir um estilo mais ou menos similar, mas que diferem sequencialmente na medida em que cada pesquisador não só possui um estilo próprio de escrita, mas uma visão particular do modo como as ideias devem ser organizadas de maneira que as construções dos seus respectivos raciocínios sejam expostas da maneira mais coerente possível com as finalidades centrais do livro. Logo, após apresentarem as teorias objeto de aprofundamento comum em seus demais trabalhos (e por isso mesmo a seleção dos autores listados foi sem dúvidas algo absolutamente pertinente), tratam de mostrar como as mesmas, em específico os seus principais autores, tem visto a questão das desigualdades.
Para isso, houve algo de essencial: a reconstituição do histórico das teorias. Sem essa toada da reconstrução, certamente Desigualdades e democracia traria textos bem menos enriquecedores do que de fato são. Luís Felipe Miguel, com sua notória erudição, que se converte em acessibilidade e didatismo, a respeito das grandes correntes do pensamento político, oferece-nos um brinde desde a introdução, passando pelo texto sobre os desafios do liberalismo no que tange à questão das desigualdades até o artigo que irá discorrer acerca das disparidades de classe e da dominação política na tradição marxista.
Para cumprir com os problemas postos pela coletânea, Miguel não apenas recorre a uma variedade de teóricos que tanto convergem quanto divergem entre si, esquematizando a apresentação dos debates comuns aos estudiosos da área, mas também afia determinadas críticas para as virtudes e incompletudes de marxistas e liberais nos seus devidos efforts em prol de possíveis centralizações da problemática das desigualdades no âmbito dos constructos e teorizações. No liberalismo, autores como Rawls e Dryzek são fundamentais para compreender a incorporação do tema no pensamento liberal.
Já no marxismo, o que há é um continuum que vai de Marx a pensadores como Althusser, Poulantzas e Milliband. Tendo esses dois últimos trazido o Estado para a discussão e reconstruído uma teoria política marxista que chamou a atenção dos norte-americanos, secularmente avessos às reflexões baseados no pensamento do velho Marx. Miguel, é claro, ressalta o problema histórico do liberalismo em superar a ideia de igualdade formal e abraçar uma noção mais substancial da equalização. Com respeito ao marxismo, vê méritos na sua compreensão de que a democracia, a despeito de todos os benefícios, pode muito bem ser uma forma da dominação política. Porém, reconhece seus problemas em incorporar outras desigualdades para além da desigualdade de classe.
Miguel também escreve um artigo sobre as restrições democráticas propostas no âmbito do pensamento elitista a partir da ideia de desigualdades inevitáveis implícita na desilusão relacionada ao aprimoramento da condição humana. Recontando a trajetória dessa matriz de pensamento que remete ao início do século XX e aos italianos Gaetano, Pareto e Mosca, o autor atribui à conta dos elitistas o fato de que se construiu uma visão hegemônica de democracia ao longo do tempo que dissolveu o “ideal clássico” dos antigos em mero método de governo, capaz de afastar cada vez mais o povo do processo decisório.
Essa linha vai desde os founding fathers da corrente, passando por Schumpeter, Dahl e Sartori, que incorporam elementos mais plurais com o decorrer das suas análises, e chegando até o famigerado Relatório da Comissão Trilateral de Samuel Huntington, cientista político que viu nos processos de democratização do pós-guerra uma ameaça para a manutenção da governabilidade. Miguel resgata ainda: as ideias de Wright Mills e de seu clássico A elite do poder, as digressões pouco ambiciosas de Daniel Bells ou mesmo à crítica aberta de Noam Chomsky ao complexo “industrial-militar” anti democrático dos EUA.
E logicamente não esquece de Roberts Michels que com suas análises catastrofizantes, presentes em Sociologia dos partidos políticos (Michels, 1982) legou à ciência política a famosa e inviolável “lei de ferro das oligarquias” tão cara aos estudos sobre a estruturação interna das legendas partidárias. Terminada a sua tarefa de apresentar a relação da desigualdade com as matrizes liberal, marxista e elitista, Miguel passa o bastão para Ricardo Silva que no seu artigo Liberdade, desigualdade e dominação: a economia política do neorrepublicanismo se incumbe de ser o representante do pensamento republicano no livro.
A tradição republicana que, ao contrário do liberalismo, supõe uma reconciliação entre liberdade e igualdade historicamente esteve pautada por uma despreocupação com a agência da dominação. Mobilizando Philip Pettit, Silva vai de encontro à algumas noções essencialmente igualitárias do republicanismo neorromano e alega a necessidade de se compreender seja a liberdade seja o modo de organização capitalista de uma outra maneira sem recair nos programas socialistas do século XIX. Para Pettit e para Silva, o mercado em si é instituição central para entender o emaranhado de relações que se estabelece entre Estado e outras instâncias no âmbito de uma sociedade.
Com isso, o neorrepublicanismo caminha no sentido da definição da liberdade como uma espécie de ausência de dominação e não apenas como o exercício de virtudes cívicas, conteúdo previsto no sentido duro do termo nessa corrente de pensamento. Gurza Lavalle, por sua vez, advoga pelo participacionismo. Chega mesmo a iniciar o texto que constitui sua contribuição para o livro com uma frase de Carole Pateman, a grande representante da contraposição aos teóricos democráticos contemporâneos (Pateman, 1992). Gurza Lavalle analisa um tipo específico de desigualdade: a política. Aquela que se refere aos déficits na efetivação dos direitos iguais de participação política previstos nas democracias contemporâneas.
Gurza Lavalle faz um levantamento do quão prejudicial são as distorções na participação e em vista disso analisa os dispositivos pelos quais a teoria liberal tradicional tem afastado a ampliação da inserção dos cidadãos nas arenas públicas como uma possibilidade político-inovativa. Sua construção argumentativa, pautada na ilustração de embates interiores à teoria contemporânea, nos leva a pensar a participação não só como meio de educação política, em uma pegada eminentemente patemaniana, mas como um elemento potencial que por distintas gerações pode ser lido enquanto facilitador na difusão de novos modelos de solidariedade e de instrumentos de redução das desigualdes socioeconômicas e de status.
Em um artigo menor de cerca de vinte páginas, Claudia Feres Faria faz com a corrente deliberacionista, cujo maior exponente é Habermas, um exercício que posteriormente Ricardo Fabrino Mendonça tenta repetir com a teoria do reconhecimento. Tal exercício é o de mostrar como essas teorias e como os seus representantes máximos, muitas vezes acusados de negligenciar a questão das desigualdades, tem pautado com o decorrer de suas teorizações a questão da dominação. Fabrino nos mostra que mesmo na obra sobre teoria do reconhecimento, mas sobretudo antes, Honneth já tinha como uma de suas principais preocupações o impacto negativo das desigualdades econômicas para a efetiva realização dos pressupostos democráticos.
É notório seu esforço em mostrar que o reconhecimento pode ser compreendido como forma de autorrealização, como base de paridade de participação, como tolerância, como luta afirmativa e como consideração do interlocutor; sem esquecer também dos perigos da individualização paradoxal possivelmente produzida a partir dessas interpretações. Além do mais, Fabrino dissolve no seu texto resposta para questões propostas tais quais: “qual a natureza das desigualdades contemporâneas? ”, “que tipo de desigualdade é política é moralmente inaceitável? ”, “como essas formas inaceitáveis de desigualdade podem ser superadas e/ou reduzidas” e “que ideal de política democrática se delineia com o questionamento dessas desigualdades? ” (Mendonça in Miguel, 2016, p. 287).
Já Feres Faria tem seu ponto de partida no alerta para as “desigualdades comunicativas” presentes na obra de Bohman. Disparidades essas que dizem respeito às diferentes habilidades dos grupos de fazerem presentes as suas reivindicações na esfera pública em virtude de uma série de desigualdades prévias. De poder, de riqueza, de conhecimento etc. além da posse de estilos mais ou menos valorizados de expressão que afetam a canalização das vontades e preferências. A tentativa de incluir outras formas comunicativas, segundo a autora, é um esforço que tem sido feito pela quarta geração de estudos deliberacionistas. Ainda inspirada nas noções de Habermas, mas mais atentas às desigualdades que o mesmo.
O livro segue com dois artigos de Biroli. O primeiro problematiza a questão da distinção entre as esferas pública e privada, dilema questionado com força na teoria política feminista, desde que o próprio movimento assumiu a postura de que o “pessoal é político” nos anos de 1960 dando início a uma onda de mobilizações e estudos de mulheres que visavam a sua própria emancipação. O segundo é um texto sobre multiculturalismo e suas relações presentes ou potenciais com o tema das desigualdades.
O diálogo produzido na teoria feminista foi essencial, segundo ela, para provocar uma aproximação da política com as questões pessoais de grupos marginalizados, antes alheias à atenção dos poderes instituídos. Ou seja, é uma “crítica social do domínio da individualidade” (p. 253) como bem coloca Flávia em suas reflexões. Uma crítica que busca transpassar os domínios da esfera política, onde a autonomia é um objeto singular materializável e visível, e atingir os âmagos do domínio doméstico, que com suas portas cerradas torna consumável uma série de opressões, principalmente aquela que diz respeito a responsabilização não remunerada das mulheres pelas tarefas e pelos cuidados.
Em Democracia, diversidade e desigualdades no multiculturalismo, a tônica é a de apresentar o debate sobre a teoria multiculturalista, com destaque para as noções de autoras como Kymlicka, Okan, Young e Phillips que já na década de 1990 discutiam a questão e se envolviam em debates profundos acerca das possibilidades de conciliar culturas radicalmente díspares em um mesmo espaço compartilhado. Biroli mostra que há um problema na estigmatização dos indivíduos que estão inseridos dentro de grupos culturais específicos.
Outro dilema apontado pela autora é a garantia de direitos individuais específicos que entram em choque com pressupostos morais comunitários. A sua posição se aproxima do liberalismo na medida em que contesta o relativismo moral e a afirma claramente que a tarefa correta não é a de preservar culturas e tradições, mas a de garantir a autonomia dos sujeitos, principalmente das mulheres que costumam, juntamente a outros setores marginalizados, ocupar posições de subalternidade nos cenários políticos, econômicos, culturais e sociais de boa parte das sociedades.
O livro vai se aproximando do fim com os textos de Daniel de Mendonça e Luciana Ballestrin, ambos, como levantado ao início, professores da UFPel. Daniel de Mendonça apresenta a explicação estruturalista que ganha força em meados do século XX na obra de Claude-Lévi Strauss e a sua devida contraposição, evoluída na década de 1990, com teóricos como Derrida, Badiou, Laclau etc. cujas teorizações se referem não a fixidez de determinadas estruturas, mas uma determinada ontologia do político que é instável e temporária, sempre passível de mudanças. Essa visão gera um determinado impacto no que se entende por perenidade das exclusões e inclusões, na medida em que a mudança paradigmática e estética é sempre uma possibilidade em aberto.
No artigo que é o grande destaque do livro, Luciana Ballestrin reconstrói a trajetória do pós-colonialismo com brilhantismo e domínio próprios de quem trouxe à cena acadêmica essa tradição do pensamento nos estudos de teoria política no Brasil. O pós-colonialismo que pode ser entendido numa primeira fase como uma teoria engajada na libertação dos povos, passa por fases posteriores.
A primeira é intitulada de pós-colonialismo pós-colonial, inaugurada por Edward Said, que é a tentativa de desconstruir o discurso colonial permanente nas sociedades periféricas, uma outra é o pós-colonialismo decolonial que incorpora com força o debate das identidades no Sul Global. Sua importância é a de romper com as drásticas diferenciações que determinam o domínio dos que estão ao Norte, na cartografia europeísta vigente, sobre aqueles que estão abaixo.
O último capítulo do livro, escrito por Carlos Machado e Danusa Marques, é uma revisão bibliográfica sobre o quão recorrente ou não tem sido a temática das desigualdades nas ciências sociais brasileiras. Com poucos alargamentos e muitos dados, obtidos nas principais revistas da área no país, a conclusão a que se chega é a seguinte: o tema das desigualdades tão bem retratado ao longo desse livro ainda necessita de um maior impulso por parte dos pesquisadores das ciências sociais do país, tendo em vista não só o fomento a agendas de pesquisa específicas mas a construção de contra hegemonias no campo da ciência política que poderão refletir futuramente na elaboração de uma sociedade mais justa e igualitária.
Referências
MICHELS, R. 1982. Sociologia dos partidos políticos. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 243 p.
PATEMAN, C. 1992. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 164 p.
Notas
Autor notes
albertosilvaterra@hotmail.com