Apresentação
Artes e criatividade: identidades e diferenças entre o local e o global
O foco temático deste dossiê, além de potenciar um espaço de discussão sobre um vasto campo de novos e diferentes caminhos (e desafios) de investigação sobre a arte em todas as suas possibilidades, incide igualmente na abordagem das artes e da criatividade enquanto recursos de afirmação identitária em um mundo cada vez mais global e aberto. As mudanças operadas no mundo artístico - desde a década de 1980 - materializam-se em manifestações que se traduzem, em traços largos, na democratização da cultura, na culturalização da sociedade e cosmopolitização artística. Inicialmente explicadas e compreendidas como alternativas e/ou underground, diversas manifestações emergem e rompem com lógicas instituídas, assinaladas no binómio cultura cultivada versus cultura popular, corporizando novas formas de criação, mediação, recepção, convenções e canonizações (Campbell, 2013; Jürgens, 2016; Santos, 1988). Estamos perante um conjunto de manifestações simbióticas (espaços, eventos, atores) - onde pontuam pluralismo, experimentação, ecletismo e transdisciplinaridade de discursos em um quadro cultural transglobal e translocal. A sua força simbólica assenta no fato de se assumirem como metamorfoseadores de uma nova cultura, constituindo-se como novas formas de autoridade cultural (cultural turn, nos termos de Chaney, 1994).
A invenção e a improvisação artísticas têm possibilitado inúmeras redefinições dos mecanismos de diferenciação e identificação social que caracterizam o mundo contemporâneo - sendo veículos e textos fundamentais de identidade, de pertença e de enraizamento. O conjunto de artigos que o número congrega é ilustrativo da diversidade e do interesse provocado por estas mesmas questões. Privilegiou-se um conjunto bastante variado de artigos que conjugassem teoria e empiria, demonstrando a vivacidade que estes debates e questões têm alcançado no mundo de língua portuguesa e particularmente em abordagens sobre a realidade brasileira e portuguesa. Estas preocupações são tão mais importantes quanto estamos a falar de sociedades marcadas por transições e sobretudo, em tempos recentes, por crises econômicas e societais, no âmbito das quais as manifestações artísticas e musicais parecem cada vez mais assumir-se como plataformas de questionamento, refundação e revivificação identitárias (Silva et al., no prelo).
De igual modo, consideramos que a questão do território urbano é crucial para a compreensão do objeto artístico, uma vez tomada a cidade/urbano como um fenômeno intrinsecamente cultural. Algumas das razões que nos conduzem a entender as cidades como importantes polos de criatividade, inovação e efervescência acabam por estar refletidas na perspetiva de Crane (1992). Efetivamente, é nas cidades que proliferam os estilos de vida em diversidade suficiente, os quais se constituem como demonstradores expressivos da concentração de práticas sociais e culturais, tradutores e resultado dos processos de individuação e de liminaridade, facilitados pelas maiores mobilidades e o menor controle social, da busca de lógicas distintivas, ou da afirmação de identidades que tendem a ser mais transitórias, reflexivas e plurais (Guerra e Costa, 2016; Guerra, 2017). A territorialidade orgânica provida pela cidade ou contextos urbanos às manifestações artísticas que pretendemos estudar, a par da relação inerente incontornável das formas culturais urbanas a processos identitários significativos, remete-nos para um conceito igualmente incontornável - a cena. Este conceito revela-se como importante tanto mais quando existe uma forte relação do objeto de estudo com o espaço (social e territorial), com a organicidade reticular que as caracteriza, com o alternativo/transgressor e com sentido coletivo imanente. Estruturado a partir dos conceitos art world de Becker (2010) e de campo de Bourdieu, o conceito de cena, emergido primeiramente de referências mediáticas às atividades culturais, surge como modelar no campo científico a partir dos anos 1990, através de Straw (1991) e das cultural scenes.
Posto isto, é de salientar que os artigos se encontram organizados de forma a interligar temas, desafios, abordagens e metodologias. No primeiro artigo, Designing Politics: Designing Respect - poder e alteridades dentro de parcerias cultuais internacionais, Laura Burocco, a partir de uma experiência de participação direta no concurso Designing Politics promovido pela parceria internacional Theatrum Mundi no Rio de Janeiro, problematiza as crescentes práticas de privatização da cultura, bem como as relações de poderes e de comercialização institucional envolvidos neste tipo de parcerias culturais. Trata-se de uma preocupação assente numa importante base teórica que estuda o impacto do conhecimento e da cultura como motor económico (Castells e Cardoso, 2005; Drucker, 1967), inserido num novo espírito do capitalismo (Boltanski e Ève Chiapello, 1999).
No segundo artigo, Arte e criação artística em contexto urbano: um estudo de caso de política pública em Porto Alegre (RS, Brasil), as investigadoras Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert levaram a cabo uma reflexão importantíssima nas suas ramificações: através de um estudo do concurso Espaço Urbano & Espaço Arte, desenvolvido pela Coordenação de Artes Plásticas da Secretaria Municipal da Cultura da cidade de Porto Alegre, as autoras analisam as relaçoes, complexas e por vezes conflituantes, entre políticas culturais, políticas públicas e a expressão de arte pública no espaço urbano.
No terceiro artigo, Trabalho, Cultura e produção cultural: notas para uma sociologia do trabalho com arte e cultura no Brasil, André Grillo apresenta um trabalho de fôlego e rico nos seus avanços teóricos: analisando a produção cultural no chamado “novo mundo do trabalho”, bem como a categoria de produtor cultural no Brasil contemporâneo, postula uma sociologia do trabalho que integra arte e cultura, recorrendo, para tal, ao arcabouço teórico de autores como André Gorz (1987, 2007) e Boltanki e Chiapello (1999) acerca das mudanças contemporâneas no mundo do trabalho (e da influência da contracultura neste processo), complementando-as com a perspetivas de Pierre-Michel Menger (2005) e Howard Becker (2010).
No quarto artigo, “Fora do Eixo: Estado ou mercado?” Modos de mediação entre produção cultural, política e mercado no Brasil, Victoria Irisarri analisa como os novos tipos de produção cultural contemporâneos no Brasil originam formas sociais emergentes que colocam em tensão as fronteiras entre produção cultural, política e mercado, abrindo novas interrogações sobre essas divisões. Anaisa, portanto, a trama de relações entre produção cultural, mercado e política de um movimento artístico-cultural emergente, o Fora do Eixo, caracterizado pela sua organização em rede e pelo uso de tecnologias digitais. Recorrendo a uma abordagem etnográfica, a autora explora as interpretações que esse movimento associa às práticas de produção cultural, transcendendo as simplificações analíticas para entender os modos de mediação entre cultura, política e mercado.
O quinto artigo, O cotidiano como utopia: novas relações de espaço e tempo no mundo da arte contemporânea, da autoria de Ana Carolina Freire Accorsi Miranda, procura compreender um conceito recorrentemente associado ao mundo artístico e à arte contemporânea: a utopia. A proliferação de novas relações colaborativas - através de coletivos artísticos, residências artísticas, artivismos - e a consequente valorização dessas iniciativas por um conjunto de instituições é um fenômeno particularmente interessante no mundo artístico contemporâneo. A questão que a autora se propõe analisar é se essas práticas artísticas funcionam como uma representação da maneira através da qual a cultura contemporânea procura estabelecer a sua relação com o tempo e o espaço. Isto é, se a arte produzida dessa forma se coloca como uma utopia do quotidiano.
No sexto artigo, Turnês de Guerrilha: as estratégias de empreendedorismo musical nos circuitos do rock no exterior, Luiza Bittencourt estabelece uma relação entre as estratégias levadas a cabo pelas bandas brasileiras de rock e a noção de empreendedorismo. Através de uma cuidada revisão do estado da arte, aplicação de entrevistas e o estudo e recolha de informação ao nível das redes sociais e dos média diretamente relacionados às turnês da banda Autoramas, Luiza Bittencourt questiona o conceito de músico independente e, outrossim, avança com o novo conceito de músico empreendedor.
No sétimo artigo, Entre práticas e discursos: Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira e o campo da música erudita brasileira pós 1980, Carla Delgado de Souza, numa ótica bourdieusiana, objetiva as mudanças no campo da música erudita brasileira a partir do final dos anos 1970, através do estudo das trajetórias de dois compositores brasileiros de renome: Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira. No fundo, como é que um discurso em prol de uma aproximação ao universo popular de criação artística permeou o processo criativo destes compositores, em um movimento caracterizado pelo campo musical como abertura estética ou pós-modernismo musical.
No oitavo artigo, A criatividade como um habitus regionalizado no campo artístico bourdieusiano, aplicam-se novamente uma perspetiva bourdieusiana, os autores Jacques Haruo Fukushigue Jan-Chiba, Letícia Luriko Tadeo e Rafael Borim-de-Souza defendem a criatividade como um habitus do campo artístico, a partir de uma análise teórica sobre as lutas que ocorrem nesse campo baseada na sociologia de Pierre Bourdieu. Desta forma, avançam com o postulado que a teoria de habitus representa o lado oculto do mercado dos bens artísticos e que as lutas por um espaço no campo artístico são guerrilhas estabelecidas entre os próprios artistas que procuram uma identidade e respectiva liberdade nesse mesmo campo. De igual modo, a criatividade é percecionada como um habitus que possui diversos desafios no campo artístico, principalmente quando delimitado por um discurso.
Ilana Seltzer Goldstein, no nono artigo, Das artes tradicionais à economia criativa: a pintura indígena da Austrália e sua inserção no sistema das artes, analisa um objeto pouco conhecido no mundo lusófono: a pintura indígena australiana e, mais relevante, a forma como esta foi incorporada na chamada nova economia criativa, em que bens e serviços possuem, simultaneamente, valor económico e valor simbólico. Assim, através de um estudo de caso, a autora demonstra como o segmento da arte indígena se tornou parte da economia criativa naquele país, possibilitando uma ocupação culturalmente significativa e economicamente viável para comunidades tradicionais.
No décimo artigo, Grafites do amor, da paz e da alegria na cidade Olímpica: interfaces entre política, arte e religião no Rio 2016, Christina Vital da Cunha analisa a relação entre arte, política e religião a partir de uma investigação sobre os sentidos atribuídos por diferentes atores aos grafites, stencils e murais que formam uma paisagem motivacional no Rio de Janeiro no contexto das Olimpíadas 2016. Através da realização de entrevistas com grafiteiros e representantes da prefeitura, bem como de uma cartografia das produções presentes, especialmente na Zona Sul do Rio de Janeiro, a autora apresenta intricada correlação que a arte pode estabelecer com política e religião.
Por fim, Paula Guerra, no artigo António e as ‘Variações’ identitárias da cultura portuguesa contemporânea, realiza uma análise (ainda preliminar) de um conjunto de letras musicais do músico português António Variações que considera serem representativas das identidades múltiplas e plurais que trespassam a contemporaneidade portuguesa desde os anos oitenta até à atualidade. A partir do exemplo de António Variações, a autora trata a identidade cultural como um processo plural, antinómico e recursivo. Um exercício que se situa na necessidade de um renovado entendimento epistemológico acerca do campo das artes, enquanto produtor de conhecimento ao representar de forma própria e autónoma a realidade social, interferindo nesta, e ao condicionar e gerar análises e interpretações no seio do conhecimento instituído.