Artigo
Recepção: 24 Junho 2017
Aprovação: 27 Setembro 2017
DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2017.53.3.01
Resumo: A partir da experiência de participação direta no concurso Designing Politics: Designing Respect, promovido pela parceria internacional Theatrum Mundi no Rio de Janeiro, o artigo busca evidenciar as práticas de privatização da cultura fomentadas pelos parceiros locais da iniciativa no território do Porto Maravilha, assim como as relações de poderes e de comercialização institucional envolvidas nesse tipo de parcerias culturais internacionais.
Palavras-chave: economia criativa, diplomacia cultural, poder suave.
Abstract: Using as a starting point the experience of direct participation in the Designing Politics: Designing Respect challenger promoted by the international partnership Theatrum Mundi in Rio de Janeiro, the article intends to highlight the practices of culture privatization fomented by the local partners of the initiative in the territory of Porto Maravilha, as well as the power relations and institutional marketing involved in these forms of international cultural partnerships.
Keywords: creative economy, cultural diplomacy, soft power.
Introdução
O artigo busca analisar como arte e criatividade se relacionam à economia criativa e, por sua vez, com a passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo. No final dos anos 1960 Peter Drucker (1992) cunhou o termo “trabalhador do conhecimento” (knowledge worker) para quantificar o conhecimento e dar vida ao conceito de economia do conhecimento. Uma década depois, Manuel Castells (2004, p. 191) chega a afirmar que “o conhecimento como geração, processamento e transmissão de informações em rede e globalmente suplantou a terra, o trabalho e o capital como fonte fundamental de produtividade e poder”. Em tempos mais recentes a economia do conhecimento alarga os próprios confins no campo das artes e da criatividade, assim como da indústria do entretenimento que, segundo o relatório da The Work Foundation (UK), tem índices de crescimento duplos daqueles da “general economy”. O valor econômico se concentra na produção de conhecimento por meio do conhecimento, conferindo maior importância ao trabalho intelectual e aos seus agentes produtivos, “profissionais envolvidos em atividades nas quais a criatividade e o capital intelectual são a matéria prima para a criação, produção e distribuição de bens e serviços” (Howkins, 2001, p. ix). Trata-se pela maioria de jovens profissionais com perfis plurais: freelancers, empreendedores, artistas e professores, com idade variável entre 25 e 45 anos, cujas atividades se concentram no campo do design e arquitetura, publicidade e marketing, novas tecnologias e sustentabilidade, cultura e produção acadêmica, música e produção audiovisual. Em oposição à produção em massa Fordista, repetitiva e fixa, a economia criativa requer alto nível de especialização flexível e mobilidade global e resulta na transferência da produção da fábrica para espaços de trabalho compartilhados. Estes territórios físicos e humanos de networking são úteis às novas formas de produção e contribuem ao reforço de um sentimento de pertencimento a uma certa comunidade local, assim como global (Rofe, 2003). Instituições culturais e parcerias criativas alimentam fluxos de informações, tendo a internet como principal vetor; transações financeiras, relacionando a economia à governança e tornando o capitalismo não mais apenas internacional, mas global; e movimentos de pessoas, com referência exclusivamente aos profissionais de alto nível de educação. Ao mesmo tempo estes networkings globais tornam-se importantes ferramentas no exercício de soft power2 (Nye, 2004) dentro de redes de participação do sistema de diplomacia cultural - fundos públicos para cultura direcionados à cooperação cultural entre diferentes regiões do mundo - cujo uso vem sempre mais se difundindo em um mundo onde o capital cognitivo está suplementando o capital do trabalho. Apesar dessas parcerias culturais declararem uma natureza filantrópica relevante, rumo à compreensão dos ideais e instituições de diferentes países, ainda sobressaem evidentes os objetivos econômicos e políticos que surgem deste envolvimento. O artigo aproveita a participação da autora no concurso Designing Politics: Designing Respect (Theatrum Mundi, 2016), realizado no Rio de Janeiro entre os meses de junho e de setembro 2016 para observar algumas relações de poderes implícitas nestas novas dinâmicas produtivas dentro de perspectivas locais e globais.
Desiging Politics: Designing Respect - Theatrum Mundi
Em junho de 2016 foi lançado no Museu de Arte do Rio (MAR) a edição carioca do concurso Designing Politics: Designing Respect, uma parceria entre Theatrum Mundi3, Museu de Arte do Rio, a Spetaculu4 e o People’s Palace Projects5. Leia-se no convite:
Por que há tanta escassez de respeito na cidade, se ela é imaginada para ser um lugar onde todos possam compartilhar respeito em meio à diferença? Convocamos os residentes do Rio de Janeiro, artistas, ativistas, performers e outros a identificar um espaço ou relação social na cidade, que segundo eles, produza uma condição de desrespeito. Em seguida, eles deverão projetar intervenções arquitetônicas, urbanas, performáticas e/ou organizacionais, que promovam o RESPEITO entre as pessoas em meio à diferença e potencialize o respeito abundante ao invés de um recurso escasso (Facebook, 2016).
O concurso Desiging Politics: Designing Respect representa um exemplo de parcerias culturais anteriormente apresentadas e ofereceu à autora a possibilidade de conduzir observação participativa através da direta candidatura ao processo de seleção que durou de junho de 2016, quando o edital foi lançado, até outubro 2016 quando teve a premiação final dos projetos vencedores do concurso. Em colaboração com o artista Pedro Victor Brandão6 identificamos na união entre o tema escolhido (respeito) e as instituições parceiras envolvidas (Theatrum Mundi, People’s Place Project, Museu do Amanhã e Spectaculu) “um espaço ou relação social na cidade que produz uma condição de desrespeito”7. Baseado no Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana desenhado pela Prefeitura (Porto Maravilha, s.d.), apresentamos o Circuito Futurístico e Especulativo do Desrespeito da Herança Africana, do Esquecimento Urbano e do Apodrecimento da Sociedade8; a proposta chegou a ser aceita na primeira fase da seleção para ser depois, sem surpresa, eliminada na fase final. Nossa intenção era denunciar a falta de uma genuína valorização da história da herança africana no porto do Rio por parte da Prefeitura, que pelo contrário direciona ofensivos investimentos milionários aos dois equipamentos culturais (o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã), parceiros locais do concurso; assim como evidenciar as ambiguidades de parcerias culturais internacionais como aquela que sustenta o concurso Designing Politics: Designing Respect. O artigo se divide em duas partes: a primeira foca em questões locais ligadas às politicas culturais atreladas à implementação do projeto Porto Maravilha; e a segunda parte questiona as formas de instrumentalização da arte e da cultura, assim como as relações de poderes e comercialização institucional existentes em práticas culturais resultantes de parcerias internacionais como essa analisada.
A privatização/comercialização da cultura dentro da implementação do projeto Porto Maravilha: o contexto local
A revitalização do porto do Rio promovida pela Operação Urbana Porto Maravilha leva à assunção por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro (e seus investidores privados) de uma politica econômica-cultural que define o Porto Maravilha como novo centro cultural e turístico da cidade e, através da parceria com a Fundação Roberto Marinho, centraliza (e privatiza) os investimentos públicos em duas instituições culturais: o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã. Através da análise dos contratos públicos que remetem aos programas educacionais para o ensino público (especialmente a Escola do Olhar do MAR) e através da concepção e realização dos aparelhos culturais recém-construídos (Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã) o relatório “Quem são os donos da educação e da cultura no Rio de Janeiro?” (Lopes Pinto et al., 2016, p. 8)9 afirma que:
A Fundação Roberto Marinho (FRM) exerce uma espécie de monopólio na produção cultural da cidade do Rio de Janeiro, tendo em vista seu domínio sobre o planejamento e o gerenciamento dos museus recém construídos neste contexto de obras olímpicas.
O Museu de Arte do Rio (MAR) é uma realização do Ministério da Cultura e do Governo Federal do Brasil (por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura) cuja concepção e realização está a cargo da Prefeitura e da Fundação Roberto Marinho (FRM). Conta com o apoio do BNDES para exposições; patrocínio da BG Brasil e copatrocínio da Souza Cruz e O Grupo Globo, instituição atrelada à Fundação Roberto Marinho, que resulta como mantenedor do museu. A FRM também tem ingerência no programa educativo do museu - a Escolar do Olhar - que tem o intuito de contribuir com a rede pública de ensino através do estabelecimento de parcerias com instituições educativas públicas10. O educativo tem apoio da Dow e da Brookfields para as visitas e também da UNESCO. A Braskem - por meio da Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio de Janeiro - apoia o programa MAR na Academia que também recebe apoio do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Contrariamente ao comum entendimento a gestão do MAR não está nas mãos da FRM, mas de uma companhia privada chamada Odeon que em 2012 assinou um contrato de gestão com a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP)11 e a Secretaria Municipal de Cultura por um valor de R$ 24 milhões. Em 2011 a Escola do Olhar recebeu um financiamento de R$ 32.364.179,00 pela Secretaria Municipal de Educação, no mesmo ano a Secretaria Municipal da Casa Civil direcionou à FRM 25% do seu orçamento (num valor de R$ 30.519.071,00). Estes dados evidenciam como “a Fundação Roberto Marinho recebe quantias significativas do orçamento público destinado à contratações assinadas com dispensa ou inexigibilidade de licitação” (Lopes Pinto et al., 2016, p. 16).
A realização do Museu do Amanhã também foi destinada à Fundação Roberto Marinho através de uma parceria com a Prefeitura (Instituto Pereira Passos) que repassou R$ 29.658.100,00 ao museu para seu desenvolvimento, implementação e manutenção. O banco Santander S/A também investiu R$ 35.000.000,00 na fase de projeto e implementação da museografia. A gestão do museu é de responsabilidade do Instituto de Desenvolvimento e Gestão IDG, organização social sem fins lucrativos parceira da FRM, através do contrato de gestão assinado com a CDURP por um valor de R$ 31.169.014,00. No total a Fundação Roberto Marinho acumula uma receita de R$ 65 milhões pela implementação do Museu do Amanhã e a sua proposta museógrafa, utilizando em 2010 o 53% do orçamento do IPP.
Sem querer entrar nas problemáticas relativas à participação da FRM em contratos de licitação de obras que fogem o mandato estatutário da Fundação12, ou os casos de dispensa ou inexigibilidade das licitações, interessa a este artigo evidenciar como a relação entre poder público e privado determina o monopólio da Fundação Roberto Marinho na construção, implementação e manutenção dos dois museus assim como uma forte ingerência no âmbito da educação pública. O monopólio torna-se evidente na implementação de programas culturais financiados pela Secretaria Municipal de Educação com objetivo de repassar aos professores do sistema público formas de ensino que serão, por sua vez, transmitidas aos alunos. A Escola do Olhar do MAR é um destes programas e recebeu em 2011 R$ 32 milhões para a implementação das próprias atividades. Evidencia-se como, através destas fórmulas, o Grupo Globo difunde uma específica identidade estético produtiva. Como o relatório remarca
O acesso às salas de aula do ensino público pode servir como mecanismo de criação/fidelização de público para os produtos do próprio Grupo Globo [...] não se trata, no entanto, exclusivamente de uma barreira contra os concorrentes no segmento audiovisual, mas é também contra outras formas de construir o pensamento, contra a autonomia da Escola e dos educadores, uma barreira discursiva (Fundação Roberto Marinho, s.d., p. 23).
Explica-se assim a função destes dois museus como “objetos informantes” que, segundo Sibylla Pires (2012, p. 196), “servem para contar uma história sobre algo ou alguém, geralmente sob o prisma do poder que os institui, que os dotou desta capacidade de fala”, mas que por sua vez pode também servir como instrumentos silenciadores de realidades que - os gerentes do poder - querem assombrar.
Depois ter observado como os museus se tornam dispositivos educativos e de controle e - no caso carioca - de evidente especulação financeira, observaremos o simbolismo da presença física destes museus no território do Porto Maravilha. Projetos de revitalização urbana, frequentemente ligados ao uso da cultura e do turismo como elementos de renascimento econômico do território, fazem amplo uso de um imobiliário urbano homogeneizante caracterizado por equipamentos culturais como galerias independentes, restaurantes, bares, lojas de design de objetos e de moda, assim como de intervenções de grande porte, frequentemente museus assinados por arquitetos de fama mundial, os assim chamados “archistar”. Da mesma forma o Porto Maravilha tem ao centro das próprias intervenções a construção do Museu de Arte do Rio (inaugurado em 2013) e o Museu do Amanhã (inaugurado em 2015) que surgiu no mesmo lugar onde alguns anos antes queria se construir o contestado, e no fim vetado, Guggenheim Museum13. Junto com a derrubada da Perimetral (concluída em 2014) estas duas grandes obras, localizada uma na frente da outra na Praça Mauá, criam um novo marco zero na cidade, aparecendo como o símbolo do renascimento da moderna cidade olímpica, e definindo o ponto de entrada ao novo Distrito Criativo, uma iniciativa que reúne artistas locais, produtores culturais, e empresas criativas baseadas na área (Burocco, 2015). Analisando o processo de gentrificação como um processo visual - capaz de encher a paisagem de significados simbólicos - o MAR, com os seus muros transparentes que separam o museu da rua, e o Museu do Amanha com o seu candor tornam clara a existência de um conflito entre raças e classes em relação ao pertencimento do território do porto. Este espaço higienizado e pacificado tem um papel central na operação de venda de um ambiente de aparente efervescência cultural e modernidade contrastante com a paisagem originária, semiabandonada, ligada à economia portuária e a trabalhos e lazeres que frequentemente encontram um questionamento moral14. Szaniecki (2014) e de Szaniecki e Silva (2010) apontam os dois museus como ferramentas utilizadas no processo de justificativa da gentrificação e espetacularização do porto do Rio, tornando esta transformação física causa-efeito das mudanças socioeconômicas que estão acontecendo na região.
A gentrificação do porto do Rio obviamente não pode ser atribuída exclusivamente aos dois museus, mas o MAR foi o primeiro projeto importante que começou a funcionar dentro da Operação Porto Maravilha e, talvez até por esta razão, tornou-se a representação física de um processo de exclusão e violações que estava há anos se desenvolvendo na região (Burocco e Tavares, 2011). Se o MAR tem uma forte referência à questão da exclusão urbana e da violação de direitos à moradia central por pessoas de baixa renda, o Museu de Amanhã concentra as críticas em relação à negação da memória e identidade negra da região portuária e do Brasil inteiro.
Os dois museus acompanham uma tendência que se abriu nos anos 1970 quando na sociedade do consumo os museus se tornaram importantes dispositivos capazes de contribuir para o desenvolvimento social. O uso sempre mais comum de museus dentro de projetos de revitalização urbanas, também através da aplicação de fórmulas de museu-marca, como aquele oferecido pelo Guggenheim, demostra que, assim como a arte deixa de ser um objeto, os museus deixam de ser simples contentores dos gostos das elites para se tornarem ferramentas sociais-pedagógicas, dispositivos de saberes e de subjetivação (Sybilla Pires, 2012). Esta tendência aparece nas escolhas curatoriais do MAR que desde a sua inauguração com a exposição “O Abrigo e o Terreno: Arte e Sociedade no Brasil”15 não se coíbe de apresentar temas problemáticos ao fim de neutralizar e desviar à atenção do publico em relação ao papel que ele mesmo assume no porto. Desde os anos 1930 museus debatem sobre a própria relação com educação, público e participação até chegar nos anos 80 a assumir aquele o papel que Yudice define como “imperativo social do desempenho” (2013, p. 135).
Trata-se da “necessidade argumentativa de enfatizar os valores investidos e a expectativa de retorno social do projeto, tornando os produtores - sejam físicos (artistas) ou jurídicos (instituições) - da cultura em “gerenciadores sociais” (Yudice, 2013, p. 30), responsáveis da reconstrução do tecido social muitas vezes em acordo com a vontade do poder. Neste sentido este modus operandi das instituições (e dos artistas) pode ser lido como uma forma de conferir poder ou de determinar cooptação através do exercício de formas de soft power. Acredito que a segunda opção seja a mais frequente. Trata-se de um processo que nos anos 1990, com o enfraquecimento do sistema de bem-estar publico garantido pelo estado e o reforço da privatização dos serviços, levou artistas e instituições culturais a serem incluídos dentro de processos de “culturalização dos territórios” (Fessler Vaz, 2004) através de fórmulas de intervenção que utilizam a cultura como uma ferramenta de planejamento urbano e de normatização social.

Figure 1. Opening of the exhibition Design Respect, Museum of Tomorrow.
Fonte: London School of Economics (LSE).
Quando o neoliberalismo firmou suas raízes e as responsabilidades pela assistência social da população se deslocou progressivamente pela sociedade civil estabeleceu-se firmemente o papel do artista como educador, ativista e colaborador, embora fossem questionados os efeitos desses evangélicos estéticos tanto pela burocracia resultante como pela função governamental ou pastoral que assumiram em relação às comunidades pobres (Kester, 1995 in Yudice, 2004, p. 453).
Uma tendência que foi também impulsionada - ao nível mundial - através de linhas diretivas de agências internacionais como o Banco Mundial e a UNESCO que começam a perceber a cultura como uma ferramenta para trabalhar questões sociais assim como um “recurso subdesenvolvido em países em desenvolvimento. Que pode gerar renda através do turismo, do artesanato, e outros empreendimentos culturais”16. A tendência em ver a cultura como um recurso econômico está sendo visivelmente aplicado no contexto atual do Rio de Janeiro que transforma o porto da cidade num Distrito Criativo, polo turístico econômico e cultural. Entre os recursos subdesenvolvidos que necessitam ser explorados a Prefeitura interessou-se pela herança africana e a identidade negra, por isto a criação do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, cuja celebração vem se definindo em acordo com os interesses prevalentemente econômicos da cidade. Esta tendência parece utilizar uma retórica semelhante àquela que caracteriza a promoção da economia criativa no Reino Unido17. Incentiva-se o multiculturalismo através de um aparente reforço da diversidade para atingir - num estágio sucessivo - a tolerância requerida pela teoria de Florida (2008)18. Desta forma pode ser interpretado o recente crescimento de interesse em relação à história, hábitos e identidade negra na cidade do Rio. Nos últimos cinco anos iniciativas culturais cujo tema relaciona-se com o continente Africano o a Diáspora Africana são sempre mais frequentes, tanto no cinema, nas artes e em encontros acadêmicos. O interesse do consumo parece agora se voltar à cultura e identidade negra da cidade depois de ter explorado comercialmente todas as formas culturais definidas como originarias das favelas do Rio. Pensa-se ao samba, o funk e o mesmo carnaval, transformado pela RioTur numa enorme receita pública que atinge agora não mais apenas a Marquês de Sapucaí (o Sambódromo) mas cada rua da cidade fiscalizada e patrocinada por empresas privadas que assinam contrato com o município. As razoes que levam a duvidar sobre o genuíno interesse da Prefeitura em valorizar e prestigiar este importante componente da cultura e da identidade negra estão visíveis nas formas que a Prefeitura do Rio de Janeiro assume em relação às instituições mais tradicionais do movimento negro. Aproveitando do estado de necessidade econômica delas, e fazendo uso de relações de poder desequilibradas, se impõem práticas que satisfazem muito mais os interesses particulares dos investidores da cidade - neste caso representada pela CDURP a companhia responsável pela gerência da revitalização do porto - em vez de os das pequenas realidades originárias dos locais. O Instituto Pretos Novos (IPN), o Centro Cultural José Bonifácio localizados na rua Pedro Ernesto e o Afoxé Filhos de Gandhi, associações cultural históricas da região portuária, recebem um apoio irrisório se comparado com o investimento dado aos dois Museus19. O IPN e o CC José Bonifácio, estão sendo fortemente prejudicados nas próprias atividades pela forma que as obras do Veiculo Lentos sobre Trilhos (VLT) estão sendo conduzidas há anos. O Centro Cultural, depois de ter sido reformado, encontra-se quase inoperante. As únicas importantes intervenções da Prefeitura foram as obras de recuperação do Cais do Valongo e da Imperatriz e a reforma do Jardim Suspenso do Valongo, sendo que o primeiro foi transformado num mirante turístico com pequenas placas informativas que tratam a história do local de forma extremamente simplista, enquanto o Jardim Suspendo do Valongo fui erroneamente incluído na comemoração da herança africana. Diante a descoberta do Cais do Valongo e da Imperatriz o ex-prefeito Eduardo Paes anunciou: “Quando vi aquilo, fiquei absolutamente chocado. Vou fazer uma praça como em Roma. Ali estão as nossas ruínas romanas” (Daflon, 2011). Na mesma época a arqueóloga Tania Andrade Lima, responsável pelo monitoramento arqueológico do projeto Porto Maravilha, declarou que “Os escravos foram esquecidos e, mais que isso, foram deliberadamente apagados, ao se construir o Cais da Imperatriz sobre o Cais do Valongo, em um processo de superposição e de oposição fortemente simbólicos” (Daflon, 2016) Sobre o Jardim Suspendo do Valongo a historiadora Martha Abreu afirmou que “o Jardim foi algo feito sob inspiração europeia justamente para ajudar a ocultar a importância do Cais do Valongo. Isso deveria ser explicado ao visitante” (Daflon, 2016).
As obras de recuperação destes dois sítios arqueológicos levantam também questões sobre o destino dos achados arqueológicos das escavações do Cais do Valongo, Mãe Celina de Xangô, presidente do Centro Cultural Pequena África, questiona:
A coleta desses artigos foi feita em 2011 e cinco anos depois ninguém sabe como e quando eles ficarão. Hoje o destino desses achados arqueológicos é conhecido por poucos. Eles estão no Galpão da Gamboa, no sopé do morro da Providência e bem próximo à Cidade do Samba, no centro. Segundo a assessoria de imprensa da prefeitura, os objetos já foram todos catalogados e estão embalados em contêineres (Daflon, 2016).
Mesmas questões podem ser levantadas em relação ao desaparecido acervo da biblioteca especializada nas temáticas africana e afro-brasileira do Centro Cultural José Bonifácio. Existe uma legitima preocupação, entre os representantes do movimento negro do Rio, sobre o destino destes achados arqueológicos, assim como do acervo, ligado à preservação da identidade, história e cultura do local. Tampouco pode se desconsiderar a possibilidade de uma venda a colecionadores particulares, o que representaria uma ulterior - além da turística - forma de especulação financeira por parte da prefeitura. De qualquer forma precisa remarcar que, caso estes objetos estejam cuidadosamente guardados, não existe, todavia, nenhuma proposta, por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro, de destinar um espaço que possa reunir estas peças e atribuir-lhe a importância (e respeito) que elas merecem, assim demostrando um efetivo interesse em prestigiar a identidade e história africana do local.
Theatrum Mundi - Designing Politics: Designing Respect. Museu do Amanhã: o contexto internacional
Nos anos 1990 declara-se:
O velho modelo de apoio público às artes por parte do Estado está morto. Os novos modelos consistem de parcerias com o setor publico e com instituições financeiras internacionais (Yudice, 2013, p. 32).
Apesar do caráter filantrópico que estas parcerias declaram, existem outros retornos e interesses - muitas vezes não apenas econômicos - que tais parcerias proporcionam aos investidores envolvidos localmente e internacionalmente. Estes retornos são a razão mesma que sustenta a existência destas parcerias e, atrelar-se a projetos culturais/educacionais ou de renovações urbanas locais é uma das possíveis formas de funcionamento.

Figure 2. Museu de Arte do Rio (MAR). Photo by Laura Burocco.
Foto: Laura Burocco.Do ponto de vista das forças que agem no nível local, o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio de Janeiro tem um papel estratégico na promoção de parcerias internacionais que contribuam na inserção do Rio de Janeiro dentro do circuito das cidades criativas globais e os seus “clusters internacionais de criatividade”. Trata-se de clusters físicos, locais20, funcionais às novas formas de produção baseadas no agrupamento (entre similares), que frequentemente resultam na criação de muros urbanos simbólicos que mantém afastados os não-correspondentes aos parâmetros econômicos e estéticos exigidos21. Mas, além da demarcação de territórios exclusivos dentro da cidade, estes clusters são também humanos, criadores de networks globais fechados, cuja comunicação fica reservada entre uns criativos eleitos em base à capacidade de mobilizar recursos, audiência das elites locais, e reprodutibilidade das redes nos circuitos internacionais, ou seja, aqueles retornos, não sempre econômicos, que se esperam destas parcerias (Agustín, 2015; Burocco, 2017).
Em acordo ao site do projeto a parceria começou em março de 2016 quando o
Theatrum Mundi organizou um seminário no Rio de Janeiro a fim de explorar possíveis questões, métodos e resultados para o Desafio de Ideias22. Entre os participantes, estavam Gringo Cardia, Pedro Rivera, Washington Fajardo, Marcus Faustini, Eliana Souza, Jailson de Souza e Silva, Leno Veras, Marcelo Dughettu, Batman Zavareze, Ângelo Venosa, Mauro Ventura, Ana Cláudia Souza, Paul Heritage e Adam Kaasa. A partir das conversas realizadas durante esta oficina, decidiu-se que o Desafio de Ideias 2016 abordaria a questão do respeito na cidade.
Assim no dia 18 de junho 2016 o Designing Politics: Designing Respect, desenhado a portas fechadas, fui apresentado no MAR e o desafio fui “publicamente” lançado através de um convite difundido através da página de Facebook e do mailing list da London School of Economics (LSE).
Os pontos que iremos questionar são: a fragilidade da forma participativa na idealização da proposta e na votação pública; a falha de uma efetiva neutralidade na escolha dos projetos vencedores; a carência na publicidade e divulgação do “Desafio das Ideias”. Por fim, uma certa nebulosidade em relação aos financiadores do projeto. A idealização da proposta, assim como declarado pelo website, não teve participação publica baseando-se na decisão de convidados selecionado. Esta escolha metodológica não representaria problema se não for que a mesma dinâmica foi reproduzida na seleção dos projetos vencedores. Moldado em modelos de comunicação que incentivam pensamento breves, rápidos e facilmente substituíveis a proposta tinha que ser apresentada através de máximo 6 imagens (ou um vídeo de máximo 3 minutos) acompanhadas por 300 palavras para descrever: (a) a condição de desrespeito na cidade que seu projeto pretende abordar; (b) como o projeto ou a intervenção seria executado; (c) por fim explicar como o projeto ou a intervenção geraria respeito e a possibilidade de reproduzir esta proposta em outras situações. Uma elogiável novidade da edição carioca fui a introdução de um novo sistema de votação: além do júri de especialistas (os mesmos que participaram da reunião a portas fechadas em março 2016 que definiu o tema do concurso), fui criado um sistema de “júri de pares” constituído pelos proponentes. Cada proponente podia selecionar 10 projetos escolhendo entre a “galeria” dos projetos anteriormente selecionados pelo júri de especialistas. Na realidade a votação apareceu bastante confusa: no nosso caso nem todas as fotos apareceram na galeria para o voto do “júri de pares”; além disto não todas as propostas respondiam as regras requeridas (umas eram mais longas das 300 palavras, umas tinha mais que 6 fotos) e outros problemas de comunicação justificados pelos gerentes do projeto por causa de sobrecarga de trabalho, e falta de recursos a serem investidos na equipe de produção.
Em outubro 2016, quando os projetos vencedores foram anunciados no Studio-X, dos treze projetos vencedores 6 eram de jovens que fazem parte da Spectaculu; dois de jovens ligados à Oi Kabum; um relacionado ao Observatório das Favelas; um projeto conta com o apoio da Oi Futuro e patrocínio da Oi (entre outros); além de, entre outros, um projeto proposto por uma professora da faculdade de Arquitetura da Universidade da Califórnia em Berkeley e uma arquiteta e doutora em Urbanismo pela UFRJ que trabalhou no governo federal com políticas públicas de reabilitação de áreas centrais. Assim como também foi observado por um representante de um dos projetos vencedores impressiona, durante a premiação, a contínua repetição dos nomes Spectaculu e Oi Kabum, organizações locais parte da parceria. Apenas dois projetos vencedores pareciam não ter ligação direta com nenhuma das instituições parte do júri de especialistas: o Museu de Arte Urbana do Chapadão e a Escola de Cinema da Vila Kennedy. Há que se remarcar como o inteiro processo, apesar de ser apresentado como uma “chamada pública” nada mais fui que uma seleção interna de projetos onde os jurados indicaram projetos das próprias instituições. Não se entende aqui questionar o valor e merecimento do prêmio, apenas as formas que estas parcerias internacionais funcionam. Teria parecido mais coerente (e respeitoso) organizar o Designing Politics: Designing Respect como uma exibição com curadoria colegial aonde as instituições parceiras do Theatrum Mundi (parte das elites dos circuitos criativos locais) escolhessem os projetos a serem apresentados, evitando assim uma chamada pública no mínimo questionável. Em relação à publicidade da proposta pouco (ou nada) apareceu nas mídias, nos sites dos parceiros locais, assim como nas redes sociais, e não parece ter existido uma efetiva preocupação de ativar alguma forma de participação cidadã exceto quando, uma vez concluído o projeto, precisou-se dar visibilidade à exposição23, de um mês de duração, no Museu do Amanhã. Foram apenas neste momento que algumas matérias e manchetes apareceram nos jornais locais24. Em relação às fontes de financiamento, observando as comunicações que ao longo do processo chegaram da London School of Economics LSE-Cities, pode se ver que o projeto consta de dois parceiros fixos por cada edição e que supostamente são também os apoiadores financeiros da edição carioca juntos com a Deutsche Bank25: a Fondation Maison des Sciences de l’Homme e a Global Cities Chair da Foundation’s Collège d’études mondiales26. No Rio de Janeiro, os parceiros locais são - na primeira chamada de junho de 2016 - o Museu de Arte do Rio, o Museu do Amanhã, Spectaculu e People’s Palace Project. Em um segundo momento a parceria do MAR aparece menos sendo que o logo do museu é retirado das comunicações. Interrogado sobre o papel da chamada “diplomacia cultural” no continente Africano, Achile Mbembe alerta sobre o fato que
Poder e dinheiro tendem a falar a mesma língua em cada lugar. Agências de financiamentos europeias se juntam com governos Africanos na tentativa deles de instrumentalizar a arte e limitar o poder e o significado de qualquer crítica artístico e cultural (Mbembe, 2009).
Neste sentido a geopolítica que move estes financiamentos torna-se particularmente relevante e demostra como, desde os anos noventa o mesmo raciocínio se repete em diferentes regiões do mundo não apenas no continente Africano. Torna-se interessante ver como este tipo de prática de diplomacia cultural estão se desenvolvendo sempre, e não apenas entre norte e sul, mas também dentro da cooperação sul-sul, ou da triangular sul-sul-norte e assumem uma relevância crescente proporcionalmente ao crescimento do capitalismo cognitivo.
A diplomacia cultural é um instrumento importante de aproximação entre os povos, contribuindo para abrir mercados para a indústria cultural e para o estabelecimento de vínculos culturais e linguísticos. É, também, ferramenta para estimular os diálogos político e econômico, pois fomenta o entendimento mútuo e cria confiança, interesse e respeito entre as nações (Ministério das Relações Exteriores, s.d.).
Evidencia-se um implícito interesse no uso destas parcerias culturais para abrir novos mercados, precisamente os mercados relacionados com a economia criativa; também o uso diplomático/político destas parcerias não é secundário.
As relações de poderes e os gerenciamentos indiretos de identidades no território
Existem diferentes formas da comunidade artística/criativa ser parte de processos de gentrificação27: através da evidente expulsão de pessoas mais pobres substituídas por artistas e criativos, mas também através de escolhas curatoriais e práticas de instituições cultural que visam à neutralização do poder de crítica, seja das pessoas ou das obras. Dentro de processos de revitalização urbana, especialmente aqueles que colocam turismo e cultura ao centro da própria intervenção, práticas de aparente pacífica ocupação de territórios, através colaborações entre instituições e artistas/criativos, são sempre mais comuns. Estas colaborações tornam-se ferramentas de reestruturação urbana, assim como um instrumento de encobrimento dos conflitos que naturalmente envolvem a reestruturação do espaço urbano; muitas vezes o resultado final é a neutralização política destes territórios (Berenstein Jacques, 2015). A atuação dos parceiros locais e internacionais envolvidos no Designing Politics: Designing Respect do Theatrum Mundi no Rio de Janeiro pode ser analisada como uma destas praticas.

Figure 3. The award ceremony of the Museu de Arte Urbana do Complexo do Chapadã o, StudioX. Photo by Laura Burocco.
Foto: Laura Burocco.A relação entre instituições gerentes e sujeitos proponentes28 parte do pressuposto que estes últimos, pela maioria jovens negros de baixa renda, devem estar felizes e orgulhosos “por ter acesso ao Museu do Amanhã no dia da abertura da exposição”29 assim como “por receber um reconhecimento internacional,” na forma de um prêmio que de facto não consistia em nada, exceto na visibilidade implícita em ter o próprio projeto exposto no Museu do Amanhã por um mês30. Existe uma forma paternalística de tratar os proponentes que, dentro de relações de poderes desequilibrados e de financiamentos externos, pode ser visto como novas expressões de relações coloniais (Mignolo, 2011) por onde forças econômicas externas não agem mais com um poder forte (a ocupação física do território através da violência) mas através do exercício das formas de poderes suaves, “através da atração ao invés da coerção”. O poder neutralizante destas experiências ficou evidente na participação do Quilombo da Pedra do Sal durante a apresentação das propostas, sendo um dos espaços contemplados no concurso, durante o evento no Studio-X. O Quilombo, uma instituição de central importância nas lutas em relação à afirmação da identidade cultural negra da região portuária, assim como na denúncia da falta de uma política habitacional municipal direcionada aos residentes durante as obras de revitalização do Porto Maravilha, em acordo com as palavras de um dos vencedores que declarou-se “prestigiado” pelo feito de ter tido a possibilidade de ter acesso “pela primeira vez ao Museu do Amanhã”. Inverte-se o discurso: da luta para o reconhecimento do direito a ocupar o próprio espaço legítimo, ao agradecimento por ter obtido acesso ao espaço físico que por fim torna-se representação das violações que o projeto Porto Maravilha leva consigo. Torna-se evidente a complexidade de encontrar formas de participação social e ação politica que abram canais de dialogo com o poder constituído da cidade sem se tornar por sua vez “poder” constituído. O apelo determinado pela visibilidade oferecida pela participação em experiências como aquela do Designing Politics: Designing Respect parecem ter como resultado o enfraquecimento dos mesmos movimentos sociais que se encontram a ter que competir com estes novos “gerenciadores sociais” na tentativa de criar canais de escuta e dialogo com o poder público. Experiências como aquela do Theathrum Mundi tendem a direcionar-se sempre mais ao Global South e, apesar de declarar como objetivo “oferecer visibilidade a situações desfavorecidas” (Kaasa in Pereira Guimaraes, 2016), mais que atingir este propósito parecem dar retorno às instituições parcerias que as propõem. Estas parcerias internacionais são um ótimo palco para reforçar as próprias networkings internacionais, tendo como efeito colateral a participação em dinâmicas que contribuem ao agravo da desigualdade nos países do sul global aonde operam. O Museu de Arte Urbana do Complexo do Chapadão propôs a transformação da biblioteca abandonada de um CIEP31 de sua comunidade em um museu de arte urbana. Como era conhecido desde o início, as propostas não encontram algum apoio financeiro. O responsável do projeto do Museu de Arte Urbana declara numa entrevista (Pereira Guimaraes, 2016): “estar lá [no Museu do Amanhã] vai nos ajudar a conseguir financiamento para isso”. Evidencia-se a complexidade em relação as formas que estas iniciativas lidam com os desejos, e as necessidades dos outros32. A proposta, que declara desde o começo não ter orçamento para financiar a realização de nenhum dos projetos, cria uma situação em que as pessoas mandam as próprias ideias, através de um trabalho que requer o desfrute do próprio capital cognitivo, sem instaurar nenhuma relação de reciprocidade a não ser a visibilidade. A exposição de um mês no Museu do Amanhã coloca em questão o desequilíbrio dos interesses envolvidos entre o desejo de aparecer, segundo Arendt (1998) de existir, dos proponentes; e a necessidade por parte das instituições envolvidas na parceria de devolver aos financiadores os cenários (neste caso a exposição) que permitem a estas parcerias internacionais de se reproduzirem e reforçar os próprios clusters exclusivos. Se estas redes tendem a ser fechadas e exclusivas na Europa e nos Estados Unidos, no Global South, contribuindo na criação de enclaves de riqueza e de exclusividade, resultam no aumento da desigualdade econômica social que já fortemente caracterizante estas sociedades. Parcerias como aquela promovida pelo Theatrum Mundi e seus parceiros cariocas, apesar de se apresentar com boas intenções, “para nós, o respeito existe em uma sociedade quando todos desfrutam do mesmo nível de visibilidade e tem a mesma condição de acessar oportunidades” (Kaasa in Pereira Guimaraes, 2016), reforçam tendências globais e locais da assim dita economia criativa, definida como: “uma serie de atividades nas quais a criatividade e o capital intelectual são a matéria prima para a criação, produção e distribuição de bens e serviços” (Howkins 2001, p. ix).
No nível global redes de indivíduos altamente especializados e intelectualizados evidenciam a existência de uma concorrência continua na busca de oportunidades e recursos para manter vivas as próprias iniciativas; no nível local os mesmos indivíduos exacerbam a desigualdade (especialmente no Global South) nos acessos aos recursos econômicos e culturais.
A economia criativa está, na realidade, reduzindo a criatividade social através da expropriação das habilidades das pessoas e da produção de uma determinada composição de classe, baseada na existência de uma classe criativa individualizada e expandindo o espaço de dominação para as cidades como clusters para produzir valor mais eficiente (Augustin, 2015, p. 65).
Esta expropriação das habilidades pode ser observada nas formas exploratórias, as vezes auto-exploratórias, sempre mais típicas do trabalho intelectual e cognitivo. No desafio do Designing Politics: Designing Respect as pessoas oferecem o próprio tempo e trabalho em troca de nada, a não ser uma suposta visibilidade que não fica claro se atende aos interesses dos proponentes ou dos promotores do evento. Esta exploração torna-se clara na conversa entre um curador (vencedor de um dos prêmios) e o responsável pelo Museu do Chapadão:
Curador: “Dá para entrar lá? [No edifício que seria a sede do ideal Museu]”; Responsável do Museu: “Dá para entrar com alguém de lá”.
O curador que fiz esta pergunta é responsável por um projeto de arte urbana que ocupa espações ociosos e periféricos da cidade e tem apoio da Oi Futuro e da Prefeitura33. A pergunta remete a um possível interesse por parte do curador de se apropriar da experiências outras ao fim de montar o próprio programa curatorial. Pode-se falar de uma fase sucessiva do que Harvey chama de “acumulação por despossessão” que vai além da “conversão dos direitos de bem comum em direitos de propriedade privada” (Harvey, 2011, p. 197). Criam-se novas formas de expropriação que seguem a necessidade do capital de encontrar continuamente novas fronteiras de acumulação não mais limitadas à acumulação econômica direta. Desta forma, o edifício na periferia da cidade do Rio de Janeiro adquire um novo valor, e a pessoa que apresenta esta proposta torna-se um recurso por poder alimentar a própria produção imaterial produto deste cluster de economia criativa.
Uma última observação diz respeito à escolha do lugar aonde a premiação foi realizada: o Studio-X um projeto da Columbia University de New York. Aberto em 2011 representa a primeira unidade da América Latina de uma rede global criada em 2008 pela Faculdade de Arquitetura, Planejamento e Preservação da Universidade de Columbia para pensar e planejar o futuro das cidades.
A visão da rede Studio-X global é estabelecer um intercâmbio único de ideias e pessoas entre as principais cidades de liderança regional em todo o mundo em rápida evolução, oferecendo apoio ao mais alto nível de reflexão sobre as novas realidades das cidades (Romar, 2011).
A unidade carioca foi fortemente apoiada pela Prefeitura que, no dia da inauguração, “destacou a importância do Studio-X para a transformação urbana da cidade na perspectiva da Copa do Mundo 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016”. A visão do Studio-X espelha os esforços que vem sendo aplicados ao redor do mundo no reforço e criação destes networkings de poderes, também convida a refletir sobre o papel que as universidades assumem no reforço destas redes34. O objetivo “de estabelecer intercâmbios de ideias e pessoas entre cidades de lideranças regionais” encontra plena realização na designação do ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, como professor visitante na Columbia University of New York, mesma instituição criadora do Studio-X, tornando-se um claro exemplo de como estas parcerias internacionais possam ser eficientes métodos de planejamento de carreiras particulares e de estratégias político-econômicas locais e globais35.
Conclusões
Observando propostas de instituições culturais como o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã e seus parceiros locais e internacionais é possível ter exemplos das formas que a cultura vem sendo utilizada dentro de projetos de revitalização urbana direcionados ao reforço de polos socioeconômicos, frequentemente criativos, em várias cidades do mundo. Estes projetos - assim como o Projeto Porto Maravilha - dizem visar a inclusão e o favorecimento do tecido social mais diversificado que permita um crescimento socioeconômico que beneficia tanto os oriundos como os recém-chegados na área. Infelizmente parece claro como a maior parte dos investimentos, tanto públicos como privados, têm o objetivo de fortalecer quase que exclusivamente um específico setor de economia urbana. Trata-se principalmente das áreas relativas à produção de serviços e tecnologias que estão na base da economia criativa voltados à atração no mercado local de empresas multinacionais ou parcerias internacionais fundamentais pela inserção da cidade num circuito econômico global. Parcerias internacionais como aquela proposta pelo Theatrum Mundi no Rio de Janeiro podem ser utilizadas como um exemplo do funcionamento destes clusters internacionais criativos ao redor do mundo. Impulsionados pelos governos locais e articulados dentro do mercado, estas parcerias acabam satisfazendo os interesses das próprias instituições promotoras, seja localmente ou globalmente, deixando aos proponentes convidados apenas o papel de figurante.
Apesar das transformações da área portuária ter trazido algumas melhorias - como um melhor sistema de iluminação das ruas, melhorias nas calçadas e visível aumento das pessoas circulando na área (o que proporciona maior segurança) - parece evidente como estas melhorias sejam circunscritas aos locais aonde os recém-chegados (e também convidados internacionais) circulam, especialmente nos entornos da praça Mauá onde os dois museus se localizam. Da mesma forma, o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã, ambos administrados pela Fundação Roberto Marinho e símbolo do Porto Maravilha; receberam a maioria dos investimentos públicos desde sua construção (na mesma época da redescoberta do Cais do Valongo, em 2011), já estão em pleno funcionamento enquanto os milhares de objetos de matriz africana encontrados nas obras de escavação ainda não estão disponíveis ao público e tampouco se sabe onde e como estão sendo preservados. Parcerias como essa analisada no artigo remontam às formas de operar das agências internacionais que - nos anos 90 - começaram a olhar a cultura como um recurso economicamente sub-explorado em países em desenvolvimento, assim como parecem reproduzir relações coloniais exploratórias, civilizatórias e de poderes desequilibrados. Entidades europeias (entre elas um banco alemão) financiam o Designing Politics: Designing Respect e atribuem aos parceiros envolvidos a responsabilidade pela reconstrução do tecido social, através da promoção de diversidade cultural e do resgate das camadas mais pobres da sociedade da própria invisibilidade. Pelo contrário, o que se torna claro é como os fluxos multiculturais gerado por estes tipos de trocas, agem reproduzindo formas de desigualdade: gerenciando pobres e atraindo hóspedes internacionais. Enclaves de criatividade e museus com visibilidade internacional tornam-se dispositivos para a manutenção de redes de criatividades globais. Segundo Richard Sennet, citado numa entrevista como um dos fundadores do Theatrum Mundi: “a globalização hoje não envolve mais negócios e dinheiro, mas negócios e lugares” (Pereira Guimaraes, 2016). Podemos, portanto, afirmar que estes clusters físicos de criatividade, criadores de enclaves humanos e territoriais excludentes, perseguem um comum interesse na promoção de “negócios e lugares” entre elites intelectuais e culturais conectadas globalmente. Experiências direcionadas a incentivar um genuíno multiculturalismo e políticas de diferenças precisam de fato ser reforçadas, mas para alcançar este resultado é preciso prestar atenção em quem são os beneficiários destas experiências, que não podem ser representantes locais e globais de classes sociais privilegiados com maior acesso à educação, recursos e experiências e práticas internacionais.
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Notas
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