Resumo: A economia contemporânea, marcada por uma intensa globalização e pelas novas tecnologias de informação e comunicação, tem assistido a um incrível aumento da competitividade. Foi nesse cenário que os valores intangíveis e os significados culturais agregados aos produtos se tornaram tão ou mais importantes que sua funcionalidade. Particularmente nos setores que compõem a chamada economia criativa, como o design, as artes visuais, a música, a moda, a gastronomia, etc., os bens e serviços passaram a se destacar por sua singularidade e por terem, simultaneamente, valor econômico e valor simbólico. Tendo esse cenário como pano de fundo, o presente texto apresenta um estudo de caso ancorado na Austrália, que revela como o segmento da arte indígena se tornou parte da economia criativa naquele país, possibilitando uma ocupação culturalmente significativa e economicamente viável para comunidades tradicionais em situações de contato. Por fim, sugere-se a relevância de abordagens interdisciplinares para a análise de práticas artístico-culturais.
Palavras-chave: economia criativaeconomia criativa,arte indígenaarte indígena,pintura aborígene australianapintura aborígene australiana.
Abstract: Contemporary economy - marked by a very intense globalization as well the new information and communication technologies - has achieved an incredible increase in competitiveness. Cultural and intangible meanings linked to products and services have become almost more important than their functionality. This is particularly - but not exclusively - true in sectors that comprise the so-called creative economy, as the design, visual arts, music, fashion, food etc. In contemporary societies, merchandises stand out for their uniqueness and for having both economic value and symbolic value. Having this scenario as background, this paper presents a case study based in Australia, which reveals how the segment of indigenous arts turned to be part of the creative economy in that country, allowing first nation people to have a culturally significant and economically positive occupation. Finally, the text illustrates the relevance of interdisciplinary approaches to analyze artistic-cultural practices and processes.
Keywords: creative economy, indigenous arts, Australian aboriginal painting.
Articles
Das artes tradicionais à economia criativa: a pintura indígena da Austrália e sua inserção no sistema das artes
From traditional arts to creative economy: Aboriginal indigenous paintings and its insertion in the Western arts system
Recepção: 01 Julho 2017
Aprovação: 23 Agosto 2017
A economia contemporânea, marcada por uma intensa globalização e pelas novas tecnologias de informação e comunicação, tem assistido a um incrível aumento da competitividade. Foi nesse cenário que os valores intangíveis e os significados culturais agregados aos produtos se tornaram tão ou mais importantes que sua funcionalidade. Particularmente nos setores que compõem a chamada economia criativa (mas não apenas), os bens e serviços passaram a se destacar por sua singularidade e por terem, simultaneamente, valor econômico e valor simbólico.
Embora os contornos da categoria ainda sejam alvo de debate, fazem parte da economia criativa, por exemplo, o artesanato, a indústria editorial, o audiovisual, as artes performáticas, a arquitetura, a moda, o design, a arquitetura, a publicidade, a gastronomia, a moda e os games. O fato de que recursos naturais esgotáveis, como o petróleo, não são tão centrais nessas atividades, faz com que elas sejam vistas como potencialmente menos danosas ao ambiente. Além disso, vários empreendimentos criativos valorizam a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais, que lhes servem de base para a fabricação de cosméticos e têxteis, a criação de coreografias e álbuns musicais, entre inúmeras outras possibilidades.
O programa Creative Nation, implementado em 1994, na Austrália, foi pioneiro no reconhecimento da contribuição do trabalho criativo para a economia australiana. Mas a expressão economia criativa2 só se popularizou no final da década de 1990, quando o Reino Unido elegeu os setores criativos como molas propulsoras de sua economia. Segundo Ana Carla Fonseca Reis, que trouxe o debate ao Brasil, existem duas abordagens principais da economia criativa. Uma delas ainda pautada em “um modelo de desenvolvimento global pós-industrial excludente” (Reis, 2007), em que a diversidade cultural é vista como recurso mercadológico, mas também como obstáculo ao desenvolvimento. E outra que se apropria do instrumental econômico, ou seja - “da visão de fluxos e trocas; das relações entre criação, produção, distribuição e demanda; das diferenças entre valor e preço; dos mecanismos de incentivos, fomento e regulação - em favor do desenvolvimento sustentável, da gestão da cultura e das políticas públicas” (Reis, 2009).
As estratégias (e os impasses) da valorização das artes indígenas apresentadas nesse texto devem ser pensadas sobre esse pano de fundo mais amplo. Trata-se de um caso praticamente único no mundo, e já relativamente consolidado, em que se pode observar a articulação entre formas expressivas tradicionais, museus de arte, casas de leilão, galerias comerciais e órgãos públicos. Com efeito, a Austrália é um dos poucos países nos quais a produção artística de povos originários vem obtendo legitimidade institucional, valor de mercado e, ao mesmo tempo constitui uma atividade plena de sentido para os próprios artistas.
Peças aborígines se encontram expostas nos grandes museus das capitais australianas, em galerias comerciais e hotéis. A iconografia tradicional do deserto decora praças públicas, agências bancárias, aeroportos (Figura 1) e o próprio parlamento, em Camberra. Isso resulta de um processo histórico complexo e recente, que envolve diversos sujeitos, de antropólogos a curadores, de marchands a lideranças indígenas, passando também por órgãos públicos federais e estaduais.

Figure 1. Alice Springs Airport, in the heart of Australia, with its floor decoration featuring the Central Desert tradicional iconography. The concentric circles in the middle may represent camping sites or watersources. Around it, animal footprints.
O presente artigo apresenta esse fenômeno pouco conhecido dos leitores lusófonos. Inicialmente, fornece informações introdutórias sobre os povos indígenas da Austrália e sobre a maneira como se organizaram em torno de cooperativas, os chamados arts centres. Em seguida, aborda a gradual “artificação”3 de sua produção artística, para usar um conceito desenvolvido por Shapiro e Heinich (2013). Por fim, apresenta, dentro do que seria possível a uma pesquisadora não-indígena, a lógica própria que norteia e impulsiona os artistas aborígenes da Austrália.
O adjetivo aboriginal, na Austrália, é usado para os povos que habitam o continente há cerca de 40.000 anos. Eles falam hoje 20 línguas, mas o número era muito maior em 1788, momento em que os ingleses iniciaram a colonização. Somados aos povos indígenas das Ilhas do Estreito de Torres - pouco numerosos e culturalmente mais próximos à Melanésia -, os aborígenes representam 2,5% da população australiana (Pascoe, 2008). Para se ter uma margem de comparação, no Brasil atual, os indígenas perfazem menos de 0,5% da população.
A colonização inglesa na Austrália foi violenta. Vigorou por muito tempo uma lei que permitia que qualquer branco atirasse em um nativo que se aproximasse de sua casa. Até a década de 1970, foi generalizada a prática de separar as crianças aborígenes de suas famílias, para que fossem criadas em orfanatos e treinadas para servir aos brancos, nas fazendas ou em afazeres domésticos (Kleinert e Neale, 2000). Isso levou ao desaparecimento de idiomas e povos inteiros, a famílias despedaçadas e a altos níveis de alcoolismo.
Hoje, as comunidades indígenas se concentram na imensa região desértica que cobre dois terços da Austrália, no centro e no oeste do país, e também no norte tropical voltado para a Ásia, sobretudo na região de Arnhem Land. Nas grandes cidades do sudeste, como Melbourne, Sydney e Camberra, veem-se poucos blak fellas - autodesignação que subverte a língua inglesa e remete à cor da pele dos aborígenes da Austrália. Paradoxalmente, nos principais museus de arte e galerias comerciais destas mesmas cidades, a arte indígena recebe destaque absoluto, sendo exposta e comercializada lado a lado com a produção artística contemporânea dos brancos.
Muitas das comunidades possuem centros de artes geridos por uma diretoria aborígene, assessorados por um ou dois funcionários brancos - especialistas em marketing, exportação, websites etc. Políticas públicas do governo federal fomentaram a criação de tais cooperativas, sobretudo nas décadas de 1990 e 2000, oferecendo recursos, equipamentos, capacitação e premiações. Iniciativas privadas de colecionadores, galeristas e casas de leilões também ajudaram a consolidar o sistema de arte4 indígena na Austrália, que atinge cifras inacreditáveis do ponto de vista de um brasileiro - como no caso da tela de Clifford Possum Tjapaltjarri, vendida por 2,7 milhões de dólares em um leilão, em 2007.
Os art centres, que hoje passam de 100, distribuem matéria-prima para os interessados num raio de cerca de 200 km de suas sedes e intermediam a venda de sua produção e o licenciamento de imagens para empresas de brindes, roupas, acessórios, posters e publicações. Nada como fornecer dois exemplos concretos de cooperativas. No povoado de Yuendumu, no Deserto Central, onde predomina a etnia Warlpiri, fica a cooperativa Warlukurlangu. A técnica adotada por seus artistas associados é a pintura com tinta acrílica sobre tela, mas ela possui também uma prensa para gravuras. Há ainda um anexo para voluntários não-indígenas, uma loja, uma cozinha, espaço para armazenagem e para os artistas pintarem. A cooperativa Warlukurlangu possui um carro 4 X 4 e conta há vários anos com uma coordenadora não-indígena, formada em história da arte e especialista em marketing, a quem se atribui o sucesso comercial do empreendimento. O faturamento é de até 5 milhões de dólares por ano e um dos segredos para isso é licenciar imagens para diversas indústrias e diversos suportes.
O segundo exemplo é a cooperativa Bulku Larrngay Mulka, em Arnhem Land, no norte, onde vivem os Yolngu. Ali, a diretoria composta por 12 aborígenes, decidiu desde o começo que só se praticaria a técnica do bark painting: pinta-se com pinceis de fios de cabelo e pigmentos minerais sobre entrecascas de eucalipto, que existem apenas em quatro cores: branco, preto, ocre e magenta. Esta cooperativa também contrata sempre um ou dois funcionários brancos, com a verba que o governo federal disponibiliza para essa finalidade. Esta figura tem um papel fundamental de mediação entre os valores locais e as demandas externas. A cooperativa Bulku Larrngay possui um pequeno museu, uma loja, uma sala de projeção e um laboratório de edição de vídeos, frequentado sobretudo pelos jovens. Além de fomentar e distribuir a produção artística, ambas as cooperativas funcionam como espaço para encontros políticos e desenvolvimento de projetos sociais - tais como o mutirão de cirurgia para cataratas, a construção de uma piscina na comunidade, a produção de um livro para denunciar a ação ilegal de mineradoras, a organização de manifestações na capital, Camberra, em favor de causas indígenas.
Alguns dos artistas idosos passam os dias nas redondezas dos centros de artes, produzindo e conversando. É o caso de Barrupu Yunupingu, retratada na Figura 2. É interessante notar que os artistas aborígenes sempre pintam sentados no chão. Por esse motivo, alguns curadores optam por expor as telas na horizontal, a fim de que o público as veja da mesma perspectiva que os pintores, no momento da confecção.

Figure 2. Until she passed away, in 2012, Barrupu Yunupingu used to paint every day in the backyard of Bulku Larrngay arts centre, in Yirrkala, Arnhem Land. As all traditional bark painters, she painted with a brush made of her own hair and natural ochres.
Normalmente, o dinheiro ganho com a venda de arte intermediada pelas cooperativas se distribui pelas redes de parentesco, beneficiando não indivíduos, mas a comunidade como um todo. Viabiliza, por exemplo, a construção de postos de saúde, a compra de carros apropriados para o deserto e de suprimentos para viagens de visita a parentes de terras distantes. É verdade que alguns artistas, ao invés de vender por meio do centro de artes se fazem representar por galerias comerciais de brancos, localizadas nas capitais, capazes de lhes dar mais visibilidade. Nesses casos, embora em termos absolutos o artista possa ganhar mais, em termos relativos cabe-lhe a menor parte do dinheiro das vendas, já que há outros agentes intermediários no processo5.
As pinturas grandes são mais valorizadas pelos não-indígenas do que as pequenas. E a pintura acrílica sobre tela costuma valer mais do que a pintura com pigmentos minerais sobre eucalipto, pela durabilidade e pela maior semelhança ao que estamos acostumados a ver em museus e galerias euroamericanas. Os preços dos trabalhos também dependem do tempo investido na confecção da peça e da idade do artista (artistas mortos são particularmente caros). É possível comprar uma gravura de um artista pouco conhecido, iniciante, a partir de 250 dólares. Pinturas coloridas e bem acabadas são encontradas nas cooperativas a partir de 2000 dólares. Já as telas de Emily Kame Kangwarreye6, uma das estrelas do segmento, variam entre 200.000 e 1.000.000 de dólares. Alguns centros de arte produzem também objetos em fibra vegetal trançada e gravuras - formato reprodutível e leve, que atende a compradores menos abastados e com pouco espaço em casa.
Os artistas indígenas vêm se adaptando gradualmente a tais parâmetros, porém o critério de avaliação mais importante entre eles parece ser o conhecimento a respeito dos ancestrais e dos fragmentos míticos contidos no trabalho artístico - chamados de dreamings, no inglês aborígene, ou de tjukurrpa, nas línguas do deserto. Uma situação emblemática que observei foi quando um casal levou a sua cooperativa uma pintura feita pela esposa, dizendo que era obra do marido. O coordenador de vendas da cooperativa conhecia bem o estilo daquele senhor, bastante valorizado, aliás, e argumentou que sabia que o trabalho não fora feito por suas mãos. Ao que a esposa retrucou: “certo, fui eu que fiz, porque ele está perdendo a visão. Mas coloquei aí exatamente as mesmas histórias e os mesmos personagens que pertencem a nossa família, então tem o mesmo valor”.
Como se vê, a noção de autoria - muitas vezes coletiva e às vezes manipulada - é bem particular nesse contexto. Presenciei situações em que sobrinhas e tias ou pais e filhos trabalhavam em uma mesma pintura, cantando enquanto pintavam e recriando com gestos e tintas fragmentos míticos que pertencem a suas etnias ou clãs - ainda que, no final, a autoria fosse atribuída apenas ao mais velho ou ao mais reconhecido. Não é por acaso que os centros de arte registram informações diferentes daquelas normalmente fornecidas por catálogos e museus de arte. As etiquetas das peças à venda detalham a etnia do artista, a metade a que pertence, a região em que vive, sua língua e seu clã (Figura 3). No caso do falecimento do artista, as cooperativas e os grandes museus cobrem a etiqueta durante o período de luto, pois, entre muitos povos, não se pode pronunciar o nome do morto por pelo menos um ano.

Figure 3. Work of art identification label at Buku-Larrnggay Mulka cooperative shop. The diamond design is the artist’s clan symbol.
A cooperativa Buku-Larrnggay Mulka emite um documento para cada trabalho vendido em que constam data, material, tamanho e nome do artista, uma foto da obra e a explicação de seu significado - chamado de story, no inglês aborígine. Os galeristas afirmaram, em entrevistas a esta pesquisadora, que os compradores preferem obras cujas stories sejam identificáveis e nomeadas. Os artistas, por sua vez, reprovam as nothing paintings e as quick paintings, vazias, sem qualquer story por trás, feitas para ganhar dinheiro rapidamente.
O processo de aceitação e reconhecimento da produção artística aborígine, na Austrália, levou algumas décadas. Do início da colonização até a Primeira Guerra Mundial, o colecionismo científico imperou: artefatos eram coletados por antropólogos e funcionários do governo como testemunhos etnográficos. De 1920 a 1940, a iconografia tradicional indígena foi incoporada pelo Modernismo australiano; artistas e designers brancos, liderados por Margaret Preston, inspiraram-se no repertório visual aborígine para forjar uma identidade artística australiana, incorporando a iconografia tradicional em seus objetos, estampas e telas - sem, no entanto, se interessar por seus sentidos tradicionais. Em 1958, a Art Gallery of New South Wales, em Sydney, adquiriu e expôs uma coleção de mastros funerários esculpidos, produzidos em Arnhem Land. Foi a primeira vez que um museu de arte incluiu objetos indígenas em sua coleção, o que gerou controvérsias na imprensa.
No início dos anos 1970, a fundação da cooperativa Papunya Tula fez emergir um novo movimento artístico no deserto. Isso se deu um ano depois de o arte-educador branco Geoff Bardon ter incentivado seus alunos indígenas a transporem com tinta acrílica, sobre papéis e telas de tecido, desenhos tradicionais que já aplicavam sobre o solo e sobre o corpo (Myers, 2002; Bardon e Bardon, 2004). No começo, a cooperativa foi ignorada, levando cerca de dez anos para conseguir se firmar. O sucesso da Papunya Tula levou à proliferação de cooperativas indígenas e à multiplicação de subestilos regionais nas décadas seguintes.
Também nos anos 1970, o governo do Partido Trabalhista - cuja nova bandeira passou a ser a autodeterminação dos povos indígenas, no lugar da assimilação - criou o Aboriginal Arts Board. Composto por representantes indígenas, o órgão compraria, durante vinte anos, peças para coleções públicas, algumas doadas para embaixadas e museus ao redor do mundo, outras inseridas em exposições nacionais e internacionais. O objetivo era “educar o público” e abrir mercado para essa produção.
A entrada da pintura aborígine em galerias comerciais nas grandes cidades australianas ocorreu na década de 1980. Gabriele Pizzi inaugurou a primeira galeria, em 1982, e selou um contrato para representar a cooperativa Papunya Tula em Melbourne. Abriram-se em seguida outras galerias comerciais: a Alcaston, também em Melbourne, e a Hoggart, em Sydney. Hoje, são centenas, em todas as cidades australianas.
O processo de aquisição de trabalhos de artistas aborígines pelas instituições museológicas australianas, inclusive por museus de arte moderna e contemporânea, tornou-se significativo na década de 1990. Nos anos 2000, artistas e curadores de origem indígena, criados nas cidades, fluentes em inglês, cientes de seus direitos e, muitas vezes, formados em universidades, começaram a produzir trabalhos em diálogo com a arte contemporânea internacional, bem como discursos críticos.
Foi no final do século XX que a internacionalização se consolidou. Para dar apenas alguns exemplos, em 1990, o pintor Rover Thomas Joolama (Figura 4), conhecido por suas formas geométricas, participou da Bienal de Veneza, e em 2000, expôs no Museu Hermitage, na Rússia. Em 2001, foi criado o Aboriginal Art Museum Utrecht, na Holanda. Em 2008, uma mostra individual de Emily Kame Kngwarreye, exímia colorista, atraiu multidões em Osaka e Tokyo. Eu mesma estive em uma grande exposição no Museum Ludwig, em Colônia, em 2011, acompanhada por um seminário internacional sobre arte aborígine da Austrália.

Figure 4. Rover Thomas. 1985. “Claypans. Canning Stock Route”. Natural ochres on canvas. Painting was in Brazil for the thouring exhibition “Dreamtimes”, in 2016 and 2017.
Fonte: Imagem de divulgação, Art Mundi – Karoline Pires (s.d.).Os processos de “artificação”, mercantilização e internacionalização impulsionaram e foram também impulsionados por uma incorporação progressiva do repertório imagético dos povos aborígenes na representação de uma nova identidade australiana. Símbolos, instrumentos musicais, palavras que pertenciam a um determinado grupo étnico passaram a ser acionados para a criação de símbolos nacionais. A colonização inglesa da Austrália é muito recente (tem menos de 250 anos) e o país continua reverenciando a Rainha da Inglaterra. Talvez por isso, artistas e designers modernistas australianos, nos anos 1930 e 1940, lançaram mão do repertório visual aborígene para forjar uma arte própria local, que se distanciasse do Reino Unido. No setor turístico, importantes parques nacionais, como Uluru, onde fica uma rocha vermelha gigante de 9 quilômetros, e Kakadu, onde estão pinturas rupestres de mais de 20.000 anos, são geridos por comunidades aborígenes com apoio do governo. Os aviões da companhia aérea nacional, a Qantas, são cobertos por motivos indígenas. Nos jogos olímpicos de Sydney, em 2000, o show de abertura foi uma grande espetacularização de rituais aborígenes. Formas e cores indígenas se fazem presentes em aeroportos, edifícios públicos, calçadões na praia e lojas de souvenirs turísticos, como se nota na Figura 5.

Figure 5. Central Desert patterns printed on ties and handkerchiefs, sold at Ian Potter Museum of Art, Melbourne.
Por vezes, surgem falsificações e controvérsias nesses processos de apropriação e releitura da arte aborígine, que dão origem a contendas jurídicas complexas7, já que, não só na Austrália, mas também em outros países, a legislação de propriedade intelectual só protege criações individuais e relativamente recentes (Janke e Quinggin, 2005). Uma medida governamental para atenuar tais problemas foi a publicação de um código de ética8 específico para os agentes da indigenous arts industry (Australia Council, 2009). A emissão de certificados de autenticidade pelas cooperativas também representa uma tentativa de dirimir as cópias e a produção de obras feitas por não-aborígenes à maneira aborígene.
Como se vê, a circulação dos repertórios visuais aborígines abre possibilidades interessantes, ao mesmo tempo em que suscita impasses e ambiguidades. A inserção no sistema de artes gera renda para cerca de 6000 artistas indígenas da Austrália (Altman, 2005), porém gera lucros ainda maiores para os galeristas não-indígenas. Permite novas formas de participação e diálogo entre os povos aborígenes e a sociedade nacional australiana, por um lado; por outro lado, não é suficiente para reduzir as assimetrias socioeconômicas e as desigualdades históricas da Austrália. É a principal forma de inserção das comunidades aborígines no mercado, mas não oferece um produto meramente comercial, como será discutido a seguir.
Muitos dos motivos hoje pintados sobre entrecasca de árvore (pelos Yolngu do norte da Austrália) e sobre tela (por povos do Deserto Central como os Warlpiri e os Pintupi) existiam bem antes do boom de arte indígena australiana do final do século XX. Tradicionalmente, eram aplicados em objetos rituais, como bumerangues, no corpo das pessoas, nas rochas e no solo cerimonial. Howard Morphy afirma que a pintura aborígine torna visível uma pequena parcela de um enorme universo visual que a antecede e ultrapassa; um universo de imagens sonhado, ensinado oralmente e nem sempre visível, que a arte tem a capacidade de materializar e presentificar (Morphy, 2010, comunicação pessoal).
Um artista indígena, na Austrália, raramente figura cenas cotidianas ou eventos históricos. Em geral, o que desenha, pinta, grava e esculpe são fragmentos de narrativas míticas e rastros de personagens ancestrais que agiram em outros tempos e espaços. A força das formas vem do que está por trás delas. Não por acaso, um dos critérios de beleza dos Yolngu, que vivem no norte tropical, é o movimento da textura de fundo. Se, ao olharmos para uma pintura, nossos olhos ficarem inquietos, se o fundo parecer saltar para fora, é sinal de que o poder ancestral está ali (Morphy, 1991, 2008).
A sabedoria tradicional é indissociável da arte aborígine. Os mais velhos e os líderes cerimoniais são considerados os melhores artistas. Afinal, é preciso saber o que se pode figurar - alguns motivos não podem ser vistos por mulheres, outros são proibidos aos brancos, outros pertencem exclusivamente a uma família. É preciso, ainda, saber as canções associadas a cada dreaming, que costumam ser cantadas durante a confecção da pintura. Os ancestrais realizaram grandes deslocamentos e a cada trajeto corresponde uma linha projetada sobre o território físico-mítico, chamada de songline. As linhas que atravessam as pinturas muitas vezes remetem a songlines.
Para mergulhar um pouco mais nos sentidos da produção artística dos povos aborígines da Austrália, convém recuperar duas ideias interligadas que lhe são centrais. A primeira é a noção de dreaming, recentemente traduzida para o português como sonhar: “Os espaços do sonhar, para os aborígines do deserto, incluem o ritual, o mito e a experiência onírica de encontros com espíritos ancestrais totêmicos, que também são agentes materiais que se transformam em todas as formas animadas e aspectos da terra e do céu” (Glowczewski, 2015, p. 31). O sonhar pode se fazer presente tanto durante o sono, como na vigília, pois está impregnado na paisagem - a serpente que se transformou no leito do rio, o velho que se tornou uma rocha e assim por diante. “O sonhar é o presente, mas também o ‘muito tempo atrás’. [...] É um tempo dinâmico, um tempo de transformações” (Glowczewski, 2015, p. 51).
A segunda noção central, country, refere-se não apenas ao território geográfico no qual as pessoas nasceram e do qual devem cuidar por meio de obrigações rituais, mas engloba igualmente aspectos míticos associados a esses locais. “Um aborígine não diz que um território lhe pertence, mas que ele pertence ao território” (Glowczewski, 2015, p. 51). Não é à toa que grande parte das pinturas tem como título o nome de um lugar. A Figura 6 oferece um exemplo concreto dessa ligação entre tempo e espaço e entre produção pictórica, dreaming e country.

Figure 6. Wuta Wuta Tjangala. 1981. “Yumari”, 1981. Acrylic on canvas. 367 x 226 cm. National Museum of Australia’s collection.
Fonte: National Museum of Australia (s.d.).A pintura reproduzida na Figura 6 tem o mesmo nome da paisagem rochosa onde o pintor Wuta Wuta, da etnia Pintupi, foi concebido e criado. Ali ocorreu, no tempo dos sonhares, a união proibida entre um homem - representado por um pênis vinho retangular e longo, embaixo da figura central - e sua sogra - simbolizada por uma pequena vulva na ponta esquerda do pênis. Vale notar que a relação entre sogras e genros, na Austrália indígena, é alvo de numerosos tabus. De acordo com Fred Myers, estudioso do povo Pintupi9, essa pintura condensa mais de um dreaming: a forma ondulada que atravessa a parte inferior da pintura é Lirru, a grande serpente marrom, que estava passando quando viu o Homem Velho - Yina - assustando mulheres, representadas por bolinhas vazadas logo acima da cobra. A figura maior seria uma mistura entre outro personagem ancestral, Tjuntamurtu, que se pode traduzir por “pernas curtas”, com o próprio pintor, que decidiu se integrar na pintura (Myers, 2002, p. 115).
A atividade de pintar é profundamente significativa para os artistas aborígines. Uma tela exposta num museu, uma gravata coberta por motivos aborígines ou uma prancha de madeira pintada, à venda numa galeria de Sydney, dificilmente serão meras mercadorias. Elas transmitem conhecimentos de uma geração a outra e comunicam coisas importantes, ainda que poucos brancos entendam. Nas palavras de Fred Myers, “apesar do novo público e da nova função, os pintores continuaram a pensar suas pinturas comerciais de forma relacionada a seus desenhos cerimoniais e deles derivada, possuindo outros valores além daqueles estabelecidos pelo mercado” (Myers, 2002, p. 3, tradução minha).
A iconografia tradicional dos povos do deserto chegou a ser comparada a uma forma de protoescrita pela antropóloga Nancy Munn (1966, 1973). Ela é composta por signos recorrentes: círculos concêntricos representam fontes de água ou locais de acampamento; traços são caminhos ou jornadas dos ancestrais; formas em U aludem a pessoas sentadas com as pernas abertas, vistas de cima; pegadas são índices de animais e de seres humanos. Trata-se de um sistema representacional que permite a construção de frases e narrativas a partir de unidades mínimas de significação (Munn, 1973, p. 36). A relação entre a forma dos desenhos e seu conteúdo não é arbitrária, pelo contrário, existe proximidade visual entre os dois. Um círculo nunca será usado para representar uma flecha; e uma linha reta nunca será empregada para representar um caminho circular; ela pode representar o rabo do canguru, um bastão ou uma pessoa deitada no chão.
Um mesmo desenho pode ter vários significados, dependendo da posição, da quantidade e da relação com os demais. As unidades gráficas são combinadas em conjuntos. Assim, duas formas em U com um círculo no meio podem significar duas pessoas em torno do fogo, ou perto de uma fonte de água. Uma rede de círculos ligados por linhas é uma espécie de mapa aéreo dos caminhos percorridos por ancestrais entre os acampamentos. O significado da figura dependerá das outras próximas a ela e da narração verbal que a acompanha.
A Figura 7 reproduz uma pintura de Clifford Possum Tjapaltjarri executada junto com outros membros de sua família. Este artista tem uma importância histórica, porque foi um dos fundadores da primeira cooperativa de artistas aborígenes, a Papunya Tula, em 1971. Suas telas incorporam a iconografia tradicional do deserto; assim, embora pareçam abstratas à primeira vista, trata-se, na verdade de registros de narrativas orais. De acordo com o relato que o próprio artista fez à pesquisadora Viven Johnson (1996, p. 122), o quadro conta uma passagem mítica referente ao sapo das dunas, que sai de sua toca logo após a chuva, para comer formigas e larvas. Os sapos são representados por círculos vazios no canto superior esquerdo e no canto inferior direito. As manchas cinzas irregulares, preenchidas em seu interior, são poças d’água, que indicam o fim da chuva forte. As formas em U são pessoas sentadas procuranda formigas de mel, uma espécie muito apreciada como alimento e também presente em diversos dreamings. As linhas paralelas representam as pinturas corporais usadas pelas pessoas durante a cerimônia em que se reconta o sonhar do sapo. Notam-se também pegadas de pessoas que cortam o quadro numa linha horizontal, em direção ao centro, que pode ser uma fogueira ou um acampamento, de acordo com as convenções gráficas.

Figure 7. Clifford Possum Tjapaltjarri and family. 1989. “Frog Dreaming”. Synthetic polymer on canvas. 130 x 135 cm. Painted by the founder of the first indigenous co-operative.
Fonte: Leonard Joel (s.d.).Um dos intuitos deste artigo foi sugerir o rendimento de abordagens inter/transdisciplinares no estudo de práticas artístico-culturais. No caso apresentado, desejava-se desvendar alguns aspectos cosmológicos que subjazem à pintura dos povos aborígenes da Austrália, sem deixar de lado o contexto econômico e político que envolve o sistema de arte indígena australiano; delinear alguns impactos econômicos do fenômeno estudado, sem abrir mão de descrever minimamente elementos formais dessas formas expressivas. E prestando atenção, ainda, aos usos e sentidos que os artistas indígenas conferem a esta produção híbrida, que dialoga com o repertório tradicional, mas é voltada aos não-indígenas. Por isso mesmo, diferentes matrizes disciplinares e estratégias metodológicas se combinaram e se complementaram na pesquisa que originou o presente ensaio.
O diálogo entre as Ciências Sociais e História da Arte revela-se fértil, ainda que a história da arte tenha começado tardia e timidamente a se interessar por criações não-ocidentais. De acordo com Belting (2008), no Modernismo, teria existido uma espécie de barreira protegendo a arte euroamericana da “contaminação” pela arte étnica e popular. Hoje, ao contrário, o que Belting chama de arte “global” interpela ao mesmo tempo a arte contemporânea (herdeira e transgressora da tradição moderna ocidental) e a arte pós-étnica, indígena ou “ex-primitiva”. Silvio Colombres, por sua vez, reitera a importância dessa abertura de horizontes por parte da história da arte: “a circunstância de que a arte Ocidental seja a mais teorizada e difundida não pode constituir um pretexto para fechar os olhos a outras estéticas que, ainda que não estejam claramente formuladas, poderiam ser descritas por qualquer participante consciente de outras culturas” (Colombres, 2005, p. 177).
Do lado da Antropologia, Alfred Gell (1998) propõe que se estudem as obras de arte de qualquer sociedade enquanto mediadoras de relações sociais, condensadoras de agências e intencionalidades. Mais como processos permanentemente sujeitos a agenciamentos do que como produtos acabados. Já Howard Morphy sugere que a arte seja usada pelos antropólogos como uma categoria transcultural, pois um dos papéis dessa disciplina é criar um vocabulário que facilite traduções culturais10. De acordo com Morphy, a Antropologia pode, além disso, contribuir para o questionamento e a elasticidade das noções de arte, artista e estética, incentivando o estudo e a valorização de expressões que não se encaixam nos cânones, nem nas vanguardas (Morphy, 2008).
A pesquisa que sintetizei nas páginas anteriores, em certa medida pautada por esses autores, partiu da Antropologia para dialogar com a História da Arte, mas também com a Museologia, o Direito, a Sociologia e a Economia. Uma das conclusões que emergem da análise da pintura indígena da Austrália, portanto, diz respeito à pertinência da abordagem interdisciplinar da arte e da cultura. Levar isso a sério exige sair de nossa zona de conforto, arriscar errar, mas também diversificar nosso olhar.
O segundo intuito do estudo de caso aqui apresentado foi realizar um recorte particular que contribuísse com a reflexão mais ampla sobre a economia criativa. Ao focalizar a arte indígena, abordou-se um segmento que, embora não seja isento de tensões, revela-se promissor, sobretudo em situações pós-coloniais. Um dos principais objetivos, portanto, foi reconstruir a maneira como a arte aborígene da Austrália conseguiu se inserir nos espaços expositivos e no mercado de arte11 - algo bastante raro em se tratando de produções indígenas12.
O boom da arte indígena na Austrália resulta de uma conjunção de fatores. Uma combinação entre a criatividade de quem transpôs pioneiramente desenhos tradicionais para novas superfícies; o empreendedorismo dos que formaram as primeiras cooperativas; a ousadia (e/ou ganância) dos colecionadores e dos galeristas comerciais, que se abriram, nos anos 1980, ao novo gênero; o interesse pelo fenômeno despertado em antropólogos, historiadores da arte, economistas e outros pesquisadores que passaram a se debruçar sobre o tema e a apoiar os artistas, escrevendo catálogos, levando-os para as cidades, realizando curadorias, dando consultorias a colecionadores e museus; e, não menos importante, a decisão do governo australiano de investir na Indigenous Arts Industry como forma de inclusão socioeconômica dos povos indígenas, de revitalização cultural, de compensação por injustiças históricas; e a tentativa de forjar uma nova identidade cultural mais atraente para a Austrália.
Os princípios de diferenciação pela singularidade, de valorização de aspectos intangíveis e da criatividade, tão caros à economia criativa, parecem ter sido aplicados de modo bastante consequente no país. Não por acaso, a década em que o mercado de arte aborígene da Austrália se consolidou foi a mesma em que surgiu a discussão em torno da economia criativa. Em 1994, em um documento chamado Creative Nation, o então primeiro-ministro australiano Paul Keating implementou políticas públicas utilizando a expressão economia criativa pela primeira vez. Foram destinados 250 milhões de dólares ao setor cultural e às indústrias criativas. O argumento para tamanho investimento foi o seguinte: “Culture creates wealth. Culture employs. Culture adds value, it makes an essential contribution to innovation, marketing and design. [...] The level of our creativity substantially determines our ability to adapt to new economic imperatives” (Department of Communication and the Arts, 1994).
Por fim, espera-se que refletir sobre o caso australiano ajude a pensar sobre outros contextos similares - ou contrastantes. No cenário político brasileiro atual, em que há grande risco de retrocessos na demarcação de terras indígenas e quilombolas, em que assassinatos de lideranças comunitárias ficam impunes, em que o Ministério da Cultura foi extinto, e em seguida, quando recriado, teve seu orçamento extremamente reduzido, está difícil pensar em cenários futuros positivos. Em termos de diversidade étnica e cultural, o Brasil abriga um enorme e riquíssimo potencial que poderia ser melhor aproveitado pelas políticas públicas, pelos detentores de conhecimentos tradicionais e expressões culturais diversas e também pelas indústrias criativas. Mas, como se procurou apontar, isso demanda articulação intersetorial, planejamento em médio e longo prazo, existência de vontade política, implementação de regulamentações específicas, disponibilização de recursos orçamentários, investimento em pesquisa e inovação e, acima de tudo, abertura para a participação dos criativos na própria formulação das estratégias.

Figure 1. Alice Springs Airport, in the heart of Australia, with its floor decoration featuring the Central Desert tradicional iconography. The concentric circles in the middle may represent camping sites or watersources. Around it, animal footprints.

Figure 2. Until she passed away, in 2012, Barrupu Yunupingu used to paint every day in the backyard of Bulku Larrngay arts centre, in Yirrkala, Arnhem Land. As all traditional bark painters, she painted with a brush made of her own hair and natural ochres.

Figure 3. Work of art identification label at Buku-Larrnggay Mulka cooperative shop. The diamond design is the artist’s clan symbol.

Figure 4. Rover Thomas. 1985. “Claypans. Canning Stock Route”. Natural ochres on canvas. Painting was in Brazil for the thouring exhibition “Dreamtimes”, in 2016 and 2017.
Fonte: Imagem de divulgação, Art Mundi – Karoline Pires (s.d.).
Figure 5. Central Desert patterns printed on ties and handkerchiefs, sold at Ian Potter Museum of Art, Melbourne.

Figure 6. Wuta Wuta Tjangala. 1981. “Yumari”, 1981. Acrylic on canvas. 367 x 226 cm. National Museum of Australia’s collection.
Fonte: National Museum of Australia (s.d.).
Figure 7. Clifford Possum Tjapaltjarri and family. 1989. “Frog Dreaming”. Synthetic polymer on canvas. 130 x 135 cm. Painted by the founder of the first indigenous co-operative.
Fonte: Leonard Joel (s.d.).