Resumo: Neste artigo, temos como objetivo analisar a articulação entre arte, política e religião a partir de uma investigação sobre os sentidos atribuídos por diferentes atores aos grafites, estêncis e murais que formam uma paisagem motivacional no Rio de Janeiro no contexto das Olimpíadas 2016. Discursos, imagens e legislações conformam as situações a partir das quais propomos esta análise, tendo sido sistematizadas no âmbito de projetos de pesquisa em andamento financiados com recursos do CNPq e da Universidade Federal Fluminense. Foram realizadas entrevistas com grafiteiros e com representantes da prefeitura e em uma cartografia das produções presentes, principalmente, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O recorte da pesquisa cobrindo grafites e outras intervenções principalmente na Zona Sul se justifica pela importância que esse território da cidade assume politicamente para a projeção externa desse “espírito carioca”, sobretudo, no contexto olímpico.
Palavras-chave: grafitegrafite,políticapolítica,representações urbanasrepresentações urbanas,religiãoreligião.
Abstract: The objective of this article is to analyze the meanings attributed by different actors to graffiti, stencils and murals that form a motivational landscape in Rio de Janeiro in the context of the 2016 Olympics. Speeches, images and legislation conform the situations from which we propose this analysis having been systematized in ongoing research projects funded by CNPq and the Universidade Federal Fluminense. Interviews were carried out with graffiti artists and representatives of the city council and a cartography of the productions present, mainly in the South Zone of Rio de Janeiro. The cut of the survey covering graffiti and other interventions mainly in the South Zone is justified by the importance that this territory of the city assumes politically for the external projection of this “Carioca spirit”, especially in the Olympic context.
Keywords: graffiti, politics, urban representations, religion.
Articles
Grafites do amor, da paz e da alegria na cidade Olímpica: interfaces entre política, arte e religião no Rio 20161
Graffiti of love, peace and joy in the Olympic city: Interfaces between politics, art and religion in Rio 2016
Recepção: 20 Julho 2017
Aprovação: 20 Outubro 2017
O Rio de Janeiro é chamado em diferentes mídias, em sítios oficiais da prefeitura e de agências de turismo pelo epíteto de Cidade Maravilhosa em referência às suas belas paisagens naturais. Em 1º de julho de 2012 tornou-se Patrimônio Cultural da Humanidade com o nome “Rio de Janeiro: Paisagem Carioca entre a Montanha e o Mar”. A cidade do Rio, como é comumente chamada por seus moradores, é o principal destino turístico do Brasil. Entre seus principais atrativos destacam-se praias, parques, jardins e reservas urbanas - Parque Lage, Jardim Botânico, Horto, Vista Chinesa, Pedra Bonita, Floresta da Tijuca -, o Pão de Açúcar, o Corcovado, além do Estádio do Maracanã, os Arcos da Lapa e o Teatro Municipal. Do ponto de vista cultural, a cidade é apresentada como berço de importantes movimentos artístico-musicais como o Samba e a Bossa Nova convivendo com outras expressões como charme, funk, hip hop, etc. O Rio de Janeiro é capital do estado homônimo, mas já foi capital do Império Português em 1822, capital dos Estados Unidos do Brasil entre 1889 e 1968, quando a sede do poder do país foi transferida para Brasília. Atualmente, conta com 6,33 milhões de habitantes em uma área de 1.197,463 km23. É a 6ª maior metrópole da América Latina e a 35ª do mundo.

Figure 1. Graffiti in Rio encouraging to Love, by artist Zoup. Project Creator “Lovefication” (2015).
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 2. Anonymous graffiti provoking a reflection on attitudes of love in daily life. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.Neste artigo, temos como objetivo discutir os usos e sentidos atribuídos à paisagem motivacional composta por grafites localizados em bairros da Zona Sul carioca e alguns no eixo central que vem sendo revalorizado nos planos da prefeitura desde a década de 1990 (Pinto, 2015) e, mais acentuadamente no período de preparação da cidade para a realização das Olimpíadas 2016. Nesse sentido, assim como outros trabalhos que enfatizam a importância do uso das imagens para a produção nas ciências sociais entendendo-as como detentoras de autoria, tempo e agência, neste artigo, apresento alguns grafites como difusores de modelos e concepções do que é ser (ou como deveria ser) carioca. Em recente trabalho, Turazzi enfatiza
A importância crescente atribuída às imagens fotográficas, graças ao seu poder de informação e de positivação do papel do Estado na realização de obras públicas, pode ser medida, entre outros indicadores, pela também crescente encomenda de serviços fotográficos pelos agentes dessas intervenções, assim como pela contratação direta de fotógrafos por diferentes instituições públicas ou privadas desde o século XIX (Turazzi, 2006, p. 64).
No caso analisado neste artigo, o foco recai sobre o grafite, modalidade de Arte Urbana que sofreu um processo de artificação (Shapiro, 2007) que possibilitou seu uso por atores sociais antes refratários a ele como gestores públicos e religiosos.
Assim como a produção fotográfica que foi fonte de difusão e ao mesmo tempo produção de uma identidade nacional (Schwarcz, 2014) ou regional (Turazzi, 2006), sob novas referências estéticas, parte dos grafites da cidade modelam e propagam uma identidade carioca a partir de formas, cores e mensagens textuais. O imaginário romântico, a beleza natural, o espírito alegre, hospitaleiro, despojado, esperto e “amorificado” do carioca emergem com força nessas imagens e textos. Trata-se de analisar um processo que envolve identidades cidadãs produzidas, assim como a identificação e análise dos contextos mais gerais de produção de imagens informadas por diferentes referenciais cuja identidade carioca forjada e o dia a dia observado e vivido pelos artistas se comunicam.
A base para as análises preliminares aqui apresentadas é a pesquisa em curso “Grafite, Estêncil, Murais: um estudo sobre expressões de amor e de intolerância nos muros da cidade do Rio de Janeiro”4. A escolha metodológica pela análise e discussão da formação de uma paisagem motivacional da cidade a partir dos muros da Zona Sul5 carioca justifica-se pelo fato de embora cobrir uma área pequena em comparação ao restante da cidade e de concentrar igualmente uma pequena parcela dos seus moradores, ser esse o espaço que marcou a representação sobre a cidade como um todo servindo de base para formulações sobre o “Espírito Carioca” e, mais recentemente, para a elaboração política positivada, via Prefeitura do Rio, de uma representação sobre a “Carioquice”.
As ruas da cidade estão marcadas por rabiscos, estêncis, grafites, colagens. Nos muros de bairros da Zona Sul carioca acessamos diferentes estéticas e mensagens escritas. São recorrentes os grafites e estêncis em tom de crítica social e se referindo a ícones do grafite internacional produzindo ratos e macacos engravatados de vários tamanhos6. Em ruas de menor circulação podemos encontrar estêncis criticando a gestão da prefeitura e do governo do estado mobilizando um ícone ao mesmo tempo religioso e marca da cidade, o Cristo Redentor7.
Por outro lado, acessamos uma paisagem motivacional em muros que contam com grande visibilidade. Essa paisagem motivacional inspira pela beleza das formas e força das cores buscando provocar um estado de ânimo calmo, alegre, “amorificado”. Esses grafites são produzidos por diferentes artistas com motivações e referências variadas. Há grafiteiros que têm seus nomes associados a coleções de cadernos finos, estão no mercado das artes, ao mesmo tempo em que produzem muito na rua (noção nativa que significa o espaço urbano, a cidade como um todo, suas ruas, muros, praças). Uma referência neste quesito é Marcelo Ment. Carioca da Vila da Penha, nasceu em 1977, e desde 1998 faz das ruas do Brasil e do mundo o principal suporte para sua arte. Um dos mais importantes nomes do grafite na atualidade, Ment é autodidata, arte educador e integra a primeira geração do grafite no Rio de Janeiro. Sua arte pode ser vista em grandes publicações, exposições, marcas e principalmente, nos muros, de onde nunca pretende sair. “Os protagonistas das minhas obras são as situações, elementos da arquitetura dos locais em que estive, o material humano e o comportamento. Não apenas a arte pela arte” (Ment, 2016).

Figure 3. Mural made by Coletivo Nata at a school in Lagoa, Rio de Janeiro (2014). Photo Credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 4. Meton Joffily, Rat, Graffiti, Rio de Janeiro, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Fotos: Christina Vital da Cunha.

Figure 5. Unknown artist. Christ the Redeemer, threatened by the mayor of Rio de Janeiro Eduardo Paes (left), and State governor Sérgio Cabral (right). Stencil, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha (2014).Há artistas que têm anos de trabalho na rua já tendo sido vinculados a projetos da prefeitura. É o caso de Eduardo Denne, mentor e coordenador do Projeto [cdr] - Cultura de Rua. Denne é natural: São Paulo, mas reside no Rio de Janeiro desde 1972. É Designer Gráfico com Bacharelado em Desenho Industrial pela UniverCidade (2005) e Artista Plástico autodidata. Ocupa seu tempo com street art, pintura, ilustração, estêncil, design gráfico e caligrafia. Ministra palestras e oficinas sobre Estêncil, Intervenção Urbana e Street Art.
A estética amorificada se encontra em grafites de muitos artistas que ao mesmo tempo em que pintam na rua, atuam em projetos sociais de ONGs na formação de jovens cidadãos caso do artista Preas. Nesta mesma linha motivacional há outro artista, Rafael Hiran. Este integra uma juventude evangélica que percebeu no grafite, como em outras artes e esportes, um meio de acessar outros jovens sensibilizando-os para a mensagem cristã de amor e alegria.
Em matéria publicada na revista O Globo de 20 de abril de 2014 e que foi amplamente divulgada nas redes sociais, lia-se: “Com a cabeça no lugar. Quem é o artista que está por trás do Angatu, figura de sorriso aberto que pode ser vista em grafites espalhados pelo Rio?”. O texto exalta a produção do artista evangélico Rafael Hiran e apresenta algumas das características do personagem criado em 1998 para um congresso religioso sobre felicidade: “O Angatu é um sujeito cabeça. Stricto e lato sensu. Sua figura não passa de um cara com cabelo colorido, nariz proeminente, oito dentes escancarados e um olhar que ora parece ingênuo, ora astucioso. A expressão sorridente intriga. Estaria ele nervoso? Ou não passa de um debochado?” Angatu é uma palavra do tupi-guarani e que significa alma boa, bem estar, felicidade (Vital da Cunha, 2014, p. 14).

Figure 6. The word love written in many different languages in pink and red. Anonymous artist (2015). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 7. Pezão. Inviting everyone to love one another (“Ame o próximo”), Graffiti, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 8. Graffiti cute by Wark (2014-2015). Photo credit: Christina Vital da Cunha
Foto: Christina Vital da Cunha

Figure 9. Ment and Bigo. Portrait of a girl made of positive words like peace, love, truth, confidence, Graffiti, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 10. Denne. Tribute to Rio’s most famous street poet, Profeta Gentileza. Graffiti, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 11. Denne. Hand with a heart (2015). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.Há jovens do sexo feminino e do sexo masculino. Há evangélicos e não evangélicos. O que importa nesta análise exploratória é a conexão entre a produção que estão fazendo na cidade e a conformação dela com a apresentação histórica do Rio de Janeiro, e que se atualiza no contexto das Olimpíadas, como belo, exuberante, harmônico, “amorificado”. Os projetos financiados pela prefeitura e pelo estado, assim como muitos dos que não são resultado de recursos públicos, modelam e produzem ao mesmo tempo em que dão visibilidade a uma forma de ser cidadão carioca, a um estado de espírito que caracterizaria os moradores da cidade e que contagiaria os que a visitam. As artes que formam essa paisagem que chamo aqui de motivacional estariam produzindo e projetando, em outras palavras, a carioquice.

Figure 12. Preas. Colorful heart (2014). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.As controvérsias em torno do que conformaria uma identidade carioca, o “espírito carioca” ou a carioquice são muitas8. No entanto, por meio de diferentes recursos, dentre eles a música, o “espírito carioca” foi largamente forjado e disseminado no Brasil e no exterior. A música Garota de Ipanema, composta em 1962 por Vinícius de Moraes e Tom Jobim foi um dos primeiros hits a registrar esse “jeito carioca de ser” belo, sensual e despojado. Além dos próprios compositores, a música foi interpretada por Frank Sinatra, Cher, Madonna, Mariza, Sepultura, Amy Winehouse, entre outros. Décadas depois, as músicas “Rio 40 Graus”, de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer, gravada em 1992, e “Cariocas são bonitos”, de Adriana Calcanhotto, gravada em 1994 foram hits que igualmente tematizavam o “jeito do carioca” e a vida na cidade destacando em seus versos as ambiguidades que os constituem. O contexto dessa década no Rio de Janeiro foi de explosão da “violência urbana” (Soares, 1996; Leite, 2001; Machado da Silva, 2008; entre outros). Concomitante às ações dos governos estaduais na tentativa de aplacar a violência no estado e, principalmente, na cidade, a prefeitura do Rio se integrou a um plano internacional de cujo participavam diversas cidades latino-americanas. Nele, programava-se a realização de “projetos de requalificação e revitalização urbana no marco do denominado modelo de planejamento estratégico catalão” (Pinto, 2015, p. 517). Essa revitalização passava pela melhoria da infraestrutura e, igualmente, pela acentuação das características positivas que marcavam a representação9, o jeito de ser, o espírito do carioca. Se a malandragem, a violência e a liberação sexual entre os moradores era uma referência negativa da “carioquice”, um estigma para a população local, as prefeituras, sucessivamente, desde o então prefeito César Maia, atuaram em seu combate.
Em seu lugar investiam na produção de cidadãos ajustados (o programa Favela-Bairro pretendia transformar as favela em bairros “como os outros” e sua população em cidadãos integrados à cidade10) ao que estava se conformando como um novo “espírito do carioca”. Em 2000, o tombamento realizado pelo então prefeito Luiz Paulo Conde dos 56 painéis pintados pelo Profeta Gentileza, uma verdadeira narrativa urbana informando e incentivando uma forma de vida mais gentil, amena e respeitosa entre os moradores da cidade11, compunha o processo de valorização da arte urbana como meio de “expressão da cidade” e ressignificação de referenciais identitários do carioca. Inaugurava-se um período de compreensão da importância política da Arte de Rua. Em contexto internacional essa relação estratégica com os grafites e outras formas de intervenção artísticas se desenvolvia com destaque para a cidade de Berlin cujos investimentos em integração de populações jovens estrangeiras se fazia contando com a participação desse público em projetos sociais de organizações financiadas pelo poder público (Eckert e Rocha, 2015, 2014).
Dois decretos do então prefeito Eduardo Paes conformam importantes marcos nesse processo de ressignificação, afirmação e difusão de uma identidade citadina e de valorização da arte urbana e a possibilidade de seus usos pelo poder público. Trata-se do decreto nº 39797 de 1º de março de 2015 e do decreto nº 38307 de 18 de fevereiro de 2014. O primeiro, chamado popularmente de “decreto da carioquice”, foi publicado no Diário Oficial do Município em sua edição história comemorativa dos 450 anos do Rio. Nele o prefeito Eduardo Paes declara a “condição carioca”, a “carioquice” como Bem Cultural Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro considerando que “neste lugar, a Cidade do Rio de Janeiro, surgiu uma civilização buscando inventar novos hábitos, costumes, saberes, técnicas, crenças e valores, inspirada pela relação rara e harmônica entre natureza e ocupação humana, e que sobre este lugar repousou por muito tempo a benção e o fardo de simbolizar a nação brasileira”. O decreto enfatiza a beleza, a relação com a natureza, a harmonia, a fraternidade, a felicidade, a alegria e a pluralidade, a valorização da diferença como os componentes desse “espírito carioca”. Considera, ainda, que esse “espírito” é uma condição existencial podendo ser partilhado por outros que assim o desejarem: “a condição carioca é um estado mental, espiritual, corpóreo, gestual e linguístico, antes de ser apenas o gentílico dos que nascem no Município do Rio de Janeiro, permitindo que qualquer pessoa converta-se em carioca, se assim o desejar”. A propaganda em torno de uma refundação da cidade é tão grande que emerge como destaque em matéria do jornal O Globo: “Outro decreto publicado nessa edição determina que decretos normativos e não normativos subsequentes incluirão, antes de sua numeração oficial, a palavra RIO como marco de um novo ciclo da cidade do Rio de Janeiro, a partir do dia em que completa 450 anos de fundação” (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2015).
O decreto nº 38307 ficou conhecido popularmente como “decreto do grafite”. É um marco importante no processo de artificação do grafite na cidade, formalizando a possibilidade do uso dessa arte pelo poder público, entre outras regulações anunciadas no decreto como a garantia de preservação de obras de valor artístico e cultural reconhecidos e que contribuem para a imagem da Cidade. Esses grafites não devem oferecer prejuízo ao patrimônio público e histórico, não devem ter cunho publicitário e nem teor pornográfico, racista ou de outra forma de preconceito, sem apologias ilegais e ofensas religiosas. O decreto causou grande controvérsia entre os grafiteiros da cidade e de fora dela12.
Observamos, no processo de artificação do grafite e de sua recente utilização como mecanismo de propaganda do poder público, a convergência de interesses, gramáticas e símbolos religiosos com os que se apresentam como seculares. Em entrevista com o Bboy Rafael, grafiteiro evangélico ligado à Igreja Bola de Neve, foi destacada a sua participação e de outros grafiteiros religiosos em projetos da prefeitura. Ele mesmo foi convidado a fazer painéis de grande proporção encomendados pelos gestores municipais em eventos de apresentação da cidade. Então a pintura feita sob encomenda tinha como objetivo destacar o Rio, o “espírito carioca”, suas paisagens naturais (entre o mar e a montanha) e algumas construções típicas da cidade como os Arcos da Lapa. Nos projetos do Instituto Eixo Rio13 atuaram artistas evangélicos que fizeram e fazem projetos sociais informados pela noção de que a arte recupera e promove cidadania, prestigiando grandes ícones de uma mensagem de amor e pacifismo14 tal como o próprio Profeta Gentileza. O governo do estado do Rio de Janeiro, afinado com essas ideias em um contexto no qual a cidade ganhou grande projeção internacional, financiou projetos sociais que usam o grafite como ferramenta de cidadania e de reprodução financeira de jovens de favelas cariocas atendidas pelo programa, assim como de populações vulneráveis em outros países15. Os jovens grafiteiros evangélicos, associados ou não com o poder público, fazem intervenções que se não conformam exatamente uma evangelização através da arte, posto que não estão reproduzindo textos bíblicos, usam o grafite para anunciar um modo de vida possível na cidade. Uma aposta em um projeto de vida comum baseada no amor, na felicidade (como no Angatu de Rafael Hiran, apresentado Figura 13), na atitude vigilante e esperta (como nos olhos do grafiteiro evangélico Marcus). E nesse projeto de cidade vimos atuar às vezes conjuntamente, às vezes de modo concorrente, gestores públicos, grafiteiros e religiosos cristãos.

Figure 13. Rafael Hiran. Angatu (2014). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.

Figure 14. Bala Machine and Killyacking. Gospel mural made during Metting of Favela in Duque de Caxias, Rio de Janeiro (2014). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.A paisagem carioca sempre foi objeto de produção e apresentação do país e, posteriormente, da cidade para o mundo. Isso tem início com as fotografias datadas da época do Império no intuito de produzir uma representação específica da cidade e de seus moradores (Turazzi, 2006; Schwarcz, 2014; entre outros). Naquele período, sobretudo no Segundo Reinado, Dom Pedro II tinha como intenção
implementar um projeto nacional romântico, muito pautado em recursos e material visual: primeiro, por meio de grandes telas criadas pela Academia Imperial de Belas Artes e, depois - ou conjuntamente a partir da segunda metade do XIX -, pelo incentivo e disseminação da fotografia (Schwarcz, 2014, p. 396).
As autoras discutem que as paisagens naturais além de agradarem o gosto dos governantes e dos nacionais que acessavam a beleza das imagens produzidas passam a conformar uma “essência” do seu povo: forte, vasto, harmônico, belo. A paisagem destacada, enquadrada e, nesse sentido, produzida, passa a integrar a representação daquele povo. A natureza, selvagem e também humana, ganha contornos de construção orientada visto que “traços de identidade - cimento para os discursos de nacionalidade - é sempre uma construção social e política” (Schwarcz, 2014, p. 395).
No contexto atual, no qual a cidade do Rio de Janeiro foi sede de grandes eventos internacionais como os Jogos Pan-Americanos (2007), V Jogos Mundiais Militares do CISM (2011), a Copa das Confederações (2013), a Jornada Mundial da Juventude (2013), a Copa do Mundo de Futebol (2014) e das Olimpíadas (2016)16, novamente a formação de paisagens vem sendo um importante recurso público para a apresentação da cidade, para a propagação do jeito regulado de ser carioca, da identidade do morador da cidade e, até, da identidade nacional (dado o lugar que o Rio de Janeiro tem na formação da representação do Brasil no próprio país e no exterior). A despeito da variedade de referências e estéticas que estão presentes na arte de rua na cidade hoje e da variedade de perfis de artistas que as performam, a despeito mesmo de vários deles se apresentarem como inconformistas, para usar os termos de Becker (1977) sobre um dos tipos sociais que integram o mundo social das artes, o processo de artificação, de legitimação do grafite e das intervenções urbanas como arte a ocuparem galerias no Brasil e no mundo viabilizou intercâmbios e usos antes insondáveis pelo estado e pela religião em seus projetos de poder e de transformação social e espiritual de cidadãos cariocas e do mundo. Nesse sentido, o grafite gravita entre uma prática social expressiva de uma “cultura popular” nos termos de Stuart Hall, pois se inspira e reflete “experiências, prazeres, memórias e tradições do povo. Ela tem ligações com as esperanças e aspirações locais, tragédias e cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas comuns” (Hall, 2003, p. 340) e uma arte que visa a transformação de indivíduos e sociedades (Gell, 2009).

Figure 1. Graffiti in Rio encouraging to Love, by artist Zoup. Project Creator “Lovefication” (2015).
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 2. Anonymous graffiti provoking a reflection on attitudes of love in daily life. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 3. Mural made by Coletivo Nata at a school in Lagoa, Rio de Janeiro (2014). Photo Credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 4. Meton Joffily, Rat, Graffiti, Rio de Janeiro, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Fotos: Christina Vital da Cunha.
Figure 5. Unknown artist. Christ the Redeemer, threatened by the mayor of Rio de Janeiro Eduardo Paes (left), and State governor Sérgio Cabral (right). Stencil, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha (2014).
Figure 6. The word love written in many different languages in pink and red. Anonymous artist (2015). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 7. Pezão. Inviting everyone to love one another (“Ame o próximo”), Graffiti, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 8. Graffiti cute by Wark (2014-2015). Photo credit: Christina Vital da Cunha
Foto: Christina Vital da Cunha
Figure 9. Ment and Bigo. Portrait of a girl made of positive words like peace, love, truth, confidence, Graffiti, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 10. Denne. Tribute to Rio’s most famous street poet, Profeta Gentileza. Graffiti, 2014. Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 11. Denne. Hand with a heart (2015). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 12. Preas. Colorful heart (2014). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 13. Rafael Hiran. Angatu (2014). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.
Figure 14. Bala Machine and Killyacking. Gospel mural made during Metting of Favela in Duque de Caxias, Rio de Janeiro (2014). Photo credit: Christina Vital da Cunha.
Foto: Christina Vital da Cunha.