Resumo: Este artigo centra-se na análise preliminar de um conjunto de letras musicais de António Variações (1983a, 1983b, 1984) que consideramos serem representativas das identidades múltiplas e plurais que trespassam a contemporaneidade portuguesa desde os anos 1980 até a atualidade. Esta abordagem da cultura portuguesa contemporânea focada em António Variações assume um sentido dúplice: o das palavras de Fernando Pessoa, quando apontou a importância de ser “plural como o universo”; bem como no sentido de que cada ator social pode corresponder a múltiplas identidades sociais (sendo, ao mesmo tempo, por exemplo, português, barbeiro, católico, bracarense, músico e artista de variedades). Aqui, e com António Variações, analisaremos a identidade cultural como um processo (como uma história e como uma representação) plural, antinómico e recursivo. Este exercício situa-se na necessidade de um renovado entendimento epistemológico (Guerra, 2015b; Silva e Guerra, 2015; Guerra e Silva, 2014; Guerra e Januário, 2016) acerca do campo das artes, enquanto produtor de conhecimento, ao representar de forma própria e autónoma a realidade social, interferindo nesta, e ao condicionar e gerar análises e interpretações no seio do conhecimento instituído.
Palavras-chave: António VariaçõesAntónio Variações,anos 1980anos 1980,identidades culturaisidentidades culturais,local-globallocal-global,tradição-modernidadetradição-modernidade.
Abstract: This article is focused on the preliminary analysis of a set of music lyrics by António Variações [Anthony Variations] (1983a, 1983b, 1984), which we consider representative of the multiple and plural identities that mark Portuguese cultural contemporaneity from the 1980s on. Approaching this musician has a double meaning: the way in which he represents the words of Fernando Pessoa when he pointed the importance of being “plural like the universe”; as well as the way in which each social actor can represent different social identities (to be at once Portuguese, a barber, catholic, from Braga, a musician and a variety artist). With this complex figure, it becomes important to analyze the cultural identity as a process (as a history and representation) that is plural, antynomous, recursive. This exercise is based on the need for a renovated epistemological understanding (Guerra, 2015b; Silva and Guerra, 2015; Guerra and Silva, 2014; Guerra and Januário, 2016) about the field of the arts as a producer of knowledge by representing the social reality in a proper and autonomous form, interfering in it and conditioning the analysis by generating interpretations of the instituted knowledge.
Keywords: António Variações, 1980s, cultural identities, local-global, tradiction-modernity.
Articles
António e as Variações identitárias da cultura portuguesa contemporânea
Antonio and the identitary Variations of Portuguese contemporary culture
Recepção: 26 Julho 2017
Aprovação: 22 Setembro 2017
Este artigo centra-se na abordagem da cultura contemporânea portuguesa tomando como referente (e signo) António Variações - numa perspetiva simultaneamente explicativa e compreensiva, e diacrónica e sincrónica dos processos que consubstanciam as identidades culturais portuguesas das quatro últimas décadas. Historicamente, podemos situar Variações e a sua obra musical dentro do período da configuração do campo do pop rock português, no dealbar dos anos 1980, sob o epítome do boom do rock português. Na linha do que defendeu Fernando Magalhães (2003), assinalamos três ciclos de produção e divulgação musical distintos naquele boom: um ciclo de explosão comercial e mediática e a que ficaram ligados os UHF3, os Táxi4, os GNR5 e Rui Veloso6, entre outros; um ciclo de apogeu comercial ligado aos one-hit-wonders, associado ao Grupo de Baile7 e aos Roquivários8 por exemplo; e um terceiro ciclo onde “se despontam as sementes para o futuro” (Magalhães, 2003), de re-centramento da produção musical em torno de novas modalidades estilísticas onde pontuam os Heróis do Mar9, os Sétima Legião10 e António Variações, entre outros (Guerra, 2010).
Localizada temporalmente, efetiva-se como imperiosa a tarefa de situar António no universo das representações subjacente ao campo artístico musical português - como e onde se situa neste âmbito António Variações? “Música situada algures entre Braga e Nova Iorque”. A definição é do próprio António Variações (Gonzaga, 2006) e serve de mote para a transição da música popular portuguesa para o universo pop rock que começa a consolidar-se a partir de 1980 (Lisboa, 2002; Raposo e Futre, 2013). António Variações marcou uma diferença musical, estética e social numa transição para a (pós)modernidade portuguesa.
Como o próprio salientou:
Venho de uma altura em que me chamavam todos os nomes, as pessoas abriam alas para me verem passar e, ou achavam piada, ou massacravam-me com comentários. Sentia-me perfeitamente só, ao ponto de não ter amigos porque se recusavam a estar ao pé de mim. No entanto, nunca abdiquei de ser quem sou e só comecei a ser recompensado por essa atitude quando, há sete anos comecei a cantar (António Variações in Gonzaga, 2006, p. 135).
Já Manuela Gonzaga, autora da única biografia disponível, adianta:
Meio pequeno, provinciano, deslumbrado. Como entender este ser extraordinário que desce a Avenida da Liberdade com um chapéu colonial branco, a barba em bico, o queixo bem erguido, e um papagaio de madeira em cores berrantes, empoleirado nos ombros? Lisboa ainda é demasiado periférica na primeira movida dos anos 80. Aqui, Ana Salazar é ‘aquela maluca que faz roupa e sapatos para as mulheres ficarem feias’ e, de forma geral, e por puro atavismo, o diferente assusta, irrita, perturba, mexe com emoções ao nível mais primário (Gonzaga, 2006, p. 223).
Neste contexto, Variações surge como um dos nomes mais importantes na história da música portuguesa pela condição e discurso identitários presentes na sua obra e vida, sempre numa lógica recursiva entre passado e futuro, entre tradição e modernidade, entre local e global, fazendo jus à expressão pessoana: “Sê plural como o universo”11. Podemos, inclusivamente, referir, apoiando-nos em Calinescu (1999), que Variações é um compêndio das cinco faces da modernidade: romantismo, vanguarda, decadência, kitsch e pós-moderno. Sintomático deste cruzamento, foi a procura de misturas, atestada na própria escolha do nome - como o próprio o expôs:
Variações é uma palavra extremamente elástica, portuguesa, e que não me deixa limitado a uma área musical. É o nome adequado para fugir à rotina, é um nome que não me escraviza e não me deixa comprometido com rótulos, o que para mim é excelente (in Abreu, 2009, p. 66).
Ao situarmos António Variações e sua obra no âmago da cultura portuguesa contemporânea, estamos a considerar primeiramente a importância da análise sociológica dos conteúdos culturais e das formas de criação artística como portadores de um discurso, uma narrativa, uma representação e uma prospetiva acerca da sociedade portuguesa contemporânea (Guerra e Silva, 2014; Guerra e Januário, 2016; Lima e Guerra, 2016). Está aqui em causa o ímpeto de considerar as obras muito para além de uma perspetiva de causalidade, ou seja, como mera consequência, direta ou indireta, de interações entre práticas artísticas e estruturas. Isto é, pretendemos quebrar a redução da obra e da criação cultural à condição de efeito e compreendê-la, antes, como causa, efeito, condição, consequência (Bourdieu, 1996; Becker, 1982; Crane, 1992; Frith, 1996). É este o desafio que este artigo pretende agarrar: analisar a obra como uma causa, uma causa que cria uma realidade e efeitos, diretos ou indiretos, oblíquos, sobre toda a sociedade; cada obra entendida, de igual modo, como um facto singular, com uma relação densa com a realidade. Avocamos, assim, que a criação artística é: primeiro, um conhecimento do social; segundo, uma representação do social; terceiro, uma interpretação do social; quarto, uma valoração do social; quinto, uma imaginação do social. Trata-se, portanto, da defesa de uma sociologia da criação capaz de estabelecer um duplo diálogo, primeiro em profundidade, para dentro dos conteúdos da obra cultural, e, segundo, em extensão, através de uma multiplicação dos ângulos de aproximação à obra cultural (Santos, 1988; Auerbach, 1946; Panofsky, 1951; Calvino, 1998; Said, 1979; Heinich, 1998; Péquignot, 2007; Fuente, 2007; Lahire, 2010; DeNora, 1995; Prior, 2011; Jauss, 1982; Hennion, 1993).
O estudo da cultura contemporânea portuguesa em torno e a partir de Variações, artista e ator social total, posiciona-se na análise que Acord e DeNora (2008) fazem de uma music in action. Quer dizer, uma intersecção entre um ideal de homem do Renascimento, de um artista total, e o desenvolvimento de espaços que permitam a possibilidade e potenciação de projetos de experimentação estética, artística e cultural (Guerra, 2016). Porém, tal posição implica o estudo das identidades sociais, temática promissora se cruzada com o domínio dos estudos culturais, dado que a qualquer obra, a qualquer criação artística se associa, uma vez em si impregnadas, as identidades sociais e culturais coletivas que caraterizam um país numa determinada época (Dubar, 2009; Hall, 2003). A criação artística inscreve-se no próprio mundo social, e, como tal, sujeita às suas determinações, mas, sendo isto particularmente relevante, também não deixa de o influenciar, através dos conhecimentos interpretações que gera sobre o mundo social. E António Variações - com as suas contradições que podemos referir como, em parte, as contradições que marcam o nosso país, isto é, os eixos passado/contemporaneidade; tradição/modernidade; unidade/diversidade; local/global; herança/cosmopolitismo; popular/vanguardista; entre outros (Barreto, 2000, 2005; Pepe, 2014; Barreiros, 2011) - assume-se como um paradigmático caso de estudo.

Figure 1. António Variações in photo session in 1983.
Fonte: Zé F. Pinheiro.Falar de António Variações é, pois, falar sempre de muito mais do que apenas das suas canções, já que encontramos na sua obra e na forma como performatiza a sua identidade (pessoal e coletiva) algo que nos ajuda a ler Portugal na segunda metade do século XX, desde a música e poesia à cultura, à sociedade e ao Estado (Melo, 1998; Melo e Pinharanda, 1986; Dias, 2016). Assim, a obra do compositor e cantor e aquilo que nela é sintoma de fenómenos mais vastos - um deles, e dos mais importantes, a forma como a cultura portuguesa posterior à Revolução de 1974 tenta (des)sintonizar-se com o mundo exterior e, em particular, com a cultura e civilização saída dos anos 1960, sobretudo aquela latamente designável como pop -podem encadear-se da seguinte forma: (1) a dicotomia modernidade/tradição; (2) história coletiva/história individual; (3) a corporalidade e o queer. É este o escopo teórico-metodológico deste artigo, o âmago da sua ambição epistemológica e o guião do percurso das seguintes seções.
António Variações assume-se como incontornável caso de estudo no âmbito da música popular portuguesa e da cultura portuguesa contemporânea, não só devido à marca que nos deixou, em tão curto espaço de tempo, como também ao seu impacto, legível nas influências de estilo expressas, nomeadamente em várias homenagens a si prestadas, entre as quais se destaca o “disco póstumo” (Humanos, 2004) realizado por músicos portugueses a partir de maquetes de canções em cassetes, e a biografia publicada por Manuela Gonzaga em 200613. A presença de António Variações permanece na cultura portuguesa e na imaginação dos portugueses, através da sua música, as letras das suas canções, a sua imagem e estilo, os vídeo-clips das músicas. Por seu turno, incontornável e relevante é o que Variações representa na cena portuguesa dos anos 1980, sintetizado na frase do próprio artista já enunciada, na qual situa esteticamente a sua música: “Uma coisa entre Braga e Nova Iorque”. Uma demarcação na qual se vislumbra o paradoxo, o disruptivo, o desequilíbrio e a (re)construção identitária, algures entre as culturas tradicional e a cosmopolita, uma versão (pós)moderna do popular, em Portugal. A criação artística de Variações entrelaça-se no seu próprio percurso de vida, o qual, apesar de acompanhar a regularidade da época - da aldeia para a cidade (capital), da Guerra Colonial à emigração (Londres, Amesterdão, Nova Iorque, etc.) - se assume como uma epifania de uma identidade recodificada, em permanente - ainda que célere e fugaz - reconstrução (Hall, 2003). O ecletismo e transitoriedade estilística da sua música, a par da encenação imagética enquanto representação da sua identidade - queer, algures entre o kitsch e o camp - constituem-se como elementos fundamentais daquela demarcação e de diálogo entre tradição e modernidade.
Podemos afirmar que se trata de um espelho das contradições sentidas pelo autor, consequência das imensas mudanças sentidas em Portugal dos anos 1980. De um Portugal que saiu de mais de quatro décadas de ditadura e que enfrenta, num curto espaço temporal, todas as mudanças que em outros países europeus duraram décadas (Barreto, 2000, 2005). No fundo, um esboroamento de um Portugal rural, tradicionalista, religioso, e que parte para as grandes cidades, não deixando, contudo, de levar consigo uma bagagem cultural tradicional, em que o peso da religião e, acima de tudo, de uma religiosidade popular continua a ser extremamente importante, e cujo epicentro foi e é a figura da Nossa Senhora de Fátima (Dix, 2010).
Já fiz exame da quarta classe,/ já fiz a comunhão solene/pra pensar na vida já tenho idade/mãe quero ir ganhar dinheiro/ pai quero ir para a cidade./ Mala nova na mão/feita de madeira e papelão/dentro um fato de cotim/que era do meu irmão Delfim/ uns sapatos de lona/ e o diploma/das minhas habilitações./ Um terço e um santinho/e o meu livrinho/ de todas as orações./ E assim saí daí/de olhar para trás/ pensamento em frente/ em frente não havia mais nada não/ Em frente não havia mais nada não,/ do que um comboio a cidade/um navio e um avião./ Camurcina de riscado/ um guarda-pó a cédula/ e uma certidão/e para o Sr. Coelho/ que é merceeiro/vai uma carta/ de recomendação/ umas ceroulas de flanela/para no frio me aquecer/ e uma venerinha/ de Santa Teresinha/ que está benzidina/ para dos males/me defender (António Variações, Olhei para Trás, 1984).
Tudo isto nos remete para todo o conjunto de trabalhos que apontam caminho para a constituição de cenas culturais no presente (Pais, 2003; Pais e Blass, 2004; Bennett, 2011; Guerra, 2010, 2015a; Feixa, 2014), revelando os processos que estão na sua base, assim como os seus territórios, protagonistas, atores e redes de relações. Neste âmbito, destaca-se os três paradigmas principais que relacionam música e sociedade: o da ressonância estrutural, o de articulação e interpelação e o da narrativa (Reale, 2017). O paradigma da ressonância estrutural remonta às premissas da escola subculturalista inglesa (Hebdige, 1979; Hall e Jefferson, 1977) e defende que “certos estilos musicais conectam com atores sociais específicos através de uma espécie de ‘ressonância estrutural’ entre posição social por um lado e de expressão musical por outro” (Spataro, 2012, p. 3). Ou seja, a música evidencia identidades já construídas. Os paradigmas da articulação e da interpelação, no âmbito dos quais emergem diversos trabalhos, nomeadamente o de Frith, que advoga que o problema não deverá ser o facto de como uma música pode refletir as pessoas, mas sim como a mesma se produz, cria e constrói identidade social e coletiva (Guerra, 2014; Clarke et al., 2015). Neste esforço de perspetivas, de reconstruções identitárias e sua conjugação com a música, Frith e Goodwin (2003) mencionam que embora a música não tenha um sentido intrínseco, também não é viável pensar que este sentido derive apenas do ouvinte, sendo introduzida a narrativa - elemento central do terceiro paradigma. Preconiza-se, assim, que a narrativa confere sentido às escolhas dos sujeitos, pois, deste modo, outorga sentidos às ações. Este mesmo posicionamento vai ao encontro da perspetiva de DeNora (2000), a qual advoga que as pessoas diariamente se apropriam da música, sendo esta um recurso fulcral da prática estética reflexiva de subjetivar-se a si e aos outros agentes sociais. Estudos recentes permitem entender a música como algo que as pessoas usam para se autorregularem enquanto agentes sociais, enquanto seres pensantes e ativos no dia-a-dia (DeNora, 2003, p. 173; Guerra, 2014). O próprio trabalho de Adorno (1991) lida com a questão de como a música e eventos musicais providenciam modos para pensar e refletir acerca de fatores sociais. Ao considerarmos a importância da música e da dança como poderosas formas de expressão das emoções e das ideias individuais, estamos também a associá-las a formas de expressão de experiências partilhadas por uma comunidade e de coesão social, integrando-as em grupos e promovendo a cooperação. Partimos do pressuposto de que o valor destas artes é determinado pela sua função e pelo modo como preenche determinadas necessidades e cumpre funções específicas, sendo transposições dos princípios e propriedades estruturais da vida social, podendo ser uma matriz de moldagem de novas subjetividades (DeNora, 2003). É nesta matriz teórica que radicamos a nossa perspetiva acerca da constituição da cena pop portuguesa de António Variações, permitindo que venhamos a observar nomeadamente “a centralidade da palavra, como forma de expressão artística e ética, e da crítica social, como dimensão de criação, comunicação e posicionamento público” (Silva e Guerra, 2015, p. 25). E nos permite igualmente
convoca[r] as duas maneiras de concetualizar linguisticamente os ‘produtos verbais’: como textos, estruturas de significação que podemos e devemos interpretar como totalidades próprias e do ponto de vista da sua coerência interna; e como discursos, as estruturas de significação em ligação com as condições específicas, linguísticas e sociais, da sua enunciação e interpretação ( Silva e Guerra, 2015, p. 25-26).
Importa, neste contexto, referir que é na década de 1980 que a cultura lusa encontra mediatismo com o boom do rock português. Contudo, é apenas a partir da década de 1990, já após a entrada na União Europeia, que a cultura pop portuguesa se torna mais visível pela abertura de Portugal aos mercados globais e pela liberalização dos canais televisivos (Guerra, 2016a). Como alude Monteiro (2013, p. 174):
a reflexividade “conectada” dos anos 80 somada à existência de um vasto reportório tornado cada vez mais acessível parece inaugurar um momento em que a configuração da cultura mediática lusa tende a ser de modo mais plural, aberto a fusões e hibridades diversas [...].
A relação entre o contexto social, desafiante como ele já é, e a obra de arte, autónoma e situada como está, não pode ser subsumida nas (complexas) cadeias de causalidade em jogo. Têm também de ser consideradas como processos sociais independentes que dialogam um como o outro. As especificidades do contexto - aqui, o facto de que se trata de uma enorme “revolução”, tanto em termos político-económicos como morais e simbólicos - fazem iluminar certas caraterísticas e resultados desse diálogo, que começou antes dos anos 1980 e irá continuar após o seu término. O que se pretende é reforçar a necessidade de um renovado entendimento epistemológico (Guerra, 2015b; Silva e Guerra, 2015; Guerra e Silva, 2014; Guerra e Januário, 2016; George, 2013) sobre o campo das artes, enquanto produtor de conhecimento ao representar de forma própria e autónoma a realidade social, interferindo nesta, e ao condicionar e gerar análises e interpretações no seio do conhecimento instituído. Assim, procura-se demonstrar como as práticas e dinâmicas sociais encontram recursos na música, confirmando a importância das representações coletivas em relação à ação coletiva: neste quadro, a música é uma atividade social através da qual novas formas de identidades e práticas sociais se afloram (Eyerman e McCormick, 2006; Albiez, 2003; Guerra, 2015b; Frith, 1997).
Perdi a memória/ Turvou-se-me o pensamento/ Não posso contar a minha história/ Perdi a razão do tempo./ Quebrou-se o espelho/Não sei como sou/ Não sei se sou novo ou velho/ Não sei onde estou./ No meu quadro eu só tenho/ Esta visão/ Tantos olhos apontados/ À minha mão./ Não tem sinal nem posição/ Do bem ou mal não tem cartão/ Não trago marcas de solidão/ Nem gargalhadas de emoção./ Perdi a lembrança/ Da mente risquei/ A história que não me interessa/ A história que eu não serei./ Limpei a cabeça/ De tudo o que ela não quer/ E ao corpo fiz a promessa/ Só serve para o que eu quiser./ Será vossa imagem/ Que me convém/Ao sair da desfocagem/ Não vi ninguém./ Não quero ver o que enganei/ Nem quero ter o que já dei/ Não quero ver o que enganei/ Nem quero ter o que já dei (António Variações, Perdi a Memória, 1984).
Existe o sentimento que se estava a partir para uma época cujo destino era difícil de perceber. Como diria Bauman (2007), estava-se numa época de transição, em que existia um impasse em que não conseguirmos apreender o futuro, nomeadamente cujos eixos sofreriam mudanças irremediáveis, o que não deixa de ter consequências quer na perceção da história, quer coletiva quer individual, quer ao nível identitário do self, de uma reconstrução identitária mediada entre um cosmopolitismo e a permanência de uma cultura popular e tradicional. Ou pura e simplesmente uma crise identitária (Dubar, 2009). Este posicionamento identitário entre dois mundos, por assim dizer, pode ser visto na sua criação artística e, especialmente nas suas letras. Um ator que canta a nova liberdade sexual descoberta e reza ao seu anjinho da guarda; que procura introduzir novas sonoridades musicais em Portugal, mas que se pauta por uma paixão imorredoura por Amália Rodrigues. Regressando a Calinescu (1999): romantismo, vanguarda, decadência, kitsch e pós-moderno.
Fiz dos teus cabelos/ A minha bandeira/ Fiz do teu corpo/ O meu estandarte/ Fiz da tua alma/ A minha fogueira/ E fiz do teu perfil/ As formas de arte/ Dei o teu nome à minha terra/ Dei o teu nome à minha arte/ A tua vida à Primavera/A tua voz à eternidade/ Todos nós/Temos Amália na voz/ E temos na sua voz/ A voz de todos nós/ Fiz das tuas lágrimas/ A despedida/ Fiz do teu braços/ A minha dança/ Dei o teu sentido/ À minha vida/ O grito dei-o ao nascer/ Duma criança/ As tuas mãos ao meu destino/ O teu olhar ao horizonte/ Dei o teu canto à marcha do meu hino/ E dei a tua voz à minha fonte/ Todos nós/ Temos Amália na voz/ E temos na sua voz/ A voz de todos nós (António Variações, Voz - Amália - Nós, 1983a).
Eu tenho um anjo/ Anjo da guarda/ Que me protege/ De noite e de dia/ Eu não o vejo/ Eu não o oiço/Mas sinto sempre/A sua companhia./ Eu tenho um guarda/ Que é um anjo/ Que me protege/ De noite e de dia/ A toda a hora/ E em todo lado/ Posso contar/ Com a sua vigia/ Não usa arma/ Não usa a força/ Usa uma luz/ Com que ilumina/ A minha vida/ Ele não/ Não usa arma/ Ele não/ Não usa a força/ Usa uma luz/ Com que ilumina/ A minha vida (António Variações, Anjinho da Guarda, 1983a).
Contudo, falar de identidade não é falar do passado:
Mesmo quando ela se apresenta sob a forma de memória, ‘herança’ ou património, falar sobre ela é falar a partir do presente e sobre o presente - sobre o que somos e o que valemos no presente, como nos formámos, nos unimos e nos distinguimos na longa duração, outrora e agora (Silva, 2016, p. 8).
A identidade expressa na obra de António Variações é, assim, uma das dimensões constitutivas da mudança social, cultural, económica e política em curso nos anos 1980. As canções de António têm uma natureza própria, irredutível à simples condição de efeito da ordem social portuguesa nos anos 1980; estas canções contextualizam histórica e socialmente a sociedade portuguesa, ajudam a defini-la e a interpretá-la.
Vou perguntar/ Ao mais vidente/ Se o meu futuro/ Será sorridente/ Vou consultar/ Quem tem visão/Se ainda vale a pena/ Fazer tenção/ Quem é capaz/ De me dizer/Se a manhã traz/ A minha força de crer/ Quem é capaz/ De adivinhar/ Se a minha fonte/ Vai correr ou secar/ Quem é capaz/ De aconselhar/ se hei-de estar aqui ou/ Trocar de lugar/ Quem é capaz/ De assegurar/ Se no futuro/ Posso respirar/ Quem é capaz/ De me indicar/ Se eu hei-de andar/ Depressa ou devagar/ Quem é capaz/ De me tirar/ Desta incerteza/ Se hei-de rir ou chorar/ Quem é capaz/ De me ver na mão/Na linha-vida/Qual a duração/ Quem é capaz/ De me informar/ Se a linha é recta/ Ou se vai entortar/ Quem é capaz/ De aconselhar/ Se não for certa/ Se a hei-de cortar (António Variações, Linha-Vida, 1983a).
Os anos 80 do século XX assinalaram mudanças significativas do ponto de vista das espacialidades e temporalidades das cidades em todo o mundo - incluindo Portugal - sob o epíteto da globalização económica, cultural e artística. No fenómeno da globalização cultural operaram duas tendências contraditórias: por um lado, os conglomerados mediáticos internacionais expandiram a sua influência e controlo sobre certos tipos de cultura global (Lipovetsky e Serroy, 2014). Por outro lado, emergiu a crescente importância das regiões como produtoras e mercados para os seus próprios produtos facultando apoio a um modelo de rede da globalização cultural (Guerra e Quintela, 2016). Deste modo, as regiões patentearam sub e micro-redes de conexões artísticas e culturais mais densas dentro da rede global (Crane, 2002). Como sustenta Pietersen (1995), a globalização significou, em termos estruturais, um aumento dos “meios disponíveis de organização” (local, nacional, regional, internacional...). Cada região passou a possuir a sua própria dinâmica, criando as audiências dentro e fora da sua área (incluindo os migrantes a viver agora em outras regiões) (Crane, 2002, p. 7). Concomitantemente, sob o ímpeto da globalização, a música popular passou a estar menos identificada com a cultura dominante americana, começando a apoiar-se em numerosas culturas étnicas, americanas ou outras. Como verbaliza Garofalo: “Existe uma forte interação entre a pop internacional e a música indígena” (inCrane, 2002, p. 7). Assim podemos ler os textos de António Variações em Portugal: locais, globais e translocais. A homogeneidade cultural enquanto garante de identidade e valores específicos tornou-se cada vez mais insustentável.
Regev (2013) argumenta que a música rock contém uma estética que constitui uma componente cultural global com a qual estilos de música popular local e nacional contemporânea são construídas. Propõe uma “tipologia de usos e apropriações” do rock por músicos e audiências de diferentes países: originais (repetir as versões originais); imitando (pelo uso de letras no idioma local); hibridizando (adaptando e misturando com a música tradicional). Todos os três tipos podem coexistir no mesmo país e na mesma cidade (Crane, 2002, p. 12). Ora, a obra de António Variações plasma e recria - com todo o vigor - estas tendências, lugares, contextos e representações compósitas de hibridismos (e antagonismos) estéticos, culturais, artísticos, sociais e espaciais.
Diz-me que solidão é essa/ Que te põe a falar sozinho/ Diz-me que conversa/ Estás a ter contigo/ Diz-me que desprezo é esse/ Que não olhas para quem quer que seja/ Ou pensas que não existes/ Ninguém que te veja/ Que viagem é essa/ Que te diriges em todos os sentidos/ Andas em busca dos sonhos perdidos/ Lá vai o maluco/ Lá vai o demente/ Lá vai ele a passar/ Assim te chama/ Toda essa gente/ Mas tu estás sempre ausente/ Diz-me que loucura é essa/ Que te veste de fantasia/ Diz-me que te liberta/ Que vida vazia/ Diz-me que distância é essa/ Que levas no teu olhar/ Que ânsia e que pressa/ Que queres alcançar/ Que viagem é essa/ Que te diriges em todos os sentidos/ Andas em busca dos sonhos perdidos (António Variações, Sempre Ausente, 1983a).
Esta época, com os seus diferentes ritmos e ciclos, pode associar-se ao despoletar em Portugal do pós-modernismo limitado às grandes cidades, nomeadamente Lisboa. Nas principais asserções de Featherstone (1991) e Jameson (1991) acerca deste contexto vivencial encontramos paralelismos com a sociedade portuguesa desta época e com António Variações. Assim e em primeiro lugar, a assunção de que a cultura do consumo está na origem da produção capitalista que conduziu à acumulação da cultura material sob a forma de bens de consumo parece evidente no campo do chamado rock português e mercados correlacionados; assim a vivacidade das editoras discográficas, da edição de jornais musicais, da proliferação de espaços de fruição musical, de modas e indumentárias vanguardistas parece despoletar no início dos anos oitenta, do século XX, em Portugal. Tudo isto resultou no acréscimo de atividades de lazer e de consumo nas sociedades portuguesa, nomeadamente juvenil e metropolitana. Em segundo lugar, e numa perspetiva estritamente sociológica, a satisfação que se retira dos bens relaciona-se com o acesso socialmente estruturado num jogo de soma-zero em que a satisfação e o estatuto dependem da apresentação e da sustentação de diferenças. O enfoque, neste caso, é nos modos mediante os quais as pessoas usam os bens para criar vínculos ou distinções sociais. A este respeito é paradigmático o separador do programa Som da Frente de António Sérgio que a partir de 1982 repetia uma frase que se tornou célebre e identificadora de toda uma geração: “pelo direito à diferença!” (Guerra, 2010, p. 210). Em terceiro lugar, relevam os prazeres emocionais do consumo, os sonhos e os desejos que se celebram no imaginário do consumo cultural e os modos particulares de consumo que remetem para os prazeres estéticos e a fruição corporal. Basta relembrar a este respeito todo o investimento na imagem e na estética da altura, mesmo através das célebres gabardines cinzentas na onda de Manchester que invadiram a noite também ela alternativa de Lisboa e do Porto. Este padrão vivencial e cultural foi penetrando no início dos anos 1980 em Portugal e passou a ser celebrizado associado a manifestações musicais do novo rock português (como se apelidava nas rádios, nos jornais e nos cartazes), em que a música era uma verdadeira banda sonora do eu, vindo a reforçar-se a partir de 1984 até ao final da década.
Vou viver/ até quando eu não sei/ que me importa o que serei/ quero é viver/ Amanhã, espero sempre um amanhã/ e acredito que será/ mais um prazer/ e a vida é sempre uma curiosidade/ que me desperta com a idade/ interessa-me o que está para vir/ a vida em mim é sempre uma certeza/ que nasce da minha riqueza/ do meu prazer em descobrir/ encontrar, renovar, vou fugir ou repetir/ vou viver,/ até quando, eu não sei/ que me importa o que serei/ quero é viver/ amanhã, espero sempre um amanhã/ e acredito que será mais um prazer/ a vida é sempre uma curiosidade/ que me desperta com idade/ interessa-me o que está para vir/ a vida, em mim é sempre uma certeza/ que nasce da minha riqueza/ do meu prazer em descobrir/ encontrar, renovar vou fugir ou repetir (Humanos, Quero é viver, 2004).
No espaço urbano estas manifestações adensavam-se, basta lembrar o outlet de roupa retro 1920/1930 de Manuel Reis, na Travessa da Queimada no Bairro Alto em Lisboa, que funcionou como polo de divulgação do revivalismo ska, no espírito dos anos cinquenta, com padrões pretos e brancos e os quadradinhos, gravatas finas, cabedais negros, cabelos rapados, sapatos de bico e sola de borracha hiper-compensada e saltos agulha. Tratava-se de um grupo restrito de pessoas que se encontravam na Brasileira, na Leitaria do Chiado, no salão de chá de Santa Justa: “a boutique de Ana Salazar na Rua do Carmo é paragem obrigatória. Além da Madame Bettencourt e da Dona Irene, duas casas de roupa em segunda mão onde se desencantam as novas linhas de um estilo, só A Maçã permite alguma extravagância” (Melo e Câncio, 2002, p. 329). Pouco a pouco vai sendo estabelecido um roteiro da boémia lisboeta a par com a vivacidade musical então vivida. E, claro, Variações era presença obrigatória nesse circuito.
A abertura do Trumps em 1981 é fundamental sendo o primeiro lugar de noite a afirmar-se como palco de aglomeração de novas estéticas, músicas e pessoas: “a clientela recruta-se entre os irredutíveis da superfície, os guerrilheiros do glamour, os activistas de um novo mundo gay, “as pessoas da noite”. Uma espécie de la vie en rose, mas em negro e branco” (Melo e Câncio, 2002, p. 333). António Variações estava lá. Mais tarde, o Frágil, o Juke Box, o Café Concerto e duas ou três tascas fazem o roteiro de uma nova boémia lisboeta centrada em torno do Bairro Alto e fornecendo um itinerário alternativo e moderno à noite decadente. O Bairro Alto espacializou e materializou uma movida de moda, música, estética, consumos e noite da cidade de Lisboa. O Frágil - discoteca - assumiu nesta movida um papel de guia, de farol, existindo um reconhecimento da importância do Frágil, nos anos 80, enquanto espaço de cosmopolitismo e de vanguarda, onde se cruzavam artistas de diversas áreas. Era um espaço onde conviviam melómanos, artistas, poetas, cineastas, músicos, a boémia sofisticada da época ou uma espécie de “vanguarda”. A importância do Frágil levou ao surgimento de outros espaços que funcionam como lugares de arranque na noite, de que eram exemplo, os Três Pastorinhos, o Captain Kirk, o Café Concerto, a Ocarina ou a Juke Box.
Não consigo dominar/ Este estado de ansiedade/ A pressa de chegar/ Para não chegar tarde/ Não sei de que é que eu fujo/ Será desta solidão/ Mas porque é que eu recuso/ Quem quer dar-me a mão/ Vou continuar a procurar a quem eu me quero dar/ Porque até aqui eu só/ Quero quem/ Quem eu nunca vi/ Porque eu só quero quem/ Quem não conheci/ Porque eu só quero quem/ Quem eu nunca vi/ Porque eu só quero quem/ Quem não conheci/ Porque eu só quero quem/ Quem eu nunca vi/ Esta insatisfação/ Não consigo compreender/ Sempre esta sensação/ Que estou a perder/ Tenho pressa de sair/ Quero sentir ao chegar/ Vontade de partir/ Para outro lugar/ Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar (AntónioVariações, Estou Além, 1982).
O Bairro Alto e o Frágil interligaram-se com a tendência de evolução da vida social e cultural: a esteticização. Assim, foram os palcos de uma estetização sem precedentes à escala portuguesa concretizando-se na ênfase à moda e à apresentação corporal, na revalorização da vida mundana e boémia, no boom das artes plásticas de cruzamento e de mistura, na mercantilização, mediatização e mundanização generalizadas da criação artística, no culto do corpo, na aura do visual, da imagem e do look (Melo, 2002b, p. 63). Assim, a moda prefigura-se como uma: “parte intrínseca na performance da vida urbana” (Gilbert, 2000, p. 11). Uma outra nota distintiva da cultura da moda, nomeadamente, em contexto das cidades londrinas, é o advento das “constelações do gosto”, locais que interligam a moda com a música, a dança, os clubes. No século XX, a paisagem da moda foi mediada pela indústria do cinema, pela fotografia e pela imprensa. Por exemplo, as principais revistas americanas promoveram a cidade de Nova Iorque como o centro de uma cultura metropolitana nova e distintiva. Neste sentido, as cidades (para além de palco da moda) são consideradas como objetos de moda - sujeitos ao ciclo dos lugares e dos estilos. Na esteira da estetização, o vestuário reveste-se de um teor urbano, numa amálgama que contempla não só a high fashion, mas também os estilos de vida ditos “de rua”, próprios das subculturas.
António Variações e as pessoas que desembocavam no Bairro Alto parecem cumprir estes requisitos. Porquê? Porque se referenciam às subculturas artísticas que estiveram na origem do Dada, do avant-garde, dos movimentos surrealistas na I Guerra Mundial e nos anos 1920, que procuraram nos seus trabalhos esbater as fronteiras entre a arte e a vida quotidiana. Porque a estetização da vida quotidiana pode referir-se ao projeto de transformar a vida num trabalho de arte. Este enfoque numa vida de consumo estético e na necessidade de enraizar a vida num todo estético de contraculturas artísticas e intelectuais devem ser relacionadas com o desenvolvimento e a construção de estilos de vida distintivos que se tornou central no âmbito da cultura de consumo, patentes nas bandas, na editora, nos consumos, na sexualidade, na imprensa, nos fanzines, nas modalidades de apresentação de si, nos locais de lazer… O terceiro referencial de sentido da estetização da vida quotidiana aponta para o fluxo de signos e de imagens que saturam a construção da vida quotidiana na sociedade contemporânea. A centralidade da manipulação comercial de imagens através dos média enceta um trabalho constante de recriação de desejos através de imagens. Aqui, a utilização da imagem, por exemplo nos videoclipes e nas aparições televisivas de António é paradigmática15.
Sociologicamente parece que estamos perante um estilo de vida distinto de determinados grupos de status na sociedade contemporânea. O que implica um duplo enfoque analítico: em primeiro lugar, na dimensão cultural da economia, da simbolização e o uso de bens materiais como communicators; e em segundo lugar, na economia dos bens culturais, nos princípios de mercado de oferta e procura, acumulação de capital, competitividade e monopolização que opera na esfera dos estilos de vida e dos bens culturais.
A cidade é o epicentro das paisagens da moda de Variações. Este aspeto remete para a aceção simbólica do consumo e as relações que entretece com as práticas identitárias. A experiência do consumo (com as suas tensões e ansiedades) reveste-se de particular interesse no caso da moda e das roupas, uma vez que este tipo de bem tem imprimido o esforço e o prazer experienciados aquando da sua procura e escolha (Simmel, 2001). Assim, a moda prefigura-se como uma: “parte intrínseca na performance da vida urbana” (Gilbert, 2000, p. 11). Uma outra nota distintiva da cultura da moda, nomeadamente, em contexto das cidades londrinas, é o advento das “constelações do gosto”, locais que interligam a moda com a música, a dança, os clubes (Campos, 2016; Campos et al., 2011).
No século XX, a paisagem da moda foi mediada pela indústria do cinema, pela fotografia e pela imprensa - a Marilyn era uma diva de António Variações. Por exemplo, as principais revistas americanas promoveram a cidade de Nova Iorque como o centro de uma cultura metropolitana nova e distintiva. Neste sentido, as cidades (para além de palco da moda) são consideradas como “objetos de moda”, sujeitos ao ciclo dos lugares e dos estilos. Na esteira da estetização, o vestuário reveste-se de um teor urbano, numa amálgama que contempla não só a high fashion, mas também os estilos de vida ditos “de rua”, próprios das subculturas (Crane, 2009; Guerra e Straw, 2017). Do mesmo modo, tudo se concentrava no eixo Bairro Alto e Chiado em Lisboa. O Bairro Alto nesta época era o palco por excelência da movida lisboeta com espaços charneira (bares, restaurantes, lojas, galerias e jornais) e massa crítica formada por pessoas que circulavam de dia e de noite, artistas, jornalistas, intelectuais, músicos, cineastas, modernos, gays e políticos numa ambiência geral de hedonismo e de libertação sexual, também coincidente com a aparição dos primeiros casos de Sida (Melo e Câncio, 2002).
Muda de vida, se tu não vives satisfeito/ Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar!/ Muda de vida, não deves viver contrafeito/ Muda de vida, se a vida em ti é de outro jeito/ Ver-te sorrir, eu nunca te vi/ E a cantar, eu nunca te ouvi/ Será de ti ou pensas que tens que ser assim/ Ver-te sorrir eu nunca te vi/ E a cantar, eu nunca te ouvi/ Será de ti ou pensas que tens que ser assim/ Olha que a vida não/ Não é nem deve ser/ Como um castigo que/ Tu terás que viver/ Muda de vida se tu não vives satisfeito/ Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar/ Muda de vida, não deves viver contrafeito/ Muda de vida, se a vida em ti é de outro jeito (Humanos, Muda de Vida, 2004).
Além do tirocínio que António Variações provocou ao nível de uma nova musicalidade, é de realçar a sua influência como divulgador de uma identidade queer em Portugal17 - sobretudo de um Portugal recentemente saído de ditadura, onde os homossexuais eram vistos como doentes, a homossexualidade como uma sexualidade inútil e contranatura, e, por conseguinte, o Estado procurava removê-los do espaço público. Assim, apenas restava uma existência oculta. E é então que, em 1984, António Variações, dez anos após a revolução, interpreta a Canção do Engate, em que representa a relação física entre dois homens. Isto numa época em que os papéis de género praticamente continuam imutáveis aos que existiam no período pré-revolucionário. Esta imutabilidade dez anos depois da Revolução de Abril de 1974 não é surpreendente, já que pouco tempo após o 25 de Abril de 1974, o General Galvão de Melo18, em parte a responder ao manifesto do Movimento de Acão dos Homossexuais Revolucionários, afirmou na televisão que a revolução não tinha sido feita para homossexuais e prostitutas (Almeida, 2010, p. 99).
António Variações, devido às suas estadias em Londres e Amesterdão, e levando em conta o fechamento do país, conviveu com uma realidade diametralmente diferente daquela encontrada em Portugal. A sua Canção do Engate com a descrição do desejo sexual, além de romper com as normas de então, representavam a proclamação de uma liberdade sexual democrática, indo ao encontro com o que Warner (1999) refere como a grande contribuição queer para a modernidade na ultrapassagem do binómio sexo/amor. A música surge, assim, com uma função crucial ao nível da formação identitária dos atores, tal como ao nível comunicativo, que lhe permite expressar e (re)construir novas identidades, juntamente com as caraterísticas dinâmicas - o que nos consente encontrar uma relação direta entre estas qualidades e as caraterísticas que associamos às identidades queer (Pepe, 2013; Dibben, 2002). Tal é percetível em vários elementos das narrativas poéticas de António Variações:
Tu estás livre/E eu estou livre/ E há uma noite/ Para passar/ Porque não vamos unidos/ Porque não vamos ficar/ Na aventura dos sentidos. Tu estás só/ E eu mais só estou/ Que tu tens o meu olhar/ Tens a minha mão aberta/ À espera de se fechar/ Nessa tua mão deserta./ Vem que o amor não é o tempo/ Nem é o tempo que o faz/ Vem que o amor é o momento/Em que eu me dou e em que te dás/ Tu que buscas companhia/ E eu que busco quem quiser/ Ser o fim desta energia/ Ser um corpo de prazer/ Ser o fim de mais um dia./ Tu continuas à espera/ Do melhor que já não vem/ E a esperança foi encontrada/Antes de ti por alguém/ E eu sou melhor que nada (AntónioVariações, Canção do Engate, 1984).
Tens um globo nos pés/ Que te põe a circular/ Rodas-te de lés a lés/ Na roleta de tentar/ Rodas-te de lés a lés/ Que há sempre alguém pra enganar./ Nos teus dedos a mexer/ Pões o preço da beleza/ Que é um favor da natureza/ E tu andas-te a vender/ Graça da mãe natureza/... Devias agradecer./ Ai minha pena/ Que não te posso tocar/ai que dilema seres só regalo para vista/ ai minha pena/ que não te posso alcançar/ que pena não saberes dar/ ai que pena seres vigarista./ Pões convites no olhar/ e certezas no sorrir/ teu corpo é uma ilha/ para onde eu queria fugir/cerco, prisão, armadilha/aonde eu queria cair./ Tens um globo nos pés/fria cabeça a girar.../ que pena seres como és/ perigosa forma de ser/ que pena eu saber quem és/ gostava de me perder (AntónioVariações, ...Que pena seres vigarista, 1984).
Mergulha na minha onda/ Vais ver que te sentes bem/ Não é quente nem é fria/ É o morno que te convém/ Mergulha na minha onda/ Onda de toda a maré/ Não é cheia nem vazia/ Onda feita para o teu pé/ Mergulha/ Atira-te/ De cabeça/ Mergulha na minha onda/ Mergulha sem recear/ Vais abaixo e vens acima/ A tempo de respirar/ Balança na minha onda/ Sente o peso que ela tem/ Não é leve nem pesada/ É o peso que te convém/ Mergulha/ Atira-te/ Desliza/ Sem pensar (AntónioVariações, Onda, 1983a).
De salientar que a teoria queer, que surge em força na década de 1990, primeiro nos Estados Unidos, assenta numa ligação do conceito queer com o pós-modernismo, com a dissolução de fronteiras e definições fixas, ao defender o que designa por identidades e sexualidades fluídas. O que não deixa de ser, para todos os efeitos, um espaço político, já que se trata de um desafio político, no sentido de uma recusa das lógicas heteronormativas (Pepe, 2014, p. 4; Tierney, 1997; Foucault, 1976). Assim, antes do movimento LGBT, que em Portugal apenas surge verdadeiramente nos anos 1990, a música Canção de Engate representa uma rutura face à ditadura salazarista e suas representações sobre o homem português, rumando em direção, muito lentamente, contudo, a uma sociedade mais aberta (Pepe, 2014). Este sentido disruptor da canção reforça-se através da, igualmente disruptora, estética e performance corporal de António Variações, que com a sua carga homoerótica e representando um símbolo desviante das normas societárias portuguesas, subverte a noção de género, considerando-a longe de ser estável e natural, através de atos performativos que Variações levava a um ponto de colocar em causa, através das suas performances subversivas, a divisão entre homem/mulher (Featherstone e Turner, 1995). De igual modo, e concomitantemente a esta problemática, não deixa de abordar as consequências que podem advir de certos excessos e antinomias com a ordem vigente. Bem como o sentimento de isolamento que determinadas opções estéticas, musicais e sexuais podem provocar num país tradicional como Portugal e que António Variações estava dolorosamente consciente (Gonzaga, 2006, p. 135).
Quando a cabeça não tem juízo/ Quando te esforças/ Mais do que é preciso/ O corpo é que paga/ O corpo é que paga/ Deixa-o pagar, deixa-o pagar/ Se tu estás a gostar.../ Quando a cabeça não se liberta/ Das frustrações, inibições/ Toda essa força que te aperta/ O corpo é que sofre/ As privações mutilações/ Quando a cabeça está convencida/ De que ela é/ A oitava maravilha/O corpo é que sofre/ O corpo é que sofre/ Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer/ Se isso te dá prazer.../ Quando a cabeça está nessa confusão/ Estás sem saber que hás-de fazer/ E ingeres tudo o que te vem à mão/ O corpo é que fica/ Fica a cair, sem resistir/ Quando a cabeça rola pro-abismo/ Tu não controlas esse nervosismo/ A unha é que paga/ A unha é que paga/ Não paras de roer/ Nem que esteja a doer... Quando a cabeça não tem juízo/ E tu te consomes, mais do que é preciso/ O corpo é que paga/ O corpo é que paga/ Deixa-o pagar, deixa-o pagar/Se tu estás a gostar.../Deixa-o sofrer deixa-o sofrer/Se isso te dá prazer... (AntónioVariações, O Corpo é que Paga, 1983c).
Na lama/ Se me quiseres conhecer/ É la contigo/ Se me quiseres encontrar/ Vou ter prazer em vir tomar chá/ Estou no lado/ Estou no sítio/ Mal-afamado/ E estou esquisito/ Se me quiseres voltar a ver/ É la contigo/ Se me quiseres voltar a encontrar/ Terei prazer em vir tomar chá/ Estou no lado/ Estou no sítio/ Mal-afamado/ E estou esquisito/ E é lá que eu vou estar/ Até te escutar/ E é lá que eu vou estar/ Até te escutar/ Se me quiseres recordar/ É lá contigo/ Se me quiseres repetir/ a fazer par ou mesmo a dividir/ Estou no poço/ não reprimido/ é bem perigoso/ estou comigo/ E é lá que eu vou estar/ Até te escutar/ E é lá que eu vou estar (Humanos, Muda de Vida, 2004).
O que está aqui em causa são as “velhas” atribulações do self de Giddens (1991). Nos anos 1960 e 1970, procedeu-se a uma redescoberta desta questão muito por causa dos movimentos sociais que ocorreram nessas duas décadas, baseados no feminismo, etnicidade, sexualidade, etc., que desembocaram num discurso sobre uma identidade baseada na diferença (Woodward, 1997). Estes discursos dividiram-se em dois caminhos: uma perspetiva assente na “teoria social” (Giddens, 1991) e uma perspetiva “teoria cultural” (Butler, 1990, 1993). Esta última perspetiva preocupa-se com os aspetos fragmentários e problemáticos da identidade, muito focada nas oposições e relações de poder: homens/mulher, branco/negro, etc. A “teoria social”, por seu lado, defende que o self não é algo imutável e fixo e que se encontra num contínuo processo de mudança, consequências das alterações societais ocorridas na modernidade tardia, que teriam permitido aos indivíduos moldaram e (auto)construírem as suas identidades, a chamada trajectory of the self” postulada por Giddens (1991). Variações, através das suas líricas, torna estas duas perspetivas complectivas, ou melhor, inseparáveis na abordagem da contemporaneidade. E fá-lo através do corpo e da sua absent presence (Shilling, 1993). A importância do corpo e da corporalidade na obra de Variações não pode ser dissociada das melhorias sanitárias e consequente aumento da esperança média de vida, assim como, paradoxalmente do aumento dos riscos para a sustentabilidade do corpo, nas sociedades ocidentais incluindo Portugal. Com efeito, os corpos são objetivados e usados como um bem na cultura popular (Craik, 1994; MacDonald, 1995). Ora, um dos principais corolários daqui advindo centra-se na ideia que os corpos carecem sempre de aprimoramentos, nunca estando plenamente perfeitos (Holland, 2004) - fazendo lembrar a insatisfação vivencial de António19.
Como foi possível constatar, António Variações é de facto um barómetro para se analisar as especificidades de um Portugal dos anos 1980, recentemente saído de um longo período ditatorial e que em 1985 assinaria o tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), bem como um impulsionar de novas sonoridades musicais portuguesas. Tudo num período de rutura entre dois mundos, o tradicional e o moderno (ou pós-moderno), cujas características se encontram plasmadas no próprio António Variações e, como foi possível constatar neste pequeno exercício de análise efetuado, nas letras musicais do mesmo. De igual modo, o exercício efetuado permitiu aferir a importância das manifestações artísticas e culturais, neste caso ao nível da música popular, como uma forma de intervenção social face a um conjunto de questões sociais, bem como um elemento de construção e solidificação identitário. Mais, possibilitou visualizar um ator repleto de contradições, entre, por exemplo, um cosmopolitismo acima da média e um apego quase kitsch ao seu anjinho da guarda, isto é, um ator que partilhava todas as contradições em que a modernidade assenta e, mais relevante para o caso estudado, as contradições que consideramos terem marcado a sociedade portuguesa, uma sociedade em transição entre o tradicional e o moderno, entre um futuro europeu e um passado que custava a passar.

Figure 2. António Variações performing in the RTP in 1982.
Fonte: Zé F. Pinheiro.A abordagem da cultura portuguesa contemporânea focada em António Variações assumiu, assim, um sentido de abordagem da pluralidade de auto e hetro-identidades que a obra artística conjuga, congrega e dissemina. Aqui, e com António Variações, analisamos a identidade cultural como um processo (como uma história e como uma representação) plural, antinómico e recursivo. Dentro de uma axiomática fundada na necessidade de um renovado entendimento epistemológico (Guerra, 2017; Silva e Guerra, 2015; Guerra e Silva, 2014; Guerra e Januário, 2016 acerca do campo das artes, pretendemos demonstrar de que forma o artista António Variações - através das suas canções - foi e é produtor de conhecimento ao representar de forma própria e autónoma a realidade social, interferindo nesta, condicionando e gerando análises e interpretações no seio do conhecimento instituído.

Figure 1. António Variações in photo session in 1983.
Fonte: Zé F. Pinheiro.
Figure 2. António Variações performing in the RTP in 1982.
Fonte: Zé F. Pinheiro.